UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL | INSTITUTO DE ARTEs / DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS BACHARELADO EM ARTES VISUAIS
Hannah Beineke
Cartogr afias desenhadas recortes da cidade a partir de caminhadas e mapas urbanos
Porto Alegre 2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL | INSTITUTO DE ARTEs / DEPARTAMENTO DE ARTES VISUAIS BACHARELADO EM ARTES VISUAIS
Hannah Beineke
Cartogr afias desenhadas recortes da cidade a partir de caminhadas e mapas urbanos
Monografia apresentada comorequisito parcial à conclusão do curso de graduação em Artes Visuais - Bacharelado em Poéticas Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Sandra Rey Banca examinadora: Laura Castilhos
Teresinha Barachini
Porto Alegre 2013
Agr adecimentos
À todos que me incentivaram ao longo da construção deste trabalho. Ao professor Nico Rocha, pelas aulas de desenho que deram início à este processo À minha orientadora, Sandra Rey pela liberdade e confiança Às professoras Laura Castilho e Teresinha Barachini pelas observações preciosas da pré-banca À amiga Angela Peyrl pelo auxílio nas horas certas À amiga Dayse pela constante motivação À toda minha família por ser a base de tudo o que faço Ao meu pai, Guima Beineke pelo incentivo nos momentos de insegurança À minha mãe, Denise Rosa pelas incansáveis revisões e incentivo À minha dinda Naia Oliveira pelas palavras sempre sóbrias e motivação para a arte Ao meu irmão Carl que sempre está por perto quando alguma coisa pifa. Ao meu Avô Dirceu pelas sábias conversas Ao Thiago Ribeiro pelo apoio e paciência
Aos artistas e colegas que indiretamente fizeram parte dessa jornada com suas obras e canções que ilustraram e embalaram meu processo criativo
“Meu relato será fiel à realidade ou, em todo caso, à minha lembrança pessoal da realidade, o que é a mesma coisa.” Jorge Luis Borges - Ulrica - O Livro de Areia
Sumário
Agradecimentos
3
Foto-cartografias
31
Sumário
5
Cartografia humana
32
A construção de um modo de ver 13
Mesa de trabalho
33
De papeis sobrepostos à mapas
7
Montagem da Exposição
34
Entre o real e o ficcional
10
notas finais
28
O Percurso - Um passo depois do outro
15
Referências
35
SILHUETAS DESENHADAS
27
território - O lugar que habito
18
A escolha e delimitação do território
21
o PROCESSO para fora do ateliê
26
O TRAJETO
23
Silhuetas desenhadas
30
Resumo
Ao tomar conciência dos trajetos que percorremos dentro da cidade, fiz uma conexão entre minha vida e a minha arte. A partir desta constatação, criei um processo de trabalho envolvendo mapas, realidade, afetividade e caminhadas que acionam memórias sendo a base de meus trabalhos práticos. Para mim, a pessoa é composta pelos trajetos que executa. Os mapas, simbolizando os trajetos, estão dentro de silhuetas que representam as pessoas. Relacionando a silhueta humana e os mapas, como representação da cidade, proponho uma discussão sobre as responsabilidades individuais nos espaços coletivos de passagem. Quando iniciei este trabalho, como quem inicia um percuso desconhecido, eu não tinha certeza de onde iria chegar e nem dos caminhos que percorreria. Observar os trajetos, registrar pontos de interesse, comparar as percepções e os materiais das diversas caminhadas que realizei, foram as primeiras etapas de meu trabalho. Estas permitiram que, ao adicionar fragmentos de mapas às silhuetas, eu conseguisse compor plasticamente a percepção que tive dos trajetos. As cartografias que crio como expressão de um trajeto específico percorrido são um exercício de escala para fragmentos de caminhos reais que represento em novos caminhos ficcionais. Para isto utilizo-me de fotografias do trajeto que percorri, desenhos, recortes e anotações. Na exposição final o expectador não tem a noção dos percursos que realizei, mas as obras podem acionar em sua memória lembranças de trajetos que já tenha percorrido.
A construção de um modo de ver
Estou sentada à mesa de um café, ouvindo mú-
era longo e cinza com extensos campos verdes, agora
sica ambiente e rodeada de livros. Foi mais ou me-
é rápido azul e fluido. Assim como este deslocamento,
nos num ponto como este que se deu o início des-
meu projeto ganhou um novo horizonte. A paisagem e
te trabalho. Cada cidade tem um ritmo, assim como
os mapas se fundem para criar novas rendas e ganhar
cada livro ou música... Eu não moro em Porto Alegre,
uma silhueta.
mas a frequento, e seu ritmo é algo estranho a mim.
Em meu processo de trabalho uso a silhueta hu-
Ao deslocar-me de Guaíba à Porto Alegre, percebo a
mana, minha ou de outros, para refletir sobre a atu-
aceleração no meu próprio tempo. Esta cidade para
ação da pessoa nos trajetos e a influència destes no
onde vou, e que ruge em sua pressa, se desmancha
meu imaginário. A minha percepção dos percursos
sob a sensação que tive na primeira vez em que per-
é fragmentária, a imagem que tenho na memória é
corri este trajeto; torna-se papel; seus prédios robus-
composta por diversas lembranças e imagens. Assim
tos são, para mim, como frágeis papéis sobrepostos.
como a visão que tenho da entrada de Porto Alegre é
Os prédios ganham a leveza do recorte; os trilhos do
relacionada às primeiras visitas à metrópole, todos os
trem, finos traços; tudo é suspenso nestes segundos
outros percursos que realizo carregam em si a me-
em que atravesso de ônibus a Ponte sobre o Rio Gua-
mória de trânsitos anteriores.
íba.
Além da carga afetiva, meus percursos carregam
Iniciei este trabalho em 2010, quando a única for-
a memória dos mapas que utilizo para localizar-me.
ma de chegar a Porto Alegre era atravessar a pon-
Quando fui estudar em Porto Alegre, me vi perdida
te. Hoje, minha situação é outra, raras vezes cruzo a
em uma cidade grande. Conhecia algumas ruas, mas
ponte, pois posso cruzar o rio de barco. O trajeto que
não conseguia saber como elas ligavam-se entre si. Eu
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Módulos do trabalho na beira do Guaíba com a ilha das pedras brancas e Porto alegre ao fundo
observava as construções e movimentações das ruas
ção no mapa. Com frequência, passei a olhar o google
com grande interesse, mas não conseguia localizar-
maps procurando situar meus trajetos. Através des-
-me. Esta falta de localização me inquietava. Para me
te trânsito entre mapas, realidade e afetividade, fui
auxiliar meu pai sugeriu que, ao passar por uma rua
construindo, além de um modo de deslocar-me, uma
desconhecida, buscasse compreender sua localiza-
percepção própria dos percursos.
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De papÉis sobrepostos a mapas
Ao acordar via prédios; uma centena deles sobre-
por ser de fácil acesso e estar inserida no cotidiano
pondo-se uns aos outros. Uma linha angulada dividia
e no imaginário, meu e da população. Utilizo apenas
cidade e céu. A viagem seguia e meus pensamentos se
o desenho do mapa, onde são traçadas as ruas, ave-
multiplicavam em turbilhão formando ruas, quadras,
nidas, rios, etc. Seleciono as partes que me interes-
vistas; imaginando como aqueles edifícios de papel
sam e imprimo para trabalhar nas próximas etapas
levemente sobrepostos se organizavam como prédios
do processo.
robustos margeando as veias da cidade.
Durante os percursos, tenho os mapas apenas na
Minha silhueta surge como a da cidade, planifi-
memória. Posteriormente desenho o trajeto percor-
cando e redimensionando o tridimensional. Somos,
rido e vejo de forma plana o percurso que acabei de
neste instante, apenas um traço, o limite de meu
escrever na rua. Aproprio-me fisicamente do mapa de
corpo torna-se o limite da cidade. Veias e artérias
Guaíba ao transpor fragmentos deste à silhueta. Nes-
tornam-se ruas e estradas quando o mapa de minha
te ponto os percursos não aparecem explicitamente,
cidade está dentro da minha silhueta. Transito pelas
as ruas que percorri estão presentes em algum lugar,
ruas como por minhas lembranças. O que está fora
o espectador não identificará um ou outro trajeto.
também está dentro de mim. As paisagens, os sons,
Terá apenas a noção de mapa e os desenhos repre-
as ideias unem-se em memórias.
sentando lugares e texturas, que tanto podem estar
Cartografia humana
O mapa que utilizo para localizar-me é do goo-
no caminho que percorri quanto em qualquer outro
(Fragmento), 2013
gle maps. Aproprio-me desta plataforma digital de
caminho que outrem possa vir a lembrar. Para a com-
papel vegetal, recorte e nankin
localização baseada em imagens obtidas via satélite
preensão do trabalho final a representação pode ser
594x1700mm
10
de qualquer um em qualquer lugar. Pode acionar as
curso. Já, quando o tempo de deslocamento é irre-
memórias pessoais de cada pessoa, os caminho que
levante, o trajeto assume um papel contemplativo e
cada um, individualmente, tem gravado em sua me-
passo a estar presente. Percebendo o trajeto passa-
mória. O que vemos é uma silhueta delimitando ma-
mos a ter um papel ativo nele.
pas e desenhos.
A escrita, assim como os trajetos ativos, é cons-
Relacionando a silhueta humana como represen-
ciente. Certeu compara o ato de caminhar ao ato de
tação do corpo e os mapas como representação da
escrever e, com isso, está empoderando o cidadão no
cidade posso propor, entre outras, uma discussão
sentido de dar-lhe a possibilidade de escrever seus
sobre as responsabilidades individuais nos espaço de
percursos de forma consciente. Afirma que “a maio-
passagem (coletivos). Uma integração entre os espa-
ria das pessoas - a maioria de nós - segue, a maior
ços da cidade e as pessoa. Em Cartografias Desenha-
parte das vezes, o hábito e a rotina: comportamo-nos
das a silhueta é o limite da cidade e tem dentro de si um território próprio, único, onde mapas e desenhos de elementos da cidade formam a figura/pessoa. Bauman, em Vida em Fragmentos coloca que “o indivíduo, o proprietário privativo do corpo, está no comando. A proteção das fronteiras e a administração do território no interior de seus limites são de sua responsabilidade”(BAUMAN, 1995). O território que está dentro da minha silhueta é a cidade em que vivo. Este território seria tanto responsabilidade minha como de todos os outros transeuntes que por ela circulam. Todo aquele que escreve suas próprias linhas pelos caminhos públicos da cidade teria responsabilidade sobre eles. Ao perceber em diversos pontos do trajeto a degradação do espaço público essas reflexões tomam mais força. Percebo que quando o deslocamento é determinado apenas à chegada a um lugar específico, crio uma sensação de ausência e passo a não mais perceber as características do per-
Silhuetas Desenhadas, 2013 ampliação de desenho 297 × 420mm
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hoje da mesma forma como fizemos ontem e como
que as multidões exageram, distorcem, fragmentam
as pessoas ao nosso redor continuam a se compor-
e alteram a ordem da caminhada. Estes movimentos
tar” (CERTEAU, 1991). Bauman está nos apresentando
realizo na produção de “Cartografias desenhadas: a
uma forma passiva do comportamento do ser huma-
cidade”, onde a fragmentação é reordenada criando
no. O deslocamento é uma forma de comportamento,
uma expressão do trajeto que percorri.
Cartografia humana (Fragmento), 2013 papel vegetal, recorte e nankin 594x1700mm
se abdicamos da “escrita” na forma ativa e passamos a “copiar” de forma passiva, estamos novamente ausentes de nossos próprios trajetos. Estamos abrindo mão da capacidade que temos de ser ativos no percurso. Daniela Cidade descreve este comportamento em seu artigo “Um olhar pela cidade”: “Os deslocamentos cada vez mais rápidos diante da arquitetura no espaço urbano estabelece uma relação de ausência e presença, pois os elementos do espaço deixam de ser percebidos. Dessa forma, a cidade passa a ser analisada como um enigma visual, não somente pelas contradições que nela estão presentes, mas também por ela se tornar um campo cego.” (CIDADE, 2006)
Para Certeau, o nível de atenção ao trajeto é irrelevante, em qualquer nível fragmentos são assimilados. A cada execução do percurso sobreponho fragmentos do trajeto na memória. Assim como separo, seleciono, reordeno e sobreponho fragmentos de mapas e desenhos, feitos a partir de fotografias, nos trabalhos. Para Milton Santos, é preciso subdividir, esfacelar a totalidade para poder compreendê-la, pois “pensar a totalidade, sem pensar a sua cisão é como se a esvaziássemos de movimento” (SANTOS, 2006). Em relação à percepção do trajeto como escrita, Certeu afirma
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Entre o real e o ficcional
As cartografias que crio, como expressão de um trajeto específico percorrido, são uma tentativa de transpor o real tridimensional em um suporte bidimensional. Um exercício de escala, em que no micro se represente o macro. Adriano Pedrosa, para falar de Jorge Macchi, define cartografia a partir do conceito ficcional de Jorge Luis Borges em que determinada cidade alcançara tal perfeição cartográfica que seu mapa final era gigantesco e só poderia ser apropriado em fragmentos, assim como a própria cidade. A partir disto Pedrosa define que “a cartografia tradicional é sobretudo um exercício de escala - a transposição do macro para o micro - inescapavelmente resulta em
paisagens naturais e urbanas que desejava representar, podemos vislumbrar um novo território para os mapas: um que pertence ao reino da ficção e fragmento, o pessoal e psicológico.” (Pedrosa, 2011)²
1 Tradução livre “Traditional cartography is above all an exercise in scale—the transposition from the macro to the micro—which inescapably results in reduction and simplification” 2 Tradução livre “If we acknowledge the limits of contemporary cartography, its utopian exactitude and science, if we accept the fact that the perfect map has been drawn, constructed, abandoned and left to rot in the landscapes and cityscapes it longed to represent, we may envision a new territory for maps: one that is in the realm of fiction and fragment, the personal and psychological”
redução e simplificação” (Pedrosa, 2011)¹ e, mais adiante, “Se reconhecemos os limites da cartografia contemporânea, a sua exatidão utópica e ciência, se aceitarmos o fato de que o mapa perfeito foi desenhado, construído, abandonado e deixado para apodrecer nas
Cartografia humana (detalhe), 2013 papel vegetal, recorte e nankin 594x1700mm
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Pensando os mapas que crio como ficcionais e
Ao secar a cidade, Macchi está deixando aparente
psicológicos, Cartografias Desenhadas é um mapa
apenas o que é transitável, a parte da cidade que pode
dentro deste novo território. São fragmentos de ca-
ser apropriada por todos. Vejo isso como uma seme-
minhos reais que represento em novos caminhos fic-
lhança e não, diferença. Em Buenos Aires Tour Mac-
cionais. No trabalho existe pontes com a realidade;
chi transita pelos espaços que restariam se o mapa
fotografias, desenhos ruas; entretanto, não é possível
de Buenos Aires fosse recortado. Se transitar pelas
reconhece-las como representações lineares da rea-
ruas estará cumprindo um itinerário por estas vias
lidade. As pontes estão embaralhadas, distorcidas e,
que sobraram, captando sons, coletando objetos de
por isso, podem assumir não só a representação do
uma cidade seca.
lugar específico, bem como de qualquer lugar exis-
Corto as quadras, praças e edifícios de meus ma-
tente ou sonhado. Assim, como na ficção de Borges,
pas. Vazo sua carne, mas não o esvazio, pois o flu-
meu trabalho está no limiar da realidade com a ima-
xo continua a circular pelas vias da cidade tal qual o
ginação.
sangue flui por minhas veias. Subtraio as porções de
Dois trabalhos de Macchi me chamam atenção
terra para poder ver através delas e para acentuar as
especial e são descritos no texto de Pedrosa como
vias. Antes de sumir com a terra, quero ver as ruas
opostos: Buenos Aires Tour e Amsterdã. Pedrosa de-
e somente a partir delas poder enxergar as porções
fine o primeiro como “um ato complexo de investigar
suprimidas do mapa. Crio meus mapas a partir dos
e documentar a cidade, é apenas incompleta ou par-
lugares compartilhados.
cialmente realizada, por meio de fragmentos e lem-
No trabalho “Cidades Enigmas”, Daniel Escobar
branças” (Pedrosa, 2011). Em comparação dos dois
apresenta vazados de mapas turísticos desmontando
trabalhos define que
suas estruturas das ruas e remontando-as pelo ver-
“se por meio de Shattered Glass Buenos Aires Tour vai além da grade da cidade para buscar seus elementos intersticiais, na bem conhecida série mapas recortados, Macchi faz o oposto: ele tenta transformar a cidade em rede pura, representando-a através de seu esqueleto. Corta todos os edifícios, quadras e praças de diferentes mapas da cidade, secar a carne e fluidos de diferentes cidades, para deixar apenas as ruas” (Pedrosa, 2011)
Buenos Aires Tour Jorge Macchi com colaboração de Edgardo Rudnitzky (sonidos) y Maria Negroni (textos) - 2004 Libro-objeto 15,5 x 21,5 x 6,5 cm.
so. Faz uma discussão do espaço enquanto suporte para publicidade, onde o verso de propaganda dos mapas representa o caos de informações dispostas pelo espaço urbano. Meu trabalho se aproxima deste de Escobar por trabalhar com mapas e com o espaço urbano. Não lido diretamente com a questão da publicidade, entretanto, esta permeia os caminhos que
Amsterdam (2004) Jorge Macchi Papel. 100 x 110 cm.
realizo no meu dia-a-dia. A minha forma de perceber o mundo também foi influenciada por ela, se levar
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em consideração que cresci vendo outdoors, flyers,
da parte planejada da cidade de Belo Horizonte no
letreiros, comerciais e mais tarde passei a produzir
trabalho Continum, também de Escobar. Ele discu-
tais peças comercialmente. A publicidade faz parte
te a expansão e transformação das cidades. Vivemos
de meu imaginário, entretanto não aparece de forma
dentro da paisagem que nós mesmos modificamos
explicita em minha produção.
como um espaço de criação contínua entre a terra
Ao suprimir as ruas e inverter os mapas, Escobar
e o ser humano que a habita e tranforma. Andamos
cria um espaço vazio entre as quadras, que, como em
pelas ruas que criamos e podemos modificar tanto os
uma tela branca, vejo como um convite a pensar e
trajetos físicos reais, quanto as lembranças e percep-
trabalhar. Os fragmentos de publicidade que restam
ções que temos deles. Ao levar o processo de cons-
nas Cidades Enigmas de Escobar são justamente as
trução de minhas cartografias ao espaço expositivo,
partes que subtraio de meus mapas. Escolho o espaço
quero reforçar esta compreenção de que podemos
a preencher, a compor, a pensar. Minha matéria de
alterar os espaços através do nosso pertencimento;
trabalho está nestas linhas brancas que se formam
que podemos agir nos espaços de circulação da cida-
no vazio entre as porções de publicidade de Escobar.
de. Podemos repensar nossas caminhadas e nossas
As mesmas linhas brancas escorrem por fragmenta-
lembranças.
doras de papel formando uma trama representativa
Cidades Enigmas (2009-2010) Daniel Escobar
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Tr aço por tr aço
Estas silhuetas já desenhadas com mapas são a
em que não se tem contato com as ferramentas de
base para a fragmentação e criação dos módulos. São
trabalho. Minha intenção era usar de processos len-
expostas como obra, tendo o mesmo sentido do que
tos para refletir sobre a pressa e o imediatismo que
foi explanado nos capítulos anteriores, porém sem o
vivemos. Víctor Grippo, eu seu texto “Alguns Ofícios”,
recorte. O que vemos nelas é a acentuação do traço
fala sobre essa relação com esperança de que se reto-
manual do desenho, pois estas são a ampliação das
mem os ofícios manuais. “Há momentos perfeitos no
silhuetas originais portanto, os traços imperfeitos
trabalho do homem onde é impossível definir se é ele
realizados por mim na hora de copiar o mapa, são
quem guia a ferramenta ou a ferramenta que move
aparentes. Apesar de serem geradas de forma auto-
sua mão”.
mática através de cópia de ampliação, o caráter manual é bastante acentuado. O fazer manual em meu trabalho é uma forma de contra-fluxo da minha tendência aos meios virtuais,
Ao executar movimentos repetitivos de desenho e recorte busco essa sensação de perfeição no trabalho. Um conjunto entre ser e ferramenta; ser e trabalho; ser e trajeto.
Silhuetas Desenhadas, 2013 ampliação de desenho 110 × 160 cm 16
O Percurso - Um passo depois do outro
espaço caminho trajeto decorrer decurso discurso transcurso curso itinerário deslocamento etapa movimento defluência jornada duração sucessão rota passagem permanência área digressão direção peregrinação andança trilho rastro intermeio desvio estorvo
Fotografia obtida em uma das caminhadas deste trabalho. Faz parte de uma das foto-cartografias
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própria rua, estou por um instante tal qual as pedras do caminho, inerte marcando um ponto no caminho.
Estou andando. Em pleno movimento Sem mais, paro.
Tudo o que vejo é passageiro e se transforma a cada espaço de tempo. Eu me transformo assim como o trajeto.
Interrompo o percurso escrevendo uma vírgula
A escolha de um ponto a capturar no percurso se
no trajeto. Observo vestígios das vidas que compar-
dá de forma intuitiva. Algo que chama atenção por
tilham comigo este ponto do trajeto. Vejo um refúgio
remeter à alguma memória, sentimento, por poder
habitado por um ser que desconheço. Logo adiante
gerar um registro interessante... a máquina fotográ-
pequenas plantas crescem entre paralelepípedos ir-
fica que me acompanha é um artigo (in)útil. Grava um
regulares que cobrem a terra criando uma rua. Árvo-
instante que já não mais existe. A placa que outrora
res cercadas por grades crescem sozinhas deixando
via-se de ponta-cabeça, agora já está em seu devido
entrever fragmentos da imagem do rio Guaíba. En-
lugar. A esquadria encontrada nos braços do poste já
tre passos, olhares, sons, fotografias e desenhos vou
desapareceu. O desleixo da permanência nestes, e
compondo minha visão deste trajeto.
em muito outros casos, não aconteceu e a ordem foi
A cada passo se abre uma fenda sob meus pés. Essa fenda se estende até o espaço determinado ao próximo passo. Esse pequeno deslocamento sobre esta fenda de espaço me leva a um ponto mais próximo do futuro e me deixa um passo mais longe de meu passado. A rua se esvai e se reconstrói. A medida que ando o trajeto se modifica, se distingue de meus trajetos já realizados e da ideia que tenho para o que está em curso. Enquanto caminho, minha lembrança Fotografia obtida na primeira caminhada para este projeto
está no mesmo plano da realidade, ambas ante meus olhos. A rua não é mais um lugar e sim um deserto. De-
retomada. A fotografia é o registro de um instante
serto de peregrinos (Bauman, 1995), andantes bus-
ou situação que já não mais existe. Cada registro é
cando desenhar suas próprias trajetórias no espaço.
um presente que se transfigura em passado gerando
Eu sou parte deste deserto, sou neste momento a
uma memória, um modo de acessar virtualmente os
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Fotografia da primeira caminhada que posteriormente fora trabalhada na forma de desenho. Ao olhar esta estrutura imediatamente me lembrei das obras de Richard Serra, a partir deste pensamento passei a tentar compreender a forma como me relaciono com os trajetos e as imagens destes.
trajetos quando não mais estou executando-os.¹ A fo-
ser reais quando são transfigurados em trabalho ar-
tografia como registro dos trajetos é, para mim, mais
tístico, no meu caso, quando passam a fazer parte de
um fragmento de memória dos meus percursos.
meu mapas desenhados.
O artista Francis Alys em sua convivência na Ci-
1 “A fotografia é, pois, a articulação entre o que se perde e o que permanece” (SOULAGES, 2005) No trecho “perda e permanência” de seu livro Estética da fotografia, Soulages versa sobre como as perdas da fotografia muitas vezes valorizam o instante que foi perdido não por sua importância, mas por não ser mais acessível além da foto. Mais adiante no mesmo livro, nos fala que “a fotografia pertence à esfera de uma estética do fragmento”. A partir do pensamento de Saulages vejo que a fotografia, a partir do ponto de vista do fotógrafo, registra um fragmento bidimensinal de uma cena, se torna memória do instante para depois ser trabalhada enquanto imagem digital ou negativo, criando um outro instante sobreposto ao primeiro.
dade do México realiza caminhadas como forma de interação. Registra através do video, da fotografia e da memória, presentes que serão refeitos em presentes subsequentes, onde o real e o virtual se confundem. Em Children’s Game #1: Caracoles (Mexico City 1999 4:34 min.) registra um menino chutando uma garrafa de refrigerente lomba acima, mais adiante este registro se tornará novamente presente ao final de Paradox of Praxis, onde arrasta um bloco de gelo e acaba por chutá-lo, quase como em uma brincadeira
Children’s Game #1: Caracoles (Mexico City 1999 4:34 min.)
Acima e abaixo: Cenas da performance Paradox of Praxis
de criança, até sumir. Meus percursos são carregados de uma impermanência ambígua similar a que encontro nos trabalhos de Francis Alys. São reais enquanto presentes caminhadas, virtuais enquanto registro e tornam a
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território - O lugar que habito
As ruas por onde me desloco, onde trabalho, onde moro, locais de lazer que frequento, são meu territó-
de caminhadas inicio a ocupação do espaço limitando-o aos bairros Centro e Engenho.
rio particular. Posso escolher, além de uma localida-
Caminho em busca de memórias, reescrevendo
de, um conjunto de ações para definir meu territó-
trajetos que já fazem parte do meu imaginário. Estes
rio. Milton Santos defende que a noção de território
trajetos que faço com mínimas alterações estão den-
se alterou nos últimos séculos, deixando de ser um
tro da zona urbana de Guaíba. Desejo apropriar-me
conceito estático para definir apenas uma localida-
da cidade onde nasci, para onde voltei de tempos em
de. Para Santos “o território são formas, mas o terri-
tempos e onde moro atualmente. Cidade que carre-
tório usado são objetos e ações, sinônimo de espaço
ga o peso das minhas escolhas, do meu dia-a-dia. De
humano, espaço habitado” (SANTOS, 1994). Em um livro posterior passa a separar o conceito de território e espaço. Afirma que “a configuração territorial é dada pelo conjunto formado pelos sistemas naturais existentes em um dado país ou numa dada área e pelos acréscimos que os homens superimpuseram a esses sistemas naturais” (SANTOS, 2006), as ações que acontecem nos territórios passam a ser tratadas como espaço. Para restringir meu campo de trabalho delimito meu território na cidade de Guaíba a partir de noções e experiências pessoais. Feito isso, através
Fotografia do trajeto percorrido que faz parte das foto-cartografias
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onde parto, atravessando o rio, para estudar no Ins-
que vem se intensificando nos últimos anos junto à
tituto de Artes da UFRGS e para onde volto de barco
possibilidade turística que se abriu com o advento da
com a finalidade de trabalhar e descansar.
travessia Guaíba/Porto Alegre, contribuiram de for-
Guaíba pertencente à Região Metropolitana de Porto Alegre e também à região da Costa Doce. Vizi-
ma expressiva para o aumento do fluxo de transeuntes e para a recuperação da cidade.
nha da capital do Rio Grande do Sul, tem o rio Guaí-
Meu interesse em observar a movimentação das
ba como divisa. No início de sua história, Guaíba era
pessoas e os espaços urbanos já vem de algum tempo.
a principal via de acesso da metade sul do estado à
Em 2007 criei o blog “Cidade Apavorada”, com regis-
Porto Alegre. Escoavam via fluvial, transpondo o rio
tros pessoais, relatos do cotidiano e poesias. Mais ou
Guaíba: cereais, papel, papelão e, principalmente,
menos nesta época, começo a refletir, ainda através
carne e charque.¹ Com a construção, em 1958, da pon-
da poesia e do texto, sobre a cidade como um todo.
te com vão móvel sobre o rio Guaíba a relação dos ha-
Uma das primeiras postagens do blog foi a poesia
bitantes da cidade com o rio mudou. Sua subsistência
“Cidade”, onde algumas frases já introduzem a temá-
já não vinha mais do abastecimento da capital através
tica que venho desenvolvendo hoje como “Ao olhar
do rio e aos poucos cessaram as viajens e as barcas
a fria rua | multidões desordenadas | Seus vestígios
deixaram de funcionar. Depois de décadas sem tra-
largados | A vida suja entre seus lados”, referindo-me
vessia fluvial, em outubro de 2011 inicia novamente o
à relação dos habitantes com a cidade, ou “uma ilha
transporte de passageiros². O retorno da utilização
segura | Onde o tempo parece não entrar”, ao falar
do rio como via alterou novamente a relação das pes-
da Ilha das Pedras Brancas, que faz parte de nossa
soas com o rio e a cidade. Passam a ser vistos outra
paisagem no rio Guaíba. A Ilha das Pedras Brancas
vez como fonte de renda, agora por meio do turismo.
é um local que já foi depósito de pólvora e presídio,
Desde criança moro no centro de Guaíba. Era um
hoje tem suas ruínas tomadas pela vegetação. As es-
local calmo e, mesmo no centro comercial, a circu-
trofes referentes à cidade podem servir tanto à Porto
lação de pessoas e carros não era intensa. Ao longo
Alegre quanto à Guaíba. Relato com tristeza a relação
dos anos a movimentação foi aumentando e a cidade
das pessoas com os espaços de passagem. As ruas e
tornando-se cada vez mais mal cuidada e feia. Hoje
os parques eram tratados com desleixo e desdém. De
temos um alto fluxo de pessoas se locomovendo no
forma tímida e poética, inicio uma discussão das con-
centro de Guaíba e se torna aparente o aumento da
vivências na cidade e a utilização do espaço público.
auto-estima da população; a cidade torna a ser mais
Outro registro marcante para mim sobre a me-
bem cuidada. O fortalecimento do comércio local,
mória e a cidade está em um caderno de anotações
1 As informações sobre a origem da cidade foram extraidas do artigo “Roteiro Histórico-cultural: “Caminho Farroupilha” / Guaíba” apresentado ao programa de Pós-graduação da Ulbra/Guaíba, por Míriam Ericksson Leão, licenciada em Artes Visuais pela UFRGS e Ana Gisele Corleta Martinez, licenciada em História pela PURS. Ambas são moradoras da cidade de Guaíba. 2 A empresa Catsul, passa a explorar economicamente a travessia fazendo o transporte de passageiros intermunicipal entre Guaíba e Porto Alegre com catamarãs. http://www. travessiapoaguaiba.com.br/
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não datadas, mas ainda anterior à poesia. Passei um período de alguns meses sem ir a Porto Alegre e registro a sensação de voltar a andar pelas ruas. Transcrevo aqui um pequeno trecho: “Engano-me ao pensar que tudo permanece igual. A ausência foi pouca, mas o tempo se multiplica e torna tudo diferente.”. As pequenas mudanças já se tornavam aparentes para mim. Conforme o tempo foi passando, fui percebendo com mais intensidade estas mudanças que estão sempre acontecendo, tanto na cidade quanto em mim
Fotografias da série Cidade Apavorada, 2008 Fotografia 20x30cm
e nas pessoas a minha volta. Este início de processo carrega reações exageradas, muitas vezes tratando superficialmente questões que retornam a minha produção. O pensar e repensar a cidade permitiu que, aos poucos, eu fosse tratando o assunto de forma menos exacerbada e mais consis-
a maioria das pessoas passa diariamente e não per-
tente. A busca de novas formas de expressão contri-
cebe, ou que podem ser acentuadas pelo enquadra-
buiu de forma expressiva para o amadurecimento dos
mento fotográfico, como as linhas das faixas de segu-
meus pensamentos sobre a cidade.
rança recém pintadas, placas de trânsito deslocadas,
Em 2008 realizo uma série de fotografias, ho-
fios de luz aparentes. Sem perceber, minhas cami-
mônima ao blog, onde registro situações gráficas ou
nhadas pela cidade já tem início neste período onde
peculiares da cidade. Interessam-me situações que
saio “para fotografar”, pois já busco refletir sobre as situações e trajetos. Muito da relação que tenho com os percursos que realizo hoje vem dessas primeiras caminhadas onde, muito além de só fotografar, intuitivamente já pensava e, por vezes, alterava os trajetos e as paisagens por onde passava.
Da série Cidade Apavorada, 2008 Fotografia 20x30cm
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A escolha e delimitação do território
Iniciei as caminhadas para este trabalho em janei-
nhecido de outra passada. A localização me preocu-
ro de 2013. No começo o trajeto foi realizado de forma
pava muito ao longo do percurso, seguia anotando o
intuitiva, apenas levando em consideração o tipo de
nome das ruas para não perdê-las entre as lembran-
terreno, por ser mais plano que o resto da cidade e
ças. Precisava constantemente de alguma referência
próximo do rio. Saio do centro da cidade, próximo à
para localizar-me. Segui tentando conduzir meu tra-
hidroviária e sigo andando por uma rua paralela ao
jeto até o ponto de partida. A relação que tive com
rio entrando no bairro Engenho. Eu já conhecia o local, entretando nunca havia explorado com atenção suas características visuais. Foi uma experiência particularmente rica pela quantidade de referências que evocou em minha memória, tanto no campo da arte como pessoal. Durante os trajetos, anseio por reconhecer objetos, ruas, pessoas, paisagens conhecidas ou que acionem alguma lembrança. Sigo tentando reter as memórias deste percurso através de desenhos, fotografias e relatos. A primeira caminhada foi realizada em Guaíba com resultado muito satisfatório. Por ocasião de uma viagem a Itajaí, resolvi tentar reproduzir o mesmo processo lá. Escolhi o ponto de partida por já ser co-
Imagens de meu caderno de anotações onde, à esquerda, registrei o nome das ruas em Itajaí, acima desenhos e notas que fiz durante o percurso realizado em Guaíba
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este percurso provocou em mim uma ansiedade muito grande, ao invés de ater-me às qualidades do percurso e ao decorrer da construção do trajeto, eu precisava certificar-me de que andava em “algum caminho”. As memórias acionadas eram por semelhança e diferença a outros lugares. O esforço associativo era grande, e mesmo o de guardar na memória os fragmentos do trajeto suficientes para a produção do
Desenhos realizados durante os percursos
meu trabalho. Ao optar por trabalhar apenas com o trajeto “conhecido”; que já contenha uma carga de lembranças, especificamente o da primeira caminhada, levei em consideração o sentimento de pertencimento que tive durante o percurso que me possibilitava observar com mais atenção os meus interesses nele. Refazendo-o de tempos em tempos pude perceber qualidades visuais, sonoras e sociais que não se mostram tão enfáticas, ou mesmo visíveis, num primeiro exercício. A escolha do território tornou-se então um ponto de grande importância em meu trabalho. 24
O TRAJETO
“Cruzo a rua, e entro no pequeno jardim de uma casa onde funciona uma academia de balé. Dou a volta na casa, reconheço o quintal com amendoeira, e lembro que aqui morava um conhecido meu, um que dava festas e tinha uma irmã paralítica.” Estorvo. Chico Buarque
Movo meus pés pesadamente pela rua. Minhas mãos ansiosas equilibram o celular, um bloco de desenho e uma caneta. Vejo uma placa de pernas pro ar, uma esquadria a descansar em um poste, rejeitos nada habituais, pessoas caminhando. Vou fotografando timidamente um e outro evento. Chego a um cruzamento e ouço meus passos silenciarem, crio uma pausa na partitura que meus pés escrevem. Movendo-me novamente, atravesso a rua. Sinto o plano e a textura áspera do asfalto através do fino solado de minhas sapatilhas. As casas surgem nos terrenos
Fotografias das caminhadas realizadas ao longo de 2013.
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como se tivessem ali brotado espontaneamente. O trajeto me envolve por completo. Caminho lentamente adicionando a cada ponto memórias anteriores daquele local. Memórias que muitas vezes pareciam esquecidas retornam no decorrer do percurso. Relacionando semelhanças e diferenças entre o passado e o presente, minha memória pessoal se funde com a memória que construo do trajeto. Lembro de caminhar sobre paralelepípedos irregulares que outrora cobriram a rua. Vejo as casas reformadas e comparo com às que via na infância.
fui e voltei por esta rua, vejo uma casa em ruínas; um
Olho para a beira do Guaíba e, só vendo o barro ver-
local que já fora habitado antes e hoje vive sua de-
melho revolvido, lembro da primeira caminhada na
cadência. São gramíneas crescendo descontroladas,
qual deparei-me com uma enorme peça de metal que
árvores espalhando seus galhos por onde outrora não
lembrava as esculturas de Richard Serra.
podiam. A natureza restabelece sua ordem. Por di-
Quando caminho, meu olhar dança pela paisa-
versas vezes, passei a observar as formas das plantas
gem. Meus pés automaticamente desviam dos bura-
que envolvem os delicados azulejos de um rosa anti-
cos e obstáculos do caminho. Observo uma flor bro-
go do que tudo indica ter sido um pequeno banheiro;
tando no valão que transponho sobre uma pequena
as paredes ora esverdeadas, ora azuladas do restante
ponte com vista para o Guaíba. Inúmeras reflexões
da habitação destruída; os pilares tombados ao chão
e lembranças brotam deste ínfimo encontro de meu
envoltos por uma fina camada de grama e pequenas
olhar com a flor. Um saco de “pão” cheio de pedaços
ervas que aderem sua extenssão; o muro ruído e o
de cimento que será em breve levado por um cami-
portão de madeira lembrando a porteira um de sítio
nhão de lixo. As marcas de uma escavadeira na lama.
qualquer.
A grama alta de um ou outro jardim. A cada caminha-
As muitas casas que vejo no percurso são todas
da vejo, anoto e fotografo coisas diferentes. Percebo
dotadas de uma certa singularidade. Por mais que
que, às vezes, minha atenção está mais focada nas
algumas tenham as mesmas características arquite-
coisas efêmeras; outras, nas permanências mutáveis;
tonicas, é visível a marca pessoal dos moradores em
outras, nas ações do tempo.
cada uma. Vemos mais ou menos plantas, em vasos
À minha esquerda, posteriormente direita, pois
suspensos ou como jardim, acúmulo de entulho, cor-
Fotografias das caminhadas realizadas ao longo de 2013.
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tinas na janelas, persianas, sinos, caixas de correiro, uma infinidade de objetos e cores se espalham criando os ambientes adequados a cada habitante. Exetuando algumas casas abandonadas, mas que também conservam características individuais de quem um dia já as habitou e da natureza que as ocupa hoje. As casas abrigam pessoas, os terrenos todos pertencem a alguém, a própria margem do rio e as ruas pertencem ao município. O que não é de um é de todos. Os transeuntes, aqui, vem e vão para algum lugar ocupando o seu lugar comum. Mesmo que circulem poucas pessoas, estamos em um território de passagem. Segundo Michel de Certeu “caminhar é ter falta de lugar” (CERTEAU, 1990,170) e indo de um lugar a outro produzimos um não lugar. Quando fala isso, Certeu está se referindo a grandes multidões e comparando
menta o espaço percorrido; ela salta suas ligações ou
as trajetórias dos passantes à uma linguagem. Pela
partes inteiras que omite.” (CERTEAU, 1990, 168)
observação do trajeto que realizo, mesmo com menor
A cada caminhada, fui compondo entre pensa-
circulação de pessoas que o relatado por Certeau, esta
mentos, projeções, lembranças, fotos e relatos. Re-
afirmação também é válida para os meus percursos.
fazendo o trajeto, sobreponho fragmentos à minha
Os passantes, e eu mesma, compõem cada qual sua es-
memória. Alguns elementos se reavivam, outros são
crita no trajeto: pontos, vírgulas, assíndetos.
deixados de lado. No decorrer de cada percurso, a
Eu mesma, neste trajeto, sou uma passante e es-
experiência vivida leva em conta as anteriores. O re-
crevo com esta linguagem do caminhar criada a par-
sultado, quando volto para casa e quedo-me a tra-
tir de movimentos, imagens, fragmentos de percep-
balhar nas cartografias, é a mudança na forma de
ções. Certeu compara a percepção fragmentária do
seleção, ora das imagens, ora dos mapas, ora dos
percurso à uma figura de linguagem
fragmentos que comporão as cartografias. Cada ca-
“O assíndeto é a supressão dos termos de ligação,
minhada me proporciona uma experiência única que
conjunções e advérbios, numa frase ou entre frases.
irá se reunir com todas as outras na minha memória
Do mesmo modo, na caminhada, seleciona e frag-
e em meu trabalho.
Fotografias das caminhadas realizadas ao longo de 2013.
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o PROCESSO par a for a do ateliê
Quando estou em minha mesa de trabalho, busco
processo lento de deslocamento. O público pode não
relembrar e compreender os percursos realizados. As
só ver os materiais de trabalho, como trabalhar em
memórias que registrei, as fotografias, os desenhos
seus próprios fragmentos. A sugestão é dada, entre-
e os mapas se unem ao papel vegetal, às canetas e
tanto, para quem não queira interagir, só pela obser-
aos bisturis. O processo que realizo é manual, sub-
vação dos materiais uma reflexão sobre o fazer pode
vertendo a função original, um bisturi cirúrgico pas-
ser levantada pelo visitante.
sa a cortar os papéis que formam as veias de minha
A mesa de trabalho serve também como uma
cidade/corpo e os módulos fragmentários de veias
elucidação do processo e como um complemento
extraídas de um corpo/silhueta.
à imaginação do expectador que pode, a partir dos
Com recorte realizo três processos: o recorte
materiais utilizados, fazer associações sobre o traba-
da silhueta, a fragmentação de uma silhueta pre-
lho. Minha intenção com a exposição dos materiais
viamente desenhada, e o recorte desses fragmentos
de trabalho é acentuar o caráter manual da produção
que serão sobrepostos às fotografias. O processo que
das peças.
disponibilizo ao público é a produção de fragmentos
Juntamente aos processos, é exposta uma caixa
para, justamente, refletir sobre a fragmentação da
de vidro com os módulos utilizados como base para
percepção dos trajetos.
os recortes dos foto-mapas. Os visitantes são convi-
O fazer manual e lento dos recortes permite a re-
dados à reproduzir, alterar ou criar os seus próprios
flexão durante o trabalho. Esta reflexão assemelha-se
módulos, podendo experienciar o fazer que tive pro-
a que faço durante as caminhadas, que também é um
duzindo à exposição.
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Silhuetas desenhadas
Após percorrer o trajeto, busco o mapa da região
canudos de desenho, guarda-chuva, etc. A partir des-
e trato digitalmente para que caiba em uma folha A4 e
tas fotografias, seleciono uma para transpor ao papel
tenha o contraste adequado para as próximas etapas.
vegetal e dar início ao processo de desenho dos ma-
Com eles já impressos começo a pensar na silhueta
pas utilizando os impressos que tratei anteriormente.
que os conterá. Com ajuda de um tripé, fotografo a
Com a silhueta e os mapas no papel vegetal, o proces-
mim mesma de costas caminhando. Para a obtenção
so está quase concluido. Levo a uma fotocopiadora e
da silhueta utilizo os mesmos objetos que carregava
amplio para o tamanho A3. Para resultados maiores é
na caminhada, então algumas silhuetas tem bolsas,
necessária a digitalização dos originais e impressão.
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Módulos já utilizados Esquema de produção dos módulos
Foto-cartogr afias Módulos
Fragmentando as ampliações de “Silhuetas de-
pressas e os módulos prontos decido como vou dis-
senhadas” crio módulos de papel vegetal. Feito isso
tribui-los sobre as fotografias. Corto e desenho as
seleciono as fotografias a serem utilizadas, para
cartografias que sobrepõem-se às fotos em papel
tratamento digital e impressão. Com as fotos im-
branco e vegetal.
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Cartogr afia humana Cartografia humana (detalhes), 2013 papel vegetal, recorte e nankin 594x1700mm
Em duas folhas de papel vegetal do tamanho A1
passei a utilizar os mapas e fotografias obtidos para
unidas, desenhei minha silhueta utilizando a mim
criar os recortes e desenhos destro dos limites da si-
mesma de molde. A partir daí, após as caminhadas,
lueta.
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Minha mesa de trabalho na primeira etapa de Cartografia humana Caixa de vidro 15x15x15cm com módulos
Mesa de tr abalho
A mesa de trabalho a ser montada na exposição
Na mesa encontram-se um bisturi cirúrgico,
reproduz a que utilizei durante o desenvolvimento
pacotes de lâminas, uma base de corte, mapas im-
das peças que estão sendo expostas. Todos os ma-
pressos em folhas A4, papel vegetal, lápis, borracha
teriais que utilizei, assim como um trabalho em pro-
e caneta. Juntamente com esses materiais, expo-
dução, estão à disposição do público para que seja
nho uma caixa de vidro com diversos módulos de
manuseado.
papel vegetal.
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Planta baixa da pinacoteca com as obras dispostas
Montagem da Exposição
Na parede do fundo, estará a obra “Cartografia
estas, as “Silhuetas Desenhadas”. Na coluna central
Humana”. Em frente a ela, a mesa de trabalho. Na
da galeria, estarão as silhuetas desenhadas em papel
parede lateral, ficarão as “Foto-cartografias” e, após
vegetal sobrepostas.
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notas finais
Ao final deste processo de conclusão, busco na
são reconhecíveis, entretanto não se sabe a que se refe-
memória os fragmentos de lembranças do ano que pas-
re, não há mais nomes de ruas, não existem mais bair-
sou; do ano antes deste em que já vinha desenvolvendo
ros, cidades ou outro elemento de localização. Restou
este projeto; de toda minha trajetória anterior na UFR-
a estrutura fragmentada e sobreposta. Questiono-me
GS e antes dela que possibilitaram a execução deste.
sobre a importância de uma localização mínima: é
Este ano, de conclusão do curso de Artes Visuais, foi
interessante para fazer alguma referência ao local de
para mim um período de intensa reflexão e trabalho de
onde partiu a produção do mapa? Essa questão se re-
memória. Cada disciplina cursada esteve presente, em
solveu no decorrer desprocesso. Agora percebo que a
algum momento, nesta finalização. Hoje, olhando para
localização é importante para que eu construa o tra-
trás, vejo o crescimento do meu raciocínio artístico
balho, entretanto não é necessária para quem busca se
desde o ingresso no Instituto em 2009.
envolver com o ele. A localização final pode ser qual-
Após a realização dos percursos, e a organiza-
quer uma que o expectador associe com suas próprias
ção do material capturado nas caminhadas dou início
lembranças. Quero provocar o acionamento de uma
à produção das cartografias. Localizo-me no mapa,
memória qualquer, e não impor a minha memória ao
desenho e redesenho as ruas e porções de terra frag-
público.
mentando e sobrepondo os fragmentos de “trajeto”. No
Outro questionamento que me propus foi a apa-
trabalho final algumas características de mapas ainda
rição de relatos ou textos no trabalho final. Posterior-
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mente, posso vir a trabalhar melhor este ponto. Para este trabalho de conclusão optei por restringir-me ao desenho, recorte e fotografia. Este trabalho é um ponto em minha trajetória, marca o final de uma graduação e o início de um novo processo ainda a se desdobrar. A cidade, os caminhos que percorremos e os recortes ainda podem ser muito explorados e pretendo seguir pesquisando e trabalhando. Quero dar sequencia a este projeto explorando outros elementos dos trajetos como a sonoridade dos percursos ou as cores. Há possibilidade também, de mudar o tipo de suporte criando peças tridimensionais. Esses e outros tópicos podem ser trabalhados em futuras obras e pesquisas.
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