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ANO 12
Nº 6 ■ OUTUBRO/2004 ■ TIRAGEM: 35 000 EXEMPLARES ■
DOUTRINA BUSH, A POLÍTICA DA GUERRA PERMANENTE arl von Clausewitz, o célebre teórico militar prussiano, ensinou, no início do século XIX, que “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Clausewitz formou seu pensamento no ambiente das Guerras Napoleônicas, quando a guerra deixava de ser um assunto restrito aos profissionais militares para se transformar em guerra nacional, com o recrutamento dos exércitos de cidadãos. A guerra do século XVIII limitavase a um conjunto de operações militares, relativamente pouco sangrentas, que terminavam com a paz negociada: um “empate” ou uma “capitulação honrosa”. A Revolução Francesa inaugurou a “guerra total”, ou seja, a idéia de aniquilação das forças armadas do inimigo e ocupação do país vencido. Na sua síntese, Clausewitz explicava que a “guerra total” não era a “guerra pela guerra”, pois se subordinava a objetivos políticos definidos. A guerra era uma etapa especial de uma trajetória política iniciada antes dela e que prosseguia depois dela. A Doutrina Bush inverte a equação de Clausewitz. A “guerra ao terror”, declarada após o 11 de setembro de 2001, é uma guerra sem fim, que subordina a política à © Stefan Zaklin/EFE/AE
C
sua lógica. Seu objetivo – a “reforma do mundo” – condensa uma ambição extremada, desestabiliza o sistema internacional e deflagra uma crise sem horizonte de solução. A “guerra ao terror” anuncia uma sucessão de guerras e ocupações que realimentam o ciclo do terror e da guerra. Essa é a plataforma com a qual Bush busca a reeleição. Veja as matérias às páginas 6, 7, 8 e 9
Soldados americanos celebram a Páscoa em Najaf (Iraque), em 12 de abril de 2004
CUSTOS DE DESLOCAMENTO E mais...
SABOTAM EXPORTAÇÕES AGRÍCOLAS
● Editorial – No vestibular, como nas
odos os anos, o Brasil perde 6% da sua safra de grãos no trajeto entre a fazenda e o porto. Na última safra, foram mais de 7 milhões de toneladas – algo como R$ 45 bilhões. A responsabilidade se divide entre o sistema de transporte, apoiado nas rodovias, e a decadência da malha viária. Há mais de meio século, o Brasil fez uma opção estratégica pelo transporte rodoviário. O preço dessa opção permaneceu camuflado pelo relativo fechamento da economia nacional. A globalização evidencia esse preço, que se expressa como uma verdadeira taxação sobre as exportações. A malha rodoviária, construída entre as décadas de 1950 e 1970, sofre os efeitos do tempo e da falta de investimentos. A maior parte da soja colhida no Brasil Central percorre, em caminhão, mais de mil quilômetros de buracos até os portos. Pág. 12
T
TEXTO & CULTURA
Olimpíadas, o que importa não é tanto o resultado, mas a fidelidade inflexível ao próprio desejo de fazer o máximo possível. Pág. 3 ● Talvez nunca se saiba quem deu a ordem de
fogo que culminou nas mais de 300 mortes na escola russa da Ossétia do Norte. O que se sabe é que o conflito entre o governo de Putin e os separatistas da Chechênia deixou a esfera da guerra para ingressar na da pura barbárie. Pág. 3 ● O Meio e o Homem – O que é a “sociedade da
A ERA VARGAS
informação”? Quem controla as redes digitais globais? A humanidade está condenada ao domínio das corporações mundiais da mídia?
NAS ONDAS DO
RÁDIO Fotos: Reprodução
Pág. 4 ● O domínio dos códigos – da escrita, da
matemática, da música – sempre se associou ao poder político e econômico. Será a “era da informação” uma ruptura desse padrão histórico? Pág. 5
Você encontra aqui o índice de tudo o que foi publicado no boletim Mundo – Geografia e Política Internacional em 2004. Na primeira parte do índice, os assuntos são listados segundo o número da edição em que aparecem. Na segunda, que também contém os temas dessa edição de outubro, o índice é organizado por região geopolítica Os números em negrito (fora dos parênteses) indicam o número da edição do boletim; dentro dos parênteses, indicam as páginas. ● Número 1 – março 2004 Novos rumos da política externa brasileira Entrevista exclusiva do chanceler Celso Amorim A reinvenção da Páscoa e a cristianização da Europa Editorial: Os 40 anos do golpe militar de 1964 Diário de Viagem: O Brasil de 64, uma viagem no tempo Brasil em Estatísticas: Os dez anos do Plano Real O Meio e o Homem: A agonia do Protocolo de Kyoto ● Número 2 – abril 2004 Do Haiti à Argentina, turbulência na América Latina Tragédia no Haiti, no bicentenário da “revolução dos escravos” Os atentados de Madri e o fracasso da Doutrina Bush Israel e a política de “assassinatos seletivos” Memórias da Revolução dos Cravos, 30 anos depois União Européia expande-se para o leste Editorial: Espanhóis repudiam a Doutrina Bush Diário de Viagem: Ilhas Malvinas Brasil em Estatísticas: O fim das migrações interregionais? ● Número 3 – maio 2004 Plano Sharon fragmenta Palestina em “bantustões” “Guerra ao terror” envenena a linguagem política Há 90 anos, ato terrorista deflagrou guerra mundial O naufrágio do acordo de paz no Chipre Política de Bush na América Latina retoma o “Big Stick” Carta de Mundo sobre o “tribunal racial” da UnB Editorial: “Guerra ao terror” ameaça democracia Diário de Viagem: Madri após os atentados Brasil em Estatísticas: A trajetória censitária da mestiçagem ● Número 4 – agosto 2004 A China, superpotência no comércio global Estratégias do comércio exterior brasileiro Política de Washington desestabiliza todo o Oriente Médio Iraque ocupado ameaça reeleição de Bush As Olimpíadas e as tecnologias do doping Há 35 anos, a Guerra Fria propiciou a “conquista da Lua” Os “assassinatos seletivos” de Israel em debate Editorial: Brasil estabiliza regime ilegal no Haiti Diário de Viagem: Moscou ● Número 5 – setembro 2004 Os Estados Unidos e a geopolítica global da energia A internacionalização do petróleo brasileiro 50 anos depois de Vargas, demantela-se o Estado varguista A vitória de Chávez e o futuro da “revolução bolivariana” O genocídio no Sudão e a comunidade internacional Editorial: Pela intervenção humanitária no Sudão Diário de Viagem: Caracas às vésperas do referendo Brasil em Estatísticas: A pobreza no “Brasil maravilha” ● O Mapa de Mundo Globalização – 4:(6-12) 5:(6) 6:(4) Estados Unidos – 3:(3-8) 4:(3) 5:(7) 6:(6-7-8-9) Europa Ocidental – 2:(3-4-5-12) 3:(9) CEI e Europa Oriental – 3:(3-12) 4:(9) 6:(3) Oriente e Pacífico – 4:(7) Oriente Médio – 2:(2) 3:(6-7) 4:(2) América Latina – 2:(3-6-7-8) 3:(5) 4:(3) 5:(4-5) Brasil – 1:(3-4-5-6-7-8) 2:(9) 3:(2-4) 4:(8) 5:(8-912) 6:(12) África Subsaariana – 5:(2-3) Meio Ambiente – 1:(9) Cultura – 1:(12) 6:(5)
9º Concurso Nacional de Redação de Mundo e T&C – 2004
Conheça agora os vencedores Foi um grande sucesso o nosso 9° Concurso Nacional de Redação. A Comissão Julgadora escolheu os melhores entre cerca de 200 trabalhos concorrentes, produzidos em 60 escolas. As redações concorrentes foram escolhidas em concursos internos nas escolas. Isso significa que o universo geral de redações foi de milhares. Isso explica o elevado nível dos trabalhos. A seguir, os dez primeiros colocados e o texto vencedor, comentado. Aos participantes, os nossos parabéns! ■ 1° lugar: Anouch Neves de Oliveira Kurkdjian Col. Cassiano Ricardo Anglo, S. J. dos Campos (SP) Professora: Elzira ■ 2° lugar: Karla Patrícia Costa de Moura Instituto Dom Barreto, Teresina (PI) Professores: Dílson Lopes e Lindalva ■ 3° lugar: Nicole Cotrim Godoy CLQ Objetivo, Piracicaba (SP) Profas: Ana Paula Buzzetto Santini e Eoná Malo ■ 4° lugar: Victor Hermann Mendes Pena Colégio Nossa Senhora das Dores, Itabira (MG) Professora: Margarida Lourdes Gandra Campos ■ 5° lugar: Laura Candian Fraccaro Colégio Progressão, Taubaté (SP) Professora: Cristina C. Castrioto ■ 6° lugar: Beatriz Ribeiro Torres Dutra Colégio Santo Agostinho, Rio de Janeiro (RJ) Professora: Fernanda Lúcia Rocha de Sá Freire ■ 7° lugar: Guilherme de Oliveira Ávila Colégio Guilherme de Almeida, Guarulhos (SP) Professora: Rute Possebom ■ 8° lugar: Victor C. Franco Centro de Ed. e Cult. Albert Sabin, S. J. R. Preto (SP) Professora: Rosicler ■ 9° lugar: Rodrigo Ronconi Ferraz Col. Cassiano Ricardo Anglo, S. J. dos Campos (SP) Professora: Elzira ■ 10° lugar: Lilian Maria de Freitas Souza Marques Colégio Rainha da Paz, São Paulo (SP) Professor: Luís Aquino SELEÇÃO NATURAL Anouch Neves de Oliveira Kurkdjian Era o dia da final do campeonato de bafo da cidade. Acordei cedo pois precisava me preparar já que o jogo com Augusto não seria nada fácil. Não tanto pelo seu talento com as mãos, mas principalmente porque o danado tinha fama de ladrão. O fato de seu Onofre, dono do armazém, ser o juiz do jogo também não me ajudava pois todos sabiam que o velho devia até a alma para o doutor César, pai do Augusto e prefeito de São José do Agrado. O ano era 1994, e a Copa acontecia nos EUA, mas até lá em São José todo mundo já tinha o álbum da competição. O que ninguém tinha era a figurinha do Romário, quase impossível de achar. O Bartolomeu, dono da única banca da cidade, arregalava os olhos toda vez que a criançada aparecia pra comprar uns cromos: – Ouvi dizer que nesse último lote tem a do Romário! Nunca tinha. Até que um dia o Augusto apareceu com as páginas do Brasil completinhas. E com uma figurinha do Romário na mão. E é por isso que eu precisava ganhar aquele campeonato, limpar o Augusto e completar o álbum da Copa. A praça estava lotada, mesmo com a taxa que o doutor César havia mandado cobrar dos que quisessem ver a final. De um lado meus parentes e amigos gritavam meu nome e também obscenidades para a família de Augusto. Num extremo da praça dois garotos rolavam no chão, um trajava uma camiseta suja e rota, enquanto na do outro lia-se “Augusto”. No altofalante doutor César anunciou o início da partida e Onofre prontamente obedeceu. O filho do prefeito tinha o dobro das minhas figurinhas e, no meio daquele monte de papel, em algum lugar, a de número 311. Minha mão era mais esperta que a dele, podia vencê-lo. Mas tudo aconteceu tão rápido, que de repente o monte que era o dobro foi se tornando o triplo, o quádruplo, até que em minhas mãos restavam apenas umas poucas figurinhas estampadas com a cara feia de uns argentinos cabeludos. Era tudo ou nada. Augusto foi o primeiro, não virou. Eu bati em seguida e virei as três do topo. Augusto olhou amedrontado para o pai e, tremendo, bateu as figurinhas. Vaias de protesto vieram da torcida enquanto o doutor César exibia um largo sorriso. Olhei para Onofre, procurando explicações, mas ele logo
desviou o olhar e, desconfortavelmente, parabenizou Augusto, declarando-o vencedor. Por muito tempo me perguntei se iria ser sempre assim, se estava fadado à derrota, já que nunca poderia comprar a vitória. E por muito tempo foi assim. Mas em todas as vezes que perdi, sempre soube que era eu quem merecia ganhar. Foi por pouco, mas hoje, depois de anos empobrecendo São José do Agrado, Augusto está atrás das grades. Eu venci. Agora a cidade se chama apenas São José. Meu álbum continua incompleto. Foi por pouco, muito pouco. Comentário Flora Christina Bender Garcia Há algum tempo venho afinando certa mania. (...) Não sei quando começou em mim o gosto sutil. Somente sei que começou. E vou tratando de trabalhá-lo, valorizando a simplicidade dos movimentos, beleza que procuro tirar dos pormenores mais corriqueiros da minha arte se afinando. Chutar tampinhas que encontro pelo caminho. É só ver tampinha. Posso diferenciar ao longe que tampinha é aquela ou aquela outra. Qual a marca (se estiver de cortiça para baixo) e qual a força que devo empregar no chute. Dou uma gingada, e quase já controlei tudo.Vou me chegando, a vontade crescendo, os pés crescendo para a tampinha, não quero chute vagabundo. É plenamente aceitável a idéia de que, para acertar, necessário pequenas erradas. Mas é muito desagradável o entusiasmo desaparecer antes do chute. Sem graça. (“Afinação da arte de chutar tampinhas”, João Antônio, In: Malagueta, Perus e Bacanaço) Que diferença há entre tampinhas e figurinhas? Talvez o material, só. Umas, metal e cortiça; outras, papel. Naquelas, a marca mais (ou menos) valiosa, dependendo do bebedor. Nestas, os jogadores de futebol. Dependendo do Augusto. As artes afinadas se equivalem. E a simplicidade, também. Adorável a idéia de Anouch de homenagear o bafo hoje tão esquecido. Alguns “concorrentes”, empolgados com as Olimpíadas, trataram de grandes jogos. Nada contra. Que o nosso jovem vencedor, porém, tivesse a coragem de re-tratar a história do cotidiano, causa no mínimo espanto. Nada de tão pouco épico quanto um joguinho na calçada. Esquecemo-nos de que também a pracinha pode ser o espaço grego das grandes disputas. Escreve Anouch: “A praça estava lotada, mesmo com a taxa que o doutor César havia mandado cobrar dos que quisessem ver a final. De um lado meus parentes e amigos gritavam meu nome e também obscenidades para a família de Augusto. (...) Era tudo ou nada”. Deu nada. Teria Augusto correspondido aos desejos dos deuses? Talvez àquilo que interessava aos detentores do poder em São José do Agrado: ao prefeito, pai do rival, e ao dono do armazém, alçado à categoria de juiz, que “devia até a alma” ao Dom Corleone local. “Eu venci. Agora a cidade se chama apenas São José”. É o desprestígio dos cartolas do bafo. Bem feito! A professora Alzira foi a técnica que acompanhou seu jovem aprendiz nesta maratona cultural. Está de parabéns. Não é à toa que até o patrono da escola tem nome de poeta, Cassiano Ricardo, atualmente no semiostracismo a que o relegaram os detentores das letras nacionais, por ter-se envolvido, equivocadamente, com a turma dos “maus”, na primeira fase do Modernismo. Afinados, Anouch e Alzira só poderiam sair vitoriosos. Aos vencedores, o ouro.
E X P E D I E N T E PANGEA - Edição e Comercialização de Material Didático LTDA.
Redação: Demétrio Magnoli, Jayme Brener, José Arbex Jr., Nelson Bacic Olic (Cartografia), Jorge M. B. Almeida (T& C). Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779) Revisão: Maria Eugênia Lemos Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise Endereço: Rua Romeu Ferro, 501, São Paulo - SP. CEP 05591-000. Fones: (0XX11) 3726.4069 / 3726.2564 Fax: (0XX11) 3726.1658 E-mail:
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Índice Geral de Mundo – 2004
OUTUBRO 2004
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JOGOS OLÍMPICOS DE
ATENAS
OFE-
SANTOS
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I
A
L
TODOS OS COMENTARISTAS DESCARTARAM A HIPÓTESE DE HAMM LEVAR A MEDALHA DE OURO. MAS O “IMPOSSÍVEL” ACONTECEU. O ATLETA MANTEVE A CALMA, E COM ATUAÇÕES PERFEITAS, SOBRETUDO NA BARRA FIXA, CONQUISTOU O SEU OBJETIVO. É VERDADE QUE, DEPOIS, CONSTATOUSE QUE HOUVE FALHAS NA ARBITRAGEM, EM PREJUÍZO DO SUL-COREANO YANG TAE-YOUNG. MAS O QUE IMPORTA, AQUI, É A CAPACIDADE DEMONSTRADA POR HAMM DE MANTER A SERENIDADE EM SITUAÇÃO DESASTROSA. NA MARATONA DE 29 DE AGOSTO, FINAL DAS O LIMPÍADAS DE 2004, O PARANAENSE VANDERLEI CORDEIRO DE LIMA FAZIA A MELHOR CORRIDA DE SUA CARREIRA. ASSUMIU A LIDERANÇA NO QUILÔMETRO 15 E, FALTANDO APENAS SETE PARA O ENCERRAMENTO, FOI ATRAPALHADO POR
–
POR EXEMPLO , A FRUSTRAÇÃO DA GAÚCHA DOS
O
SACODE A POEIRA, DÁ A VOLTA POR CIMA
RECERAM VÁRIOS MOMENTOS DRAMÁTICOS
DAIANE
T
QUE NÃO CONSEGUIU
CHEGAR AO PÓDIO OU A “MORTE NA PRAIA” DA EQUIPE BRASILEIRA DE VÔLEI FEMININO QUE, APÓS REALIZAR UMA CAMPANHA BRILHANTE,
“JOGO GANHO” PARA A SELEÇÃO RUSSA E DEPOIS, POR PURO DESÂNIMO, ENTREGOU A MEDALHA DE BRONZE PARA CUBA. MAS DOIS OUTROS EPISÓDIOS, IGUALMENTE DRAMÁTICOS, ACABARAM SERVINDO COMO LIÇÕES DE VIDA, ESPECIALMENTE PARA AQUELES QUE, POR QUALQUER RAZÃO, SÃO OBRIGADOS A ENFRENTAR ALGUM GRANDE DESAFIO – POR EXEMPLO, O DO VESTIBULAR. NO DIA 18 DE AGOSTO, O GINASTA AMERICANO PAUL HAMM, FAVORITO NA CATEGORIA INDIVIDUAL GERAL , COMETEU UM GRAVÍSSIMO ERRO: AO CONCLUIR O SALTO SOBRE O CAVALO, ALÉM DE SE DESEQUILIBRAR NA ATERRISSAGEM, CAIU SOBRE A MESA DOS JUÍZES. PERDEU UM
DELIDADE INFLEXÍVEL AO PRÓPRIO DESEJO DE FAZER O MÁXIMO POSSÍVEL, INDEPENDENTEMENTE DOS RESULTADOS E DAS ADVERSIDADES.
COMO DIZ A CANÇÃO DE PAULO VANZOLINI: “O HOMEM DE MORAL RECONHECE A QUEDA E NÃO DESANIMA: LEVANTA, SACODE A POEIRA E DÁ A VOLTA POR CIMA”. O IDEAL, CLARO, SERIA QUE OS ATLETAS NÃO COMETESSEM ERROS E QUE NENHUM IDIOTA FANATIZADO SAÍSSE POR AÍ ATRAPALHANDO A VIDA ALHEIA.
UM FANÁTICO RELIGIOSO QUE INVADIU A PISTA E JOGOU-O CONTRA A CERCA DE PROTEÇÃO.
A GUERRA
APE-
QUE VALE É O EQUILÍBRIO PARA ENFRENTAR OS IMPREVISTOS.
DADE, O ATLETA VOLTOU À PISTA E AINDA CON-
LOCAR À PROVA O EQUILÍBRIO DE CADA UM.
QUISTOU A MEDALHA DE BRONZE.
RESTO É CONSEQÜÊNCIA.
SUA PROEZA JÁ
OS
DESAFIOS SERVEM PARA CO-
O
CHECHÊNIA
No momento da desintegração da União Soviética, o governo da Chechênia declarou independência, mas o novo país não foi reconhecido por Moscou ou pela comunidade internacional. Nos anos seguintes, as tensões entre o governo separatista checheno e a oposição pró-russa degeneraram em verdadeira guerra civil. Em meio ao caos, Moscou promoveu a intervenção militar, deflagrando a primeira Guerra da Chechênia. As forças separatistas resistiram à ofensiva de 20 mil soldados russos durante quase dois anos. Grozni, a capital, palco dos principais combates, foi virtualmente arrasada. Os acordos de Kassaviurt, firmados em agosto de 1996, puseram fim ao conflito. Para suprema humilhação de Moscou, os acordos determinavam que o estatuto político definitivo da Chechênia seria negociado em 2001. As eleições chechenas de 1997 deram a vitória ao líder separatista Aslan Mashkhadov. Contudo, o novo presidente jamais conseguiu controlar um país imerso em profunda crise econômica, dividido em facções armadas hostis e atormentado pelo crescimento do fundamentalismo islâmico. Grupos de fanáticos islâmicos da Chechênia tentaram invadir a vizinha república do Daguestão, em 1999, e promoveram sucessivos atentados em Moscou e outras cidades russas. © Alexander Zemlianichenko/AP/AE
MAS, NA “VIDA COMO ELA É”, O
SAR DISSO, DANDO PROVA DE INCRÍVEL TENACI-
SEM LIMITES NA
A
desenlace trágico da tomada de uma escola em Beslan, na república russa da Ossétia do Norte, por terroristas chechenos assinala o início de um novo período no conflito do Cáucaso. Os mais de 300 mortos, entre os quais dezenas de crianças, são vítimas de uma guerra travada na esfera da barbárie. O pano de fundo da tragédia é a instabilidade geopolítica no Cáucaso, uma região que se caracteriza pelo cruzamento de etnias, nacionalidades, religiões e línguas. A desintegração da União Soviética, em 1991, produziu um complexo desenho geopolítico. Na Transcaucásia – ou seja na área ao sul do Cáucaso, localizam-se a Geórgia, a Armênia e o Azerbaijão, antigas repúblicas soviéticas que se tornaram países formalmente soberanos e fazem parte da Comunidade de Estados Independentes (CEI). Na porção norte, ou Ciscaucásia, encontram-se oito repúblicas autônomas que fazem parte da Federação Russa. Entre elas estão a Chechênia e a Ossétia do Norte (veja o Mapa). O conjunto do Cáucaso abriga cerca de 25 milhões de pessoas, que vivem numa faixa de contato e confronto de duas “civilizações”: de um lado, a eslavo-ortodoxa, representada por populações de origem russa ou “russificadas” (como os ossétios); de outro, a muçulmana, de influência turca ou iraniana, composta por mais de vinte povos, entre os quais se destacam os chechenos. Guardadas as proporções, as fronteiras políticas no Cáucaso são quase tão arbitrárias quanto as africanas. Praticamente todas foram delineadas entre 1922 e 1936 pelo ditador soviético Josef Stalin. As divisões político-administrativas criadas por Stalin destinavamse, em tese, a preservar a especificidade dos grupos étnicos caucasianos. Na verdade, eram parte do edifício de engenharia política da União Soviética, que assegurava o predomínio russo sobre os povos do “império vermelho” e o poder do Partido Comunista da União Soviética sobre o conjunto das repúblicas soviéticas. A implosão do Estado soviético removeu os pilares que sustentavam as fronteiras regionais. O complexo e heterogêneo mosaico humano caucasiano entrou em fluxo incontrolável. A eclosão da guerra separatista na Chechênia acendeu uma fagulha que ameaça implodir toda a arquitetura geopolítica da Ciscaucásia. A Chechênia, pouco menor que o estado de Sergipe, registrou no último censo, de 1989, população pouco superior a um milhão de pessoas. Estima-se que, em virtude da guerra, mais de metade dessa população tenha se refugiado nas repúblicas vizinhas.
HOLLYWOOD. HAMM E CORDEIRO SOUBERAM, EM SITUAÇÕES DISTINTAS, TRANSFORMAR A FRUSTRAÇÃO EM ESTÍMULO, O DESAFIO EM OPORTUNIDADE, A DERROTA EM VITÓRIA. NOS DOIS CASOS, O “SEGREDO” FOI MANTER A CONFIANÇA NA PRÓPRIA CAPACIDADE E, SOBRETUDO, A FI-
ATRAIU ATÉ ROTEIRISTAS DE
A ascensão de Vladimir Putin ao poder na Rússia deve-se, em grande medida, ao terror checheno. Como presidente interino, em fevereiro de 2000, Putin deflagrou a segunda Guerra da Chechênia. Pouco depois, Putin era eleito presidente russo, no rastro da operação militar. As forças russas ocuparam Grozni e a maior parte da Chechênia, com exceção das quase inacessíveis montanhas meridionais, que servem de refúgio para os guerrilheiros separatistas. Há mais de três anos, retaliando contra os guerrilheiros, o exército russo promove massacres que têm por alvo a população civil. As entidades de defesa de direitos humanos registram práticas sistemáticas de tortura e estupros. O conflito atravessa uma fase de escalada de violência. Enrolando-se na bandeira da “guerra ao terror” de Bush, Putin procura identificar todos os separatistas chechenos ao fundamentalismo islâmico global. Com isso, aprofunda a repressão e reduz as pressões internacionais contra a violação generalizada dos direitos humanos. Do outro lado, os terroristas chechenos tomam o lugar dos líderes políticos separatistas, promovendo atentados suicidas como os do metrô de Moscou, em fevereiro, os que derrubaram dois aviões russos, em agosto, e a bárbara invasão da escola da Ossétia do Norte.
A REGIÃO DO CÁUCASO ADIGUEI
R Ú S S I A
KARATCHAITCHERKESS KABARDINOBALKÁRIA
OSSÉTIA DO NORTE
CHECHÊNIA MAR CÁSPIO
HIA
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LEVANTA,
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OUTUBRO 2004
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MAR NEGRO
DAGUESTÃO GEÓRGIA
ARMÊNIA
AZERBAIJÃO
TURQUIA
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CÁUCASO RUSSO (CISCAUCÁSIA) CÁUCASO NÃO-RUSSO (TRANSCAUCÁSIA)
Alexandera Smirnova, avó de Inna Kasumova, segura foto de sua neta durante o seu funeral em Beslan, na Ossétia do Norte.
BLOG, BLOG, BLOG: AFOGADOS NA INFORMAÇÃO
© Free StockPhotos
A
final, por quê tanto “auê” em torno da chamada “sociedade da informação”? A tal ponto que entidades regulatórias máximas como a ONU e a International Telecomunications Union (ITU) puxam, em escala planetária, uma Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação. A primeira rodada de oficinas aconteceu em dezembro de 2003, em Genebra. O cume da cúpula (ou cumeeira, como dizem em Portugal quando se trata de eventos organizados por lideranças internacionais) acontecerá em 2005, em Túnis. Curiosa localidade “oriental” que marca geograficamente o desafio de produzir num horizonte de tempo relativamente curto (uns poucos anos) um consenso sobre o que, afinal, é a tal “sociedade da informação”. E, principalmente, como “devem” comportar-se indivíduos, empresas, organizações e governos para que essa nova forma de organização social seja mais virtuosa e não apenas virtual (no sentido de ser formada por uma “imaterialidade” digital). Há vários conflitos ideológicos, políticos, militares e econômicos em torno da disputa pelo controle dessa futura sociedade organizada com base em mídias digitais, alta capacidade de processamento de dados, ampla e capilarizada rede de canais de acesso, recepção, produção e distribuição de informações, criando novas possibilidades de trocas simbólicas. Assim como as organizações terroristas, as redes digitais por onde circula a informação e se formam as redes têm flexibilidade, potencial anárquico e criativo, ao mesmo tempo em que produzem impactos altamente destrutivos. A automação criou novas formas de desemprego estrutural, com a dispensa em massa de trabalhadores em setores de serviços, a robotização das fábricas e, ao mesmo tempo, o surgimento de novas barreiras ao emprego. Na sociedade da informação, o nível de renda e as oportunidades de emprego são mais dinâmicas justamente para indivíduos com habilidades no acesso e gestão dessas mídias digitais: computadores, celulares, PDAs, GPSs, terminais inteligentes em bancos e serviços públicos, equipamento enfim associado, sobretudo, ao gerenciamento de processos em todos os setores da economia. A cultura digital, pop e movida a blogs da sociedade de consumo capitalista, tem na internet a sua mais vistosa vitrine, mesmo depois do estouro da bolha especulativa da “nova economia”. De fato, há uma nova economia: mas o acesso aos seus benefícios depende de esforços e inteligência coletivos. Ressurge, na sociedade da informação, a velha questão política sobre os meios e os fins da organização de uma inteligência coletiva.
Há dilemas clássicos: no Brasil, a mídia gira os canhões contra o Gil porque o ministro-artista colocou o dedo na ferida, apontando para os riscos que a concentração oligopólica e corporativa dos meios de comunicação – os conglomerados “globais” – apresentam para a criação e a cultura de identidades nacionais e locais. A agenda da regulação do sistema de comunicação social é o tema de fundo que se expressa em escala planetária com a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, mas com efeitos e agendas nacionais e locais. O pessoal ortodoxo, do mercado financeiro, pode ser comparado àquela turma que tem mais banda larga e pode brincar com os jogos de guerra mais poderosos e violentos: operam online em tempo real, especulando num videogame ideológico global sobre o destino de trilhões de moedas que não passam de dígitos na memória de uma rede de alta segurança, uma intranet dos ricos, o sistema SWIFT – o nome já diz tudo. O mesmo governo Lula que propõe a regulação dos mamutes da mídia, aliás, investe na CPI do Banestado contra a elite que ao longo de vários anos brincou nesse videogame de verdade enquanto os outros setores da economia, o chamado “lado real”, eram submetidos a uma significativa deterioração, sobretudo da infra-estrutura, por falta de investimentos de longo prazo feitos “espontaneamente” pelo mercado. Para os mais radicais, há uma ligação umbilical entre os interesses da grande mídia global corporativa e a elite financeira igualmente global. Essa elite opera um dos mais longos processos de privatização da história humana. Trata-se de uma deterioração do espaço público que, em termos de redes de comunicação, sistemas de informação e processos colaborativos vai armando a mesma elite e provocando formas ainda mais per-
SERVIÇO CÚPULA MUNDIAL SOBRE A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO http://www.itu.int/wsis/ Site oficial, tem versão em espanhol. É o portal de referência da primeira fase (dezembro, 2003) e de todas as reuniões preparatórias para a Cúpula de novembro de 2005 em Túnis. CIDADE DO CONHECIMENTO http://www.cidade.usp.br/socinfo/index.php Site sobre a Cúpula preparado pela Cidade do Conhecimento, programa do Instituto de Estudos Avançados da USP voltado à incubação de redes digitais colaborativas em todas as áreas do conhecimento e que pesquisa políticas públicas para a economia da informação e a sociedade do conhecimento. Em português, com links para outros sites interessantes e a uma comunidade de discussão.
versas de exclusão, baseadas no conhecimento e no relacionamento (o chamado “networking”). É possível agir sobre essa dinâmica de redes, que em muitos aspectos lembram máfias ou grupos terroristas, (re)criando pelos mesmos meios uma nova superestrutura pública mundial, um direito público internacional, um sistema de proteção às liberdades individuais e aos direitos sociais que seja capaz de impor-se à lógica financista? A música brasileira tem chance na rede frente à música produzida e distribuída digitalmente pelos Estados Unidos? No Orkut, espaço de socialização criado pela empresa Google (do mecanismo de buscas na internet), pouco antes do lançamento de suas ações em Wall Street, os brasileiros ocuparam mais espaço que os próprios americanos. Não dá, obviamente, para dizer que são todos acionistas de Wall Street ou filhos daqueles que já têm acesso a fundos de investimento, cadernetas de poupança ou ações mesmo. Mas, sem dúvida, fazem parte da mesma “cadeia de valor”, ajudaram a criar valor para a empresa na véspera do seu lançamento público de ações. Assim como uma planta faz parte da cadeia alimentar dominada pelos carnívoros. A Cúpula da Sociedade da Informação é um espaço de negociação de direitos, normas, padrões de regulação, orientações sobre formas de realizar comércio eletrônico ou desenvolver “e-government”. Em escala global e envolvendo a elite que governa os países do mundo, trata-se de criar o contraponto possível ao processo de privatização que tem predominado na mídia planetária. Um sistema em que mais de 90% das imagens veiculadas por todas as televisões do mundo são fornecidas por uma só fonte: a Reuters. Mas se a rede mundial é de fato uma realidade transfonteiras, marcada por padrões de consumo de bens materiais e imateriais cada vez mais multiculturais, haverá governo mundial possível para essa Babel digital? A julgar pelo estágio atual da regulação e da inteligência coletiva, predomina a geléia geral onde todos se afogam ao som de blogs e videoclipes, com a duração média de um comercial televisivo e a profundidade mediana de uma comunidade Orkut. Gilson Schwartz é criador e diretor da Cidade do Conhecimento, professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da ECA-USP e autor de O capital em jogo – fundamentos filosóficos da especulação financeira (Campus, 2000)
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Gilson Schwartz Especial para Mundo
OUTUBRO 2004
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Cultura
“NO PRINCÍPIO ERA O VERBO ” Elaine Senise Barbosa Especial para Mundo
Ao longo da história, as elites dirigentes conservaram o domínio sobre os códigos. Ainda hoje, esse domínio funciona como instrumento de concentração de poder político e econômico
or volta dos 18 meses a criança entra no universo da linguagem, distanciando-se dos outros animais. Ao adquirir a fala, a humanidade criou o universo dos símbolos, isto é, coisas que representam outras coisas. A fala possibilitou ao homem transmitir suas experiências, desenvolvendo a memória e, com esta, a noção de tempo: passado, presente, futuro. É por intermédio da palavra que as pessoas intervêm na realidade vivida. Quem pode esquecer a angústia que marcava o personagem Fabiano, de Vidas Secas, cuja pobreza lingüística impedia-o de compreender o mundo e agir? Ou o 1984, de George Orwell, onde a “novilíngua” produzida e controlada pelo Estado tinha por finalidade simplificar ao máximo o vocabulário para reduzir os meios de argumentação e discussão: pobreza no falar, pobreza no pensar? A palavra cria o debate, a discussão, fundamento da vida em comunidade. A palavra funda a Cidade! Desde as primeiras sociedades urbanas a crescente complexidade das relações sociais levou ao surgimento de diferentes códigos necessários à organização e retenção do conhecimento. Esses códigos são os sinais da escrita, os números, os rituais religiosos, as notas musicais (criadas apenas na Baixa Idade Média, entre os séculos XI e XIII), a moda, e a mais nova, a linguagem da informática. Para cada uma delas existe um conjunto de símbolos dominados por especialistas que partilham um saber. Quanto menos pessoas tiverem acesso aos códigos, maior será o destaque dos que o partilham. Assim, na corte francesa de Luís XIV, a moda foi um dos principais instrumentos da monarquia para submeter a nobreza e o resto da sociedade: a cada ano, uma novidade distinguia a nobreza dos burgueses, humilhando esses “imitadores” que jamais estavam “na moda”, ao mesmo tempo em que decretos reais reservavam o uso de certas cores e tecidos para a nobreza. Numa sociedade onde a maioria não sabia ler, a linguagem visual ajudava a determinar as posições sociais. Para a História, o mais importante código é a escrita, criada pelos sumérios nas primeiras cidades da Mesopotâmia, há mais de 5 mil anos, e associada ao desenvolvimento dos primeiros Estados, que precisavam calcular áreas de plantio, estoques de grãos, dívidas entre cidadãos, fórmulas de rituais religiosos, etc. A escrita ideográfica, onde cada símbolo representava uma idéia ou coisa, como os hieróglifos egípcios, evoluiu para a cuneiforme, isto é, em forma de cunha, pois os sinais eram gravados com estiletes sobre blocos de argila. Aprender a escrever, nesse tempo era trabalho de dedicação integral, por isso ser escriba era uma atividade restrita a poucos, que estudavam desde pequenos
pio só as consoantes e, a partir dos gregos, também com as cinco vogais. Fruto da necessidade de estabelecer contato com os diferentes grupos humanos espalhados pela bacia do Mar Mediterrâneo, os fenícios revolucionaram o acesso ao conhecimento, com um pequeno número de letras que, combinadas, podiam expressar toda a complexidade do pensamento humano. Mas foi na Grécia que essa democratização do conhecimento lançou raízes, fazendo nascer a Filosofia, enquanto, simultaneamente, enfraquecia-se a crença nos mitos. A relação entre esses fenômenos deve-se ao fato da informação escrita não sofrer a constante mutação que caracteriza os mitos, permitindo, portanto, um constante retorno à informação registrada, à idéia transmitida, provocando reflexão, dúvida e crítica. A palavra escrita era percebida como uma chave de acesso tão vital ao conhecimento que, não por acaso, as três grandes religiões monoteístas fizeram do Livro o instrumento da revelação divina. Segundo a Bíblia: “No princípio era o Verbo/ e o Verbo estava em Deus/ e Deus era o Verbo/”. E Deus criou Adão e depois ordenou-lhe “nomear os seres do Paraíso”, o que significa que o homem domina o mundo através da palavra. Os árabes só entraram definitivamente na cultura escrita a partir de Maomé e do Alcorão. Por isso a caligrafia é considerada uma arte, veículo das palavras de Deus, sendo usada inclusive como elemento decorativo nas paredes de mesquitas e palácios. Nas terras nãoárabes onde o islamismo penetrou, os fiéis eram capazes de reconhecer, entre as inscrições nas paredes, ao menos a invocação básica do Islã: “só há um Deus e Maomé é seu Profeta”. Na Idade Média européia, um dos principais instrumentos da Igreja para conseguir impor-se aos pagãos foi exatamente a posse do conhecimento escrito, que os bárbaros, ágrafos (isto é, sem escrita), tendiam a ver como um ato mágico. A própria palavra “clero” significa “letrado”, ao passo que os “leigos” são os “ignorantes”. A Igreja preservou a memória da Antiguidade Clássica transmitindo-a aos novos cristãos e impedindo a perda de parte do conhecimento acumulado pela humanidade. Porém, como a Igreja usava muitas vezes a palavra divina para justificar seus interesses terrenos, no século XVI a Reforma Protestante promoveu a tradução da Bíblia, do latim, língua dos eruditos, para as línguas vulgares, faladas por todo o povo. A partir de então o fiel poderia interpretar livremente o texto sagrado, colocando-se diretamente em contato com o Senhor. Mais uma vez, a democratização do acesso à informação revolucionava a história: qualquer indivíduo podia interpretar a palavra divina e ser, ele mesmo, um novo profeta. Outra conseqüência derivada dessa mudança foi a contribuição para o desenvolvimento e consolidação das línguas nacionais, num contexto de centralização do poder monárquico e redução da influência da Igreja. A difusão efetiva do conhecimento escrito teve que esperar os séculos XIX e XX, quando o avanço dos movimentos pelo direito ao voto universal apontaram a necessidade de educar o povo para que ele pudesse usar adequadamente o novo instrumento de participação política. Atualmente, o código mais disseminado no campo do conhecimento é a língua inglesa, cujo domínio tem servido para distinguir uma nova elite efetivamente habilitada a acessar todos os ramos do saber e aqueles que ficam “excluídos”, por falarem apenas a língua materna ou línguas consideradas “menos importantes”.
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para memorizar alguns mil sinais e formavam uma elite cujos conhecimentos passavam de pai para filho. Freqüentemente esses escribas faziam parte do corpo de sacerdotes, os principais responsáveis pela administração que, na posição de intérpretes divinos, cobravam tributos dos camponeses. Foram os fenícios os responsáveis pela criação do alfabeto fonético, no qual cada sinal corresponde a um som básico produzido pela fala: 22 sinais, a princí-
SENTINDO OS SINAIS QUE DÃO SENTIDO AO TEXTO Os sinais de pontuação também são fundamentais para a configuração do sentido da linguagem escrita. Afinal, são eles que organizam as frases e a articulação do próprio pensamento. Leia atentamente o texto abaixo, de autoria do filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969), e em seguida escreva uma breve dissertação discutindo a história e a variedade dos sinais de pontuação. “O ponto de exclamação não se assemelha a um dedo em riste? Os pontos de interrogação não se parecem com luzes de alerta ou com uma piscadela? Os dois-pontos abrem a boca: coitado do escritor que não souber saciá-los. Visualmente, o ponto-e-vírgula lembra um bigode caído; é ainda mais forte, para mim, a sensação de seu sabor rústico. Marotas e satisfeitas, as aspas lambem os lábios. [...] Pontos de exclamação correspondem ao vermelho; dois-pontos, verde; e os travessões ordenam stop. [...] Em vez de zelosamente servirem ao trânsito entre a linguagem e o leitor, funcionam como hieróglifos no tráfego que acontece no interior da linguagem, em suas próprias vias. É supérfluo, por isso, omiti-los como supérfluos: assim eles apenas se escondem. Cada texto, mesmo o mais densamente tramado, cita-os por si mesmo, espíritos amistosos cuja presença incorpórea alimenta o corpo da linguagem”. [“Sinais de Pontuação”, em Notas de Literatura I (Editora 34, 2003)]
Elaine Senise Barbosa é professora de História no Curso Intergraus, em São Paulo, e autora de A encruzilhada das civilizações (Moderna, 1996)
Woodrow Wilson
“Que tipo de ordem mundial nós queremos?”, indagou Joschka Fischer, ministro do Exterior da Alemanha, na iminência da invasão americana do Iraque, em março de 2003. (...) Como interpretou Dominique de Villepin, ministro do Exterior da França, o conflito foi menos sobre o Iraque que sobre “duas visões de mundo”. (...) Um grande cisma filosófico abriu-se no interior do Ocidente e o antagonismo mútuo ameaça debilitar os dois lados da comunidade transatlântica. Para a Europa e os Estados Unidos, a divisão estratégica é suficientemente ruim. Mas, e se as suas divergências sobre a ordem mundial infectarem o restante do que conhecemos como o Ocidente liberal? Continuaria o Ocidente a ser ainda o Ocidente? (Robert Kagan, “America’s crisis of legitimacy”, Foreign Affairs, march/april 2004, p. 65-66)
A “ordem britânica” do passado estabeleceu, por meio do padrão ouro, uma moldura para a expansão do comércio e dos investimentos internacionais. A “ordem americana” do presente sustenta, por meio do dólar e das instituições econômicas multilaterais, um ambiente propício aos negócios das corporações transnacionais. A “Pax Britânica” garantiu um século inteiro sem conflagrações gerais entre as potências, até a Primeira Guerra Mundial. A “Pax Americana” soldou a unidade estratégica do Ocidente, derrotou sem guerra o desafio soviético e elegeu o terrorismo internacional como nova ameaça a ser combatida. Os neoconservadores republicanos, que dão as cartas da política externa americana, interpretam a Doutrina Bush como um desenvolvimento da Doutrina Truman de 1947 e enxergam o Império Americano como sucessor do Império Britânico. A república americana nasceu rejeitando as monarquias européias e desprezando a complexa e cínica “política de poder” do Velho Mundo. Por um lado, a relativa segurança proporcionada pelo oceano manifestou-se sob a forma de uma forte tendência ao isolacionismo, que era uma das expressões dessa rejeição da Europa. Por outro, os valores republicanos da Revolução Americana traduziram-se, de tempos em tempos, como um
projeto de “reforma do mundo” destinado a difundir as idéias da liberdade e da igualdade. Sob o influxo dessas tendências contraditórias, a política externa dos Estados Unidos oscilou entre os extremos do isolacionismo e do cruzadismo (veja o Box). O presidente Woodrow Wilson (1913-21) combateu o isolacionismo até conseguir engajar os Estados Unidos ao lado da Grã-Bretanha e da França na Primeira Guerra Mundial (1914-18). No fim do conflito, seu célebre discurso dos Quatorze Pontos traçou o caminho de uma “paz sem vencedores ou vencidos”, sem anexações territoriais ou reparações, coroada por uma organização mundial que impedisse a eclosão de novas guerras. A Conferência de Paz de Paris e o Tratado de Versalhes frustraram esses ideais. O Senado americano, sob uma maioria isolacionista, vetou a participação dos Estados Unidos na Liga das Nações, esvaziando-a de sentido. Mas Wilson deixou um legado internacionalista que seria retomado por Franklin Roosevelt e resultaria, após a Segunda Guerra Mundial (193945), na criação da ONU. O internacionalismo wilsoniano bebe na fonte do projeto cruzadista de “reforma do mundo” e proclama o princípio da difusão da liberdade mas, no fim das contas, move-se no campo do realismo. A Liga das Nações imaginada por Wilson era um diretório de potências investido da missão de zelar pela paz mundial. A ONU de Roosevelt foi moldada com a mesma argamassa, tanto que seu Conselho de Segurança refletia as realidades geopolíticas do pósguerra. Essa versão do internacionalismo americano baseava-se no multilateralismo, isto é, na noção de que o sistema de Estados funcionaria a partir de princípios comuns e decisões coletivas.
Um resultado desse desprezo americano pela política da força foi que, historicamente, os Estados Unidos delinearam uma distinção radical entre a guerra e a paz no seu enfoque da política externa. A paz foi caracterizada como um estado de harmonia entre as nações; a política da força, por outro lado, era considerada anormal e a guerra, um crime. Em tempos de paz, devia-se prestar muito pouca ou nenhuma atenção aos problemas do exterior (...). Uma vez que os Estados Unidos eram provocados e tinham que recorrer à força, o emprego dessa força se justificava em termos de princípios morais (...). Somente se podia justificar a guerra pressupondo nobres propósitos e destruindo completamente o inimigo imoral que ameaçava a integridade, ou até a existência, de tais princípios. O poder americano tinha que ser um poder “justo” (...). Um segundo resultado do desprezo pela política da força era, em conseqüência, que a aversão nacional à violência converteu-se, eventualmente, em uma glorificação nacional da violência e as guerras se tornaram cruzadas ideológicas tendentes a destruir o Estado inimigo e, assim, enviar seu povo a um reformatório democrático. (John Spanier, La política exterior norteamericana a partir de la Segunda Guerra Mundial, Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano, 1991, p. 22-23)
Reprodução
A POLÍTICA EXTERNA COMO CRUZADA
Franklin Roosevelt
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Nossos exércitos não chegaram a suas cidades e terras como conquistadores ou inimigos, mas como libertadores (...). Não é a vontade de nosso governo impor-lhes instituições estrangeiras (...). Nossa vontade é que vocês possam prosperar tanto quanto no passado, quando suas terras eram férteis e seus ancestrais ofereceram ao mundo a literatura, a ciência e a arte, e quando Bagdá foi uma das maravilhas do mundo. (...) É nossa esperança que se realizem as aspirações dos seus filósofos e escritores e que uma vez mais o povo de Bagdá floreça, experimentando a riqueza e desenvolvendo o espírito sob instituições compatíveis com suas leis sagradas e os ideais de sua raça.” George Bush, dirigindo-se aos iraquianos após a ocupação americana de 2003, certo? Errado: o discurso, proferido em 19 de março de 1917, é do general F. S. Maude, comandante das forças britânicas que conquistaram a Mesopotâmia. O paralelo entre a Grã-Bretanha imperial – que emergiu vitoriosa das Guerras Napoleônicas, em 1815, e, por mais de um século, expandiu a sua influência mundial – e os Estados Unidos do pós-guerra não é novo, mas tornou-se cada vez mais discutido após o 11 de setembro de 2001. A Doutrina Bush deflagrou uma estratégia unilateralista, sustenta o direito à guerra preventiva e prega a mudança de regimes nos países que desafiam a hiperpotência. Ela aparece como a visão de mundo de um poder imperial capaz de impor uma “nova ordem” no sistema internacional.
© DDP/Patrick Lux/AFP
“NOVA ORDEM” DE BUSH PROVOCA CISMA NO OCIDENTE
A Guerra Fria removeu o terreno para o funcionamento da visão de Roosevelt, de um “diretório de potências” – o Conselho de Segurança – que asseguraria a paz e a estabilidade internacionais. Mas o multilateralismo expressou-se, sob forma diferente, no bloco geopolítico liderado por Washington. A OTAN soldou a unidade estratégica entre os Estados Unidos e a Europa Ocidental. O Plano Marshall deflagrou a reconstrução européia. A Comunidade Européia (atual União Européia) substituiu as rivalidades nacionais pela fusão de soberanias entre os aliados ocidentais dos Estados Unidos. As instituições de Bretton Woods – o FMI, o Banco Mundial e o GATT (atual OMC) – conferiram ordem ao sistema econômico do Ocidente. Os neoconservadores republicanos são herdeiros devassos da tradição de Wilson. Eles adotam o internacionalismo mas rejeitam o multilateralismo. Desde que o 11 de setembro de 2001 proporcionou-lhes a oportunidade de conduzir a política externa da hiperpotência, os Estados Unidos engajaram-se numa cruzada de “reforma do mundo” que se traduz nos termos da expansão imperial e militar (veja a matéria à pág. 7). Os três anos de Doutrina Bush afetaram profundamente as relações internacionais. O cisma entre Estados Unidos e Europa, apenas disfarçado pelas “relações carnais” de Londres com Washington, ameaça deteriorar de vez a OTAN e coloca em risco o próprio futuro da ONU. A “guerra ao terror” proclamada por Bush estimula Israel a sabotar qualquer processo de paz no Oriente Médio e fornece o pretexto para a Rússia identificar falsamente o separatismo na Chechênia ao terrorismo global de Osama Bin Laden. A presença de tropas americanas no Afeganistão e a prolongada ocupação do Iraque desestabilizam o mundo muçulmano, alimentando o fundamentalismo islâmico. A “nova ordem” de Bush é rejeitada praticamente no mundo inteiro. Carente de legitimidade, ela se baseia apenas no poder militar global da hiperpotência. Mas um edifício não pode se equilibrar sobre um único pilar. OUTUBRO 2004
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HIPERPOTÊNCIA PROMOVE UMA REVOLUÇÃO NO SEU DISPOSITIVO MILITAR GLOBAL iscursando em Cincinnati perante uma platéia de veteranos das forças armadas, George Bush revelou o projeto de transferir de volta para os Estados Unidos até 70 mil militares, dos mais de 200 mil que servem no exterior. É verdade que o anúncio tinha nítida finalidade eleitoral e que o processo deve ocorrer gradualmente, ao longo da próxima década, mas ele não é mera promessa de campanha. Desde que a administração Bush se instalou, o Pentágono dedica-se ativamente ao que Donald Rumsfeld, o secretário da Defesa, denomina “transformação militar”. Os atentados de 11 de setembro de 2001 e a “guerra ao terror” conferiram um novo sentido de urgência à “transformação”, que se destina a adaptar a máquina de guerra da hiperpotência aos desafios do pós-Guerra Fria. A drástica redução quantitativa das tropas no exterior é uma das conseqüências da “transformação”. Mas, ao contrário do que parece, a finalidade do empreendimento não é diminuir a presença militar global dos Estados Unidos. O atual dispositivo militar americano é, essencialmente, uma herança da geopolítica da Guerra Fria. A doutrina da contenção da União Soviética, elaborada a partir de 1947, orientou a implantação das bases militares no exterior e explica a concentração de tropas e meios de combate em dois grandes teatros: a Europa Ocidental e a Ásia/Pacífico (veja o Mapa). Na Europa Ocidental ainda se encontram 114 mil militares americanos, de um efetivo que atingia mais de 300 mil no fim da Guerra Fria. A Alemanha, que era atravessada pela Cortina de Ferro e seria o primeiro alvo de uma hipotética ofensiva convencional soviética, hospeda quase dois terços das tropas baseadas na Europa. O restante distribui-se na Grã-Bretanha, Bélgica, Islândia e nas bases navais e aéreas da Europa meridional. A implantação militar na Ásia/Pacífico repousa sobre a rede de bases no Alasca e nos arquipélagos americanos do Havaí e Guam, que configuram o suporte estratégico para os meios de combate concentrados no Japão e na Coréia do Sul. O Japão, o principal aliado dos Estados Unidos na Ásia, que devia ser protegido da dupla ameaça de soviéticos e chineses, ainda hospeda 45 mil militares americanos. Na Coréia do Sul, que permanece tecnicamente em estado de guerra com a Coréia do Norte desde o armistício de 1954, estão baseados 37 mil soldados, marinheiros e pilotos americanos. O Golfo Pérsico, com suas imensas reservas de petróleo, e o Caribe, uma esfera de influência imediata, eram teatros importantes mas não centrais na geopolítica da Guerra Fria. Atualmente, o dispositivo do Golfo Pérsico estrutura-se sobre as bases navais do emirado do Bahrein e da ilha de Diego Garcia e a grande base aérea de Incirlik, na Turquia. No Caribe, a implantação militar americana assenta-se em Porto Rico e na célebre base naval de Guantánamo, cedida indefinidamente por Cuba muitas décadas antes da revolução de Fidel Castro. A ausência de qualquer grande base americana no hemisfério sul reflete a situação periférica da África Subsaariana e da América do Sul na rivalidade estratégica da Guerra Fria. Sob Rumsfeld, o Pentágono elabora uma nova visão dos desafios à hegemonia dos Estados Unidos e desenha um dispositivo militar global adaptado às “guerras do futuro”. O núcleo estratégico das mudanças consiste em integrar mais estreitamente o dispositivo global e proporcionar condições para a concentração rápida de meios de combate nos focos de novas ameaças. Na Europa, isso significa um firme movimento rumo ao leste. De um lado, trata-se de reduzir as tropas e equipamentos blindados estacionados na Alemanha: em dez anos, os militares americanos no país devem cair dos atuais 70 mil para cerca de 40 mil, um número ainda excepcional. A mudança não afetará as bases navais na Islândia e Grã-Bretanha e na Itália e Grécia, que são indispensáveis para as redes logísticas do Atlântico Norte/Mar do Norte e do Mediterrâneo. As bases aéreas na Grã-Bretanha, Alemanha, Portugal e Itália também devem ser conservadas ou até ampliadas.
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De outro lado, trata-se de implantar uma rede de bases na Europa centrooriental, a fim de soldar os laços entre os Estados Unidos e os novos integrantes da OTAN. A Polônia, situada estrategicamente no centro do corredor de planícies que conecta a Rússia à Alemanha, é óbvia candidata a receber uma grande base. A Bulgária e a Romênia podem ser escolhidas como sedes de bases destinadas a projetar o poder militar americano no Mar Negro. Na Ásia, a idéia é reduzir as vastas concentrações de tropas no Japão e na Coréia do Sul e desenhar uma implantação militar de tipo radicalmente diferente. O Japão, hoje, não enfrenta ameaças convencionais e possui amplos recursos bélicos próprios. O Pentágono trabalha com o cenário de forte redução das forças de marines estacionados em Okinawa, que são fonte de ressentimentos nacionalistas no país, mas pretende conservar as bases da Marinha e da Força Aérea. Já as tropas na Coréia do Sul serão reduzidas em um terço no horizonte de um ou dois anos, com a completa retirada das forças americanas estacionadas na Zona Desmilitarizada junto à fronteira. Os planejadores americanos sustentam que o país dispõe de 690 mil soldados bem treinados para enfrentar a ameaça norte-coreana e que a guerra moderna não depende da presença permanente de forças blindadas mas do predomínio aéreo e da capacidade de mover tropas rapidamente até o campo de batalha. A nova implantação militar asiática estará estruturada em torno de uma rede de bases flexíveis, servidas por contingentes mínimos mas adaptadas para ampliação rápida em caso de necessidade. Essas “plataformas quentes” seriam instaladas na orla da Ásia meridional, em países como as Filipinas, a Tailândia, a Malásia e Cingapura, funcionando como postos avançados de grandes bases de infra-estrutura como as do Havaí, Guam e Diego Garcia, além da base naval de Yokosuka e da base aérea de Mizawa, no Japão. Um esquema semelhante de “plataformas quentes” poderia ser instalado na Europa centro-oriental, tendo por retaguarda a grande base aérea de Ramstein, na Alemanha. O teatro do “Grande Oriente Médio” tornou-se prioridade estratégica máxima de Washington desde o 11 de setembro de 2001. Na região do Golfo Pérsico está em curso uma reorganização geral das forças americanas. O Pentágono prepara-se para retirar todos os seus militares da Arábia Saudita, pois a presença americana no país que guarda os lugares mais sagrados do Islã serve de bandeira para os fundamentalistas. Uma nova base aérea, no Catar, já começa a substituir a base saudita de Príncipe Sultan. No Iraque, tudo é incerto, mas os planejadores americanos alimentam a esperança de instalar uma grande base do Exército ou dos marines. A principal novidade, contudo, está reservada para a região da Ásia Central. O Pentágono já dispõe de pequenas bases instaladas para sustentar as operações no Afeganistão. A idéia é implantar um grande centro militar regional, possivelmente no Quirguistão ou Tajiquistão, que serviria de retaguarda para a perseguição a terroristas no Afeganistão e ainda para manter vigilância direta sobre as rotas que conectam a Ásia Central à China. O hemisfério sul permanece periférico, na época da “guerra ao terror”. A exceção notável é a região caribenho-amazônica da América do Sul, onde se desenvolve o conflito militar na Colômbia e se consolida o regime nacionalista de Hugo Chávez na Venezuela. Nesse teatro, o planejamento militar americano considera a hipótese de ampliação da pequena base colombiana, implantando um centro de operações capaz de aprofundar a “guerra ao narcotráfico” e, eventualmente, assegurar o acesso dos Estados Unidos ao petróleo venezuelano.
GRANDES BASES MILITARES DOS ESTADOS UNIDOS
ISLÂNDIA ALASCA
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Ú
S
I
A
JAPÃO TURQUIA
ESTADOS UNIDOS
C H I N A
OCEANO ATLÂNTICO
CORÉIA DO SUL BAREIN
Trópico de Câncer GUANTÂNAMO (CUBA)
HAWAI
OUTUBRO 2004
OKINAWA
OCEANO PACÍFICO
ÍNDIA
PORTO RICO
OCEANO PACÍFICO
GUAM
OCEANO ÍNDICO
Equador
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S
DIEGO GARCIA
BASES DO EXÉRCITO
BASES DA MARINHA
BASES DA FORÇA AÉREA
BASES DOS FUZILEIROS NAVAIS (MARINES)
FONTE: U.S. Department of Defense, Base Structure Report, 2002
E QUANDO TODOS OS GATOS SÃO PARDOS?
ALABAMA
GEÓRGIA
OCEANO ATLÂNTICO
Tallahassee Pensacola
Jacksonville Gainesville Daytona Beach
Orlando
Voto na eleição presidencial de 2000
St. Petersburg
F L Ó R I DA
Gore (48,8%)
Fort Lauderdale
Margem de vitória: 537 votos
Golfo do México
Votos do colégio eleitoral 2004: 27
Miami
Key West
FLÓRIDA
CANADÁ
IDAHO Spokane
Seattle
Olympia
OCEANO PACÍFICO
WASHINGTON
Voto na eleição presidencial de 2000 Gore (50,2%)
Bush (44,6%)
OREGON
Margem de vitória: 138,800 votos Votos do colégio eleitoral 2004: 11
WASHINGTON
Lago Erie
NOVA YORK
P E N S I LV Â N I A Allentown Harrisburg
Pittsburg
Philadelphia
MARYLAND WEST VIRGINIA
NOVA JERSEY
VIRGINIA DELAWARE
Voto na eleição presidencial de 2000 Gore (50,6%)
Bush (46,4%)
Margem de vitória: 204,800 votos Votos do colégio eleitoral 2004: 21
OCEANO ATLÂNTICO
PENSILVÂNIA
MICHIGAN
Lago Erie
Akron Lima
Massillon
O
H
I
O
Columbus Dayton Middletown Hamilton Cincinati
WEST VIRGINIA
Voto na eleição presidencial de 2000 Bush (50,0%)
Gore (46,5%)
Margem de vitória: 165,000 votos Votos do colégio eleitoral 2004: 20
OHIO
PENSILVÂNIA
Cleveland Toledo
KENTUCKY
Os mapas regionais das eleições de 2000, disputadas por George W. Bush e Al Gore, revelam uma tendência histórica: os democratas têm mais votos nos centros urbanos e industriais, ao passo que os republicanos vencem no interior e nas pequenas localidades
Tampa
Bush (48,8%)
INDIANA
Meus amigos no Partido Democrata – e eu estou feliz de poder chamar vários deles de meus amigos – nos garantem que compartilham a nossa convicção de que a obrigação mais importante de nosso governo é ganhar a guerra contra o terrorismo, e eu não duvido de sua sinceridade. (...) Lembremo-nos de que nós não somos inimigos, mas camaradas em uma guerra contra um verdadeiro inimigo”, declarou o senador John McCain em seu discurso, no dia 31 de agosto, durante a abertura da convenção nacional do Partido Republicano, realizado no famoso ginásio de esportes e centro de convenções Madison Square Garden, em Nova York. O discurso “conciliador” de McCain, pronunciado durante o encontro que oficializou a candidatura de George W. Bush, explicita a grande questão das eleições presidenciais: a manutenção da estratégia de “guerra ao terror”, quem quer que seja o vencedor. Do ponto de vista da elite dirigente, este, precisamente, é o ponto que deve permanecer intocado. Mas o discurso de McCain, antigo adversário de Bush e mais antigo ainda amigo de Kerry (lutaram juntos na Guerra do Vietnã), revela a semelhança cada vez maior entre os dois partidos. Para reforçar essa impressão, o senador do Partido Democrata pela Geórgia, Zell Miller, declarou em Chillicothe, Ohio, no dia 10 de setembro: “Eu quero aproveitar esta oportunidade para dizer a todos os meus amigos democratas, onde quer que estejam, todos vocês que, como eu, nunca pensaram em votar em um republicano poucos anos atrás, todos vocês que podem estar um pouco hesitantes em expressarem isto à mesa de jantar, ou manifestarem em reuniões de sindicato – digam a todos eles que George W. Bush é um republicano que os democratas podem orgulhosamente apoiar”. Assim, enquanto um senador republicano elogia os democratas em plena sessão solene de lançamento da candidatura de Bush, outro senador democrata proclama Bush como a melhor opção na luta contra o terror. Mas nem sempre as fronteiras entre os partidos foram tão tênues e difusas. Ao contrário, ao longo de todo o século XX, os republicanos sempre foram conhecidos como o motor da ideologia conservadora, capitalista liberal, avesso às garantias trabalhistas e concessões de natureza social, bandeiras sempre empunhadas pelos democratas. Alguns analistas e historiadores como Arhtur Schlessinger Jr. chegam a dizer que justamente a alternância dessas perspectivas no poder fizeram a grandeza dos Estados Unidos. Quando o clima político, econômico e financeiro era excessivamente liberal, conduzindo a excessos desequilibrados, como o lucro fácil com a especulação na Bolsa de Valores e investimentos especulativos, vinham os democratas e disciplinavam o capital, mediante concessões sociais. Quando as concessões ameaçavam sobrecarregar e paralisar as corporações, vinham os liberais e faziam os “ajustes”. Nunca as diferenças de perspectivas entre os dois partidos foram tão claramente expostas como no período que se seguiu à quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. O então presidente Herbert Hoover, republicano e liberal convicto, não admitia a hipótese de o Estado intervir na economia. Hoover fora eleito no final de 1928, quando o país ainda saboreava os frutos da prosperidade. Seus compromissos políticos e partidários eram com os setores mais abastados e conservadores da sociedade. Em 1932, o candidato do Partido Democrata às eleições presidenciais, Franklyn D. Roosevelt, apresentou argumentos opostos aos de Hoover. Roosevelt apoiava uma forte intervenção do Estado, incluindo a regulamentação das relações entre capital e trabalho, entre sindicatos e empresas. A plataforma de Roosevelt foi considerada “esquerdista” e “socialista” pelos republicanos e até pelos setores mais conservadores do próprio Partido Democrata.
FONTE: The Economist
No passado, republicanos e democratas expressaram o debate sobre o lugar do Estado na economia de mercado. Hoje, a plataforma econômica liberal e a “guerra ao terror” aproximam os dois partidos
Num país federativista, que apostava tudo nos valores individuais e na iniciativa privada, e que rejeitava até mesmo a noção de um poder central com capacidade de intervir nos Estados da federação, as idéias de Roosevelt soaram como uma espécie de subversão absoluta de valores consagrados pela Constituição. A plataforma do candidato democrata refletia o pensamento de uma corrente fortemente influenciada pelo economista britânico John Maynard Keynes, que procurava disciplinar a “mão invisível do mercado” por meio da intervenção da “mão visível do Estado”. Roosevelt respondia às críticas dizendo que ele era o único candidato verdadeiramente conservador, já que, em sua opinião, ou o Estado apresentava alternativas rápidas à nação, ou os bolcheviques, que haviam feito a revolução na Rússia, teriam condição de liquidar o capitalismo. Em defesa do capitalismo, portanto, Roosevelt propôs aquilo que, para a história, tornou-se conhecido como o New Deal. O New Deal comprometia-se a reduzir as despesas improdutivas do governo federal, a dar ajuda aos agricultores e aos mais prejudicados pela crise e realizar obras públicas para gerar empregos. Mas, principalmente, Roosevelt declarava que o governo federal tinha uma responsabilidade permanente de assegurar o bem-estar social. Tratava-se de um importante ponto de inflexão na história americana, um divisor de águas. Roosevelt governou os Estados Unidos até morrer, em 1945. Seus sucessores, com graus distintos de compromisso e convicção, mantiveram-se fiéis ao New Deal. Coube ao Partido Democrata promover os programas de integração dos negros, montar o edifício da assistência médica e social, investir na escola pública, principalmente com o programa Grande Sociedade, lançado em 1964 por Lyndon Johnson. Isso explica a tradicional influência dos democratas nos centros urbanos e industriais. Inversamente, explica a influência republicana nas pequenas localidades, mais propensas a cultivar valores tradicionais e religiosos. A tradicional divisão ideológica começou a desabar com Ronald Reagan e o “neoliberalismo” dos anos 80. Reagan iniciou o processo de desmontagem do New Deal, diminuindo o imposto pago pelos ricos e aumentando o pago pelos pobres, e cortando radicalmente verbas destinadas aos serviços públicos. A queda do Muro de Berlim e o fim do bloco soviético pareciam dar-lhe razão: a era dos benefícios sociais, aparentemente, tinha chegado ao fim. Bill Clinton, que se apresentou como um “Novo Democrata”, investiu todas as fichas no processo de globalização: livre fluxo de capitais, desregulamentação das economias, austeridade fiscal. A sua orientação econômica certamente não significou a mera continuidade do programa de Reagan mas, no essencial, conservou a orientação neoliberal estabelecida na década anterior. A “guerra ao terror” contribuiu para tornar os democratas ainda mais parecidos com os republicanos. Ironicamente, isso acontece quando a sociedade americana encontra-se dividida ao meio e os candidatos trocam pesadas acusações mútuas. Contudo, por trás da fumaça verbal, nas atuais eleições presidenciais o foco dos “debates” não são as estratégias políticas para o futuro, mas a vida pessoal e o passado de cada candidato.
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DO VIETNÃ AO IRAQUE, O DECLÍNIO DA MÍDIA AMERICANA A imprensa americana desafiou o poder e revelou os segredos da guerra na Indochina. Três décadas depois, ecoou as mentiras da Casa Branca para legitimar a guerra de Bush Newton Carlos Da Equipe de Colaboradores
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Dois momentos da mídia: a Guerra do Golfo de 1991, apresentada como videogame, sem sangue nem mortes, e o cadáver de soldado no Vietnã © Nacional Archives/AFP
13 de junho de 1971 o presidente Richard Nixon, dos Estados Unidos, apanhou curioso a sua edição dominical do New York Times. Num alto de página estava a primeira de uma série de reportagens sobre os arquivos oficiais contando como começou e se desenvolveu, até tornar-se tragédia nacional, o envolvimento americano no Vietnã. Vinham à luz, por obra de um analista militar do próprio governo, Daniel Ellsberg, os “Pentagon Papers”, os papéis do Pentágono, contendo uma montanha de documentos que se chocavam com versões usadas para justificar a guerra perante à opinião pública. Mas o interesse de Nixon era outro. Queria ver fotos do casamento de sua filha Tricia e dele próprio comandando a festa no Rose Garden, a ala social da Casa Branca, também publicadas no alto da primeira página. Por meio de conversa gravada com seu secretário de Estado, Alexander Haig, se soube depois que ele sequer leu a reportagem assinada por Neil Sheehan. Ávido por checar as repercussões de um ato familiar, Nixon foi incapaz de perceber na hora que se abria um processo, conduzido pela mídia, cujo desfecho colocaria a Guerra do Vietnã no banco dos réus. Não se tratou só da publicação dos “papers”. Talvez mais importante tenha sido a luta pelo direito de publicá-los. Na segunda-feira, 14 de junho, John Mitchell, ministro da Justiça, mandou que o New York Times parasse por ali. Nada de tornar pública a documentação inteira. Ato contínuo, Mitchel conseguiu ordem judicial bloqueando a publicação dos “papers” no jornal responsável pelo “furo”. A ordem foi depois estendida ao Washington Post, quando ele decidiu entrar no assunto. Travou-se uma batalha legal com tonalidades épicas. A 30 de junho a Corte Suprema, numa decisão histórica de seis votos contra três, levantou o bloqueio. Essa foi a mais importante decisão judicial em matéria de liberdade de imprensa na história dos Estados Unidos. Casa Branca versus mídia. No Vietnã, os Estados Unidos travaram uma guerra televisada, a primeira conduzida sem censura militar. A mídia jogou um papel fundamental, explorando a fundo as contradições no âmbito do poder e os significados das decisões de cúpula. A televisão mostrava os horrores ao vivo. Hoje não é mais segredo que Robert McNamara, o secretário de Defesa na época da escalada, vivia atormentado por sérias dúvidas. A ele se deveram os estudos que resultaram nos “papers”. A divulgação partiu, afinal, das dores de consciência de um acadêmico, Daniel Ellsberg, a serviço do aparato militar. A mídia deu curso à maré anti-guerra, fazendo com que ela aumentasse de volume. A primeira unidade de combate dos Estados Unidos a pisar em solo vietnamita, a 8 de março de 1965, foi um batalhão de “marines” que se instalou na base de Da Nang com a missão de impedir que ela caísse em mãos dos vietcongs, a guerrilha comunista que atuava no Vietnã do Sul. Uma missão recomendada pelo general Westmoreland, arquiteto militar da escalada que acabou colocando meio milhão de soldados americanos no Vietnã. No fim, quase cinqüenta mil não voltaram. Em novembro de 1969 os americanos (e o resto do mundo) tomaram conhecimento do massacre de Mi Lay, ocorrido em março de 1968. Numa das missões conhecidas como “search and destroy”, perseguir e destruir, uma brigada do Exército americano entrou atirando numa aldeia vietnamita, matando cerca de 300 civis desarmados, inclusive velhos, mulheres e crianças. O fato foi relatado a Seymour Hearsh, estrela do jornalismo investigativo, por Ron Ridenhour, veterano do Vietnã. Antes de entrevistar-se com Hearsh, e disposto a tornar o massacre conhecido de qualquer jeito, Ridenhour pediu ao Congresso, Casa Branca e
© RV/AFP
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Estados Unidos
Pentágono que ele fosse investigado. Nada feito. Conseguiu acolhida na mídia. E agora, com o Iraque? Estudo do centro de pesquisas Pew, dos Estados Unidos, constatou que 51% dos profissionais da informação acham que sua profissão “evolui em má direção”. Os escândalos com jornalistas do New York Times e do USA Today falsificando reportagens e as “dificuldades” da mídia em criticar o governo Bush depois dos atentados de 2001 provocaram “mal estar” entre jornalistas americanos. Até que uma das estrelas do New York Times, Judith Miller, admitiu que Ahmed Chalabi foi o informante principal de várias matérias de primeira página, escritas por ela, sobre a existência de armas de destruição maciça no Iraque. Chalabi, antes xodó do Pentágono, tido pelos arquitetos da invasão como o exilado ideal para assumir o poder pós-Saddam Hussein, acabou se consagrando como vigarista. Usá-lo como fonte era servir ao Pentágono, ao qual ele servia na época, em troca de pagamento em dólares. O jornal que ecoa as mentiras de um informante pago pelo Pentágono é o mesmo que, no passado, desafiou o governo para publicar os “Pentagon Papers”. A 26 de maio o New York Times publicou um “mea culpa”. Num editorial, admitiu com amargura que foram identificadas “várias instâncias de coberturas feitas sem o rigor necessario”. Determinados artigos, considerados “problemáticos”, dependeram pelo menos em parte de um ciclo de informantes iraquianos interessados na derrubada de Saddam Hussein. Chalabi, por exemplo, “fonte ocasional de artigos desde 1991”, só
deixou de ser procurado quando caiu em desgraça junto ao governo Bush. A versão inicial do Pentágono sobre a “heróica” soldada Jessica Lynch, supostamente resgatada das mãos de ferozes iraquianos por corajosa operação de comandos, recebeu tratamento “vip” no Washington Post. Tudo montagem. A relação de “barrigas” – os erros graves de informação, no jargão jornalístico – é grande. Nunca apareceram os supostos “campos secretos” no Iraque, destinados a treinar “terroristas islâmicos” e produzir armas biológicas. Um exilado que se dizia engenheiro civil “plantou” em jornais a “confissão” de que teria trabalhado na construção de “instalações secretas”, que seriam depósitos subterrâneos de armas atômicas, químicas e biológicas. A Casa Branca conseguiu publicar a “informação” de que Saddam Hussein estava atrás de componentes de armas atômicas. Cientistas iraquianos capturados garantiam, e eram citados como boas fontes, que “armas ilícitas estiveram escondidas até às vésperas da invasão”. Como se vê, sobretudo o ano de 2003, com esticadas em 2004, não foi o mais glorioso na história da mídia americana. Como disse um especialista, ela “surfou” na onda de nacionalismo que acompanhou a Guerra do Iraque. A sociedade americana nunca esteve tão dividida e a polarização também afetou a mídia. Ela se tornou menos isenta e mais “partidarista”, sobretudo com a emergência de uma direita republicana fundamentalista. “Os comunistas tinham o Pravda, os republicanos tem a Fox”, comparam grupos pacifistas americanos, referindo-se ao engajamento da Fox News, de grande audiência, nas causas do governo Bush.
Jorge de Almeida, editor de T&C
“Rainhas do Rádio” (esq.-dir.): Emilinha Borba (1953), Dalva de Oliveira (1951), Ângela Maria (1954), Vera Lúcia (55) e Dóris Monteiro (1956)
Fotos: Reproduções
Tra-ba-lha-do-res do Bra-sil!”. Com sua voz peculiar e sotaque gaúcho, Getulio Vargas iniciava assim, ao microfone da rede nacional de radiodifusão, seus tradicionais “discursos ao povo brasileiro”. Nos vários anos em que esteve no poder, como presidente do Governo Provisório (1930-1934), presidente eleito (1934-1937), no período do Estado Novo (1937-1945) e em seu retorno ao Palácio do Catete (1950-1954), Vargas não apenas utilizou o rádio para suas campanhas políticas nacionalistas, como também foi um dos grandes incentivadores de sua difusão e modernização. O “pai dos pobres” construiu sua imagem pelo rádio, e seu projeto de integração nacional e cultural foi levado a cabo pelas ondas curtas que atingiam todos os cantos do país. A utilização política do rádio não era novidade. Tendo se disseminado como meio de comunicação de massa na década de 1920, já no início dos anos 30 o regime de Hitler havia transformado o rádio na mais poderosa arma de propaganda da ideologia nazista. Os norte-americanos seguiram o exemplo, e também o usaram como arma de propaganda, mas de um modo um pouco mais sutil. Enquanto os discursos de Hitler eram feitos em tom belicoso, com uma oratória que dispensava os acordes impetuosos das músicas de fundo, o presidente Roosevelt transmitia seus programas de rádio como se estivesse conversando tranqüilamente com seus ouvintes, ao pé da lareira. Durante a Segunda Guerra, discursos transmitidos pelo rádio podiam ser ouvidos ao mesmo tempo em Berlim, no norte da África, na frente russa, no Brasil e nos submarinos espalhados pelo Atlântico. Mas, se o rádio servia à guerra, também estava ao lado da resistência à opressão. As fronteiras nacionais, com suas alfândegas e controles, não eram obstáculos para as transmissões em ondas curtas. Há diversos relatos de intelectuais e escritores de países sob regime autoritário que encontravam nas emissoras de ondas curtas um modo de receber, a partir do exterior, as notícias de sua própria cidade e região, normalmente submetidas à censura nos jornais e rádios locais. Meio de comunicação ideal para superar distâncias, não apenas geográficas mas também culturais, o rádio podia ser produzido e ouvido de forma relativamente barata. Superava assim, pela agilidade e alcance, seu concorrente mais próximo: o jornal impresso. Além disso, veiculava não apenas notícias, mas música, esportes e entretenimento, configurando-se como o principal veículo da primeira fase da expansão da indústria cultural moderna. O Brasil, atrasado no que se referia à produção editorial, não queria ficar atrás no domínio dessa nova tecnologia. Já em 1932, o governo Vargas institui as primeiras leis específicas para a radiodifusão, tomando posse das freqüências e adotando o padrão americano, que colocava na mão de particulares, sob a forma de concessões, o controle das emissoras. A expansão do rádio acabou contribuindo de maneira decisiva para a implementação do projeto nacionalista de Vargas, que em um de seus discursos deixou claro as diretrizes do Estado Novo: “A riqueza de cada um, a saúde, a cultura, a alegria, não são apenas bens pessoais, representam reservas de vitalidade social que devem ser aproveitadas para fortalecer a ação do Estado”. E para isso Vargas criou, em 1939, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão destinado a vigiar a imprensa e difundir o pensamento político do regime. Um dos primeiros frutos do DIP foi a criação da “Hora do Brasil”, programa de rádio oficial
(Sentido horário): Francisco Alves, Silvio Caldas, Nelson Gonçalves e Orlando Silva
que depois de tornou a “Voz do Brasil”, de transmissão obrigatória ainda hoje por todas as rádios do país. Os objetivos eram muitos: a exaltação do Brasil no exterior, a integração nacional, projetos de educação à distância, propaganda turística e “difusão de números musicais e literários que manifestem o pensamento brasileiro”. Como cantava Lamartine Babo, um uma marcha de apoio a Getúlio: “Só mesmo com revolução, / Graças ao rádio e o parabelo, / Nós vamos ter transformação, /Neste Brasil verde e amarelo”. E essa revolução não consistia apenas na transmissão de discursos e propaganda partidária, a própria cultura passa a ser vista como elemento fundamental do projeto político do Estado Novo. Isso ficou claro em 1940, com a estatização da Rádio Nacional, maior emissora do Rio de Janeiro. Transmitindo programas de música, humor, jornalismo, variedades e novelas radiofônicas, a Rádio Nacional foi a maior expressão do que depois ficaria conhecido como a “Era de ouro” do rádio brasileiro. Levando a vida a cantar, as “cantoras e cantores do rádio” difundiam música brasileira de qualidade, com canções ao mesmo tempo divertidas e recheadas de apelo nacionalista. Em seus programas, o compositor Almirante proibia o uso de expressões em outras línguas; Lamartine Babo e Ari Barroso compunham obras ufanistas, como a célebre “Aquarela do Brasil”, enquanto Heitor Villa-Lobos reunia milhares de estudantes para cantar nos estádios, em coro, hinos de exaltação à pátria. Todos os principais cantores da época eram contratados da Rádio Nacional: vozes como as de Orlando Silva, Francisco Alves, Silvio Caldas, Emilinha Borba,
Vicente Celestino e Carlos Galhardo, que contavam com fãs ardorosos e vendiam milhares de discos, em grande parte divulgados pelas apresentações ao vivo transmitidas pela rádio. Além disso, não faltava verba para a manutenção de músicos e artistas, como os que faziam parte da Orquestra Brasileira da Rádio Nacional, dirigida pelos maestros Leo Peracchi e Radamés Gnatalli, que um dia lembrou, em entrevista, a frase que ouviu de Gilberto de Andrade, o diretor nomeado por Vargas para reformular a programação da Nacional: “Gastem o dinheiro que tiver aí, não precisa guardar”. Andrade foi um dos principais entusiastas do uso político e cultural do rádio, ressaltando o poder do meio em uma de suas declarações: “Não podemos desestimar a obra de propaganda e de cultura realizada pelo rádio e, principalmente, a sua ação extra-escolar; basta dizer que o rádio chega até onde não chegam a escola e a imprensa, isto é: aos pontos mais longínquos do país”. No entanto, o produto de maior sucesso da Rádio Nacional estava longe de servir aos elevados interesses da política e da cultura. A introdução da novela radiofônica mudou hábitos e criou uma tradição que segue até hoje, transplantada para a televisão. A primeira novela estreou em 1941: o melodrama “Em busca da felicidade”, do autor cubano Leonardo Blanco. Os autores e diretores brasileiros logo desvendaram os truques do gênero, criando obras que se estendiam por meses e até mesmo anos, prendendo a atenção de um público formado principalmente por mulheres. A contrapartida “cultural” era a encenação de peças teatrais, adaptadas ao rádio e “encenadas” com o apoio de narração e sonoplastia. Nos primeiros anos da década de 1940 foram montadas, em várias emissoras, 300 peças integrais e 116 novelas, para alegria dos anunciantes, que pagavam caro pela exposição de seus produtos. Embora tivesse menos tempo de transmissão, em meio a tantos programas, o jornalismo ocupava uma posição de destaque. Vários dos debates mais importantes da época, muitos deles justamente sobre o controle dos meios de comunicação, ocorriam pelo rádio. As estações geralmente estavam ligadas a empresas do jornalismo escrito, participando ativamente da política local e nacional. O principal programa de jornalismo, com um formato diferenciado e uma alegada objetividade, era o famoso “Repórter Esso”, a “testemunha ocular da história”. Com um discurso anticomunista e li-
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A ERA VARGAS NAS ONDAS DO RÁDIO
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TROCADILHOS EM FAMÍLIA: O HUMOR DO PRK-30
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O “pai dos pobres” construiu sua imagem pelo rádio, e seu projeto de integração nacional e cultural foi levado a cabo pelas ondas curtas que atingiam todos os cantos do país
NARRANDO A HISTÓRIA PELO RÁDIO
“Cavaleiros e cavaleiras de ambos os sexos, muito boa tarde. Acaba de subir pro ar a sua PRK-30, falando diretamente do segundo andar do Edifício Espícler, enquanto não anunciam a construção do primeiro andar. É por isso que anunciamos sempre: no ar, PRK-30!”. Assim era a vinheta de abertura do programa de humor que durante mais de vinte anos dominou as noites de sextafeira, em plena era dourada do rádio brasileiro. Lauro Borges Escrito e apresentado por Lauro Borges e Castro Barbosa, o programa, transmitido por diversas emissoras do país, bateu todos os recordes de audiência, tornando-se um marco do humorismo nacional. Apesar de estar gravado na memória de toda uma geração, apenas recentemente, com o estudo de Paulo Perdigão [PRK30 no ar!, Editora Casa da Palavra, 2003], os mais jovens puderam conhecer os momentos brilhantes desse huCastro Barbosa mor ingênuo, familiar, cheio de trocadilhos e absurdos, que hoje soa curioso e distante, como um eco dos pesados rádios à válvula que ocupavam um lugar central nas salas de nossos avós. Era só uma dupla, mas soava como se fosse um verdadeiro exército de personagens excêntricos, caricaturas dos grandes ídolos do rádio da época, imitadas com perfeição por Lauro e Castro. Para cada programa de sucesso, fosse musical, jornalístico, esportivo ou de variedades, a PRK-30 produzia uma versão em forma de piada, sem esquecer os já ridículos shows de calouros e programas de perguntas sobre conhecimentos gerais: - Faz favor, venha esse moço aí, aquele da segunda fila, com cara de leitão assado. - Então sou eu! - Pode subir, boa noite. Eu tenho aqui umas perguntas a fazer de português e vamos ver se o senhor ganha o prêmio. Essa é difícil, hein? Como é que se chama o sujeito que matou o pai? - É assassino! Miserável! Cachorro! - Não.. o indivíduo que mata o pai é parricida. - Parecido com quê? - Então vamos ver se aquela senhora com vestido tomara que caia, cor de vinho verde quando está maduro, sabe a próxima questão: o que é que se chama Cuzco, que fica no Peru? - Mas, pera aí, que diabo será que o peru tem que se chama Cuzco? As asa não é. Pescoço também não é. Ah, já sei... Cuzco é aquela pelanca que tem debaixo do queixo! Tanto a ignorância quanto o pedantismo eram alvos de gozação dos dois humoristas. Mas foi com a imitação dos atores e atrizes das novelas radiofônicas da época que o programa conquistou o público, fazendo-o rir de temas e situações com as quais havia se acostumado a chorar. Utilizando todos os recursos do melodrama tradicional, como a música pungente e a voz embargada dos protagonistas, as versões humorísticas zombavam até mesmo dos anunciantes, em novelas como “Leocardio e Maria Gertrudes”, “Atire a terceira pedra” e “Frinéia descabelada”. No fictício “milionésimo quinquagésimo primeiro capítulo” dessa “espumejante novela”, um diálogo comovente elucida toda a trama: - Onorina, Onorina...venha cá. Você precisa ficar sabendo de uma vez por todas que ela... - Já sei, já sei de tudo. Aliás, você me disse. - Não, eu não disse isso! Você bem sabe que foi o Benevides que... - Bom, mas isso foi quando ele... - Não senhora! Foi muito antes. Eu tinha certeza de que naquela noite, depois do... - Bem, até aí você tem razão, mas... - Perdão, perdão. Naquele dia eu já tinha. - Não quero saber de nada. Pode dizer. A técnica do humor em rádio exige, além do domínio de diferentes vozes e proezas sonoras, uma perfeita noção de ritmo, como ocorre em toda comédia. Esse era o ponto forte de Lauro e Castro, algo que dificilmente pode ser percebido no texto, mas que fica evidente nos dois discos que acompanham o estudo de Paulo Perdigão. Com sátiras bem comportadas aos costumes da época, o PRK-30, um programa “só para homens, mulheres e crianças”, conseguiu as boas graças da censura, que também apreciava sua distância em relação à política. Era um programa de rádio sobre o próprio rádio. Por isso não foi bem sucedido em suas tentativas de adaptação para a TV, no início da década de 1960. O que sobra desse humor tipicamente brasileiro, além das saudades, é a confiança dos locutores na fidelidade de seu público. Ou, como dizia um de seus personagens principais, o “galão locutor” Otelo Trigueiro, “a voz onde as abelhas se inspiram para fazer o mel”: - Aqui estou eu com minha voz sonora bastante levemente laxativa. Para todas aquelas que estão me ouvindo, meus sinceros parabéns!
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O filme “A era do rádio” (1987), do diretor Woody Allen, é um retrato bem humorado do enorme impacto dos programas radiofônicos na vida cotidiana, durante as décadas de 1930 e 1940, antes do advento da televisão. Assista ao filme e, com a ajuda do professor, organize um programa de rádio com entrevistas e depoimentos sobre a história das transmissões radiofônicas no Brasil. Certamente as pessoas com mais de sessenta anos terão muita coisa para contar, pois acompanharam grande parte dos eventos decisivos do século XX com o ouvido grudado nos alto-falantes.
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beralizante, o programa era alimentado por agências norte-americanas, e sua implantação no Brasil fez parte dos esforços da “Política da boa vizinhança” levada a cabo pelos Estados Unidos desde meados da década de 1930. Curiosamente, o principal noticiário de um governo que havia criado a Petrobrás e lutado pela nacionalização do “ouro negro” era patrocinado por uma empresa petrolífera americana. Se Getúlio forjou sua vida política através do rádio, foi no momento de sua morte que o poder de informação e comoção do jornalismo radiofônico afetou de modo imediato a vida política nacional. O livro Vargas, agosto de 54, a história contada pelo rádio [Editora Garamond, 2004], organizado pela historiadora Ana Baum, conta em detalhes esse episódio, e ainda vem acompanhado de dois discos com notícias e programas sobre a época. No dia 24 de agosto de 1954, após uma madrugada confusa, em que vários grupos exigiram a renúncia de Getúlio, desgastado pelo atentado a Carlos Lacerda na rua Toneleros, a notícia do suicídio do presidente ecoou no Brasil inteiro pela Rádio Nacional, enquanto os jornais ainda saiam com a cobertura das reuniões do dia anterior: “Atenção, aqui fala o Repórter Esso em edição extraordinária. Acaba de suicidar-se, em seus aposentos, no Palácio do Catete, o presidente Getúlio Vargas”. O efeito foi imediato: uma multidão saiu às ruas para chorar a morte de Vargas e destruir as sedes dos órgãos de imprensa contrários ao governo. A cartatestamento de Getúlio, lida no mesmo dia com voz embargada de emoção pelos locutores favoráveis ao governo, era uma peça perfeitamente adequada ao rádio: “Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei minha vida. Agora vos ofereço minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”. E quem contou essa história, ao vivo, tornandose ele mesmo parte importante da história do Brasil, foi o rádio.
Corifeu de A. Marques, Blota Jr. e o iniciante Chacrinha, figuras destacadas do rádio brasileiro
Falta de investimentos em infra-estrutura pode frear o avanço das exportações agropecuárias do Brasil
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© Divulgação/Secretaria de Comunicação do Palácio do Iguaçu - Foto:José Gomercindo
s exportações agropecuárias vêm se constituindo na mola-mestra da recuperação da economia brasileira, nos últimos meses. Respondendo por 33% do PIB, o agronegócio gerou um saldo comercial positivo de US$ 23,8 bilhões em 2003, o maior do setor em todo o mundo, naquele ano. Colaborou também para esse resultado a alta nos preços internacionais de commodities agrícolas, em particular a soja. A safra brasileira de grãos bateu recordes no ano passado, chegando a 120 milhões de toneladas e, para 2004, espera-se uma produção ainda maior, próxima a 130 milhões de toneladas. O Brasil tornou-se o maior exportador mundial de carne bovina e de frango, e conquistou a vice-liderança nas exportações de soja. Novos mercados foram abertos – a Rússia, por exemplo, absorveu ano passado 57% das exportações brasileiras de carne suína e 12% do total das vendas externas de carne. A decisão da Colômbia, Venezuela e Suíça, entre outros países, de acrescentar álcool à gasolina, abriu novas perspectivas ao setor sucro-alcooleiro. Em breve, o Japão deverá trilhar o mesmo caminho e o Brasil é o único país do mundo com escala de produção de álcool suficiente para suprir essa demanda. O algodão, produto que andava meio em baixa desde as primeiras décadas do século XX, ganhou impulso e, em breve, deverá assumir também papel de destaque nas exportações. Mas esse desempenho favorável pode esbarrar, nos próximos anos, em um verdadeiro iceberg. O problema é que os investimentos na infra-estrutura de escoamento e armazenagem de produção estão praticamente estacionados. É como se o crescimento das exportações fosse um pé número 42, tentando entrar no sapato 38 das estradas, silos e portos. Caso essa tendência não seja revertida, o atual boom de exportação de commodities pode ser sufocado por um verdadeiro “apagão” de infra-estrutura. O Brasil que bate recordes de produção perde nada menos que 6% da produção de grãos – absurdas 7,1 milhões de toneladas ao ano, mais do que a safra nacional de trigo, de 5,5 milhões de toneladas – durante o ciclo de transporte. Isso equivale a jogar na lata do lixo a bagatela anual de R$ 45,2 bilhões, segundo dados da Associação Brasileira de Agribusiness (Abag). A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), utilizando padrões internacionais, avalia como razoáveis perdas de 0,2% a 0,6% da safra. A maior parte dessas perdas acontece no transporte entre o caminhão e o barco. E os motivos são muito variados. A Confederação Nacional dos Transportes (CNT) estima que 60% da frota brasileira de caminhões seja antiga, que 41% da estradas brasileiras sejam deficientes, 25% sejam ruins e que 16,8% estejam em péssimo estado. O próprio ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, reconheceu, em entrevista publicada em julho: mesmo se o governo fizer todos os investimentos necessários, trabalhando a pleno vapor, só serão recuperados 70% da malha viária envolvida nas exportações até o final do ano. Os problemas com a malha viária somam-se ao tradicional desequilíbrio na matriz brasileira de transporte, que em grande medida se baseia no caríssimo transporte rodoviário. Um estudo do professor José Vicente Caixeta Filho, da Escola Superior de Agronomia Luís de Queiroz da USP, indica que, nas longas distâncias, o transporte ferroviário é 30% mais barato do que o transporte rodoviário. Já o transporte hidroviário é, em média, 50% mais barato que o rodoviário. A explosão nas exportações de commodities fez nascer experiências interessantes, como o escoamento da enorme produção da soja de Mato Grosso, que é transportada por rodovia até Porto Velho (RO) e, então, por barco, pela Hidrovia do Madeira até portos da Amazônia, de onde parte rumo à América do Norte e a Europa, os maiores mercados consumidores. Mesmo assim, a dependência em relação ao transporte rodoviário é imensa (veja o Gráfico). Estudo do Coppead/UFRJ indica que
Embarque de soja em navio no porto de Paranaguá (PR)
Brasil: transporte de carga por modos (ton/km) % 70 60 60,5% 50 40 30 20
20,9% 13,8%
10
4,5%
0,3%
0 Rodoviário
Ferroviário
Hidroviário
Dutoviário
Aeroviário
Fonte: GEIPOT, 2000
as rodovias absorveram em 2000 exatos 79% dos investimentos em transportes, com 19% destinando-se ao transporte aquaviário e 3% para as ferrovias. A possibilidade de um colapso na estrutura de exportações, que bloqueie a atual tendência de recuperação econômica, fez acender uma luz vermelha no governo federal. Lula anunciou, em setembro, que, com investimentos de “apenas” R$ 273 milhões até 2006 na recuperação de 11 dos mais importantes portos brasileiros, será possível ampliar em até US$ 10 bilhões a capacidade exportadora do país. Esses números parecem discutíveis. Mesmo se forem reais, é preciso saber se os tais recursos existirão fora do papel. A decisão estratégica do governo federal, de garantir um superávit primário de 4,25% do PIB, em obediência a acordos com o Fundo Monetário In-
ternacional (FMI), reduz drasticamente a capacidade de investimento do país. Veja-se o caso da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), taxa cobrada sobre combustíveis e que deveria ser totalmente destinada à manutenção de estradas, transporte e controle dos preços do petróleo. Ela arrecada cerca de R$ 10 bilhões ao ano, hoje utilizados quase que integralmente na garantia do superávit primário. A persistir essa tendência, o Brasil, que produz com enorme competitividade, vai começar a sufocar no gargalo da infra-estrutura. E olhe que os preços internacionais de commodities estão em alta. Se houver uma queda sensível, os mercados internacionais serão disputados a tapa, e cada centavo perdido (ou poupado) em transporte, armazenagem e embarque, pode representar perdas milionárias.
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ÁGUA NO PESCOÇO
OUTUBRO 2004
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