GRITO MUDO DOS APÁTRIDAS SOCIAIS

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GRITO MUDO DOS APÁTRIDAS SOCIAIS Saulo Adriano dos Santos1 1

Graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela FAAC/Unesp/Bauru (1994). Especialis

Author Lucas Denílson Campos Balsemão

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GRITO MUDO DOS APÁTRIDAS SOCIAIS Saulo Adriano dos Santos1 1

Graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela FAAC/Unesp/Bauru (1994). Especialista em Leitura Crítica pelo IMES-São Manuel/SP (2005). Mestre em Comunicação Social pelo PG/FAAC/Unesp/Bauru/SP (2008). Graduando em Direito – ISEOL (2017).

Resumo: Apesar do manto protetor da Constituição Federal de 1988, anunciada como Constituição Cidadã no ato de sua promulgação, uma parte significativa da população brasileira experimenta sem perspectivas o drama da exclusão social, a quase inexistência da condição de pessoa natural para acessar os direitos fundamentais a que deveriam alcançar democraticamente todos os filhos da Pátria Amada, Brasil. São “apátridas” dentro do próprio território, cujo grito mudo não se faz ouvir pelo Estado-nação que lhes usurpa a essência de humanidade. É para este ser humano desumanizado e esvaziado em seus direitos fundamentais que se volta o presente artigo. Incapaz de fazer valer os princípios fundamentais de inclusão social - que se traduz em valores como direitos sociais e individuais, liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade, justiça - e sem oferecer a proteção constitucional à dignidade humana, o Estado lhes oferece seu poder de polícia. O paradoxo é exatamente este: uma vez equiparado ao criminoso ou marginal ao ordenamento jurídico, só assim o “apátrida em seu próprio território” pode ser devolvido à situação de legalidade, ainda que por um período curto. A questão principal, entretanto, permanece sem resposta. O indivíduo isolado em espaços de exceção, como a Cracolândia no Centro de São Paulo, perdeu sua cidadania de fato, ainda que a tenha de direito? Palavras-Chave: Direitos fundamentais; Cracolândia; Constituição Federal; Realidade; Desigualdade social 1. ARTIGO

A partir da leitura do texto Estado-nação, Cidadania e Direitos Humanos: o problema do refugiado, obra do professor Raphael Guazzelli Valério (2012), mestre em Filosofia, é impossível não refletir sobre a questão da pessoa humana face ao poder de um Estado inerte e omisso em questões sociais fundamentais. O artigo trata da figura do refugiado em terras estrangeiras diante do conflito do ordenamento jurídico e da aplicação prática das teses dos direitos humanos - que deveriam tutelar a pessoa natural, independente de nacionalidade, Estado de origem ou condição social. Já na parte introdutória, o autor anota:

O refugiado ou apátrida, que deveria encarnar por ∫ntegrada, v. IV, n. II Novembro, 2017

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excelência o homem dos direitos, ao invés disso, marca a crise desse conceito. Assim, (...) o aparecimento das leis de exceção como regra geral, o homo sacer representado na figura do refugiado e o campo de concentração, como puro espaço biopolítico, elementos cada vez mais presentes na ordenação dos espaços políticos contemporâneos, principalmente a partir da primeira guerra. (VALÉRIO, 2012, p. 230) Tristemente, o destrato social não é privilégio de apátridas ou refugiados estrangeiros. O Estado falha também com cidadãos nativos. Senão, observemos a nossa própria Nação, a República Federativa do Brasil, cujo ordenamento jurídico tem na supremacia a Constituição Federal de 1988 – denominada Constituição Cidadã, promulgada sob os bons ventos da reabertura democrática -, e fecha os sentidos para a nação de miseráveis esquecidos à luz do dia em verdadeiros campos de concentração isolados por muros sociais intransponíveis, guardados pela força armada e invisível (porém, eficaz) da exclusão dos mais fracos. Os símbolos nacionais apresentam uma pátria acolhedora, generosa em direitos fundamentais do ser humano emanados dos ideais libertários das revoluções Francesa de 1789 e Americana de 1776 e da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III, de 10 de dezembro 1948). O Hino Nacional Brasileiro canta “dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada, Brasil!” Está expresso no preâmbulo da Constituição de 1988 que os representantes do povo brasileiro estiveram reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, sob as diretrizes irrevogáveis de:

Assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. (VADE MECUM, 2017, p. 5). Todos esses conceitos norteadores gerais estão reafirmados no corpo interno da Constituição Federal como normas essenciais, entre cláusulas pétreas e ∫ntegrada, v. IV, n. II Novembro, 2017

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preceitos fundamentais. Leia-se especialmente os incisos II e III do artigo 1º, dos princípios fundamentais (cidadania e dignidade da pessoa humana), e todas as garantias sociais expressas nos direitos e deveres individuais e coletivos constantes no artigo 5º. A perspectiva constitucional projeta um ideal de Nação igualitária em direitos e deveres para todos os seus nacionais, sem exclusão e sem exceção. Porém, após cantado o Hino Nacional e lido o texto constitucional, comparese seus conteúdos com notícias em periódicos que evidenciam a crueza da realidade nas ruas. Não é preciso ir longe para inverter a perspectiva. A realidade desigual colide com os olhos de quem anda pela região central da Capital paulista e tropeça em mortos-vivos ou zumbis sociais produzidos pela chamada Cracolândia, brasileiros “apátridas” em seu próprio território que perambulam quase invisíveis por praças e espaços públicos. A triste realidade se repete nas periferias da grande metrópole do País, nas cidades do Interior e em todas as regiões geográficas, de norte a sul e de leste a oeste. O Dicionário Houaiss define o termo “apátrida” como que ou aquele que, tendo perdido sua nacionalidade de origem, não adquiriu outra; que ou o que se encontra oficialmente sem pátria. Trata-se de um adjetivo ou de um substantivo de dois gêneros. Na realidade social e na norma gramatical o termo “apátrida” abarca homens e mulheres. E esta é a realidade que se verifica nas ruas quando se pensa no conceito de “apátrida social”, pois são brasileiros e brasileiras desnacionalizados em direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico. Vide o conteúdo do artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo, no caderno Cotidiano, em 5 de setembro de 2017, sob o título: Obra 'Odiolândia' expõe reações de ódio contra usuários de crack em SP. Ali se registra a defesa aberta da tortura e do extermínio de uma parte indesejável da população que perambula pela Capital do Estado. Sejamos sensatos, tem que matar, senão não resolve.” A frase parece se referir a alguma bactéria ou outro agente infeccioso, mas foi registrada nas redes sociais no Brasil em referência a pessoas: os usuários de crack que circulam pela região central da cidade de São Paulo. A morte, a tortura e o extermínio foram abertamente evocados em comentários sobre as operações realizadas, ∫ntegrada, v. IV, n. II Novembro, 2017

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em maio e junho deste ano, pela Polícia Militar do governo Geraldo Alckmin (PSDB) e pela gestão João Doria (PSDB) na cracolândia. Alvo de críticas, as ações foram celebradas em milhares de postagens, muitas delas com mensagens de ódio. (FOLHA DE SÃO PAULO, 5/7/2017) Vejamos que o episódio das operações policiais realizadas contra a população de usuários de crack na região central de São Paulo se subsume perfeitamente ao que anota o autor do artigo Estado-nação, Cidadania e Direitos Humanos, embora a respeito de outro contexto:

O Estado-nação incapaz de promover uma lei que regulasse aqueles que perderam a proteção de outro governo nacional transfere o problema para a polícia, que recebe a autoridade para combater o problema apátrida, muitas vezes recorrendo a expedientes que fugiam do âmbito da lei. (VALÉRIO, 2012, p. 239) Concordando com a essência do artigo de Valério (2012), destacamos outro trecho, que conclui:

Na prática, era melhor o refugiado tornar-se um criminoso, pois assim poderia ser devolvido a uma situação legal, mesmo que por um período. Como criminoso, seus direitos humanos eram devolvidos, não estando mais à mercê do tratamento dado pela polícia (...). A situação paradoxal criada é esta: ‘só como transgressor da lei pode o apátrida ser protegido pela lei. (VALÉRIO, 2012, p. 239) Anacrônico e paradoxal, mas verdadeiro em sua crueza. Observemos a figura 1 a seguir e abramos os sentidos para compreender que a foto que ilustra matéria na Folha de São Paulo (26/4/2017) guarda semelhança estreita com a imagem clássica dos campos de refugiados mundo afora e com a imagem memorial dos guetos de judeus da Alemanha do período nazista.

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Figura 1: Semelhança estreita com a imagem clássica dos campos de refugiados mundo afora e com a imagem memorial dos guetos de judeus da Alemanha do período nazista. Foto: Joel Silva/Folhapress

É inegável que a nação de brasileiros excluídos socialmente – apátridas ou refugiados dentro do seu próprio país – grita por seus direitos fundamentais. Grita sem ser ouvida por seu próprio governo e por sua própria Constituição Federal - que os ignoram em sua cidadania e humanidade. Mais uma vez citando o artigo referencial deste trabalho acadêmico, concluímos:

O que se viu, e ainda se vê, no entanto, é que a relação entre Estado nacional, cidadania e direitos humanos é ainda mais complexa e problemática, pois no exato momento em que aparecem indivíduos que deveria encarnar, por excelência, o homem dos direitos, pois já não eram cidadãos de qualquer comunidade política, estes direitos aparecem como que inaplicáveis. (VALÉRIO, 2012, p. 240) A questão que permanece sem resposta é patente: o indivíduo que pertence à Cracolândia perdeu sua cidadania de fato, ainda que a tenha de direito? Sua voz não chega a ser ouvida. Sua existência incômoda não chega a ser notada pelo Estado, que o deveria acolher e tratar com dignidade humana. Entretanto, a Cracolândia se mostra um território de exceção, espaço que se assemelha aos campos de extermínio e onde o Direito parece suspenso, sem efeito prático. Tal situação faz aflorar o ódio irracional. O homem sem direitos se nivela ao ∫ntegrada, v. IV, n. II Novembro, 2017

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animal, coisificado e esvaziado de sua essência humana. Prova disso é o sentimento de ódio relatado pela reportagem da Folha de São Paulo (5/7/2017), onde o cidadão pleno em seus direitos se arvora do poder de sub-julgar o outro e escreve em rede social mensagens como: “sejamos sensatos, tem que matar, senão não resolve.” Que sensatez é essa? Reduzir o usuário de crack à condição análoga de bactéria é mais do que ódio e intolerância. É a desumanização da vítima e do agressor. Adolf Hitler também se referia aos judeus como “vermes” ou “piolhos”, na tentativa de justificar o extermínio em massa dos mesmos. “Eu não deveria também ter o direito de eliminar milhões de uma raça inferior que se multiplica como vermes?”, teria dito Hitler. A perda dos direitos fundamentais do homem passa por desumanizá-lo, reduzindo o ser humano à pura existência biológica. Dado esse passo, o extermínio da população socialmente excluída torna-se possível e até justificável, como se verifica no discurso do líder nazista. Parafraseando o astronauta norte-americano Neil Armstrong, momentos antes de ser o primeiro humano a pisar o solo lunar, fica a reflexão: estamos a um passo pequeno para um homem, mas um retrocesso gigantesco para a humanidade. 2. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em . Acesso em 15 set. 2017. DICIONÁRIO HOUAISS CONCISO. Instituto Antônio Houaiss (org). Editor Responsável: Mauro de Salles Villar. São Paulo: Moderna, 2011. FOLHA DE SÃO PAULO. ‘Feira da droga’ vira impasse para programa de Doria na cracolândia. Disponível em . Acesso em 15 set. 2017. FOLHA DE SÃO PAULO. Obra 'Odiolândia' expõe reações de ódio contra usuários de crack em SP. Disponível em . Acesso em 15 set. 2017. FOLHA DE SÃO PAULO. Megainvasão em terreno no ABC reúne 6.500 famílias ∫ntegrada, v. IV, n. II Novembro, 2017

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sem-teto. Disponível em . Acesso em 15 set. 2017. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. (resolução 217 A III, de 10 de dezembro 1948). Disponível em . Acesso em 15 set. 2017. VADE MECUM Saraiva. Obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Lívia Céspedes e Fabiana Dias da Rocha – 23. ed. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2017. VALÉRIO, R. G. Estado Nação e Direitos Humanos: o problema do refugiado. 2012. Disponível em . Acesso em 15 set. 2017.

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