Intervenção no Colóquio sobre A Crise Económica e Civilizacional e os impactos futuros e previsíveis no mundo do direito

Intervenção no Colóquio sobre “A Crise Económica e Civilizacional e os impactos futuros e previsíveis no mundo do direito” Senhor Presidente do Suprem

Author Benedita Domingues Ventura

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Intervenção no Colóquio sobre “A Crise Económica e Civilizacional e os impactos futuros e previsíveis no mundo do direito” Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça Excelência Digníssimos Conselheiros e Magistrados Senhoras e Senhores É uma grande honra para a DECO e para mim em particular o convite que Vossa Excelência nos dirigiu para intervirmos neste Colóquio, cujo tema de tão aliciante e de tanta consequência que é constitui, ao mesmo tempo, um desafio e uma oportunidade irrenunciáveis de reflexão sobre os caminhos que Portugal está a trilhar neste período tão difícil da sua História recente. O economista que sou conta desde já com a compreensão de Vossas Excelências para situar a maior parte da sua intervenção no âmbito da economia e da sociologia do consumo, sem deixar no entanto de apontar efeitos prováveis a registar no domínio do direito, onde a minha competência é manifestamente limitada. A primeira parte do nosso tema de hoje refere-se à Crise Económica e Civilizacional. Tentemos sucintamente caracterizá-la nas suas diferentes vertentes e apreender como se situa o nosso País em relação a ela. Primeira ideia: tal crise não é especificamente portuguesa, antes global, o que não impede que a ela sejamos particularmente vulneráveis e a sintamos com especial acuidade. A crise económica, que começou a expandir-se desde há cerca de três anos e que é já hoje tida como a mais nefasta desde a que eclodiu no final dos anos 20 do Século passado e grassou com forte impacto em quase toda a década de 30, verificou-se primeiro ao nível do sistema financeiro norte-americano, tendo daí alastrado rapidamente para a Europa e o resto do mundo. Economistas de diferentes orientações político-económicas podem ter interpretações parcialmente dissemelhantes sobre as causas da crise e os termos em que ela se propagou. Pela minha parte, não posso deixar de atribuir a maior quota-parte de responsabilidade ao laxismo dos reguladores e, por outro lado, ao preconceito corrente na opinião estado-unidense e anglo-saxónica contra a necessidade de realizar a regulação de certos mercados de importância capital, incluindo os mercados financeiros. A crença profunda em que os mercados saberão cuidar de si e não carecem de ser sujeitos a regras de bom funcionamento, nem tão pouco a uma análise próxima e exigente por entidades cuja função é detectar a tempo e corrigir os excessos e abusos de tais regras, conduziu à situação de não existir praticamente qualquer acompanhamento da actividade dos bancos de investimento nos Estados Unidos – e sabe-se que foi por aí que tudo começou. Vários desses bancos rebentaram de um dia para o outro e se muitos mais não lhes seguiram o exemplo deveu-se apenas a que os Governos, pelo mundo fora, intervieram

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para dar apoio transitório à sua banca, mobilizando para tal o dinheiro da generalidade dos contribuintes, que assim pagou o fruto das especulações mal sucedidas de uns tantos agentes do mercado. O excesso de alavancagem do crédito concedido por muitos bancos, inclusivamente a devedores com notórias dificuldades de pagamento, veio despertar um sentimento de desconfiança entre a comunidade bancária no plano internacional, com o resultado de os bancos deixarem de emprestar liquidez uns aos outros e muitos se terem visto coagidos a travar a fundo a concessão ou a renovação do crédito, limitando o apoio financeiro à actividade corrente das empresas e restringindo drasticamente o dantes facilitadíssimo crédito hipotecário. Não foram só as empresas e as famílias que se viram de um momento para o outro sem crédito. Os países mais afligidos por deficits orçamentais avultados e por uma dívida pública para além de níveis razoáveis viram também ser-lhes fechada a torneira do endividamento. De modo que sem a impulsão do consumo das famílias, da despesa pública e do investimento privado, a estagnação tem-se instalado em muitos países e, naturalmente, os números do desemprego crescem irresistivelmente. Porque é que Portugal se confronta com uma situação particularmente delicada entre os seus pares? Porque, não obstante alguns oásis de modernidade, o aparelho produtivo mantém baixos níveis de produtividade medidos por padrões internacionais, o facto de pertencermos à zona euro retira-nos o instrumento de jogar com a taxa de câmbio para reposição da competitividade abalada, os níveis de poupança das famílias baixaram muito e não podem, como seria desejável, financiar os investimentos privados e o deficit público, e porque depende excessivamente do exterior para alimentar a sua população. Segunda ideia: a crise económica tinge-se também de crise civilizacional e ela está a definirse e a agravar-se de há longo tempo a esta parte. Aspectos mais salientes: 1. Há escassa consciência (ou melhor, as pessoas e as sociedades esquecem-se por conveniência própria) de que estamos a exercer uma pressão excessiva sobre os recursos do nosso planeta, e que a prazo possivelmente não muito alargado teremos grandes dificuldades em proporcionar subsistências a uma população global teimosamente em crescendo e que acaba de ultrapassar os 7 mil milhões de seres humanos. 2. Nas condições em que ele tem sido feito, o processo de globalização conduzirá a uma queda inexorável dos níveis de vida das populações europeias e porá em causa os fundamentos e as estruturas do Estado Social tal como o conhecemos e/ou desejamos. 3. A falta de dimensão humana e de esclarecimento das lideranças políticas agrava os reflexos egoísticos que sempre surgem em tempos de dificuldades e põe em causa

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os princípios de coesão e solidariedade que é suposto existirem entre os membros de uma Comunidade, como a actual União Europeia. 4. Há fenómenos alarmantes de erosão do tecido social à escala dos países individuais, com agravamento da disparidade dos níveis de vida, banalização de fenómenos de violência, criminalidade e mal-estar social, e desinteresse pelo envolvimento na ponderação e resolução dos problemas da comunidade nacional, com reflexos no abstencionismo eleitoral e no propalado descaso pela política e pelos políticos. 5. Progressivo enfraquecimento da instituição familiar, básica em qualquer sociedade, ameaçada pela crise de empregos, a escassez de nascimentos e a ausência geral de perspectivas de futuro. Senhoras e Senhores, Portugal atravessa uma das suas crises maiores e perante as circunstâncias de carência actuais o caminho a seguir será estreito e cheio de escolhos. Mais uma razão para usar de rigor, mas também de bom-senso e sabedoria. E evitarmos que o alarme conduza a orientações políticas ou a medidas avulsas que ofendam a razoabilidade e se voltem contra os objectivos que há intenção de atingir. Já se sabe que a captação de receitas públicas é essencial numa conjuntura de grave aperto financeiro. Mas não se pode tornar no quase único critério para definição das prioridades e das políticas, sem o risco de cair nas maiores incongruências. O que se conhece das intenções de agravar a taxação do IVA para certos bens e serviços essenciais é bem sintomático dessas perplexidades. Por um lado, aplica-se a taxa máxima à generalidade dos alimentos pré-embalados (que, num período em que homens e mulheres trabalham fora do lar e já não existe ou é financeiramente incomportável o apoio doméstico, acaba por se tornar uma opção prática para alimentar o núcleo familiar) e a água engarrafada é ”promovida” da taxa mínima para a taxa intermédia; por outro o vinho continua abrangido na taxa média do IVA, passando a ter o mesmo tratamento fiscal que a água mineral. Já se sabe que a economia do vinho é importante para a agricultura portuguesa (dantes o discurso oficial pretendia que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses…), mas trata-se de uma óbvia e confrangedora inversão das prioridades. Por outro lado, pretende-se agravar até à taxa máxima o IVA da restauração, pastelarias, cafés e similares, sector que envolve larguíssimos milhares de empresas, com esmagador predomínio das pequenas e micro-empresas. Acaso não se torna evidente que levar para a frente esse desígnio se converte num decisivo incentivo à evasão fiscal, e quando dezenas ou centenas de milhares de transacções passarem para o domínio da economia informal o fisco não incrementa as suas cobranças, antes com alta probabilidade as diminui? Ah! mas usando de cautela a proposta de Orçamento prevê a penalização do consumidor se acaso este não exigir a factura relativa ao serviço, ou, no caso de a ter pedido, se se esqueceu de a conservar…!

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E estamos agora a chegar à segunda parte do nosso tema de hoje, aos “impactos futuros e previsíveis no mundo do direito”. Se a evolução real for do tipo da prevista, estaremos a descambar para uma situação da maior gravidade – a de colocar uma larga parcela das transacções económicas tecnicamente no domínio da ilegalidade, a empurrar a quase generalidade da população para a condição de agentes da fuga ao fisco, pelo menos de coniventes. É possível que de tudo isto não venha a resultar grande sobrecarga para os Tribunais. Como não é viável colocar um agente da autoridade atrás de cada cidadão, a maioria dessas transgressões não será descoberta e não será apresentada ao aparelho de justiça. Mas o que isso significará de relaxamento dos costumes, de dissolução da consciência de cidadania, é uma perspectiva de consequências terríveis. Tornar desculpável ou de menor alcance o incumprimento da lei – já que a maioria lhe fecha os olhos -, eis o que eu tenho por um imenso retrocesso civilizacional. E cuidado com o efeito de contágio. Quando os sãos princípios começam a ser negociados na base de “é uma infracção pequena, não tem importância”, ninguém poderá admirar-se que o relativismo moral se estenda depois a situações em que a infracção já não é assim tão pequena e o benefício de contornar a lei se afigure bem tentador. E aí sim, os Tribunais poderão vir a ter uma forte sobrecarga de trabalho subsequente. A cautela a que atrás fiz alusão não torna as coisas mais aceitáveis. É um abuso fazer de cada pessoa uma espécie de agente do fisco supranumerário, por receio de lhe virem mais tarde a pedir contas, e também não se pode aceitar que se torne obrigatório o arquivo na casa de cada um de facturas relativas a tudo o que se adquiriu por mais de 10 euros. Muitas facturas terão de ser passadas quando se realizar o próximo jogo internacional de futebol entre clubes de proa ou selecções no ano de 2012… É natural que, com o aprofundamento da crise, haja um número maior de incumprimentos de obrigações antes assumidas pelos cidadãos, do que irá resultar maior recurso aos Tribunais para efeitos de cobrança de dívidas. Uma vez que a todos interessa que a justiça funcione sem peias e correspondentes atrasos, que iniciativas seria necessário tomar de modo a evitar o bloqueamento dos Tribunais? Em primeiro lugar, recorrer muito mais frequentemente a mecanismos alternativos de resolução de conflitos, de modo a obter a sua resolução de forma mais célere, menos onerosa e tanto quanto possível mais próxima dos interessados. Quando os litígios tiverem uma relativamente pequena expressão monetária individual, como por exemplo acontece na maioria das operações de crédito bancário às famílias – poder-se-ia aliás definir um valor máximo por operação – seguir-se-ia um esquema de arbitragem obrigatória, à imagem do que já existe para os litígios emergentes da prestação de serviços públicos essenciais, com evidentes ganhos de tempo e economia de custo. Em todo caso, seria necessário rever urgentemente o conceito e a orientação geral da Lei da Arbitragem, de modo a que ela se passe a aplicar eficazmente aos conflitos entre cidadãos e empresas. O regime em vigor está pensado apenas para resolver conflitos entre

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empresas e um novo projecto de lei sobre a matéria, apresentado para consulta pelo Governo, e que suponho já ter sido objecto de aprovação pela Assembleia da República, mantém o mesmo critério, pelo que continua a não dar a resposta adequada à questão. Tratou-se, assim, de uma oportunidade perdida. Impõe-se também agilizar o regime das acções declarativas especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias, ou seja das chamadas injunções. Com efeito, se o consumidor de serviços públicos essenciais – que normalmente é chamado a capítulo para pagamento de alegadas dívidas – tiver razões para se opor, o processo demora cerca de 2 anos a ser resolvido, o que é tempo excessivo para a dimensão do que está em causa. Essa agilização pretendida terá de ser acompanhada de garantias de defesa eficazes, já que muitas vezes há razões de queixa de ambas as partes. Em segundo lugar, é fundamental rever profundamente o regime das acções executivas, já que o processamento é demasiado burocrático e dá poucas garantias aos cidadãos. Será a única maneira de evitar a frustração dos que esperam indefinidamente pelo ressarcimento de danos que já foram reconhecidos pelos Tribunais e atribuídas as responsabilidades respectivas. Em terceiro lugar, uma expressão de alarme e um alerta. É de comum ciência que o actual executivo pretende, em simultâneo, reduzir os Tribunais de Comarca às capitais de distrito e alterar o Código das Custas Judiciais, com eventual aumento das mesmas. Ambas as iniciativas vão no sentido de obstaculizar o acesso dos cidadãos à justiça, tornando-a mais longínqua e mais cara. Não se contesta a necessidade de fazer poupanças, mas há que escolher as vias que não envolvam a forçada renúncia dos cidadãos ao que é um dos seus direitos fundamentais. E para que tais direitos não fiquem restringidos ao plano teórico, importa melhorar a informação sobre a possibilidade de recurso ao Apoio Judiciário. A título de exemplo, no âmbito dos processos relativos a injunções, não se faz referência a essa possibilidade de recurso, apenas se refere a necessidade de constituição de mandatário, nos casos previstos na lei. Não custa admitir que, em muitos casos, não se recorre ao Apoio Judiciário, apenas por falta de informação. Senhoras e Senhores, Portugal está confrontado com a conjuntura mais difícil e espinhosa desde que consolidámos a nossa democracia. De nós depende, da nossa clarividência, do nosso espírito de compromisso, do nosso esforço, da nossa vontade, que saiamos por cima deste pélago e voltemos a reencontrar um futuro digno para nós e os que vierem depois de nós.

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