O Refúgio Secreto. Corrie ten Boom & John e Elizabeth Sherrill. Digitalização: Sandra

O Refúgio Secreto Corrie ten Boom & John e Elizabeth Sherrill

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Author Kevin Brás Martinho

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O Refúgio Secreto Corrie ten Boom & John e Elizabeth Sherrill

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SEMEADORES

DA

PALAVRA e-books evangélicos

Índice Contracapa............................................................................7 Capítulo 1 - O Centenário da Loja............................................11 Capítulo 2 - Todos à Mesa......................................................32 Capítulo 3 - Karel..................................................................49 Capítulo 4 - A Relojoaria........................................................71 Capítulo 5 - A Invasão...........................................................90 Capítulo 6 - O Quarto Secreto...............................................111 Capítulo 7 - Eusie................................................................130 Capítulo 8 - Nuvens Escuras.................................................158 Capítulo 9 - A Batida............................................................180 Capítulo 10 - Scheveningen, a Penitenciária............................197 Capítulo 11 - O Tenente.......................................................226 Capítulo 12 - Vught, o Campo de Concentração.......................240 Capítulo 13 - Ravensbruck, o Campo de Extermínio.................268 Capítulo 14 - A Blusa Azul....................................................294 Capítulo 15 - As Três Visões.................................................313 Epílogo...............................................................................340 Três Maneiras de Aplicar a Mensagem Deste Livro à Sua Vida. . .342 Os Autores.........................................................................345

Corrie ten Boom & John e Elizabeth Sherrill

O REFÚGIO SECRETO Editora Betânia BELO HORIZONTE 2000

Contracapa Esta é a história emocionante de uma mulher que enfrentou os horrores da perseguição nazista aos judeus, sem perder a fé e a esperança. A história da humanidade tem algumas páginas manchadas de sangue que a maioria das pessoas prefere esquecer. Mas justo dessas páginas despontam certas pessoas que precisam ser lembradas e conhecidas por todos. Corrie ten Boom é uma delas. Vivendo na Holanda, durante a Segunda Guerra Mundial, Corrie livrou vários judeus da perseguição nazista e da morte, escondendo-os em um quarto secreto na casa de sua família. Mas pagou um preço altíssimo por isso, Foi presa junto com sua irmã e seu pai, e sofreu todo tipo de dor, injustiça e humilhação. Você vai se emocionar intensamente com a vida de Corrie ten Boom: as lembranças da infância, a vida pacata no interior da Holanda, seu trabalho na relojoaria do pai, suas atividades no movimento de resistência holandesa quando o país foi ocupado pelo exército alemão. Vai viver juntamente com ela o medo de que a qualquer momento a polícia descobrisse os judeus em sua casa, os horrores dos campos de concentração, a perda de parentes e amigos queridos. Mas uma coisa: Corrie não perdeu sua fé em Deus e a certeza de que, apesar de tudo, seu Pai Celestial estava no controle de sua vida e da história. Você será profundamente tocado com o exemplo dessa

mulher que mostrou que podemos enfrentar as piores situações quando temos em Deus o nosso refugio secreto.

Prefácio Durante todo o tempo em que fizemos nosso trabalho de pesquisa para o livro O Contrabandista de Deus, um nome despontou várias vezes: Corrie ten Boom. Essa extraordinária mulher - que estava com seus setenta e cinco anos quando dela ouvimos pela primeira vez - era o melhor "companheiro de viagem" do Irmão André. As histórias fascinantes que este nos contou a seu respeito, no Oriente - onde era conhecida pelo honroso nome de "Velha vovó" - e em outras partes do mundo, vinham à tona com tanta freqüência, que afinal erguemos os braços pedindo-lhe que cessasse com aquela torrente de recordações. "Ela não vai poder figurar neste livro", dissemos. "Ela sozinha é um livro!" São estas coisas que a gente diz sem querer insinuar nada. Em maio de 1968, estávamos na Alemanha, e fomos assistir ao culto em uma certa igreja. Um senhor estava narrando os horrores que sofrera em um campo de concentração nazista. Sua expressão facial era ainda mais eloqüente que suas palavras; os olhos guardavam a lembrança da dor; suas mãos tremiam - mãos que não conseguiam esquecer...

Sucedeu-o no púlpito uma mulher de

cabelos brancos, grande e forte, usando sapatos grossos, cujo rosto, em contraste, irradiava alegria, paz e amor. Ela relatava os mesmos fatos. Também ela estivera em um campo de concentração, presenciara as mesmas cenas brutais, sofrera as mesmas perdas.

Enquanto os sentimentos dele eram perfeitamente compreensíveis, os dela davam o que pensar. Encerrado o culto, deixamo-nos ficar para falar com ela. Assim que principiamos a conversa, percebemos logo que se tratava da Corrie ten Boom de que André nos falara. O maravilhoso ministério de consolação e aconselhamento de Corrie ten Boom se iniciara no campo de concentração, onde ela encontrou um "esconderijo contra o vento... refúgio contra a tempestade... sombra de grande rocha em terra sedenta". Ali também aprendera a verdade de que, quando o pior acontece, o melhor ainda está para vir. Em palestras posteriores, chegamos a conhecer bem esta admirável mulher. Com ela visitamos a casa estreita, tipicamente holandesa - apenas um cômodo na largura - onde, até os cinqüenta anos, ela levara uma vida pacata de uma solteirona, consertando relógios e cuidando da irmã mais velha e do pai idoso, sem nem ao menos sonhar que um mundo de aventuras e desventuras estava lhe batendo à porta. Visitamos aquela casa do sul da Holanda, em cujo jardim a jovem Corrie entregou a Karel o coração, e também a espaçosa mansão de Haarlem, onde, em plena guerra, Pickwick serviu café de verdade aos amigos. E em meio a tudo isso, tivemos a forte impressão de que não olhávamos para o passado, e, sim, para o futuro. Era como se aqueles lugares e aquelas pessoas estivessem nos falando, não sobre fatos já acontecidos, mas sobre o mundo que nos aguardava, na década de 70. Já nos descobrimos, algumas vezes, pondo em prática os segredos espirituais que com ela aprendemos a respeito de:

• como suportar uma separação; • como contentar-se com pouco; • como sentir-se seguro em meio à insegurança; • como ter forças para perdoar; • como Deus usa as fraquezas; • como lidar com pessoas problemáticas; • como encarar a morte; • como amar os inimigos; • o que fazer quando o mal é vitorioso. Mencionamos para ela o fato de que tudo que nos contava era muito prático, e que essas lembranças do passado estavam lançando luz sobre alguns dos nossos problemas atuais. "Mas é para isso que o passado serve", respondeu. "Cada experiência que Deus nos concede, cada pessoa que passa pela nossa vida, faz parte de nossa preparação para um futuro que somente ele vê." Cada experiência, cada pessoa... o pai, que era o melhor relojoeiro da Holanda, mas que sempre se esquecia de mandar a conta dos consertos. A mãe, cujo corpo tornara-se uma prisão, mas cujo espírito vagueava livremente. Betsie, que com três batatas e um bocadinho de folhas de chá já usadas, sabia organizar uma festinha. Ao fitar os olhos brilhantes daquela mulher forte, quase desejamos que essas pessoas tivessem feito parte de nossa vida também. Depois, naturalmente, vimos que elas fizeram... - John e Elizabeth Sherrill

Capítulo 1 - O Centenário da Loja Saltei da cama naquela manhã com uma preocupação - o dia seria claro ou não? Na Holanda, em janeiro, geralmente o tempo é úmido, frio e o céu fica nublado. De vez em quando, porém, num raro dia de magia e encanto, brilha um sol de inverno. Cheguei à janela do quarto, e me debrucei para fora até onde pude. Do Beje era sempre muito difícil ver o céu. Dei com a face vazia de uma parede de tijolos, fundo de outra das construções antigas desse atulhado centro de Haarlem. Esticando o pescoço ao máximo para enxergar melhor, consegui ver, lá em cima, uma nesga de céu cor-de-pérola, por sobre o emaranhado dos telhados malucos e chaminés tortas. O dia de nossa festa ia ser ensolarado. Retirei meu vestido novo de nosso velho guarda-roupa de pés oscilantes, encostado à parede, e ensaiei uns passos de valsa. O quarto de papai era logo abaixo do meu, mas aos setenta e sete anos, ele dormia pesadamente. Esta era uma das vantagens da velhice, pensei enquanto enfiava os braços pelas mangas e dava uma olhadela no espelho para ver como estava. Embora em 1937 algumas mulheres já estivessem usando as saias à altura dos joelhos, eu ainda conservava as minhas acerca de dez centímetros do chão. Você não está ficando mais jovem, comentei com a minha imagem. Talvez fosse o fato de pôr um vestido novo que me levasse a olhar para mim mesma com um pouco mais de autocrítica do que geralmente o fazia: quarenta e cinco anos, solteira, e já meio

pesadona. Minha irmã Betsie, embora fosse sete anos mais velha do que eu, ainda era graciosa e esbelta. Às vezes, as pessoas paravam na rua para admirá-la. Sei muito bem que não era por causa da roupa. Nossa relojoaria nunca nos permitira muito luxo, mas quando Betsie punha um vestido novo, parecia que ele sofria uma transformação. Comigo - antes que Betsie resolvesse me modificar - era muito diferente: bainhas dependuradas, meias rasgadas, gola torta. Desta vez, porém - pensei, afastando-me do espelho ao máximo que me permitia o exíguo espaço do quarto - o efeito final daquele vestido novo, marrom-escuro, era excelente. Lá embaixo a campainha tocou. Convidados, já? Abri a porta e desci rapidamente pela escada espiralada e íngreme. Essa escada não fora feita com a casa inicialmente. Na verdade, havia duas casas. A da frente tinha a estrutura típica das casas de Haarlem - três andares, dois cômodos na extensão e um na largura. A certa altura de sua existência, a parede de trás havia sido derrubada para que ela fosse unida à que lhe ficava aos fundos, a qual era ainda mais estreita e aprumada - tinha apenas três cômodos, um sobre o outro. Espremida entre as duas, estava a escada estreita, em caracol. Embora eu houvesse descido depressa, Betsie chegou à porta antes de mim. Um imenso buquê tapava a entrada. Assim que ela o apanhou, o rapazinho da entrega surgiu de trás dele. - Lindo dia para a festa, disse ele, procurando olhar para dentro da sala como se o café e o bolo já estivessem servidos. Mais tarde, ele viria, como também, ao que parecia, todo o povo de Haarlem. Procuramos o cartão por entre as flores.

- Pickwick! gritamos a um só tempo. Pickwick era um freguês nosso, imensamente rico; era quem comprava nossos melhores relógios. Muitas vezes, subia conosco à parte residencial da casa, que ficava em cima da loja. Seu nome era, na verdade, Herman Sluring, mas, entre nós, o apelidáramos de Pickwick, porque se parecia demais com o desenho que ilustrava um de nossos volumes de Dickens. Herman era, sem contestação, o homem mais feio de Haarlem. Baixo, muito gordo, calvo como um queijo holandês e tão estrábico que, ao falarmos com ele, nunca sabíamos se estava olhando para a gente ou para a pessoa ao lado; mas era tão bom e generoso quanto feio. As flores tinham sido entregues na porta lateral que era utilizada pela família e que dava para uma ruela estreita. Levamos o buquê para a loja. Primeiro chega-se à oficina de consertos. Ali se achava a banca elevada de papai, sobre a qual ele se inclinara durante tantos anos, para executar o seu trabalho delicado e minucioso, considerado um dos melhores da Holanda. No centro havia minha banca; junto à minha, estava a de Hans, o aprendiz, e, próximo à parede, a do velho Christoffels. Na frente, ficava a parte comercial, com seu balcão de tampo de vidro, cheio de relógios, e onde atendíamos os fregueses. Todos os relógios de parede batiam sete horas quando ali entramos com as flores e começamos a ver qual seria o melhor lugar para colocá-las. Desde criança eu gostava muito de entrar naquela sala e ser saudada pelo murmúrio agradável de centenas de tiquetaques. O aposento estava escuro, pois as persianas ainda se encontravam cerradas. Destranquei a porta e saí para a rua. As outras lojas, a ótica que ficava ao lado, a de roupas, a padaria e a

peleteria do outro lado da rua, ainda estavam bem fechadas e sem sinal de movimento. Abri as persianas e fiquei algum tempo admirando a vitrine de que, agora, tanto eu como Betsie gostávamos. Nós estávamos sempre debatendo sobre qual seria a melhor maneira de arranjá-la. Eu gostaria de colocar ali muitos relógios, tantos quantos ela comportasse, mas Betsie afirmava que seria melhor expor apenas dois ou três dos mais bonitos, talvez sobre um fundo de cetim ou seda, artisticamente drapeado. Esse arranjo, dizia ela, seria mais elegante e atraente. Dessa vez, porém, nós estávamos de acordo. Puséramos ali uma coleção de relógios - despertadores e de bolso - todos com pelo menos cem anos de fabricação, que havíamos tomado emprestado de amigos e conhecidos que possuíam lojas de antigüidades. Comemorávamos nesse dia o centenário da loja. Fora nessa data em janeiro de 1837, que o pai de papai colocara na janela a placa: Relojoaria ten Boom. Ouvi os sinos das igrejas de Haarlem baterem sete horas durante os dez minutos seguintes, dando uma demonstração de completo desdém para com a precisão do tempo. Por último, na pracinha a meio quarteirão abaixo, o grande sino da Igreja de São Bavo deu suas sete pancadas. Deixei-me ficar ali a contá-las, embora estivesse bem frio naquela manhã de janeiro. Agora, em Haarlem, todo mundo tinha rádio, mas eu me lembrava do tempo em que toda a vida da cidade era regulada pelo sino de São Bavo. Apenas os funcionários da ferrovia e outras pessoas que precisavam saber a hora exata vinham à nossa loja consultar o relógio astronômico. Toda semana, papai ia a Amsterdam, de trem, para acertar o seu cronômetro pelo Observatório Naval. Ele tinha muito

orgulho do fato de que o relógio astronômico nunca se atrasava nem adiantava mais que dois segundos por semana. Entrei de volta na loja. Lá estava ele, rebrilhando no alto do seu pedestal de concreto, mas agora desvestido de qualquer importância. Novamente a campainha da porta: mais flores. Aquilo continuou por cerca de uma hora - buquês grandes e pequenos, arranjos trabalhados e vasos de cerâmica com plantas ornamentais. Embora a festa fosse em honra da loja, o afeto da cidade era dirigido ao meu pai. "O bom velho de Haarlem" era como o chamavam, e todos pareciam dispostos a provar que ele era querido. Quando a sala da frente e a oficina ficaram cheias demais, começamos a levá-las para os dois cômodos que ficavam diretamente acima da loja. Esses cômodos eram conhecidos por nós como "os quartos da Tia Jans", embora ela já tivesse falecido há vinte anos. Tia Jans era a irmã mais velha de mamãe. Ela parecia estar ainda ali, juntamente com a pesada mobília escura que nos deixara. Betsie colocou no chão um vaso de tulipas de estufa, deu um passo para trás e soltou uma exclamação de prazer. - Corrie, veja como isto alegrou o ambiente! Pobre Betsie! O Beje é tão cercado, tão comprimido entre outras casas que as mudas de flores que ela plantava em caixas nas janelas, todas as primaveras, nunca se desenvolviam o bastante para dar flores. Às 7:45h, chegou Hans, o aprendiz, e às 8:00h, Toos, nossa balconista e guarda-livros. Toos era uma dessas pessoas que estão sempre de cara amarrada e triste. Seu mau humor constante a impedira de permanecer em um emprego por muito tempo, até que, há dez anos, viera trabalhar conosco. A gentil cortesia de papai a

havia desarmado e abrandado seu gênio. Embora preferisse morrer a admitir isso, ela gostava muito dele, tanto quanto detestava o resto do mundo. Deixamos a porta a cargo de Hans e Toos e subimos para tomar café. Só três pratos, pensei enquanto punha a mesa. A sala de jantar era na casa de trás, num nível mais elevado que o da loja. Subia-se a ela por um lance de cinco degraus. Com sua única janela que dava para o beco lateral, esta sala era, para mim, o coração da casa. Quando criança, recobrindo a mesa com um grande cobertor, eu fazia dela minha tenda ou uma caverna de piratas. Aqui fazia meus deveres, quando estudante. Aqui mamãe lia Dickens em voz alta para nós, nas noites de inverno, enquanto as brasas de nossa lareira de tijolos estalavam e cobriam de reflexos avermelhados o azulejo que tinha entalhada a frase: "Jesus é vitorioso." Utilizávamos apenas uma parte da mesa agora, eu, papai e Betsie, mas, para mim, era como se o resto da família ainda se achasse ali. De um lado a cadeira de mamãe, acolá o lugar das três tias (mais duas irmãs de mamãe que, além de Tia Jans, haviam morado conosco). Minha irmã Nollie sentava-se próximo de mim, e Willem, o único filho homem, ficava perto de papai. Nollie e Willem já haviam se casado há vários anos e tinham sua própria casa; mamãe e as tias já não se encontravam mais conosco, mas ainda me parecia vê-los todos ali. Suas cadeiras não haviam permanecido vazias por muito tempo. Papai não suportava a idéia de ter uma casa sem crianças, e por isso, sempre que ouvia falar de um pequenino sem teto, uma carinha nova surgia à nossa mesa. Com essa relojoaria que nunca rendia muito, ele deu um jeito de alimentar, vestir e cuidar de mais onze crianças, depois que seus

quatro filhos estavam criados. Agora, porém, também estes onze haviam crescido e casado ou saído para trabalhar. Assim, coloquei três pratos na mesa. Betsie trouxe café da cozinha, que era ligada diretamente à sala de jantar e pouco maior que um armário embutido, e tirou o pão da gaveta do guarda-comida. Quando ela o colocava à mesa, ouvimos os passos de papai descendo a escada. Agora ele sempre descia vagarosamente aqueles degraus espiralados; mas pontual como um de seus próprios relógios, entrou na sala na hora exata em que entrava desde que eu era bem pequena: às 8:10h. - Papai, disse eu beijando-o e aspirando o aroma de charutos que impregnava sua longa barba, o dia da nossa festa está lindo! O cabelo e a barba de papai eram brancos como a nossa melhor toalha, que Betsie colocara na mesa para este dia especial. Seus olhos azuis, ao nos fitar com agrado através dos óculos grossos, eram meigos e alegres. - Querida Corrie, minha Betsie! Como vocês estão bonitas! A seguir, sentou-se, inclinou a cabeça e deu graças pelo pão, e depois continuou alegremente: - Sua mãe teria adorado estes vestidos novos, e ficaria alegre de ver as duas tão bonitas! Nós duas fixamos os olhos no café para não rir. Estes "vestidos novos" eram a tristeza de nossas sobrinhas que estavam sempre querendo nos convencer a usar roupas de cores mais claras, saias mais curtas e decotes mais baixos. Embora fôssemos bem conservadoras em nosso modo de vestir, a verdade é que mamãe nunca tivera um vestido mais claro que esse meu marrom-escuro ou que o azul-escuro de Betsie. No tempo de mamãe, as mulheres

casadas e as solteiras de uma "certa idade" só usavam vestidos pretos. Nunca vi minha mãe nem minhas tias com vestidos de outra cor. - Mamãe ia gostar de tudo hoje! interveio Betsie. Lembram-se como ela gostava de festas? Mamãe assava um bolo e passava um café em questão de instantes. E já que ela conhecia quase todo mundo em Haarlem, principalmente os pobres, doentes e abandonados, não havia um dia que não fosse - como diria ela - "um dia de festa para alguém". Nós ficamos conversando durante o café, como se deve fazer em dias assim, e começamos a recordar o tempo em que mamãe vivia. Depois retrocedemos mais e falamos do tempo em que papai era criança e morava nesta mesma casa. - Nasci bem nesta sala, disse ele como se já não nos tivesse dito isto uma centena de vezes. Só que, naquela época, não era a sala de jantar, era quarto. A cama era dentro de uma espécie de armário embutido na parede; não havia janelas, nem iluminação direta, nem ar puro. Fui o primeiro que conseguiu sobreviver. Não sei quantos nasceram antes de mim e morreram. Minha mãe estava com tuberculose, e eles não conheciam as regras de higiene, nem sabiam nada sobre o contágio pelo ar, e não pensavam em afastar as criancinhas da pessoa doente. Foi um dia cheio de recordações, um dia de invocação do passado. Nunca poderíamos adivinhar, quando estávamos ali sentados - duas solteironas de meia-idade e um velho - que, em vez de recordações, estávamos para enfrentar acontecimentos com os quais nunca tínhamos sonhado. Desventuras e angústias, horrores e alegrias, nos aguardavam para dentro em pouco, e não o sabíamos.

Ah! Papai, Betsie, se eu soubesse, será que teria feito o que fiz? Será que teria tido coragem? Mas como eu poderia prever? Como poderia supor que esse velhinho de cabelos brancos que todas as crianças de Haarlem chamavam de vovô, seria sepultado por estranhos, num túmulo desconhecido? E Betsie, em seu vestido de gola de renda e seu dom de difundir beleza ao seu redor, como poderia pensar que a pessoa a quem eu mais queria, seria forçada a comparecer nua diante de uma sala cheia de homens? Naquele momento, naquela sala de jantar, tais possibilidades eram remotíssimas. Papai levantou-se e pegou a velha Bíblia de cantoneiras de bronze. Toos e Hans bateram na porta e entraram. Outro regulamento fixo no Beje era a leitura da Bíblia às 8:30h em ponto, e a que deviam assistir todos os que estivessem na casa. Papai abriu o livro, e eu e Betsie contivemos a respiração. Naturalmente, hoje, quando tínhamos tanta coisa a fazer, ele não leria um capítulo inteiro! Mas ele já estava abrindo-a na passagem de Lucas onde havia parado no dia anterior - e o livro de Lucas tinha capítulos tão longos! Com o dedo no lugar, papai ergueu os olhos. - Onde está Christofells? Perguntou Christofells era o outro empregado da loja, um velhinho encurvado e miúdo, que parecia mais velho que papai, embora fosse dez anos mais jovem. Lembrei-me do primeiro dia em que aparecera em nossa casa, há seis ou sete anos. Estava tão andrajoso e tinha uma aparência tão infeliz, que pensei que fosse um dos mendigos que sabiam ser o Beje o lugar certo para se conseguir uma boa refeição de graça. Estava a ponto de encaminhá-lo à cozinha, onde Betsie tinha sempre uma panela de sopa borbulhando ao fogo,

quando solenemente ele me informou que estava procurando emprego e viera primeiro a nós, para oferecer seus préstimos. Fiquei sabendo, então, que Christofells pertencia a uma classe já quase totalmente desaparecida, a dos relojoeiros ambulantes, que percorriam o país a pé, regulando e consertando os relógios de pêndulo que eram o orgulho de todas as fazendas holandesas. Mas se eu fiquei surpresa ao ver o ar sério e grave daquele homenzinho de aspecto miserável, fiquei ainda mais ao ver que papai lhe deu o emprego imediatamente. "Esses consertadores ambulantes", disse-me mais tarde, "são os melhores que existem. Conseguem consertar qualquer defeito apenas com as ferramentas que carregam consigo." E isto ficou provado nos anos seguintes, pois todo o povo de Haarlem lhe trazia seus relógios. O que ele fazia com o dinheiro de seu salário, nunca soubemos; ele continuava tão mal vestido como antes. Papai lhe falou a respeito disso um pouco, mas não muito, pois, fora o seu desalinho, o traço mais forte de sua personalidade era o orgulho. Hoje, pela primeira vez, Christofells estava atrasado. Papai limpou os óculos no guardanapo e começou a ler, fazendo sua voz grave se demorar prazerosamente em algumas palavras. Quando ele chegou ao fim da página, ouvimos os passos arrastados de Christofells subindo a escada. A porta se abriu, e todos nós levamos um susto: Christofells estava impecável. Trajava um terno novo, preto e um colete xadrez, também novo, camisa imaculadamente

branca

de

colarinho

engomado,

e

gravata

estampada. Lutei para desviar os olhos de tal espetáculo, pois a expressão de seu rosto nos proibia qualquer comentário.

- Christofells, meu prezado amigo, disse papai em sua maneira formal e antiquada, que alegria vê-lo neste... é... dia tão auspicioso. E, apressadamente, retornou a leitura interrompida. Antes que ele terminasse o capítulo, as campainhas - da entrada lateral e da loja - começaram a tocar. Betsie correu a fazer café e a meter as "tortas" no forno, enquanto eu e Toos corríamos às portas. Parecia que cada pessoa de Haarlem queria ser a primeira a cumprimentar papai. Daí a pouco, uma torrente de convidados estava subindo até o quarto de Tia Jans, onde ele se encontrava, meio escondido por entre as flores. Eu estava conduzindo um de nossos convidados mais idosos escada acima, quando Betsie segurou-me o braço. - Corrie, vamos precisar das xícaras de Nollie já. Como vamos...? - Vou buscar!! Nollie e seu marido viriam à tarde, logo que seus filhos chegassem da escola. Desci rapidamente, peguei o casaco e a bicicleta, e já a empurrava pela porta quando a voz de Betsie me deteve: - Corrie, seu vestido novo! Dei meia-volta, subi ao quarto e troquei o vestido novo pelo mais velho que possuía e saí pedalando pela rua acidentada. Eu gostava imensamente de ir à casa de Nollie. Ela morava a quase dois quilômetros dali, num bairro afastado daquele velho centro atulhado de prédios. Lá, as ruas eram mais largas e retas, e até o céu parecia mais amplo. Atravessei a pracinha e depois a ponte sobre o canal, e rodei pela estrada, deliciando-me com o fraco sol de

inverno. Nollie residia na Rua Bos en Hoven, em um conjunto residencial, de casas gêmeas, todas iguais, com cortinas brancas e vasos de plantas na janela. Enquanto virava a esquina, nunca eu poderia imaginar que, num dia de verão, quando os bulbos de jacinto de um viveiro próximo estariam prontos para o plantio, eu frearia a bicicleta e ficaria ali parada com o coração aos pulos, sem coragem de me aproximar mais, com receio de enfrentar o que estava se passando no interior daquelas cortinas. Hoje, porém, ziguezagueei pela calçada e entrei correndo, sem bater. - Nollie, a casa já está cheia! Você precisa ver! Precisamos das xícaras agora. Nollie veio da cozinha com o rosto redondo corado pelo calor do forno. - Já estão arrumadas perto da porta. Ah! eu queria ir com você, mas tenho que acabar de assar os biscoitos, e prometi a Flip e às crianças que esperaria por eles. - Vocês todos vão, não? - Sim, Corrie. Peter vai também. E ela começou a colocar as xícaras no bagageiro. Como uma boa tia eu queria amar meus sobrinhos igualmente, mas Peter... bem, Peter era Peter. Com treze anos, ele era um prodígio musical embora um bocado maroto - mas era todo o meu orgulho. - Ele até escreveu uma música especial para comemorar a data, disse Nollie. Tome aqui. Você vai ter que carregar esta sacola na mão. Tenha cuidado. O Beje estava mais cheio do que nunca, quando voltei. Na

ruela lateral havia tantas bicicletas que tive que deixar a minha na esquina da rua. O prefeito de Haarlem já estava lá, de casaca, e com a corrente de ouro do relógio de bolso bem à vista. Lá estavam o chefe dos correios, o condutor do bonde, e meia dúzia de guardas do centro policial que ficava perto. Após o almoço, começaram a chegar as crianças e, como sempre faziam, foram direto para papai. As mais velhas sentavam-se no chão, ao redor dele; as menores subiam ao seu colo. Isso porque, além de seus brilhantes olhos azuis e sua longa barba cheirando a charuto, ele carregava consigo o tique-taque de dezenas de relógios. Um relógio deixado numa prateleira funciona diferentemente que quando em uso e, por isso, papai sempre carregava nos bolsos os que estivesse regulando no momento. Todos os seus paletós tinham quatro grandes bolsos internos, cada um com doze divisões, para doze relógios. Assim, aonde quer que ele fosse, ia com ele o alegre ruído de centenas de engrenagenzinhas. Agora, com uma criança em cada perna, e mais dez ao redor, ele retirou de um dos bolsos a cruzeta de dar corda, cujas quatro pontas eram de formatos diferentes para servir a cada tipo. Com um piparote, fê-la girar rapidamente, brilhando... brilhando... Betsie parou à porta com uma bandeja de bolo nas mãos. - Ele nem se dá conta da presença de outras pessoas, disse. Eu estava descendo a escada com alguns pratos vazios, quando alguém lá embaixo deixou escapar uma exclamação abafada de espanto, o que me advertiu que Pickwick chegara. Nós que lhe queríamos bem, nunca nos lembrávamos do choque que o seu aparecimento causava em outros.

Corri à porta, apresentei-o à esposa de um negociante de Amsterdam, e depois conduzi-o para cima. Ele afundou seu corpanzil numa cadeira ao lado da de papai, olhou-me - um olho em mim e outro no teto - e disse: - Cinco torrões, por favor. Pickwick adorava crianças tanto quanto papai, mas enquanto estas gostavam de papai à primeira vista, ele tinha de lutar para conquistá-las. Tinha, porém, um truque que nunca falhava. Entreguei-lhe sua xícara de café bem doce - cinco torrões - e observei-o olhar ao redor, simulando grande consternação. - Mas, Cornélia, exclamou, não há uma mesa aqui para eu colocar minha xícara. Correu os olhos por perto mais uma vez para ver se as crianças estavam lhe dando atenção. - Por sorte eu trouxe a minha própria mesa! Em seguida, plantou a xícara com o pires em sua avantajada pança. Nunca vi uma só criança que resistisse àquilo. Em poucos momentos, um bom número delas havia se reunido em volta dele. Mais tarde, Nollie chegou com sua família. - Tia Corrie, gritou-me Peter com fingida inocência, mas a senhora não aparenta cem anos. Antes que eu pudesse responder-lhe com um tabefe, já estava sentado ao piano de Tia Jans, enchendo a casa com suas melodias. Algumas pessoas começaram a apresentar-lhe seus pedidos: canções populares, corais de Bach, hinos. Daí a pouco, todo mundo estava cantando. Quantos de nós que estávamos ali naquela tarde alegre,

iríamos, dentro em breve, nos encontrar novamente em circunstâncias bem diferentes! Peter, os policiais, o feio e querido Pickwick, todos que estavam ali - e ainda meu irmão Willem e sua família. Eu me indagava por que eles estavam tão atrasados. Willem morava com sua esposa e filhos em Hilversum, acerca de quarenta e cinco quilômetros de Haarlem, mas, mesmo assim, já deviam ter chegado. De repente, a música parou, e Peter, de seu posto elevado na banqueta do piano, anunciou: - Vovô, aí vem a concorrência! Olhei para fora. O Sr. e Sra. Kan, proprietários da outra relojoaria da rua, estavam justamente virando a esquina para entrar na ruela. Pelos padrões de Haarlem eles eram novatos ali, pois tinham se estabelecido em 1910, há apenas 27 anos, portanto. Todavia, como eles vendiam muito mais que nós, achei que o comentário de Peter era bem a expressão da verdade. Papai, entretanto, não gostou. - Concorrente não, Peter, disse-lhe com desaprovação, colega! E tirando de sobre seus joelhos a criança que ali se achava, colocou-se no topo da escada para receber os Kan. Ele aceitava as freqüentes passagens do Sr. Kan pela loja como visitas de um bom amigo. - O senhor não está vendo o que ele quer? eu explodia depois que o homem se afastava. Ele só quer saber nossos preços para vender mais barato! Na loja dele, os relógios exibiam os preços escritos em algarismos bem grandes, e sempre cinco guílderes abaixo dos

nossos. O rosto de papai se iluminava com uma expressão de surpresa, como sempre acontecia nos raros momentos em que ele pensava no lado comercial do negócio. - Mas Corrie, quem compra dele sai ganhando! e depois acrescentava: Como é que ele consegue vender tão barato? Meu pai, como o seu pai também; era totalmente sem malícia para negócios. Às vezes, ele trabalhava dias seguidos em um relógio que apresentava um defeito sério e depois se esquecia de cobrar. Quanto mais caro fosse o relógio, mais difícil era para ele pensar nele em termos de dinheiro. "A gente devia pagar para ter o privilégio de consertar um relógio destes", dizia. Quanto aos seus métodos de apresentação da mercadoria durante os primeiros oitenta anos de funcionamento da loja, as persianas que davam para a rua eram cerradas todos os dias, às seis horas da tarde. Fora somente quando eu entrara no negócio, há vinte anos, que notara que algumas pessoas gostavam de passear pelas ruas estreitas e pelas calçadas, à noite, e vira que outras lojas deixavam suas vitrines abertas e iluminadas. Quando mencionei isto para papai, ele ficou encantado, como se eu tivesse feito uma descoberta maravilhosa. "E se as pessoas virem os relógios, pode ser que desejem comprá-los. Ah! Corrie, que inteligência a sua!" O Sr. Kan vinha em minha direção com seu pedaço de bolo e suas congratulações. A consciência me doía por causa dos pensamentos de ciúme que abrigara a seu respeito, e escapei escada abaixo, me tendo-me no meio do povo. A oficina e a loja

estavam mais cheias do que os cômodos de cima. Hans estava servindo bolo na parte de trás, enquanto Toos fazia o mesmo na frente. No seu rosto via-se a sombra de um sorriso - o máximo que ela permitia aos seus lábios perpetuamente cerrados. Quanto a Christofells - que surpresa! - ele simplesmente tinha se transfigurado! Era quase impossível reconhecer naquela majestosa figura que saudava os nossos visitantes à porta, levando-os para percorrer a loja, o homenzinho encurvado e mal vestido de sempre. Estava bem claro que esse era o maior dia de sua vida. Durante toda aquela tarde de inverno, recebemos pessoas que se contavam entre os amigos de papai. Jovens e velhos, pobres e ricos, homens cultos e mocinhas iletradas - só que, para papai, eram todos iguais. Este era o seu segredo: não é que deixasse de se preocupar com as diferenças entre indivíduos; meramente não sabia que existiam. Willem ainda não tinha chegado. Acompanhei até a porta um grupo de convidados que se retirava, e fiquei ali alguns instantes, olhando a rua. Embora fossem apenas quatro da tarde, o crepúsculo já descia, e as luzes das lojas já começavam a ser acesas. Eu ainda tinha um pouco daquela admiração de irmã menor para com o irmão mais velho. Ele era cinco anos mais velho que eu. Fora o único da família a cursar a universidade, e era ministro do evangelho, pastor ordenado. Willem tinha grande percepção das coisas. Ele sabia tudo que se passava no mundo. Muitas vezes eu desejava que ele não tivesse tal visão, pois muito do que meu irmão previa era aterrador. Há dez anos, em 1927, ele tinha defendido tese de doutorado, na Alemanha, e tinha

mencionado que havia uma terrível ameaça pairando sobre aquele país. Ali mesmo na Universidade, disse ele, estavam sendo lançadas as sementes de um grande desprezo pela vida humana, tal como nunca se tinha visto antes. Os que leram seu trabalho, zombaram. Agora, naturalmente, ninguém mais ria quando se tratava da Alemanha. Os melhores relógios vinham de lá, e, recentemente, algumas das firmas com as quais havíamos negociado por vários anos, tinham misteriosamente "cerrado as portas". Willem cria ser isso resultado de um amplo e deliberado movimento anti-semítico. Todas as firmas fechadas eram de judeus. Sendo um dos líderes do trabalho da Igreja Reformada entre os judeus, ele estava bem em dia com tais assuntos. Meu bom Willem, pensei, ao voltar para dentro e fechar a porta; ele era tão fraco nos negócios da igreja, como papai o era no dos relógios. Se já conseguira a conversão de um só judeu em vinte anos, eu não soubera do fato. Willem não tentava modificar as pessoas, queria apenas ajudá-las. Ele tinha economizado dinheiro e até sovinado um pouco, para conseguir ajuntar o suficiente para construir em Hilversum um abrigo para judeus idosos, que depois veio a ser para velhinhos de todos os credos, pois ele era contrário a qualquer tipo de segregação. Ultimamente, porém, o Lar tinha sido inundado por uma onda de jovens refugiados - todos judeus, e todos da Alemanha. Ele e sua família tinham cedido seus próprios aposentos e estavam dormindo nos corredores. E mais e mais judeus, apavorados e desabrigados, estavam chegando, e narravam fatos incríveis a respeito de uma crescente loucura. Fui à cozinha, onde Nollie tinha acabado de coar mais café,

apanhei-o e subi para os quartos de Tia Jans. - O que será que esse homem quer? perguntei a um grupo de pessoas reunidas em torno da mesa, e colocando ali o bule. Esse homem da Alemanha, ele está querendo guerra? Sabia que era um péssimo tópico de conversação para um dia de festa, mas a lembrança de Willem sempre levava meu pensamento a se concentrar em assuntos perigosos. Um silêncio pesado caiu sobre a mesa e se espalhou pela sala. - O que é que nos interessa isso? ouvi alguém perguntar. Deixa esses países grandes lutarem entre si. Não vão nos atingir. - Isso mesmo, falou um relojoeiro. Os alemães que não nos incomodem com essa grande guerra. Para eles é melhor que fiquemos neutros. - Você pode dizer isto, atalhou outro, que era nosso fornecedor de peças. Você compra da Suíça; mas, e nós? O que eu faço se a Alemanha entrar em guerra? Isso arrasaria meus negócios. Naquele momento, Willem entrou na sala. Com ele vinham sua esposa, Tine, e seus quatro filhos. Contudo quase todos os olhares se fixaram no homem que Willem conduzia pelo braço. Era um judeu de trinta e poucos anos. Usava o tradicional chapéu de abas largas e o longo sobretudo preto. Os olhos de todos estavam colados à sua face, que apresentava uma horrível queimadura. Perto da orelha direita via-se um anel de cabelos grisalhos, como os de um velho. O resto do queixo era uma chaga viva. - Quero apresentar-lhes o Sr. Gutlieber, disse Willem em alemão. Ele chegou a Hilversum hoje cedo. Gutlieber, este é meu pai. E depois de uma pausa, prosseguiu em holandês: Este homem

fugiu da Alemanha escondido em um caminhão de leite. Ele foi cercado na rua, em Munique, por uns rapazinhos que puseram fogo em sua barba. Papai levantou-se e apertou a mão do recém-chegado com muita efusão. Eu trouxe-lhe uma xícara de café e um prato com os biscoitos de Nollie. Nesse momento, senti-me grata pela insistência de papai em que seus filhos aprendessem alemão e inglês e falassem estas línguas tão bem quanto holandês. Gutlieber sentou-se na beirada da cadeira meio teso, olhando para o café em seu colo. Arrastei uma cadeira para junto dele e comecei a falar sobre qualquer coisa, sobre o tempo em janeiro. Imediatamente, a conversação se generalizou, retomando o volume normal da conversa de um salão de festas: um murmúrio que se elevava e depois abaixava. Ouvi um vendedor de relógios exclamar: - Que miseráveis! Vagabundos! Está acontecendo o mesmo em toda a parte. A polícia vai pegá-los. Afinal, a Alemanha é um país civilizado. *** E foi assim que uma nuvem desceu sobre nós naquela tarde de inverno de 1937, mas não pesou muito. Ninguém nem sonhava que aquela nuvenzinha cresceria tanto, que viria a escurecer todo o céu. Nenhum de nós imaginava que todos teríamos uma parte nela: papai, o Sr. Kan, Willem, e até esse velho Beje, com seus assoalhos desnivelados e antiquados. À noite, depois que todos os convidados já haviam saído, subi

para o meu quarto pensando no passado. Meu vestido novo estava sobre a cama; eu havia me esquecido de vesti-lo de novo. - Nunca me preocupei mesmo com roupas, pensei, nem quando era jovem... Recordações

da

infância

retornaram

naquele

instante

-estranhamente, elas pareciam atuais e muito relevantes. Agora eu sei que as lembranças contêm o segredo do futuro; não do passado, mas do futuro. Sei que, quando deixamos Deus usar nossas experiências passadas, elas se convertem em instrumentos pelos quais o Senhor nos prepara para o trabalho que ele tem para nós. Mas eu não sabia disso naquele momento. Nem mesmo sabia - tendo uma vida tão pacata - que havia um futuro para o qual eu precisava de uma preparação especial. E ali deitada no meu quarto, na parte superior da casa, eu só sabia que certos momentos da minha infância e juventude começaram a se destacar da face nebulosa do passado, como se ainda os estivesse vivendo, como se eles ainda tivessem algo a me dizer...

Capítulo 2 - Todos à Mesa O ano era 1898, e eu tinha seis anos. Betsie me colocou diante do espelho do guarda-roupa, e passou-me um sermão. - Olhe só seu sapato. Está faltando metade dos botões. E essa meia rasgada logo no primeiro dia de aula! Veja como Nollie está! Encontrávamo-nos em nosso quarto - meu e de Nollie -que ficava no topo do Beje. Olhei para minha irmã, dois anos mais velha que eu: era verdade. Seus sapatos estavam perfeitamente abotoados. Com relutância, tirei o meu, enquanto Betsie dava uma busca pelo armário. Betsie tinha treze anos, e, para mim, era quase adulta. Ela sempre me parecera mesmo mais velha, pois nunca pudera correr e fazer algazarra como as outras crianças. Sofria de anemia perniciosa desde o nascimento. Assim, enquanto nós brincávamos de pique, rodávamos arco, ou apostávamos corrida patinando pelos canais gelados no inverno, ela ficava sentada em casa, fazendo coisas enfadonhas, bordando, por exemplo. Nollie, porém, brincava tanto quanto qualquer outra criança, e era pouco mais velha que eu. Não me parecia justo que ela sempre fizesse tudo certinho. - Betsie, estava ela dizendo, eu não vou para a escola com aquele chapelão horrível, só porque foi a Tia Jans quem o comprou. No ano passado, foi aquele cinzento horroroso, e agora é este, que é ainda mais feio. Betsie olhou-a com um ar de compreensão.

- É, mas... bem, você não pode ir sem chapéu, e nós não podemos comprar outro. - Não vai ser preciso. Dando uma rápida olhadela para a porta, Nollie abaixou-se, enfiou a mão debaixo da cama estreita - que era a que o quarto comportava - e puxou de lá uma caixa redonda e pequena. Dentro achava-se o menor chapéu que eu já vira. Era de peles e tinha uma fita azul para atar sob o queixo. - Que coisinha mais linda! Betsie ergueu-o cuidadosamente da caixa, para vê-lo melhor à luz da manhã que mal e mal penetrava no quarto. - Onde foi que você...? - Foi a Sra. van Dyer que me deu. Os van Dyer eram os proprietários da chapelaria que ficava duas portas abaixo da nossa casa. - Ela viu que eu estava olhando para esse, e depois que a Tia Jans já tinha comprado aquilo, ela veio aqui e me deu este. Ao dizer "aquilo", Nollie havia apontado para cima do guardaroupa. Era um chapelão marrom, de abas largas, enfeitado com um cacho de rosas de veludo roxo e que revelava claramente quem o escolhera. Tia Jans, irmã de mamãe e mais velha que ela, viera morar conosco logo após o falecimento de seu marido, para passar em nossa companhia, como dizia "os poucos dias que me restam", embora tivesse apenas quarenta e poucos anos de idade. Sua vinda só fizera complicar ainda mais a vida da velha casa - que já ficara apertada com a chegada, anteriormente, de mais duas irmãs de mamãe, Tia Bep e Tia Anna - pois consigo ela trouxera várias peças de mobília, todas grandes demais para os pequenos

cômodos do Beje. Tia Jans acomodara-se nos dois quartos do segundo andar da casa da frente, os quais ficavam logo acima da loja e da oficina. O primeiro, ela usava como seu escritório, onde produzia seus inflamados folhetos evangélicos, pelos quais era conhecida em toda a Holanda. No outro recebia a visita das damas ricas que sustentavam a obra. Tia Jans cria que nossa felicidade no além dependia da quantidade de nossas realizações nesta terra. Para dormir, ela fizera, no primeiro quarto, uma divisão em que cabia apenas a cama. A morte, dizia ela, estava esperando para arrebatála de seu trabalho, e, por isso, suas horas de descanso eram breves e poucas. Não me recordo como era o Beje antes de Tia Jans chegar, nem sei de quem eram aqueles quartos antes de ela os ocupar. Em cima deles, tendo por teto a cúpula triangular do telhado, havia um longo sótão. Desde quando me lembro, este espaço era dividido em quatro quartos bem pequenos. O primeiro, que dava para a rua e o único com janela, era da Tia Bep. Atrás dele, enfileirados como os vagões de um trem de ferro, vinham os quartos da Tia Anna, Betsie e Willem. Subindo-se os cinco degraus para a residência de trás, chegava-se ao quarto que Nollie e eu ocupávamos. Logo abaixo dele, estava o quarto de papai e mamãe, e embaixo deste, a sala de jantar com aquela cozinha que parecia ter sido adicionada a ela como uma idéia de última hora. Nunca nos ocorreu que talvez a porção que coubera à Tia Jans, na distribuição dos cômodos dessa casa superpopulada, fosse demais. O mundo simplesmente "abria alas" para Tia Jans. O dia todo ouvíamos o tropel do bonde puxado a cavalos que passava em

frente à nossa casa, e parava na pracinha, a meia quadra dali, ponto de parada para todos os passageiros. Entretanto, para Tia Jans, era diferente. Quando ela desejava ir a algum lugar, ela se postava na calçada em frente da loja e, quando os cavalos se aproximavam, erguia um dos dedos da mão enluvada. Parecia-me ser mais fácil deter o sol no céu do que fazer estacar aqueles animais, mas para Tia Jans eles paravam. Os freios gemiam, os cavalos quase se amontoavam uns sobre os outros, e o cocheiro inclinava seu chapéu num cumprimento enquanto ela subia a bordo. Seria diante desse olhar dominador que Nollie teria que passar com o chapeuzinho de peles. Desde que viera morar em nossa casa, Tia Jans tomara a si a responsabilidade de comprar quase toda a roupa, para nós, as três meninas. Seus presentes, porém, tinham um preço. Para a tia, o que estava na moda quando ela fora jovem, representava a palavra final de Deus na questão do vestuário. Todas as mudanças que ocorreram depois tinham vindo diretamente dos figurinos do diabo. Aliás, em um dos seus conhecidos panfletos, ela o indicava como sendo o inventor da manga afofada e da saia-culote. - Já sei! gritei, enquanto os dedos ágeis de Betsie corriam sobre meu pé, abotoando o sapato. Você poderia colocar primeiro o chapéu de peles e depois o chapelão por cima dele. Quando chegasse lá fora, você tirava o chapelão. - Corrie! Nollie estava positivamente chocada. Isto não seria honesto! Com um olhar de raiva para o chapéu marrom, ela pegou o chapeuzinho de peles e saiu atrás de Betsie para ir tomar café. Peguei meu chapéu - o desprezado chapéu cinzento do ano

anterior - e desci após elas, uma das mãos no poste central, ao redor do qual a escada dava suas voltas. Então deixa a Tia Jans ver o tal chapéu. Que me importa? Eu nunca poderia mesmo compreender por que todo esse alvoroço só por causa de roupas. Uma coisa porém eu compreendia, um fato terrível e alarmante: nesse dia eu começava a estudar. Deixava este velho e amado lar, deixava mamãe e as tias, deixava tudo que representava segurança e carinho. Agarrei o poste com tanta força que, ao contorná-lo, ouvi o rangido da palma da mão contra a madeira. Era verdade que a escola ficava apenas a uma quadra e meia da casa, e Nollie já a freqüentava havia dois anos sem dificuldades. Mas Nollie era diferente de mim; ela era bonita, bem comportada e estava sempre arrumadinha. E então, na última volta da escada, encontrei a solução. Era tão simples, tão clara que ri em voz alta. Eu simplesmente não iria à escola. Ficaria em casa e ajudaria a Tia Anna na cozinha. Mamãe me ensinaria a ler e eu não precisaria nunca me aproximar daquele prédio feio e ameaçador. Senti um grande alívio me invadir e desci os três últimos degraus de um salto. - Ssssssssiiiuuu! Betsie e Nollie estavam esperando por mim à porta da sala de jantar. - Por favor, Corrie, não faça nada para irritar Tia Jans, disse Betsie. Tenho certeza de que papai, mamãe e Tia Anna vão gostar do chapéu de Nollie, acrescentou com certa dúvida. - Tia Bep não vai, respondi. - Ela não gosta de nada, interveio Nollie. Ela não conta. Tia Bep, com seu eterno ar de desaprovação, era a mais velha das tias,

e a de quem nós menos gostávamos. Ela havia trabalhado como governanta para algumas famílias ricas e estava sempre nos comparando com as meninas e rapazinhos em cujas casas trabalhara. Betsie apontou para o relógio à parede, e com um dedo sobre os lábios abriu silenciosamente a porta. Eram 8:12h. O café já fora servido. - Dois minutos de atraso, gritou Willem em um tom de triunfo. - Os filhos dos Waller nunca se atrasavam, disse Tia Bep. - Mas elas já chegaram! disse papai. E a sala até parece que ficou mais alegre! - Tia Jans vai ficar na cama hoje? perguntou Betsie esperançosamente, enquanto pendurávamos os chapéus nos respectivos ganchos. - Ela está na cozinha, preparando um tônico, disse mamãe. Ela se inclinou para servir-nos café e disse em voz baixa: - Hoje precisamos ter muita paciência com Tia Jans. É aniversário da morte da irmã do marido dela ou é da prima? - Achava que fosse da tia dele, disse Tia Anna. - E da prima dele; e foi uma bênção, informou Tia Bep. - Bom; não interessa, falou mamãe apressadamente, vocês sabem que Jans fica muito nervosa nestes aniversários da morte de parentes; então, vamos ajudá-la em tudo. Betsie cortou três fatias de pão redondo, enquanto eu olhava ao redor da mesa, tentando imaginar qual dos três adultos iria se mostrar mais entusiasmado com meu projeto de não ir à escola. Papai, eu tinha certeza, dava uma importância quase religiosa à educação. Ele tivera que parar de estudar para trabalhar na

relojoaria, quando ainda era bem jovem, e, embora fosse um autodidata, tendo aprendido sozinho História, Teologia e Literatura de cinco línguas, sempre se ressentia de não ter freqüentado a escola mais tempo. Ele ia querer que eu fosse, e o que ele quisesse, mamãe também queria. E Tia Anna? Ela havia falado várias vezes que não poderia passar sem mim, para as subidas e descidas pela escada com alguns mandados. Já que mamãe não era forte, Tia Anna se encarregava da maior parte do serviço pesado para nossa família de nove pessoas. Ela era a irmã mais nova e tinha o espírito tão generoso como o de mamãe. Havia uma crença em nossa família de que Tia Anna recebia pagamento pelo seu trabalho. E era verdade: todo sábado, papai lhe pagava, fielmente, um guílder. Na quartafeira, porém, quando passava o verdureiro, muitas vezes ele tinha que pedi-lo de volta, e ela ainda tinha aquele dinheiro - guardado e intato. É! Ela poderia ser a aliada de que eu precisava. - Tia Anna, principiei, estou pensando na senhora trabalhando tanto, o dia todo e eu na escola... Ouvimos uma respiração profunda e ruidosa, e todos erguemos os olhos. Tia Jans estava parada à porta da cozinha, tendo na mão um copo cheio de um líquido marrom, xaroposo. Ela respirou fundo e fechou os olhos; levou o copo à boca e bebeu de um gole. Depois deu um suspiro, pôs o copo sobre o armário de louça, e sentou-se. - Mas, realmente, disse, como se estivéssemos discutindo o assunto, que é que os médicos sabem? O Dr. Blinker me receitou este tônico, mas para que é que os remédios servem? Quando chega a hora final, nada adianta!

Corri os olhos ao redor da mesa; ninguém sorria. A preocupação da Tia Jans com a morte poderia até parecer cômica, mas não era. Mesmo sendo tão jovem, eu sabia que o medo nunca era engraçado. - Entretanto, Jans, falou papai gentilmente, a medicina tem prolongado muitas vidas. - Não valeu de nada para Zusje! E ela foi aos melhores médicos de Roterdam. E foi no dia de hoje que ela morreu, e nem mais velha do que sou agora ela era. Naquele dia, ela se levantou, vestiu-se e tomou café, exatamente como eu fiz hoje. Ela já ia se lançar num relato detalhado do último dia da vida de Zusje, quando seus olhos deram com o chapéu novo de Nollie pendurado no gancho. - Um gorro de peles nesta época do ano? perguntou, cada palavra vibrando de desconfiança. - Não é um gorro, Tia Jans, explicou Nollie baixinho. - E pode-se saber o que é? - É um chapéu, respondeu Betsie. Foi um presente da Sra. van Dyer. Não foi gentileza dela... - Ah, não! O chapéu de Nollie tem uma boa aba, e é como deve ser o chapéu de uma menina bem-educada. Eu sei disso. Fui eu quem o comprou e pagou. Os olhos de Tia Jans despendiam chispas; os de Nollie marejavam. Mamãe veio em seu socorro. - Não sei bem se este queijo está fresco! Cheirou o pote de queijo amarelo, que estava sobre a mesa, e empurrou-o para papai. - Que é que você acha, Cásper?

Papai, que era incapaz de dissimular, e mesmo de entender uma dissimulação, pegou-o, e cheirou-o aspirando profundamente. - Está perfeito, querida. Está tão fresco quanto no dia em que chegou. O queijo que o Sr. Steerwijk faz é... Depois, percebendo o olhar de mamãe, voltou-se para a Tia Jans meio confuso. Ah... Jans, o que é que você acha? Tia Jans pegou o vidro e olhou-o com ardoroso zelo. Se havia algo que atraía sua ira mais que as roupas modernas, era alimento deteriorado. Afinal, e quase com relutância, pareceu-me, ela deu sua aprovação do queijo, mas o chapéu estava esquecido. Ela já enveredara pelo caso de uma conhecida sua - "de minha idade!" que morrera após ter comido um peixe de aparência meio duvidosa, e foi aí que os empregados da loja chegaram, e papai retirou a Bíblia da estante. Em 1898, havia apenas dois empregados na relojoaria: o oficial relojoeiro e o aprendiz, que também era moço de recados. Depois que mamãe os serviu de café, papai colocou seus óculos sem aro, e começou a ler: "Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz, para os meus caminhos... Tu és o meu refúgio e o meu escudo; na tua palavra, eu espero." Que tipo de refúgio? procurei imaginar, enquanto observava sua barba abaixar-se e levantar, a cada palavra proferida. De que é que a gente precisava se abrigar? Era um salmo muito longo; a meu lado, Nollie começou a remexer-se. Logo que papai fechou o livro, ela, Willem e Betsie se puseram de pé prontamente e pegaram seus chapéus. No minuto seguinte, já desciam as escadas, e saíam pela porta lateral.

Os dois empregados da loja levantaram-se também, embora não tão prontamente, e os seguiram. Foi só então que os cinco adultos à mesa deram comigo ainda sentada. - Corrie, exclamou mamãe, esqueceu que agora você já é uma menina crescida? Hoje você vai para a escola também. Depressa, senão terá que atravessar a rua sozinha. - Eu não vou! Houve um curto silêncio de assombro, imediatamente quebrado por todos ao mesmo tempo. - Quando eu era menina... começou Tia Jans. - Os filhos da Sra. Waller... era Tia Bep. A voz grave de papai abafou as outras: - É lógico que ela não vai sozinha. Nollie estava tão animada que esqueceu de esperar, é só isso. Corrie vai comigo. Então ele pegou meu chapéu, envolveu minha mão com a sua e levou-me dali. A mão de meu pai! Isso significava o moinho de Spaarne ou os cisnes do canal. Desta vez, porém, ele me levava aonde eu não queria ir. Havia um corrimão na escadinha. Agarrei-me a ele e segurei firme. Seus habilidosos dedos de relojoeiro fecharamse sobre a minha mão e gentilmente fizeram-na soltar-se. Lutando e gritando, fui carregada do mundo que eu amava para um outro maior, estranho e perigoso... Às segundas-feiras, papai ia a Amsterdam para ver a hora certa no Observatório Naval. Agora que eu começava a estudar, só poderia acompanhá-lo no verão. Eu descia correndo para a loja, cabelos escovados, sapatos abotoados, depois de ter sido declarada passável por Betsie. Papai estaria dando as instruções finais ao aprendiz.

"A Sra. Staal vem agora de manhã buscar o relógio dela. Este aqui é para ser entregue ao Sr. Bakker em Bloemendaal." Depois partiríamos de mãos dadas para a estação: eu alargando meus passos e ele encurtando os seus, para podermos andar juntos. A viagem para Amsterdam não levava mais que meia hora, mas era maravilhosa. Primeiro, passavam os prédios velhos e aglomerados de Haarlem, que, em seguida, davam lugar a casas mais esparsas, circundadas de pequenos quintais. Depois, os espaços despovoados aumentavam. Finalmente, encontrávamo-nos em pleno campo, na região das fazendas, plana até perder de vista, e cortada de canais tão retos que pareciam traçados à régua. Por fim chegávamos a Amsterdam, com a magia de suas ruas e canais, e maior ainda do que Haarlem. Papai sempre ia com uma ou duas horas de antecedência, para visitar os atacadistas que lhe forneciam relógios e peças. Muitos deles eram judeus, e era destes que nós mais gostávamos. Depois de resolver os negócios, o que fazia no menor tempo possível, papai tirava uma Bíblia pequena de sua maleta de viagem. O negociante, cuja barba era geralmente mais longa e cheia que a de papai, apanhava um livrinho ou rolo, e assentava um solidéu no alto da cabeça. Assim os dois conversavam por muito tempo

argumentando,

comparando

textos,

interrompendo-se

mutuamente - cada um se deleitando mais com a presença do outro. Depois, quando eu já estava quase chegando à conclusão de que havia sido totalmente esquecida, o homem erguia os olhos, viame - como se fosse a primeira vez - e batia na testa com a base da mão. "Uma visita! Estou com uma visita em casa e não lhe ofereci

nada!" Levantava-se de um salto, fazia uma busca rápida pelas estantes e armários, e, daí a pouco, eu tinha no colo um prato cheio dos petiscos mais deliciosos do mundo: bolos de mel e tâmaras, e uma espécie de docinho de nozes, frutas e açúcar. Sobremesa no Beje era coisa rara; delícias como aquelas eram completamente desconhecidas. Às cinco para o meio-dia, estaríamos de volta à plataforma da estação, aguardando, de um ponto estratégico, o sinal do Observatório Naval. No topo da torre, de onde poderia ser vista por todos os navios ancorados no porto, estava a coluna com os dois ponteiros. Ao meio-dia em ponto, o sinal era dado. De sua posição privilegiada e tendo na mão o bloco, lápis e seu cronômetro, papai aguardava o momento, quase na ponta dos pés de entusiasmo pela precisão do aparelho. Aí está! Quatro segundos adiantado! Uma hora mais tarde o relógio astronômico de nossa loja seria acertado com precisão de segundos. Na

viagem

de

volta,

não

olhávamos

pela

janela.

Conversávamos. Falávamos a respeito de assuntos os mais diversos, que variavam com o passar dos anos. A formatura de Betsie no ginásio, apesar das muitas aulas perdidas por causa de doença. E quando Willem se formasse, será que conseguiria a bolsa de estudos para cursar a Universidade? Betsie começando a trabalhar na nossa loja como guarda-livros. Muitas vezes, eu aproveitava aquelas viagens para discutir assuntos que estivessem me perturbando, já que em casa, tudo que eu perguntava era respondido pelas tias. Certa vez - eu devia ter dez ou onze anos - interroguei-o acerca de um poema que havíamos lido

na escola. Uma sentença falava sobre "um jovem cujo rosto não fora marcado pelo pecado do sexo". Eu me acanhara de perguntar à professora o que aquilo significava, e mamãe, quando a interroguei, ficara toda vermelha. Naquela época, nos princípios do século XX, nunca se conversava sobre sexo, nem mesmo em família. A sentença ficara em minha mente. Pecado eu sabia, era algo que irritava por demais a Tia Jans; sexo era a diferença entre meninos e meninas. Os dois reunidos, porém, eu não sabia o que vinha a ser. Foi assim que, sentada no trem ao lado de papai, perguntei-lhe de chofre: - Pai, o que é "pecado do sexo"? Ele olhou-me como sempre fazia ao responder uma pergunta, mas, para minha surpresa, não disse nada. Levantou-se, tirou a maleta do porta-volumes acima de nós, e colocou-a no chão. - Quer carregá-la para mim, Corrie? Pus-me de pé e peguei a alça. A maleta estava cheia de relógios e peças que ele comprara nesse dia. - É muito pesada, disse. - É mesmo, confirmou ele. E eu seria um péssimo pai se exigisse que minha filhinha carregasse todo esse peso. Com os conhecimentos dá-se o mesmo, Corrie. Algumas coisas são pesadas demais para as crianças. Quando você ficar maior, e mais forte, poderá suportá-las. Hoje, porém, tem que confiar em mim e deixar que eu as carregue para você. Fiquei satisfeita; mais que satisfeita, fiquei em paz. Havia respostas para esta e todas as outras perguntas difíceis que eu tivesse, mas por agora, eu estava tranqüila em entregá-las aos cuidados de meu pai.

*** As noites no Beje eram reservadas para se receber visitas e fazer música. Algumas pessoas traziam flautas, outras violinos, e como cada um da família ou cantava ou tocava um instrumento, formávamos quase uma orquestra ao redor do piano que havia num dos quartos de Tia Jans. Somente quando havia um concerto na cidade é que não tínhamos nossa pequena reunião musical. Não podíamos pagar o ingresso, mas havia uma entrada lateral para o palco, de onde se conseguia ouvir bem. Do lado de fora, nós e dezenas de outros amantes da boa música seguíamos o concerto nota por nota. Mamãe e Betsie não eram muito fortes e não agüentavam ficar lá muito tempo, mas nós ficávamos ali, sob a neve e sob a chuva ou geada. E, enquanto dentro do salão ouviam-se tosses e ruído de gente que se movia, do grupo que estava à porta não partia nem mesmo um sussurro. Melhor ainda era quando havia um concerto na catedral, pois um parente nosso era sacristão. Perto da entrada de serviço utilizada por ele, havia um banco de madeira junto a uma parede. Nós nos sentávamos ali, sentindo nas costas o frio das velhas pedras, mas com o coração aquecido pela música. O som de algumas notas daquele órgão velho, no qual Mozart tocara, parecia vir diretamente do céu. Eu costumava pensar que o céu devia ser como a catedral de São Bavo, e mais ou menos do mesmo tamanho. Eu sabia que o inferno era quente, então o céu devia ser como este santuário, frio e úmido, com a fumaça dos

aquecedores de pés subindo como incenso. No céu, eu cria, todos teriam direito a aquecedores. Até mesmo no verão, as lajes de mármore do assoalho eram frias. Quando, porém, o organista tocava, a gente quase que se esquecia delas, e se tocasse Bach, então é que se esquecia mesmo. *** Eu estava subindo, com mamãe e Nollie, uma escada cheia de teias de aranha que se apegavam ao nosso cabelo, e de ratos que fugiam à nossa aproximação. Essa casa ficava a uma quadra e meia do Beje e sua construção era, pelo menos, um século mais recente, mas ali não havia uma Tia Anna para lavar e encerar. Íamos visitar uma família pobre da vizinhança, uma das muitas que mamãe "adotara". Nós, crianças, nunca percebêramos que éramos pobres. Pobre era a família a quem se levava uma cesta de alimentos. Mamãe estava sempre fazendo sopas ou mingaus para velhos semi-abandonados ou jovens mães pálidas, isto é, nos dias em que ela própria não se sentia fraca demais para ficar ao pé do fogão. Na noite anterior, o bebê deles havia morrido e agora mamãe fazia sua visita de praxe, levando pão fresco que ela mesma fizera. Subia penosamente, parando várias vezes para recuperar o fôlego. Em cima, entramos por uma porta que dava para um cômodo que era, ao mesmo tempo, quarto de dormir, sala de jantar e cozinha. Várias pessoas já se encontravam ali, muitas delas de pé, por falta de cadeiras. Mamãe encaminhou-se diretamente para a mãe, mas eu parei à entrada, petrificada. À direita, em seu bercinho de fabricação

caseira, estava a criancinha. É estranho como uma sociedade que escondia das crianças as verdades sobre o sexo, nada fazia para escudá-las da realidade da morte. Fiquei ali de olhos pregados no corpinho morto, com o coração batendo fortemente. Nollie, sempre mais corajosa que eu, estendeu a mão e tocou o rostinho branco como marfim. Desejei fazer o mesmo mas, amedrontada demais, não conseguia. Por alguns instantes, dentro de mim, a curiosidade lutou contra o pavor. Afinal, encostei um dedo na mãozinha cerrada. Estava fria. Estava fria quando caminhávamos de volta para o Beje, fria enquanto me lavava para jantar, e fria ainda no aconchego da nossa sala de jantar iluminada a gás. Aqueles dedinhos gelados se interpunham entre mim e todos aqueles rostos queridos à mesa. Apesar de Tia Jans falar tanto na morte, até então ela havia sido para mim apenas uma palavra. Agora eu sabia que era algo real - se era real para aquele bebezinho, então podia ser para mamãe, para papai, para Betsie. Ainda tremendo por causa daquele frio, segui Nollie até nosso quartinho e enfiei-me na cama ao seu lado. Por fim ouvimos os passos de papai escada acima. Aquele momento era, para mim, o melhor do dia - ele vinha ajeitar nossas cobertas. Nunca dormíamos antes que ele viesse arranjá-las a seu modo, e colocar a mão em nossa cabeça por um instante. Depois, ficávamos quietas e procurávamos não mover, nem mesmo um dedo. Aquela noite, porém, assim que ele atravessou a porta, rompi em lágrimas. - Eu preciso do senhor, solucei. O senhor não pode morrer,

não pode! Nollie sentou-se na cama. - Fomos a casa da Sra. Hoog, explicou. Corrie não jantou nem comeu nada. Papai sentou-se na beira da nossa caminha estreita. - Corrie, disse gentilmente, nos dias em que vamos a Amsterdam, quando é que eu lhe entrego sua passagem? Funguei duas ou três vezes, ponderando o fato. - Ora, pouco antes de tomar o trem. - Certo. Nosso Pai celestial é muito bom e ele sabe o momento certo em que iremos precisar das coisas. Não passe na frente dele, Corrie. Quando chegar a hora em que tivermos de morrer, você vai ver que seu coração terá a força de que você precisa. No momento exato.

Capítulo 3 - Karel Conheci Karel em uma das famosas recepções de mamãe. Nunca consegui me lembrar se foi um aniversário, o nascimento de uma criança, um aniversário de casamento - mamãe arranjava uma festa por qualquer motivo. Willem apresentou-o como um amigo da cidade de Leiden, e ele apertou a mão de todos nós, um por um. Apertei sua mão forte, olhei aqueles olhos castanhos, e apaixonei-me no mesmo instante. Logo que todos já estavam servidos, sentei-me a fim de ficar olhando para ele. Ele parecia totalmente inconsciente de minha presença, mas isso era natural. Eu tinha quatorze anos, enquanto ele e Willem já eram universitários, as barbas ralas começando a despontar, a conversa entremeada de fumaça de charuto. Para mim, era bastante estar na mesma sala que ele. Quanto a não ser notada, eu já estava acostumada. Nollie é que o era sempre, embora, como quase toda moça bonita, ela não desse a mínima importância àquilo. Quando um rapaz lhe pedia uma mecha do seu cabelo - método então usado para se declarar amor - ela arrancava alguns fiapos do nosso velho tapete cinzento, amarrava com uma fitinha azul, e fazia de mim o seu portador. Por essa época, o tapete estava bem desbastado, e o coração de um bom número de rapazes, partido. Eu, ao contrário, apaixonei-me por todos os meninos da classe, um após outro, numa espécie de ciclo inevitável e constante. Mas, como não fosse bonita, e, ainda por cima, tímida demais para

externar meus sentimentos, toda aquela geração de rapazes estava passando completamente despercebida da menina da cadeira 32. Com Karel, porém, seria diferente, pensei enquanto o via mexer o café com uma colherinha. Eu iria amá-lo para sempre. *** Foi somente dois anos depois, que o vi de novo. No inverno de 1908 eu e Nollie fomos a Leiden, para visitar Willem na Universidade. Ele ocupava um quarto escassamente mobiliado no quarto andar de uma residência familiar. Acolheu-nos a ambas com um só abraço, e depois correu à janela. - Olhem, disse retirando do peitoril um pãozinho doce recheado que pusera ali para gelar, comprei isto para vocês. É melhor comerem logo, antes que meus amigos esfaimados apareçam por aqui. Sentamo-nos a saborear o precioso pãozinho. Eu sabia que, para comprá-lo, Willem devia ter ficado sem almoço. Um minuto depois, a porta foi escancarada e quatro de seus colegas irromperam quarto adentro - altos, vozes graves, usando casacos de gola remendada e punho puído. Entre eles, Karel. Engoli o último pedacinho de pão, limpei as mãos na saia, e levantei-me. Willem apresentou-nos. Quando chegou a vez de Karel, este interrompeu-o. - Nós já nos conhecemos. Inclinou-se ligeiramente. - Lembra-se de mim? Eu a conheci naquela festa em sua casa.

Olhei para Nollie - não, ele estava dirigindo-se era a mim mesmo. Do meu coração brotaram palavras de contentamento, mas minha boca continha ainda os restos do pãozinho doce, e elas nunca me conseguiram chegar aos lábios. Os rapazes se sentaram no assoalho, e começaram a falar animadamente, todos de uma vez. Sentada na cama, ao meu lado, Nollie aderiu à conversação com toda a naturalidade, como se visitar aquela escola fosse um evento diário em nossa vida. Uma razão era que ela parecia pertencer ao grupo: tinha dezoito anos e usava saias longas, enquanto eu estava dolorosamente cônscia dos vinte centímetros de meia escolar - grossa e preta - que me cobriam as pernas, da barra do vestido até o sapato. Outra coisa: Nollie sabia o que conversar. No ano anterior, ela começara a cursar a Escola Normal. Na verdade, ela não queria ser professora, mas, naquela época, as universidades não ofereciam bolsa de estudos para moças, e a escola normal era bem menos dispendiosa. Bem, ela participou à vontade, falando com facilidade sobre os assuntos de interesse dos rapazes - a nova teoria da relatividade, recentemente proposta por um tal de Einstein, e a probabilidade do Almirante Peary chegar ou não ao Pólo Norte. - E você, Corrie, vai ser professora também? Karel sorria para mim, sentado no chão a meus pés. Senti um calor subir-me ao rosto, começando do pescoço. - Quero dizer, no ano que vem, insistiu. Você está no último ano do curso secundário, não está? - Sim... quero dizer, não. Vou ficar em casa ajudando a mamãe e Tia Anna. Minha resposta saiu curta e seca. Por que é que eu não

conseguia dizer nada, tendo tanto para dizer? *** Quando

terminei

o

curso,

na

primavera,

assumi

a

responsabilidade do trabalho da casa. De há muito isto fora deliberado em família, mas agora tínhamos mais uma razão: Tia Bep estava tuberculosa. A doença era, então, incurável. O único tratamento conhecido era repouso num sanatório, mas isso só para ricos. E assim, durante meses e meses, Tia Bep ficou deitada em seu quartinho, a vida se esvaindo em meio a acessos de tosse. Para diminuir o perigo de contágio, somente Tia Anna entrava ali. Ela cuidava da irmã o dia todo, e, às vezes, a noite toda também. Assim, todo o serviço da casa - cozinhar, lavar, limpar - passou para mim. Eu adorava trabalhar, e, se não fosse pela doença de Tia Bep eu me sentiria completamente feliz. A sombra dela porém, obscurecia tudo, não só pela sua doença, mas também por causa de toda a sua vida triste e frustrada. Muitas vezes, ao passar a bandeja de alimento para Tia Anna, eu entrevia o interior do quarto. Via as pobres lembrancinhas, souvenirs de seus trinta anos passados nas casas em que trabalhara: vidros de perfume vazios há muito, pois as boas famílias sempre davam perfumes à governanta, no Natal. Fotografias desbotadas, velhos daguerreótipos de crianças que agora tinham seus próprios filhos e netos. Aí a porta se fechava e eu me deixava ficar ali, naquele corredor estreito, cujo teto era o beirai do telhado, desejando ardentemente poder dizer alguma coisa, querendo poder

ajudar um pouco, desejando amá-la melhor. Certa vez falei disso a mamãe. Ela também estava começando a passar mais e mais tempo de cama. Antes, sempre que a dor na vesícula ficava insuportável, ela se submetia a uma operação. Após a última, porém, ela sofrera um pequeno derrame e não poderia mais ser operada. Muitas vezes, ao preparar a bandeja de Tia Bep, fazia uma para ela também. Dessa vez, quando cheguei com seu almoço, ela escrevia cartas. Sempre que não estava trabalhando com suas velozes agulhas, fazendo gorros e roupas de bebê para toda a vizinhança, estava escrevendo mensagens de conforto para quase todos os entrevados e doentes de Haarlem. Nunca lhe ocorria que ela mesma passara a maior parte de sua vida na cama. - Esse pobre homem, Corrie, - disse-me no momento em que entrei, - está confinado ao quarto há três anos. Imagine só, fechado em casa, sem ver o céu. Dei uma espiada para fora, pela única janela do quarto. - Mamãe, comecei depois de colocar a bandeja na cama e sentar-me ao seu lado, será que a gente não pode fazer nada por Tia Bep? Quero dizer, é uma pena que ela tenha de viver seus últimos dias aqui, num lugar que sempre detestou, em vez de estar onde foi tão feliz, como na casa da família Waller, ou outra qualquer. Ela depôs a caneta e olhou para mim. - Corrie, disse por fim, Bep tem sido feliz aqui. Nem mais nem menos do que o foi em outro lugar. Fitei-a sem compreender. - Sabe quando foi que ela começou a elogiar os Waller? continuou. Foi no dia em que deixou a casa deles. Enquanto lá

esteve, só tinha queixas. Os Waller nem se comparavam aos Hook, onde havia estado antes. Acontece, porém, que, quando ela estava com os Hook, tinha sido muito infeliz. A felicidade não depende do lugar onde nos encontramos, Corrie. É uma disposição que existe dentro de nós. *** A morte de Tia Bep teve um efeito muito forte sobre as três irmãs. Mamãe e Tia Anna redobraram seu trabalho de cozinhar e costurar para os pobres, como se tivessem percebido de novo como a vida humana é breve. Tia Jans, por sua vez, pareceu aproximar-se mais do seu próprio fim. - Minha própria irmã! dizia várias vezes por dia. Pois podia ter sido eu! Mais ou menos um ano após a morte de Tia Bep, um novo médico passou a se encarregar das visitas, antes feitas pelo Dr. Blinker. Seu nome era Dr. Jan van Veen. Com ele veio sua jovem irmã, Tine van Veen, que era enfermeira. Ele trouxe também uma novidade: um aparelho para tirar a pressão arterial. Não sabíamos o que era aquilo, mas todos se submeteram ao processo de enrolar aquele pedaço de lona ao redor do braço e bombear o ar para enchê-lo. Tia Jans, que adorava todo e qualquer instrumento médico, simpatizou-se bastante com o Dr. Veen, e daí por diante, passou a consultar com ele tantas vezes quantas lhe permitisse sua situação financeira. Alguns anos depois, o Dr. Veen descobriu que Tia Jans tinha diabete.

Naquela época, isso era, à semelhança da tuberculose, uma sentença de morte. Durante alguns dias toda a família ficou chocada. Depois de receá-la durante tantos anos, aí estava a temida presença da morte. Ao receber a notícia, Tia Jans foi direto para a cama. A inatividade, porém, não combinava com sua personalidade vigorosa, e um dia ela nos surpreendeu a todos, aparecendo para o café exatamente às 8:10h, informando-nos que os médicos muitas vezes se enganam. - Esses exames e análises, disse Tia Jans que neles cria piamente, o que é realmente que eles provam? A partir desse dia ela se atirou ao seu trabalho mais que nunca - escrevia, fazia palestras, formava clubes, iniciava projetos. Em 1914, a Holanda, assim como o resto da Europa, estava se mobilizando para a guerra, e, de um dia para o outro, as ruas de Haarlem encheram-se de soldados. De sua janela que dava para a rua, Tia Jans os via passeando e olhando as vitrines. Quase todos eram bem jovens, estavam sem dinheiro e saudosos do lar. Foi aí que teve a idéia de criar um centro para eles. Tal coisa era novidade naqueles dias, e Tia Jans pôs todo seu entusiasmo no projeto. O bonde à tração animal, que circulava pela nossa rua, fora substituído por um elétrico. Esse também parava, freios rangendo, fagulhas voando dos trilhos e do cabo aéreo, quando Tia Jans se punha majestosamente à porta do Beje. Ela subia a bordo segurando com uma das mãos a longa saia preta, e tendo na outra uma lista com o nome das ricas damas que poderiam vir a sustentar o novo projeto. Somente nós, que a conhecíamos, sabíamos que, debaixo de toda aquela atividade, havia um terror monstruoso a impulsioná-la.

Enquanto isso, sua enfermidade apresentava mais problemas financeiros. Toda semana era necessário um teste de verificação do nível do açúcar no sangue, teste esse que envolvia um processo dispendioso, pois o Dr. Veen ou sua irmã tinham que vir à nossa casa. Depois de algum tempo, Tine me ensinou a fazer o teste. Tinha várias etapas, das quais a mais delicada era a final: aquecer a mistura até uma temperatura determinada. Era difícil conseguir que nosso fogão fizesse qualquer coisa com precisão, mas afinal, aprendi, e daí para a frente, todas as sextas-feiras, eu recolhia e misturava o material, e fazia o teste. Se a mistura depois de aquecida continuasse clara, tudo estava bem. Se escurecesse, eu devia notificar ao Dr. van Veen. Naquela primavera, Willem veio passar alguns dias conosco antes de sua ordenação. Ele se formara na universidade dois anos antes, e agora terminava seu último período na Faculdade de Teologia. Em uma noite cálida, estávamos todos assentados à mesa da sala de jantar. Papai, com trinta relógios dispostos diante de si, fazia pequenas anotações em um caderno, com sua caligrafia precisa e elegante: "dois segundos atrasado, cinco segundos adiantado", e Willem lia em voz alta um trecho da história da reforma holandesa. De repente, a campainha da porta lateral soou. Havia um espelho do lado de fora da janela da sala, que nos permitia ver quem estava à porta, antes mesmo de abri-la. Dei uma espiada rápida, e levantei-me de um salto. - Corrie, gritou Betsie em tom de recriminação, olhe sua saia! Eu nunca me lembrava de que estava usando saias longas

agora, e várias vezes Betsie teve que remendar os rasgões que eu arranjava, sempre que saía depressa demais. Dessa vez desci de um pulo os cinco degraus. À porta, com um ramalhete de margaridas na mão, estava Tine van Veen. - Para sua mãe, Corrie, disse ela assim que abri a porta, estendendo-me as flores. Espero que ela... - Não, não. Você mesma entrega. Está tão bonita assim! E sem mesmo ajudá-la a tirar o casaco, empurrei a espantada moça escada acima. Introduzi-a na sala, quase pisando seus calcanhares, a fim de ver a expressão de Willem. Eu já sabia como ia ser. Até então, eu tinha vivido só de romances; retirava da biblioteca pública livros em inglês e alemão, além de holandês, e, muitas vezes, os que eu gostava, lia nas três línguas. Havia lido milhares de vezes a cena em que a mocinha conhece o herói. Willem pôs-se de pé com movimentos lentos, seus olhos presos aos de Tine. Papai também se levantou. - Tine van Veen, disse em seu estilo antigo, permita-me apresentá-la a nosso filho Willem. Willem, esta é a moça, cujo talento e bondade você já nos ouviu elogiar. Duvido que algum dos dois tenha escutado o que papai disse. Estavam se olhando, como se não houvesse mais ninguém na sala, nem mesmo no mundo. Willem e Tine casaram-se dois meses após a ordenação dele. Durante todo o tempo da preparação, só um pensamento ocupava minha mente: Karel vai estar presente. O dia do casamento amanheceu frio, mas claro. Imediatamente, meus olhos encontraram Karel no meio da pequena multidão parada em frente à igreja. Usava casaca e cartola, como todos os

outros homens, mas era, sem dúvida, o mais simpático de todos. Quanto a mim, eu mudara muito desde que o vira pela última vez. A diferença de idade entre nós - cinco anos - não parecia mais tão grande quanto antes. Além disso, eu me sentia... não, bonita não. Mesmo em um instante tão romântico, eu não poderia me convencer disto. Sabia que meu queixo era quadrado demais, minhas pernas muito compridas e minhas mãos muito grandes. Mas eu cria firmemente todos os livros o afirmavam - que para o homem que me amasse eu seria linda. Betsie tinha arranjado meu cabelo. Depois de trabalhar durante uma hora com o ferro de anelar, conseguira ajeitá-lo todo no alto da cabeça. Por um milagre, até o momento, ainda estava arrumado. Ela também havia confeccionado meu vestido de seda, assim como fizera os de todas da família, costurando a noite, à luz fraca da lâmpada, pois a loja ficava aberta de segunda a sábado, e ela não gostava de costurar aos domingos. Examinando as outras mulheres presentes, verifiquei que nossas roupas estavam tão elegantes quanto as de qualquer uma. Ninguém poderia supor, pensei ao me encaminhar juntamente com os outros para a entrada, que papai tinha aberto mão de alguns charutos, e Tia Jans do carvão para o aquecimento de seus aposentos, a fim de comprarmos a seda que agora nos envolvia, e ciciava quando caminhávamos. - Corrie? À minha frente estava Karel, alto, cartola nas mãos, com os olhos no meu rosto, parecendo meio indeciso. - Corrie?

- Sim, sou eu! respondi sorrindo. Sou eu, Karel; e aí está você! E este é o momento com que sonhei tanto! - Mas você cresceu! Perdão, Corrie, naturalmente que cresceu. É que sempre pensei em você como a garotinha de grandes olhos azuis. Olhou para mim um pouco mais, e depois prosseguiu suavemente: - ... e agora a garota é uma moça encantadora! De repente, pareceu-me que a música do órgão era tocada para nós, que o braço que ofereceu a mim era a lua, e a minha mão enluvada apoiada nele era o único elo que me prendia ao chão, e me impedia de sair voando para o alto, acima dos angulosos telhados de Haarlem. *** Foi numa chuvosa e fria sexta-feira de janeiro que meus olhos me contaram algo que, a princípio, me recusei a aceitar. O líquido do exame, em seu recipiente de vidro sobre o fogão, estava turvo, bem escuro. Encostei-me à pia e fechei os olhos. "Ó Deus, concede que eu tenha cometido um engano!" Rememorei as etapas da análise; olhei os frascos de substâncias e os utensílios de aferição. Não, eu havia feito tudo do mesmo jeito de sempre. Devia ser por causa desta cozinha, então. Era sempre tão escuro naquele quartinho minúsculo. Segurei a proveta com um pegador de panela, e fui até a janela da sala de jantar.

Preto. Negro como o próprio medo. Ainda com o frasco na mão, desci os cinco degraus e atravessei a porta traseira para a oficina. Papai, com seu óculo de aumento preso ao olho, espiava por sobre o ombro do seu mais recente aprendiz, procurando, com toda a perícia, uma peça infinitamente pequena, por entre as que se encontravam espalhadas na banca de trabalho à sua frente. Olhei para dentro da loja, através do vidro da porta. Betsie, por detrás de sua mesa-caixa, falava com uma freguesa. Não; não era uma freguesa, corrigi-me, era uma importuna. Eu conhecia bem aquela senhora. Sempre vinha aqui pedir conselhos sobre relógios, e depois comprava-os na nova loja da rua, na relojoaria dos Kan. Nem papai nem Betsie pareciam se preocupar com o fato de que coisas assim estavam acontecendo cada vez mais. Quando ela saiu, enveredei pela porta com o teste revelador na mão. - Betsie, disse, chorando, Betsie, está escuro. Como vamos dizer isto a ela? O que vamos fazer? Betsie saiu de detrás da mesa apressadamente, e me abraçou. Papai também veio e entrou na loja. Os olhos dele foram do vidro para Betsie e dela para mim. - Você fez tudo certinho, Corrie? em todos os detalhes? - Infelizmente, sim. - E acho que fez mesmo, filha; mas precisamos da palavra do médico também. - Vou levar lá agora, disse. Derramei o líquido escuro em um vidrinho e corri com ele pelas ruas molhadas e escorregadias de Haarlem.

Havia uma nova enfermeira agora no consultório e tive que aguardar meia hora, na sala de espera, silenciosamente, sentindome horrivelmente apreensiva. Afinal, o paciente saiu e o Dr. van Veen pegou o vidrinho e levou para o seu laboratório. - Não há dúvida, Corrie, disse ao regressar. Sua tia tem no máximo três semanas de vida. Quando voltei para casa, fizemos uma reunião de família: mamãe, Tia Anna, papai, Betsie e eu. Nollie só retornaria à noite. Todos concordamos em que ela precisava saber logo. - Vamos contar-lhe todos juntos, papai decidiu mas eu falarei as palavras necessárias. Talvez... seu rosto se iluminou um pouco, talvez ela se alegre de pensar em tudo que já realizou. Ela dá tanta importância a realizações. E quem sabe se ela não está certa? Assim, subimos em fila a escada para os quartos de Tia Jans. Papai bateu à porta. - Entre, disse ela. E depois concluiu como sempre fazia, e feche a porta antes que eu pegue uma corrente de ar. Estava sentada à sua mesa redonda de mogno, escrevendo um novo apelo em favor do seu centro para soldados. Ao ver quantas pessoas entravam, largou a caneta. Olhou de um para outro até chegar em mim, e aí soltou uma exclamação sufocada. Era sextafeira de manhã, e eu ainda não havia levado o resultado do exame. - Minha querida cunhada, começou papai gentilmente, há uma viagem feliz que cada filho de Deus tem que fazer mais cedo ou mais tarde. Sabe, Jans, alguns vão a ele de mãos vazias, mas você não! - Todos esses clubes..., aventurou-se Tia Anna. - Seus panfletos..., ajuntou mamãe.

- O dinheiro que a senhora levantou..., disse Betsie. - Suas palestras..., comecei. Nossos bem intencionados esforços, porém, deram em nada. Aquele rosto orgulhoso abateu-se bem diante de nossos olhos. Tia Jans levou as mãos ao rosto e começou a chorar. - Vazia! disse por fim, entre lágrimas. Como é que se pode dar algo a Deus? Que lhe interessam nossas ninharias? Enquanto a observávamos quase sem poder acreditar, ela descobriu o rosto e, com lágrimas escorrendo, murmurou: - Senhor Jesus, eu te agradeço porque temos de ir a ti de mãos vazias. Eu te agradeço porque, na cruz, tu fizeste tudo, tudo mesmo; e é só isto que precisamos saber com certeza, na vida e na morte. Mamãe a abraçou e as duas ficaram unidas por um momento. Eu estava presa ao solo. Sabia que havia presenciado um mistério. Era a passagem de trem de que meu pai falara, e que lhe era dada no momento exato. Com um rápido movimento do lenço e um ruidoso assoar do nariz, ela nos fez saber que o instante de sentimentalismos estava findo. - Se me deixarem a sós, disse, pode ser que eu ainda faça alguma coisa. Deu uma olhada para papai, e por aqueles olhos sérios passou, de leve, um brilho meio maroto. - Não que trabalho importe, Cásper; não importa mesmo; mas - ela nos despachava dali - não vou deixar a mesa atravancada para alguém ter de arrumar para mim.

*** O esperado convite para o primeiro sermão de Willem só chegou quatro meses após a morte de Tia Jans. Depois de ele ter trabalhado um ano como co-pastor de uma igreja, começou a pastorear, ele próprio, uma igreja em Brabant, a belíssima região rural do sul da Holanda. Na Igreja Reformada Holandesa, o primeiro sermão de um pastor, em seu primeiro pastorado, era a ocasião mais solene, alegre e emocionante que um povo pouco emotivo como o nosso poderia ter. A família e os amigos viriam até de muito longe, e ficariam ali vários dias. Karel escreveu, do lugar onde estava servindo como copastor, dizendo que iria e que estava ansioso para rever a todos nós. Dei a esse "todos" um significado bem especial, e enquanto passava a roupa e fazia as malas, vibrava antegozando o encontro. Para mamãe, a viagem foi uma tortura. Ela acomodou-se bem no canto do nosso compartimento do trem, e ficou ali apertando a mão de papai, ao ponto de os nós dos seus dedos ficarem brancos, sempre que o trem balançava ou dava um arranco. Enquanto nós apreciávamos as ramagens verde-brilhante das árvores, ela não tirava os olhos do céu. O que para nós era um passeio pelos campos, para ela era um festim de nuvens e de uma imensidão azul. Tanto a cidadezinha de Made quanto a congregação tinham sofrido grande declínio nos últimos anos. O templo, porém, que datava de épocas melhores, era bem grande, como também a casa pastoral, do outro lado da rua. Comparada com o Beje, era enorme. Nas primeiras noites, o teto me parecia absurdamente longe, tão longe que não consegui dormir. Todos os dias chegavam primos,

tios e amigos, mas a casa nunca parecia lotada, não importava quantos mais se alojassem ali. Três dias após a nossa chegada, bateram a porta e fui abrir. Dei com Karel de pé à entrada, os ombros ainda salpicados com a cinza do trem. Atirou a maleta no corredor e agarrou uma de minhas mãos, puxando-me para fora. - O dia está lindo, Corrie, disse. Vamos dar uma volta. Daí em diante, pareceu ficar decidido que iríamos dar uma volta todos os dias. Nosso trajeto por aquelas trilhas sinuosas de terra batida, tão diferentes das ruas pavimentadas de Haarlem, era cada vez um pouco mais longo. Naqueles momentos, era difícil de acreditar que o resto da Europa estivesse engajado na luta mais sangrenta da História. Aquela loucura, ao que parecia, tinha cruzado o oceano: a América, diziam os jornais, estava para entrar na guerra. Aqui na Holanda neutra, porém, a um dia ensolarado de verão, seguia-se outro. Apenas algumas pessoas - e entre elas Willem - asseguravam que a guerra significava tragédia para a Holanda também. E este foi o tema de seu primeiro sermão. Operava-se uma mudança tanto na Europa como no resto do mundo, disse. Aquele modo de vida estava se findando, não importava o grupo que ganhasse a guerra. Olhei ao meu redor. Essa congregação composta de aldeões e fazendeiros vigorosos não ligava muito para tais idéias. Após o culto, os amigos e parentes mais distantes partiram. Karel, porém, ficou. Nossos passeios tornaram-se mais longos. Conversamos sobre o futuro dele, e, de repente, começamos a falar não sobre o que ele faria, mas sobre o que nós faríamos... Nós nos imaginávamos tendo que decorar uma casa grande como aquela, e,

com alegria, descobrimos que tínhamos o mesmo gosto quanto a mobiliário, flores, e até quanto a cores prediletas. Discordamos em apenas um ponto: filhos. Karel queria quatro, e eu, firmemente, desejava seis. Durante todo o tempo, porém, a palavra "casamento" nunca foi pronunciada. Um dia quando Karel se ausentara, Willem aproximou-se de mim com duas xícaras de café na mão. Logo atrás dele, também com sua xícara de café, vinha Tine. - Corrie, disse ele entregando-me o café e falando como se isso lhe custasse muito, será que Karel lhe deu a entender que está... - Com intenções sérias? completou Tine. Aquele rubor que eu detestava e nunca conseguia controlar subiu-me ao rosto. - Eu... nós... não. Por quê? O rosto de Willem se avermelhou também. - Porque isto não deve acontecer. Você não conhece a família dele. Desde que ele era pequeno, eles só têm um desejo. Eles se sacrificaram muito, e já fizeram planos para ele; basearam toda a sua vida numa só coisa: querem que Karel faça um "casamento vantajoso".

Acho que é assim que eles dizem.

De repente, aquela sala desataviada me pareceu ainda mais feia. - Mas... e o que Karel deseja, não vale nada? Ele não é mais criança! Willem fixou em mim seus olhos sérios e profundos. - Ele vai obedecer, Corrie. Não digo que ele queira esta

situação; não, mas para ele isto já é coisa resolvida. Na faculdade, quando conversávamos sobre moças de quem gostávamos, ele sempre dizia no fim: "Naturalmente, eu não poderia casar-me com ela; seria uma morte para minha mãe." Tomei o café rapidamente e quase queimei a boca. Saí para o jardim. Detestei aquela casa sombria, e quase comecei a odiar Willem também, por enxergar sempre a face escura e desagradável de tudo. No jardim, as coisas eram diferentes. Juntos, eu e ele havíamos apreciado cada plantinha, cada flor, e parecia que cada uma delas estava impregnada com um pouco do afeto que tínhamos um pelo outro. Willem podia saber mais do que eu a respeito de teologia, guerra e política, mas quanto a romances... Nos livros, estes problemas de dinheiro, prestígio social, planos de família, etc, sempre acabavam se desfazendo no ar como nuvens ligeiras. *** Karel foi embora mais ou menos uma semana depois. Suas últimas palavras soergueram meu coração. Somente alguns meses mais tarde foi que me lembrei de que elas tinham sido bem estranhas. Ele falara com certa ansiedade, quase com desespero. Estávamos de pé, à entrada, aguardando a charrete que o levaria, e que em Made ainda era a condução segura, quando se tinha que tomar o trem. Despedíramo-nos após o café da manhã. Em parte, eu estava triste, pois ele ainda não falara em casamento e, em parte, eu estava contente só pelo fato de estar perto dele. De repente, ele segurou minhas mãos.

- Corrie, escreva para mim, disse sem sorrir e num tom de súplica. Fale-me sobre o Beje. Quero saber tudo. Quero saber tudo daquela maravilhosa casa velha feia. Conte sobre seu pai, como ele esquece de mandar a conta dos consertos que faz. Corrie, o Beje é o lar mais alegre da Holanda. *** E era mesmo, quando todos nós: papai, mamãe, Betsie, Nollie, Tia Anna e eu voltamos para lá. Sempre fora um lugar feliz. Agora, porém, cada acontecimento parecia adquirir um novo brilho, porque agora eu contava tudo a Karel. Cada refeição que eu preparava era uma homenagem a ele; cada panela que brilhava, um poema; cada meneio da vassoura, um gesto de amor. Suas cartas não eram tão freqüentes como as minhas. Lancei isso à conta do seu trabalho. O pastor a quem ele assessorava, escreveu Karel, havia lhe passado todo o trabalho de visitas. A congregação era rica e aqueles bons contribuintes esperavam visitas longas e repetidas do ministério da igreja. Com o decorrer do tempo, suas cartas se tornaram mais e mais escassas. Compensei essa falta escrevendo muito mais, e continuei na mesma vidinha, verão e outono adentro. Num maravilhoso dia de novembro, quando toda a Holanda cantava comigo, a campainha tocou. Eu estava na cozinha lavando a louça, mas atravessei correndo a sala de jantar e desci aqueles degraus antes que outra pessoa tivesse tido tempo de se mexer. Abri a porta depressa e lá estava Karel e, a seu lado, uma jovem. Ela sorria para mim. Meus olhos correram do chapeuzinho -

com uma enorme pena - para a gola do casaco de arminho, para a mão enluvada de branco que se apoiava no braço dele. - Corrie, quero apresentar-lhe minha noiva, disse Karel, e imediatamente a cena ficou turva. Eu devo ter dito alguma coisa; devo tê-los conduzido para o quarto da Tia Jans, que agora usávamos como sala de visitas, mas só me lembro de que a família veio em meu socorro, falando, cumprimentando, pegando casacos, oferecendo cadeiras, para que eu não tivesse que fazer isso nem dizer nada. Mamãe bateu seu próprio recorde de passar café. Tia Anna serviu o bolo. Betsie partiu para uma conversa com a moça sobre a moda de inverno, e papai apanhou Karel numa palestra de caráter bem impessoal sobre assuntos internacionais. O que é que ele pensava do fato de o Presidente Wilson, dos Estados Unidos, enviar tropas para a França? Afinal, a meia hora se escoou. De algum jeito, consegui apertar a mão dela, depois a dele, e desejar-lhes toda a sorte de felicidades. Betsie acompanhou-os até a porta, e antes que esta se fechasse de todo atrás das costas deles, eu já estava fugindo escada acima, para o meu quarto, onde poderia deixar as lágrimas correrem à vontade. Não sei quanto tempo fiquei ali a chorar por causa do amor de minha vida. Mais tarde, ouvi os passos de papai subindo. Por um momento, ocorreu-me que eu ainda era a garotinha cujas cobertas ele vinha ajeitar. O sofrimento de agora, porém, era de tal proporção, que nenhum cobertor poderia amenizar. Subitamente, tive medo do que papai iria dizer. Receei que dissesse: "Muito breve vai aparecer outro...", e que esta mentira ficasse entre nós, a nos separar a partir

de então. Eu tinha certeza profunda de que nunca mais haveria outro amor em minha vida. O doce aroma do charuto de papai penetrou no quarto junto com ele. E, naturalmente, ele não disse a frase falsa e vã que eu temia. "Corrie", principiou ele, "sabe o que é que nos fere tanto numa situação destas? É o amor. O amor é a força mais poderosa do mundo, e, quando é bloqueada, causa dor. "Quando isto acontece, podemos fazer duas coisas: podemos destruir o amor para reprimir o sofrimento, e nesse caso, uma parte de nosso ser é destruída também; ou então, Corrie, podemos pedir a Deus para abrir uma outra estrada para o nosso amor se extravasar. "Deus ama Karel - muito mais do que você o ama - e, se você pedir ao Senhor, ele lhe dará desse amor. É um amor que não pode ser frustrado nem destruído. Quando não podemos amar à maneira humana, Corrie, Deus nos dá capacidade de amar de modo perfeito." *** Naquele momento, e depois, quando ouvia as pisadas de papai descendo as escadas, eu não percebi que ele me revelara mais que um segredo para superar aquela ocasião difícil. Não sabia que ele colocava em minhas mãos a chave que abriria a porta de situações ainda mais tenebrosas que aquela - de ocasiões em que não haveria, humanamente falando, nada e ninguém para se amar. Nestas questões de amor, eu ainda cursava o "jardim-deinfância". No momento, minha tarefa era desistir de meus sentimentos por Karel, sem me desfazer da alegria e do en-

cantamento que ele me trouxera. Assim, naquele instante, deitada na cama, sussurrei uma "longa" prece. "Senhor, eu te entrego este meu sentimento por Karel, meus planos para o futuro - tu sabes! Dá-me a tua maneira de ver Karel. Ajuda-me a amá-lo do teu modo. Tanto quanto tu o amas!" Logo que pronunciei estas palavras, peguei no sono.

Capítulo 4 - A Relojoaria De pé sobre uma cadeira, eu limpava a janela da sala de jantar, e, de vez em quando, acenava para algum passante ocasional. Na cozinha, mamãe descascava batatas para o almoço. Estávamos em 1918. A guerra terminara. Parecia haver uma nova esperança no ar que transparecia até mesmo no modo como as pessoas caminhavam. Não era do feitio de mamãe deixar a torneira aberta com a água correndo daquele jeito, pensei. Ela não gostava de esperdiçar nada. - Corrie! A voz dela soou muito baixa; era quase um murmúrio. - O que foi, mamãe? - Corrie! chamou de novo. Foi então que ouvi o ruído da água que enchera a pia, a cair no assoalho. Pulei da cadeira e corri à cozinha. Ela estava de pé, uma das mãos na torneira, olhando-me com uma expressão estranha, enquanto a água se derramava a seus pés e se espalhava pelo chão. - O que houve, mamãe? gritei ao mesmo tempo que estendia a mão para a torneira. Desprendi seus dedos, fechei a água e afastei-a da poça que já se formava. - Corrie, repetiu ela. - Mamãe, a senhora está doente. Temos que levá-la para a cama.

Segurei-a sob o braço, atravessei a sala de jantar com ela e comecei a subir. A um grito meu, Tia Anna desceu correndo e pegou o outro braço. Levamo-la para cima, e depois eu corri à loja, chamando papai e Betsie. Durante a hora que se seguiu, nós ficamos ali, vendo os efeitos de uma hemorragia cerebral se estenderem gradualmente a todo o seu corpo. Primeiro, a paralisia chegou às mãos; e destas, passando pelos braços, às pernas. O Dr. van Veen, a quem nosso aprendiz fora buscar, não pôde fazer nada além do que nós mesmos havíamos feito. A consciência foi a última coisa que ela perdeu. Seus olhos permaneceram sempre bem abertos e atentos, demorando-se em cada um de nós amorosamente. Afinal, fecharam-se devagar, e pensamos que ela se fora. Entretanto, o Dr. van Veen assegurou-nos que se tratava de um estado de coma profundo, do qual ela poderia sair para retornar à vida, ou morrer. Mamãe ficou inconsciente naquela cama por dois meses, e sempre havia um de nós a seu lado. (Nollie ficava à noite.) Certo dia a consciência voltou-lhe, tão inesperadamente quanto o derrame se dera. Ela abriu os olhos e espiou ao redor. Lentamente, recobrou o uso dos braços e pernas o bastante para se mover um pouco sem ajuda de outrem, embora nunca recuperasse toda a destreza dos dedos, necessária para o tricô ou crochê. Nós a mudamos do quartinho, cuja janela dava para os fundos de outra casa, para o quarto de Tia Jans, de onde ela poderia apreciar o movimento da rua embaixo. Logo descobrimos que sua mente estava tão lúcida quanto antes; não lhe voltou, porém, a fala, a não ser de três palavras. Ela conseguia dizer: "sim", "não", e "Corrie",

talvez por ter sido esta a última palavra que disse. Por isso mamãe chamava todo mundo de Corrie. Para nos comunicarmos, inventamos uma espécie de joguinho. - Corrie! ela me chamaria. - O que é, mamãe? Está pensando em alguém? - Sim. - Da família? - Não. - Uma pessoa que a senhora viu na rua? - Sim. - Um homem? - Não. Era uma mulher que ela conhecia há muito tempo. - Mamãe, aposto que é o aniversário dela. Daí, eu diria muitos nomes até ouvi-la, toda satisfeita, dizer sim. Então eu escrevia um bilhetinho para a pessoa, dizendo-lhe que mamãe a vira pela janela e desejava-lhe um feliz aniversário. Depois eu colocaria a caneta entre seus dedos rígidos, e ela assinaria. Um rabisco de uma linha quebrada era tudo o que restava de sua caligrafia redonda e bonita. Em pouco tempo, porém, tornou-se uma assinatura conhecida e amada por muitos. Era realmente espantosa a qualidade de vida que ela conseguia levar, naquele corpo paralítico. Observando-a naqueles três anos de imobilidade, descobri outra verdade a respeito do amor. Mamãe sempre expressara seu amor através de uma terrina de sopa ou de uma peça de costura. Agora que essas coisas lhe haviam sido tiradas, o seu amor, não obstante, continuava tão

perfeito quanto antes. Ela ficava sentada em sua cadeira junto à janela, dando seu amor a todos nós. Amava o povo que via na rua e o que não via: seu amor abarcava toda a cidade, a Holanda e o mundo. Foi assim que aprendi que o amor não pode ser aprisionado dentro de quatro paredes. *** A cada dia notávamos que a conversa de Nollie à mesa girava mais e mais em torno de um colega seu, um professor chamado Flip van Woerden. Quando este, afinal, fez sua visita oficial, papai já havia ensaiado seu pequeno discurso de aprovação e bênção, pelo menos uma dúzia de vezes. Na noite anterior ao casamento, quando eu e Betsie ajudávamos mamãe a voltar para a cama, ela, de repente, rompeu em lágrimas. Com o uso do "joguinho", descobrimos que não, ela não estava descontente com o casamento; sim, ela gostava de Flip. O problema era que não seria realizada a solene e grave palestra entre mãe e filha, que era prometida à jovem durante anos, e era também a única fonte de educação sexual que nossa sociedade taciturna lhe permitia. No fim, foi Tia Anna que, com olhos assustados e rosto em brasa, subiu as escadas até o quarto de Nollie naquela noite. Alguns anos antes, Nollie havia se mudado do nosso quartinho no topo da casa, para o de Tia Bep, e ali, ela e Tia Anna se fecharam para passar a meia hora de praxe. Não poderia existir, na Holanda, ninguém mais mal-informado sobre casamento do que Tia Anna, mas isso era um ritual que datava de séculos - a mulher mais velha tinha

que instruir a mais jovem - e ninguém podia se casar sem passar por ele, tanto quanto não poderia dispensar o anel de noivado. Nollie estava maravilhosa em seu vestido branco e longo, mas foi de mamãe que não tirei os olhos. Apesar de estar vestida de preto, como sempre, ela me parecia subitamente juvenil. Seu olhar brilhava de alegria, pois este era o maior dos eventos que a família ten Boom presenciava. Eu e Betsie a levamos para a igreja cedo, e tenho a certeza de que poucas pessoas da família van Woerden e seus amigos sabiam que a graciosa e sorridente dama do primeiro banco não falava nem andava sozinha. Foi somente quando Nollie e Flip já desciam pelo centro da nave, que me lembrei de meus sonhos de um momento como aquele para mim e Karel. Olhei para Betsie alta e bonita, sentada do outro lado de mamãe. Ela sempre soubera que, por causa de sua saúde debilitada, nunca teria filhos, e por isso decidira não se casar. Eu, agora, tinha vinte e sete anos e ela, trinta e poucos. Naquele momento, senti com toda a certeza que nossa vida seria sempre assim: eu e Betsie ficaríamos solteiras, vivendo no Beje. Foi um pensamento alegre. Naquele instante, fiquei certa de que Deus havia aceitado a hesitante oferta de minhas emoções, que lhe havia feito quatro anos antes. Ao pensar em Karel com amor que era como eu sempre pensava nele desde que tinha quatorze anos - não senti o menor traço de tristeza ou dor. "Abençoa Karel, Senhor Jesus", orei em silêncio. "E abençoa sua esposa também. Conserva-os unidos e perto de ti." Uma coisa era certa: eu nunca poderia ter feito aquela oração antes, sem o auxílio divino.

O grande milagre do dia, porém, ocorreu mais tarde. Para o término do culto, tínhamos programado que se cantasse o hino "O Formoso Cristo" que era o predileto de mamãe. Ao cantá-lo agora, de pé, ouvi-a, assentada no banco, cantar também. Palavra após palavra, verso após verso, ela cantava; mamãe, que não conseguia dizer quatro palavras, cantava aquelas linhas maravilhosas sem um tropeço. Sua voz, que tinha sido alta e clara, soava agora rouca e áspera, mas para mim era como a voz de um anjo. Ela cantou todo o hino e, durante todo o tempo em que durou, fixei os olhos à minha frente. Não ousava voltar-me e olhar para ela com medo de quebrar o encanto. Quando, por fim, todos se assentaram, eu, mamãe e Betsie tínhamos os olhos marejados. A princípio, pensamos que aquilo fosse o começo de uma recuperação, porém, ela nunca conseguiu dizer de novo as palavras daquele hino, e nem voltou a cantar. Tinha sido apenas um momento isolado, e nós entendemos que fora um presente de Deus para nós, o seu presente de casamento. Um mês depois, com um sorriso nos lábios, mamãe nos deixou para sempre, durante o sono. *** Foi no fim de novembro daquele ano, que um resfriado comum causou uma grande reviravolta na casa. Betsie começou a espirrar e a fungar, e papai achou melhor que ela se afastasse de sua mesa, a qual ficava bem diante da porta, recebendo em cheio o ar gelado do inverno. Mas o Natal se aproximava - a época mais movimentada da loja. Com Betsie acamada, tive que começar a correr à loja, de vez

em quando, para atender fregueses, fazer embrulhos e evitar que papai se deslocasse de sua alta banca de trabalho dezenas de vezes por dia. Tia Anna garantiu-me que poderia cozinhar e cuidar de Betsie ao mesmo tempo. Foi assim que tomei lugar à mesa dela, anotando as vendas e as contas de consertos, registrando as quantias gastas em peças e acessórios, e folheando os registros já existentes, achando difícil crer no que via. Mas quê? Não havia ali nem sombra de organização. Não se poderia saber se uma conta havia sido paga ou não, ou se o preço pedido era justo. Não se podia saber se estávamos lucrando ou tendo prejuízo. Numa tarde friorenta, fui à livraria da esquina e comprei um livro-caixa, e parti para impor um pouco de método àquela confusão. Noites e noites, após a porta estar fechada e as persianas descidas, eu ficava ali, examinando listas de estoque e faturas de atacadistas. Às vezes eu consultava papai. - Quanto foi que o senhor cobrou do Sr. Hook por aquele conserto, no mês passado? Ele me olhava inexpressivamente. - Por quê? Ah... não sei realmente. - Era um Vacheron, papai; bem velho. O senhor teve que mandar buscar peças da Suíça. A conta do fornecedor está aqui e... Seu rosto se iluminou. - Ah, agora eu me lembro. Um ótimo relógio, Corrie. Dava prazer trabalhar nele. Era muito velho e o homem havia deixado acumular poeira. Relógio bom tem que ser conservado limpo, filha. - Quanto foi que o senhor cobrou, papai?

Criei um sistema de cobrança, e, pouco a pouco, a lista de números começou a corresponder à de transações efetuadas. Gradualmente, descobri, também, que eu adorava aquele trabalho. Sempre me sentira muito feliz dentro daquela lojinha, com seus tique-taques e seus mostradores de faces brilhantes. Agora, porém, eu percebi que gostava também do seu lado comercial. Gostava dos catálogos, das relações de estoque. Gostava de todo esse movimentado e vigoroso mundo dos negócios. De vez em quando eu me lembrava de que o resfriado de Betsie havia se alojado nos pulmões, e - como sempre acontecia ameaçava tornar-se pneumonia. Então eu me reprovava por não me sentir nem um pouco amolada com a presente situação. À noite, porém, quando eu a ouvia tossir, orava com todo o fervor para que sarasse logo. Então, na antevéspera de Natal, quando eu já tinha fechado a loja e trancava a porta do hall, vi Betsie entrar pela porta lateral que dava para o beco, trazendo os braços cheios de flores. Quando me viu, ela me olhou assustada, como uma criança apanhada em falta. - Para o Natal, Corrie, explicou. Não podemos passar o Natal sem flores. - Betsie ten Boom, ralhei, há quanto tempo você está fazendo isto? É por isto que você não sara. - Eu fiquei a maior parte do tempo na cama! Verdade!... interrompeu-se com um acesso de tosse. Só me levantei por causa de coisas importantes. Levei-a para a cama, e depois dei uma volta pela casa toda, vendo-a com outros olhos, procurando as "coisas importantes" de Betsie. Como eu tinha observado pouco! Betsie tinha feito mudanças.

Voltei ao seu quarto e apresentei-lhe as evidências. - Betsie, era importante mudar a disposição da louça do armário do canto? Ela ergueu os olhos para mim. - Era sim, respondeu em tom de desafio. Você punha de qualquer jeito. - E a porta do quarto de Tia Jans? O verniz está sendo retirado, e a porta lixada. Isto é trabalho pesado. - Mas aquela madeira é maravilhosa! Há muito tempo que eu queria tirar aquele verniz e ver. Ah, Corrie, continuou em voz baixa e penitente, sei que estou sendo egoísta deixando você na loja todos os dias. Vou ser mais cuidadosa para você não ter que ficar lá mais tempo; mas tem sido tão bom ficar aqui o dia todo, fazendo de conta que eu é que estou encarregada da casa, planejando tudo... Foi isso: nós tínhamos invertido a coisa. Foi espantoso, como tudo andou bem depois que realizamos a troca. Sob meus cuidados, a casa ficava arrumada; com Betsie, parecia brilhar. Ela descobria a beleza da madeira, dos desenhos, das cores, e a mostrava a nós. A pequena quantia de que dispúnhamos para alimentação, sob meu controle, quase que se evaporava no açougue, e se acabava de todo na padaria. Sob o de Betsie, que conseguia esticála mais, dava até para diversos pratos especiais que nunca prováramos antes. - Vocês precisam ver a sobremesa do almoço, dizia-nos ela na hora do café. E durante toda a manhã a gente ficava pensando naquilo. A panela de sopa e o bule de café, para os quais eu nunca encontrava tempo, estavam de volta ao fogão, agora que Betsie

supervisionava a casa. Daí a pouco, um rio de gente - carteiros, policiais, velhos vagabundos, rapazinhos de entrega, etc. - estava parando à nossa porta para desempoeirar os pés e aquecer as mãos nas canecas de café - tudo exatamente como havia sido no tempo da mamãe. Enquanto isso, na loja, eu estava encontrando no trabalho um gozo com que nunca tinha sonhado. Logo me vi fazer mais do que só atender os fregueses e anotar registros. Queria aprender a consertar relógios. Papai aceitou prontamente a tarefa de me ensinar. Aprendi a reconhecer as peças móveis e fixas, a fazer uso adequado dos óleos e soluções, e as técnicas do uso das ferramentas, do rebolo e do óculo de aumento. Contudo a paciência de papai e sua devoção quase mística pela harmonia dos mecanismos são coisas que não se aprendem. Os relógios de pulso tinham surgido recentemente, e eu fiz um curso especial para aprender a lidar com eles. Três anos após a morte de mamãe, tornei-me a primeira mulher da Holanda a licenciarse como fabricante de relógios. E foi assim que se estabeleceu o nosso padrão de vida, o qual iria durar mais de vinte anos. Quando papai assentava a Bíblia de volta à sua prateleira, após o café da manhã, eu e ele descíamos para a loja, enquanto Betsie remexia a panela de sopa e fazia mágicas com três batatas e meio quilo de carne de carneiro. Agora que meus olhos estavam atentos à receita e à despesa da loja, esta começou a progredir, e logo, pudemos contratar uma balconista para se encarregar do atendimento na parte da frente, enquanto eu e papai trabalhávamos na oficina.

Havia sempre gente entrando e saindo deste compartimento de trás. Às vezes, era um freguês; na maioria das vezes era simplesmente uma visita - que ia desde o humilde operário calçado com nossos tradicionais tamancos até o proprietário de uma frota de navios - todos confiando seus problemas a papai. Ele sempre baixava a cabeça em oração, em busca da solução, sem se perturbar com a presença de estranhos ou de nossos empregados. Ele orava pelo seu trabalho também. Poucos eram os defeitos que não conhecia. De vez em quando, porém, surgia um que o deixava confuso. Então eu o ouvia dizer: "Senhor, tu acionas as engrenagens das galáxias; tu sabes o que é que faz os planetas girarem, e o que faz este relógio funcionar..." E ele estava sempre renovando suas afirmações, pois papai, que amava a ciência, era leitor assíduo de uma dúzia de publicações científicas de várias universidades. Durante anos, ele apresentou seus relógios àquele "Que põe os átomos a dançar", "Que faz circularem as correntes marítimas". A resposta a estas orações, algumas vezes, vinha bem no meio da noite. Em várias ocasiões, quando eu chegava à minha banca pela manhã, encontrava um relógio

que

havíamos

deixado

em

centenas

de

pecinhas,

perfeitamente ajustado e tiquetaqueando alegremente. Só havia uma coisa na loja que eu nunca aprendera a fazer tão bem quanto Betsie: atender os fregueses e interessar-me pessoalmente por cada pessoa que entrava. Várias vezes, quando alguém chegava, eu escapulia pela porta e corria à cozinha. - Betsie, quem é uma senhora gorda, de mais ou menos cinqüenta anos, que tem um relógio de lapela, preso com uma fita de

veludo azul? - É a Sra. van den Kenkel. O irmão dela voltou da Indonésia com malária, e ela está cuidando dele. Corrie..., gritava quando eu já ia correndo escada abaixo, pergunte-lhe pelo bebê da Sra. Rinker. Alguns minutos depois, ao deixar a loja, a Sra. van den Kenkel comentaria com o marido: - Essa Corrie ten Boom é igualzinha à irmã. *** Antes mesmo do falecimento da Tia Anna, no fim da década de vinte, as camas vazias do Beje começaram a ser ocupadas por uma longa sucessão de crianças que abrigávamos, e que por mais de dez anos alegraram o Beje com seus gritos e risos, e deixaram Betsie ocupada em abaixar bainhas de vestidos e calças. Enquanto isso, as famílias de Willem e Nollie aumentavam Willem e Tine tinham quatro filhos; Nollie e Flip, seis. De há muito, Willem havia deixado o pastorado, e abrira um abrigo de velhos em Hilversum, a 45 quilômetros de Haarlem. Víamos a família de Nollie freqüentemente, já que a escola em que estudavam - da qual Flip era o diretor - ficava em Haarlem. Era raro o dia em que um deles não vinha ao Beje, para ver o vovô em sua oficina, ou dar uma espiada para dentro das tigelas de Tia Betsie, ou então subir e descer as escadas em companhia das crianças que estivessem morando conosco no momento. Foi no Beje que descobrimos o talento musical de Peter. Aconteceu por causa do rádio. Nós traváramos conhecimento com essa maravilha moderna em casa de um amigo.

"Uma orquestra completa", comentávamos. Parecia-nos muito difícil conseguir tudo aquilo de uma simples caixa. Começamos a economizar nossos tostões para adquirirmos um. Muito antes de termos a quantia necessária, papai caiu doente com uma forte hepatite que quase o levou. Durante o longo tempo de hospitalização, sua barba se tornou branca como a neve. No dia em que regressou, uma semana após ter completado setenta anos, um pequeno grupo de amigos veio nos visitar. Representavam lojistas, garis, o dono de uma indústria, um barqueiro do canal pessoas que descobriram durante o período de sua enfermidade o quanto papai significava para elas. Haviam angariado dinheiro entre si, e comprado um rádio de presente para ele. Era um desses modelos de mesa, antigos, grande com um alto-falante em forma de concha. Ele veio nos trazer muitas alegrias nos anos que se seguiram. Como nosso rádio pegava bem estações de toda a Europa, todos os domingos, Betsie examinava os jornais ingleses, franceses e alemães, além dos holandeses, para organizar nosso programa semanal de concertos e recitais. Num domingo, quando Nollie e sua família nos visitavam, em meio a um concerto de Brahms, Peter falou de repente: - Engraçado, o piano do rádio está desafinado. - Ssssssss..., apressou-se Nollie. Mas papai interveio: - O que você quer dizer com isso, Peter? - Uma nota está errada. Trocamos olhares de espanto: que poderia saber um garoto de oito anos? Papai levou-o ao velho piano de Tia Jans.

- Que nota, Peter? Ele tocou uma escalinha ascendente até chegar ao Si que vem logo acima do Dó central. - Esta aqui. Aí todos nós ouvimos perfeitamente: o Si do piano do concerto realmente estava bemolizado. Passei o resto da tarde sentada ao piano com ele, dando-lhe alguns testes musicais simples, e vi que era dono de uma extraordinária memória musical; descobri que possuía também ouvido absoluto. Daí em diante, ele se tornou meu aluno de música, e dentro de seis meses, já assimilara tudo que eu poderia lhe ensinar, e passou a professores de técnica mais apurada. O rádio trouxe outras mudanças à nossa vida, a uma das quais papai resistiu a princípio. De hora em hora ouvíamos as batidas do Big Ben, pela BBC de Londres. Tendo na mão o seu cronômetro acertado pelo relógio astronômico, papai afinal teve que concordar que a primeira batida do grande relógio inglês coincidia mesmo com a hora exata. Todavia ele se conservou ainda meio cético desse horário inglês. Conhecia vários ingleses, e todos eles se atrasavam em seus compromissos. Logo que se sentiu forte bastante para viajar de novo, recomeçou suas idas semanais a Amsterdam para acertar o relógio pelo Observatório Naval. Com o passar do tempo, notando que o Big Ben e o Observatório Naval continuavam em perfeito acordo, ele começou a espaçar suas viagens, e afinal, parou de vez. Por outro lado, o relógio astronômico estava sendo tão sacudido e chocalhado pelo constante tráfego de carros na rua, que não era mais o instrumento de precisão que havia sido. O auge da ignomínia aconteceu quando

papai acertou o relógio astronômico pelo rádio. Apesar destas mudanças, a vida para nós três - eu, papai e Betsie - continuou basicamente a mesma. As crianças que moravam conosco cresceram e nos deixaram, ou para casar ou para trabalhar em outro lugar; mas vinham nos visitar com freqüência. O centenário da loja chegou e passou; no dia seguinte, eu e papai estávamos de volta à nossa banca de trabalho. Até mesmo as pessoas que encontrávamos em nossa caminhada diária eram sempre as mesmas. Embora a enfermidade de papai tivesse sido há bastante tempo, o seu caminhar ainda era trôpego, e eu o acompanhava nesse seu passeio diário pelas ruas do centro. Sempre o fazíamos à mesma hora. E como alguns moradores de Haarlem tinham hábitos tão regulares quanto os nossos, sabíamos exatamente a quem iríamos encontrar. Muitos dos que cumprimentávamos já eram conhecidos ou fregueses antigos; outros, víamos apenas nesse encontro diário: a mulher que estaria varrendo a escada, o homem que estaria lendo o informativo comercial do World Shipping News, no ponto do bonde, na Praça Grote Markt; e o outro, a quem apelidáramos de "Buldogue", e que era o de quem mais gostávamos. Nós o chamávamos assim, não apenas porque sempre o víamos acompanhado de dois enormes buldogues, seguros por uma trela, mas também porque, sua pele enrugada, seu queixo proeminente, suas pernas curtas e abauladas nos lembravam um de seus próprios animais. Sua afeição pelos cães era o que mais nos impressionava. Enquanto caminhava, ele falava com eles e os enchia de mimos. Papai e o "Buldogue" sempre tiravam o chapéu um para o outro, cerimoniosamente, ao passarmos por ele.

*** Enquanto em Haarlem e no resto da Holanda passeávamos, cumprimentávamos amigos e varríamos escadas, nossos vizinhos do leste se preparavam para a guerra. Bem sabíamos o que estava acontecendo - não havia jeito de não se saber. Muitas vezes, à noite, girando o dial, captávamos uma "voz" da Alemanha. Não falava nem gritava: berrava. Estranhamente, na maioria das vezes, era a controlada Betsie quem reagia mais agressivamente - saltava da cadeira, e, correndo ao rádio, desligava-o bruscamente. Nos intervalos, porém, nos esquecíamos daquilo. Mesmo quando em suas visitas Willem nos vinha relembrar os fatos, ou quando nossas cartas a fornecedores judeu-alemães retornavam carimbadas com "Endereço ignorado", ainda nos esforçávamos para acreditar que o problema pertencia apenas à Alemanha. "Quanto tempo eles vão suportar?" indagávamos. "Eles não vão agüentar muito tempo." As transformações por que passava a Alemanha afetaram nossa lojinha da Rua Barteljoris apenas uma vez. Foi na pessoa de um jovem alemão. Era bastante comum aparecerem alemães para trabalharem algum tempo com papai, pois sua reputação já transpusera os limites da Holanda. Assim, quando aquele rapaz alto e simpático chegou à loja com um certificado de aprendiz de uma boa firma de Berlim, papai contratou-o sem hesitação. Otto revelou-nos orgulhosamente que pertencia à Juventude Hitlerista. Uma incógnita para nós era a razão por que viera para a Holanda, já que só encontrava defeitos nos

holandeses e em nossos produtos. - O mundo todo vai ver do que a Alemanha é capaz, dizia muitas vezes. Em seu primeiro dia de trabalho, veio à sala de jantar para tomar café conosco e ouvir a leitura bíblica, com os outros empregados, mas depois, nunca mais apareceu. Sempre ficava embaixo, sozinho. Quando lhe perguntamos a razão, informou-nos que, embora não tivesse entendido a leitura, por não saber holandês, percebera bem que papai havia lido o Velho Testamento, que, dissenos, era o "Livro de Mentiras" dos judeus. Fiquei muito chocada, mas papai, apenas ressentido. - Ele recebeu orientação errada, disse-me. Quando ele vir que somos de confiança e que nós amamos este livro, vai compreender o seu erro. Alguns dias depois, Betsie surgiu inesperadamente à porta do hall que dava para a oficina e chamou-nos. Em cima, encontramos, sentada na cadeira de mogno de Tia Jans, a dona da pensão onde Otto morava. Contou-nos que, pela manhã, ao trocar sua roupa de cama, encontrara algo sob o travesseiro. A seguir, retirou de sua sacola de feira uma faca curva de cerca de trinta centímetros de comprimento. Outra vez, foi papai quem deu a explicação mais caridosa. - O pobre rapaz deve estar meio amedrontado, estando sozinho num país estranho. Provavelmente, ele a comprou para se defender. Era verdade que Otto estava sozinho. Não falava holandês, nem fazia nenhuma tentativa para aprendê-lo, e, além de nossa família, poucas pessoas falavam alemão ali naquela parte comercial

da cidade. Nós o convidamos várias vezes para nos visitar à noite, mas fosse porque não gostava de nossos programas musicais, ou porque o dia sempre terminava como começara, isto é, com oração e leitura da Bíblia, ele veio poucas vezes. Afinal, papai teve que despedir Otto - o primeiro funcionário que mandou embora em mais de sessenta anos de estabelecimento. E não foi por causa da faca nem de seus sentimentos anti-semíticos, mas por sua desconsideração para com Christofells, o velho consertador de relógios. Logo nos primeiros dias, eu ficara espantada com sua descortesia. Não que fizesse atos errados (pelo menos em nossa presença não fazia), mas havia certas coisas que deixava de fazer. Tomava-lhe a dianteira ao entrar; não o ajudava a tirar ou colocar o casaco, nunca se dispunha a pegar-lhe uma ferramenta ou objeto que caísse. Era difícil precisar o que estava errado. Fomos a Hilversum, num domingo, e, à mesa do almoço, comentei o fato, dizendo que o julgava somente um caso de desatenção. Willem balançou a cabeça. - É uma atitude bem deliberada, disse. Isto é porque Christofells é velho. Os velhos não têm valor algum para o regime, pois é muito difícil fazê-los aceitar a nova ideologia. Na Alemanha, estão até mesmo ensinando o desrespeito aos mais velhos. Olhamos para ele, espantados, tentando digerir tal idéia. - Você deve estar enganado, Willem, disse papai. Otto é muito cortês comigo; é até exagerado. E eu sou bem mais velho que Christofells. - Com o senhor é diferente. O senhor é o patrão. Os velhos e fracos é que têm que ser eliminados.

Fizemos a viagem de volta num silêncio abismado. Começamos a observar Otto melhor. Como poderíamos adivinhar, na Holanda em 1939, que não era na loja, onde era notado,' mas na rua, que

Otto

estava

sujeitando

Christofells

a

uma

verdadeira

perseguição? Esbarrões e tropeções "acidentais", um empurrão aqui, uma pisada ali, eram infligidos ao pobre velho, e estavam tornando suas caminhadas, de casa para o serviço e vice-versa, verdadeiros pesadelos. Aquele velhinho aprumado e mal vestido era orgulhoso demais para relatar-nos o que se passava. A verdade só veio à tona numa fria manhã de fevereiro, quando Christofells apareceu na sala de jantar com o paletó rasgado e o rosto em sangue. Mesmo então ele nada disse. Desci à rua para apanhar seu chapéu que lá ficara, e encontrei Otto cercado por um grupo de pessoas indignadas, que haviam presenciado o ocorrido. Soube que, quando viravam a esquina para entrar no beco, o rapaz tinha apertado o velho contra a parede lateral e raspado o rosto dele na superfície áspera dos tijolos. Ao despedi-lo, papai tentou argumentar com Otto e mostrarlhe por que tal procedimento era errado. Ele não respondeu. Sem dizer palavra, apanhou as poucas ferramentas que lhe pertenciam, e, ainda em silêncio, deixou a sala. À porta, voltou-se e olhou-nos - foi o mais profundo olhar de desprezo que já vi.

Capítulo 5 - A Invasão Os esguios ponteiros do relógio de parede que ficava junto à escada indicavam 9:25h, quando saímos da sala de jantar, aquele dia. Aquilo em si já era incomum para nós com nossa vida tão metódica. Papai estava com oitenta anos, e todas as noites, precisamente às 8:15h, uma hora mais cedo que anteriormente, ele abria a Bíblia - sinal de que era hora do devocional - lia um capítulo da mesma, pedia a bênção de Deus para nós durante a noite, e mais ou menos às 9:15h, estaria subindo para seu quarto. Nessa noite, entretanto, o Primeiro-Ministro iria falar à nação, às 9:30h. Por toda a Holanda, pairava uma interrogação que nos sufocava a todos, como um suspiro contido: entraríamos na guerra? Dirigimo-nos ao quarto de Tia Jans, e papai ligou o rádio, o nosso grande rádio de mesa. Agora quase não passávamos mais as noites ali, ouvindo música. A Inglaterra, a França e a Alemanha estavam em luta, e as estações irradiavam quase que somente noticiário da guerra, ou mensagens em código, e muitas das freqüências

estavam

sofrendo

pesada

interferência.

Até

as

emissoras holandesas estavam falando mais e mais no assunto, e isso a gente podia ouvir mesmo no radinho portátil - presente de Pickwick no Natal anterior - que conservávamos na sala de jantar. Dessa vez, contudo, seria uma transmissão importante, e achamos que a ocasião merecia que utilizássemos o rádio grande, com seu alto-falante rebuscado. Como que por uma espécie de pressentimento, fugimos às confortáveis poltronas estofadas e

assentamo-nos, tensos e empertigados, nas cadeiras de costas altas, esperando dar 9:30h. Afinal,

veio

a

voz

sonora

do

Primeiro-Ministro,

recomendando-nos calma. Não haveria guerra para nós. Ele tinha garantias de boas fontes, dos dois lados: a neutralidade da Holanda seria respeitada. Seria como uma repetição da Grande Guerra. Nada havia a temer. Os holandeses deveriam permanecer confiantes e... A fala cessou. Eu e Betsie erguemos a cabeça, espantadas. Papai havia desligado o rádio, e seus olhos azuis brilhavam de um modo estranho, que nunca víramos antes. - É errado dar esperanças ao povo quando não há esperanças, disse. É errado basear a fé nos próprios desejos. Nós vamos entrar em guerra. Os alemães vão atacar e nós vamos cair em seu poder. Ele apagou a ponta do charuto no cinzeiro que havia ao lado do rádio, e, ao fazê-lo, extinguiu a raiva também, pareceu-me, pois ao falar novamente, sua voz recobrara a suavidade de sempre. - Ah, minhas filhas, estou com pena dos holandeses que não conhecem o poder de Deus. Nós Vamos ser derrotados, mas Deus não. Beijou-nos desejando-nos boa-noite, e daí a pouco ouvimos seus passos de ancião subindo para o quarto. Eu e Betsie estávamos pregadas na cadeira. Papai que sabia tão bem ver o lado bom de cada situação, que demorava tanto em aceitar o mal, se papai estava prevendo guerra e derrota, então não haveria outra coisa. ***

Ergui-me de chofre e sentei-me na cama. Que fora aquilo? Ah! Outra vez! Um clarão de luz seguido imediatamente por uma detonação que sacudiu a cama. Afastei as cobertas, corri à janela e debrucei-me. O céu, acima das chaminés, tinha um brilho alaranjado. Tateei à procura do roupão; peguei-o e desci as escadas ao mesmo tempo que enfiava os braços nas mangas. Parei no quarto de papai, e encostei o ouvido à porta. Desci mais, até o quarto de Tia Jans. Há algum tempo, Betsie mudara-se para ali, para ficar mais perto da cozinha e ser-lhe mais fácil atender à porta. Ela estava sentada na cama.

Caminhei

até

ela

na

escuridão

e

nos

abraçamos. - Guerra! dissemos juntas, em voz alta. E tinham se passado apenas cinco horas da fala do PrimeiroMinistro. Não sei quanto tempo ficamos ali, abraçadas, escutando o barulho das bombas. Os estampidos do bombardeio pareciam vir mais da direção do aeroporto. Por fim, ainda meio inseguras, fomos para o quarto da frente. A claridade do céu iluminava o cômodo com um fulgor estranho. As cadeiras, a estante de livros, o piano - tudo estava coberto por uma luz sinistra. Ajoelhamo-nos junto à banqueta do piano e, por um espaço de tempo que nos pareceu durar horas e horas, oramos por nossa pátria, pelos mortos e feridos daquela noite, pela rainha... Depois, surpreendentemente, Betsie começou a orar pelos alemães que se encontravam ali nos aviões, seguros pela gigantesca mão do mal que dominava seu país. Olhei para minha irmã ajoelhada junto a mim, vendo-a ao clarão da Holanda incendiada, e murmurei:

"Senhor, atende essa oração de Betsie, mas não ouve a mim; eu não consigo orar por aqueles homens." Foi então que tive aquele sonho. Contudo não poderia ter sido um sonho, pois eu não estava dormindo. A cena veio à minha mente de maneira súbita e inexplicável. Vi a Praça Grote Markt, que ficava a uma quadra dali. Vi-a claramente, como se estivesse lá; vi a prefeitura, a igreja de São Bavo e o mercado de peixes com sua escadaria de entrada. Depois surgiu uma espécie de carroção velho, estranho e muito antigo, e que parecia totalmente fora de lugar ali. Ele se arrastava pesadamente, puxado por quatro enormes cavalos pretos. Para minha surpresa, vi-me assentada nele. Papai também estava lá. E Betsie. E havia ainda outras pessoas, alguns conhecidos, outros não. Reconheci Pickwick, Toos, Willem e Peter entre eles. Todos estávamos sendo levados. O pior de tudo é que não podíamos sair do carro. Ele nos levava para longe. Eu sabia que era para muito longe, mas nós não queríamos ir. - Betsie, gritei, levantando-me e tapando os olhos com as mãos, tive um sonho horrível! Senti seus braços ao redor de meus ombros. - Vamos para a cozinha fazer café. Lá poderemos acender a luz, pois não será vista. Quando Betsie pôs a água no fogo, o assobio das bombas já estava diminuindo, e se distanciando. Mais próximo, ouvíamos o gemido da sirene de alarme, e a buzina dos caminhões de bombeiros. Enquanto tomávamos café de pé junto ao fogão, contei a Betsie o que havia visto. - Será que por estar com medo, estou vendo coisas? Mas não

foi imaginação, foi real. Será que foi uma visão, Betsie? Com a ponta do dedo, Betsie desenhava qualquer coisa sobre a superfície de madeira da pia, tornada lisa pelo uso de várias gerações de ten Boom. - Não sei, respondeu suavemente. Mas se foi Deus que quis nos mostrar as dificuldades que nos esperam, estou contente de saber que ele está ciente de tudo. É por isso que às vezes ele nos mostra as coisas. É para ficarmos sabendo que aquilo também está nas mãos dele. *** A

Holanda

resistiu

ao

invasor

durante

cinco

dias.

Conservamos a loja aberta - não que houvesse alguém interessado em comprar relógios, mas muitos queriam falar com papai. Alguns queriam que ele orasse por seus filhos ou maridos, que estavam servindo na fronteira. Outros, parecia-me, vinham só para vê-lo assentado à sua banca de trabalho, como fazia há sessenta anos, e também para sentir, no tique-taque dos relógios, a segurança da ordem e da razão. Eu não toquei no meu trabalho aqueles dias. Ficava só ajudando Betsie a preparar e servir o café. Levamos nosso rádio portátil para a loja e o colocamos sobre o balcão de vidro. O rádio era os olhos e ouvidos e até mesmo a pulsação de toda Haarlem, pois, embora sempre ouvíssemos os aviões passando, o bombardeio nunca mais chegou próximo de nós como naquela primeira noite. No primeiro dia, recebemos instruções pelo rádio para colocar

tapumes em todas as janelas do andar térreo. Por toda a rua, viamse lojistas na calçada. Sobreveio-nos um desusado sentimento de boa vizinhança, enquanto se passavam, de um para outro, rolos de fita adesiva juntamente com instruções, e narravam-se fatos sobre os horrores da noite. O dono da confeitaria, um anti-semita declarado, estava ajudando Weil, o peleteiro judeu, a fechar com tábuas uma janela cuja vidraça havia se soltado. O dono da ótica que ficava ao lado, um homem caladão e retraído, veio até nós e arrumou a parte superior de nossa janela, que nem eu nem Betsie alcançávamos. Alguns dias depois, recebemos pelo rádio a notícia que todos temíamos: a rainha tinha deixado o país. Eu não havia chorado no dia da invasão, mas nesse dia chorei, pois sabia que nossa pátria estava perdida. Na manhã seguinte, ouvimos o aviso de que os tanques já atravessavam a fronteira. De repente, toda a população estava nas ruas. Até papai, cujo passeio era tão regular e tão certo como as batidas dos seus próprios relógios, quebrou a rotina e saiu de casa numa hora em que nunca saíra antes, às 10:00h da manhã. Era como se quiséssemos ir ao encontro do mal que se aproximava, todos juntos, e como se cada holandês pudesse dar e receber força de outro. Nós três também saímos, acotovelando-nos por entre a multidão. Passamos a ponte e chegamos à cerejeira brava, cujas flores, todas as primaveras, formavam uma coroa branca tão esplendorosa, que era chamada de "Noiva de Haarlem". Agora apenas algumas pétalas desbotadas restavam nos galhos que começavam a recobrir-se de folhas. A maior parte das flores da "Noiva" estava no chão, formando um tapete murcho a nossos pés.

Mais adiante, alguém abriu uma janela precipitadamente. - Rendemo-nos! A procissão estacou. Cada um repetiu ao outro o que todos já ouvíramos. Um rapazinho de cerca de quinze anos voltou-se para nós com lágrimas rolando pelo rosto. - Eu teria lutado. Não cederia nunca. Papai abaixou-se e apanhou uma petalazinha esmagada. Com muito cuidado, enfiou-a na lapela do jovem. - Muito bem, meu rapaz, disse-lhe. Nossa batalha está apenas começando. *** Nos primeiros meses de ocupação, a situação não foi muito intolerável. O mais difícil era acostumar-se à presença dos uniformes alemães por toda a parte, e dos caminhões e tanques alemães nas ruas, e a ouvir o alemão sendo falado nas lojas. Os soldados vinham constantemente à relojoaria, pois tinham ótimos salários, e um dos primeiros objetos que compravam era um relógio. Dirigindo-se a nós, sempre usavam um certo tom de superioridade, como se falassem a crianças meio estúpidas. Ao ouvi-los conversando animadamente entre si, porém, eu pensava em jovens turistas em férias, jovens de qualquer país. Quase todos adquiriram relógios de mulher, presentes para a mãe ou a namorada que ficara na Alemanha. Nossa loja nunca deu tanto lucro como naquele primeiro ano de guerra. Como não estávamos recebendo novas remessas, nosso estoque foi todo vendido. Saíram até mesmo as peças encalhadas

que já estavam ali há tanto tempo, que pareciam fazer parte do cenário. Vendemos também o velho relógio de mármore verde, enfeitado com dois cupidos de bronze. O toque de recolher, a princípio, não apresentou problema para nós, pois era, originalmente, dez da noite, e, àquela hora, nós estávamos mesmo em casa. O que não gostávamos era do cartão de identificação que cada um recebeu, cartõezinhos pequenos, contendo a fotografia e as impressões digitais, que tínhamos que apresentar sempre que exigido. Um soldado ou um policial - a polícia achava-se agora sob o controle direto do Comando Alemão - podia deter qualquer pessoa, a qualquer hora, e pedir para ver o cartão. Esta pessoa tinha que estar com o documento pendurado ao pescoço, dentro de um saquinho. Recebemos também cartões de racionamento, mas, pelo menos naquele primeiro ano, com os cupons, podíamos adquirir o alimento diretamente dos armazéns e mercearias. Toda semana, os jornais traziam a lista do que podíamos comprar no momento. Outra coisa difícil de aceitar foi o jornal sem notícias. Havia longos e apoteóticos relatos das vitórias do exército alemão nos seus diversos fronts; palavras de louvor aos líderes alemães, acusações a traidores e sabotadores, apelos à unificação dos "povos nórdicos", mas nenhuma notícia em que se pudesse realmente acreditar. Por isso, voltamo-nos para o rádio. Nos primeiros dias da ocupação, veio-nos uma ordem para entregarmos nossos aparelhos. Compreendendo que seria meio estranho se nossa família não apresentasse pelo menos um rádio, decidimos entregar o pequeno e esconder o maior - que era de maior alcance também - em um dos

vãos que havia sob a velha escada. A idéia foi de Peter. Ele tinha dezesseis anos quando da invasão, e, como outros jovens, tinha a energia inquieta, gerada pela raiva e pela rebelião refreada. Peter instalou o rádio sob uma das voltas da escada, logo acima do quarto de papai, e habilmente, recolocou as tábuas no lugar, enquanto eu levava o menor à loja Vrom en Dreesman, onde o recolhimento estava sendo efetuado. O atendente do exército alemão que estava por detrás do balcão olhoume expressivamente. - Esse é o único rádio que você possui? - É. Ele deu uma olhada na lista à sua frente. - No mesmo endereço estão registrados Cásper ten Boom e Elizabeth ten Boom. Algum deles tem um rádio? Desde criança, eu sabia que a terra se abriria e os céus cuspiriam fogo e enxofre sobre os mentirosos, mas não abaixei os olhos. - Não. Somente depois que saí da loja foi que comecei a tremer. Não apenas porque pela primeira vez em minha vida dissera uma mentira deliberada, mas, principalmente, porque ela me saíra dos lábios com tanta facilidade. Nosso rádio, porém, estava a salvo. Todas as noites, ou eu ou Betsie tirávamos o tapume e nos inclinávamos sobre ele, com o volume na altura mínima necessária para se poder ouvir, e sintonizávamos estações da Inglaterra, enquanto a outra ficava martelando o piano com o máximo de força. No princípio, as notícias que ouvíamos pelo rádio se harmonizavam com as que líamos em

nossa imprensa censurada. A ofensiva alemã era vitoriosa por toda a parte. Mês após mês, as transmissões dos holandeses livres nos animavam a esperar, a ter coragem e a crer que uma contra-ofensiva seria organizada algum dia. Os alemães consertaram os estragos do aeroporto causados pelo bombardeio, e agora o usavam como base de decolagem para ataques à Inglaterra. Todas as noites, ficávamos deitados, ouvindo o ronco dos motores, indo em direção ao oeste. Ocasionalmente, os aviões britânicos contra-atacavam, e, então, os alemães os interceptavam bem nos céus de Haarlem, Certa noite, fiquei revirando na cama durante uma hora, enquanto a luta se travava acima de nossas cabeças. Afinal, ouvi um barulho na cozinha. Betsie estava lá. Desci e fui vê-la. Ela estava fazendo chá. Trouxe-o para a sala de jantar, cujas janelas havíamos recoberto com papel grosso e preto, e pôs na mesa a nossa melhor louça. Ouviu-se uma explosão a alguma distância dali; os pratos tremeram no armário. Ficamos uma hora conversando e saboreando o chá, até que finalmente o zumbido dos aviões cessou, e o céu ficou em silêncio. À porta do quarto de Tia Jans, dei boa-noite a Betsie, e subi para o meu quarto, tateando no escuro. A claridade desaparecera. Pus as mãos na cama; aqui estava o travesseiro. Então, minha mão se chocou com um objeto duro e cortante. Senti o sangue escorrer de um dos dedos. Era um pedaço de metal de bordas irregulares: um estilhaço de bomba, de cerca de trinta centímetros de comprimento. - Betsie! Corri escada abaixo com o estilhaço na mão. Fomos para a

sala de jantar, e pusemo-nos a examiná-lo à luz da lâmpada, ao mesmo tempo que Betsie cuidava do ferimento. - No seu travesseiro..., murmurou ela várias vezes. - Betsie, se eu não tivesse ouvido você na cozinha. Ela colocou um dedo sobre meus lábios. - Não diga nada, Corrie. No reino de Deus não há "se". E também não há um lugar que seja mais seguro que outro. O único lugar seguro é o centro da vontade de Deus. Corrie, vamos orar e pedir-lhe que possamos sempre saber qual é a sua vontade. *** Gradualmente, íamos tomando consciência de todo o horror da ocupação. Durante o primeiro ano do domínio alemão, houve apenas pequenos ataques contra os judeus. Era um palavrão rabiscado no muro de uma sinagoga; uma pedra atirada à vitrina de um semita... Era como se eles estivessem nos experimentando, testando a tempera da nação. Quantos holandeses os apoiariam? Para nossa vergonha, a resposta foi: muitos. A cada mês que passava, o Partido Nacional Socialista, a organização nazista holandesa, mais crescia e mais ousado se tornava. Alguns se uniram a ele apenas para receber os benefícios decorrentes: mais alimento, mais cupons para roupas, melhores empregos, melhores moradias. Outros, porém, o faziam por convicção. O nazismo era uma enfermidade contra a qual muitos holandeses não tinham imunidade; os que já possuíam preconceitos anti-semíticos logo sofreram contágio.

Em nossa caminhada diária, eu e papai víamos os sintomas da doença se propagarem. Ora era uma placa numa casa de comércio: Não atendemos judeus, ou na entrada do parque público: Proibida a entrada de judeus, ou na porta da biblioteca pública, em restaurantes, teatros, e até no Salão de Concertos, cuja entrada lateral conhecíamos melhor que seus assentos estofados. Uma sinagoga foi incendiada e o carro de bombeiros chegou, mas apenas para ficar alerta e impedir que as chamas se alastrassem aos prédios vizinhos. Um dia, quando caminhávamos pela nossa rota costumeira, notamos que as calçadas pareciam mais alegres e coloridas, e logo vimos por quê - várias pessoas traziam uma estrela amarela de seis pontas presa à lapela do casaco ou paletó. Homens, mulheres e crianças, todos usavam uma estrela com a palavra Jood (judeu) escrita no centro. Ficamos surpresos ao constatar que muitas das pessoas pelas quais passávamos diariamente eram judias. O homem que lia o boletim comercial na praça trazia uma estrela em seu paletó, cuidadosamente passado a ferro. Também o "Buldogue", com seu rosto mais enrugado que nunca. Sua voz, ao falar com os cães, soava aguda pela tensão. O pior de tudo eram os desaparecimentos. Um relógio consertado ficou na loja muitos meses, prontinho, dependurado na parede, à espera do dono; uma casa do bairro onde Nollie morava, parecia misteriosamente abandonada, a grama crescendo junto às roseiras. Em outro dia, foi a loja do Sr. Kan, perto da nossa, que não se abriu. Quando por lá passamos em nosso passeio, papai bateu à

porta para perguntar se alguém estava doente. Não houve resposta. A loja ficou fechada, as janelas às escuras, silenciosas durante várias semanas. Depois, embora a loja nunca mais fosse reaberta, uma família de adeptos do PNS mudou-se para o apartamento da sobreloja. Nunca ficamos sabendo se a família tinha sido levada pela Gestapo ou se tinha fugido. As detenções em público, sem qualquer tentativa de disfarce, tornaram-se mais e mais freqüentes. Certo dia, quando regressávamos de nossa caminhada, vimos que a Praça Grote Markt estava rodeada por uma fila dupla de soldados e policiais. Havia um caminhão parado junto ao mercado de peixes, e a ele subiam homens, mulheres e crianças, todos ostentando no peito a estrela amarela. Não víamos a razão por que haviam escolhido aquele local e hora. - Papai, coitado desse povo! exclamei. O círculo de policiais se desfez em um ponto e por ele o caminhão deixou a praça. Ficamos a olhá-lo até desaparecer de vista. - Coitado desse povo! repetiu papai. Para minha surpresa, porém, ele olhava para os soldados que agora se formavam em fileiras para irem embora. - Tenho pena desses alemães, Corrie. Estão tocando na menina dos olhos de Deus. *** Muitas vezes, eu, papai e Betsie conversávamos sobre o que

faríamos se tivéssemos uma chance de ajudar alguns de nossos amigos judeus. Sabíamos que, no começo da ocupação, Willem tinha procurado esconderijos para os judeus alemães que estavam morando em sua casa. Ultimamente, também, tinha afastado do abrigo alguns judeus-holandeses mais jovens. - Os velhinhos ficam, dizia. Certamente eles não vão incomodar os meus velhinhos. Willem conhecia muitos lugares para esconderijos. Ele sabia de fazendas na zona rural, onde as tropas de ocupação eram mais escassas. Era a ele que eu deveria me dirigir. Numa nevoenta manhã de novembro de 1941, ano e meio após a invasão, saí à calçada para levantar as persianas que cobriam a vitrina da loja. Vi um grupo de quatro soldados alemães descendo a rua. Usavam capacete de combate, que lhes chegava às orelhas, e traziam fuzis pendurados ao ombro. Escondi-me no vão da porta, e fiquei observando. Estavam procurando um número. Pararam exatamente na loja em frente à nossa - a peleteria do Sr. Weil. Um dos homens bateu à porta violentamente com a coronha do rifle. Ia bater de novo, mas a porta se abriu, e os quatro se arremeteram para dentro. Corri à sala de jantar, onde Betsie estava pondo a mesa. - Betsie, venha. Está acontecendo uma coisa horrível com os Weil. Chegamos à rua em tempo de ver um soldado empurrando o Sr. Weil que vinha de costas, encostando-lhe uma arma no estômago. Depois de deixá-lo ali fora, o policial regressou à loja, batendo a porta. Então, não o estavam prendendo...

Ouvimos o ruído de vidro se quebrando dentro da casa. Os homens começaram a sair com os braços cheios de peles. Apesar da hora matinal, uma pequena multidão estava se formando. O Sr. Weil não se movera do lugar onde o soldado o deixara. Abriu-se uma janela do segundo andar, e roupas começaram a chover sobre ele: pijamas, camisas, roupas de baixo. Vagarosa e mecanicamente, o Sr. Weil inclinou-se e começou a ajuntar suas coisas. Eu e Betsie atravessamos a rua correndo para ajudá-lo. - Onde está sua esposa? perguntou-lhe Betsie nervosamente. Ele somente olhou-a e pestanejou. - Venha conosco, disse eu pegando mais alguns lenços e meias do chão. Depressa! E empurramos o pobre e atordoado homem para o Beje. Ele estava aterrado. Quando entramos na sala de jantar, papai se achava ali e cumprimentou o Sr. Weil sem mostrar surpresa alguma. Sua atitude calma e natural fez com que o pobre homem relaxasse um pouco a tensão. Sua esposa estava em Amsterdam, em visita à irmã dela, informou-nos. - Temos que telefonar-lhe para que não venha aqui. Nosso telefone havia sido desligado no começo da ocupação, como aliás a maioria dos telefones particulares. Havia telefones públicos em várias partes da cidade, mas, certamente, a conexão era feita para um posto central. Seria certo envolver uma família de Amsterdam em um problema daqui? E se a Sra. Weil não podia voltar para casa, para onde deveria ir? Onde os Weil iriam morar? Logicamente não poderia ser com a irmã, onde seriam encontrados com facilidade. Eu, papai e Betsie nos entreolhamos.

- Willem! dissemos quase que ao mesmo tempo. Mas isto também não era questão que se pudesse resolver pelo telefone público. Alguém teria que ir lá, e eu era a pessoa mais indicada. Na época da ocupação, os trens estavam sempre superlotados e muito sujos. A viagem que deveria ter levado menos de meia hora, durou quase três. Cheguei ao grande prédio do abrigo pouco depois do meio-dia, e Willem não estava, mas Tine e Kik, seu filho de vinte e dois anos, me receberam. Contei-lhes o acontecido e dei-lhes o endereço da família de Amsterdam. - Diga ao Sr. Weil para estar pronto logo que escurecer, disse Kik. Já eram quase nove da noite - novo horário do toque de recolher - quando Kik bateu à porta lateral. Pegou o pequeno pacote de roupas do Sr. Weil, colocou-o debaixo do braço, e depois afastouse com o velhinho para dentro da noite. Cerca de duas semanas depois, encontrei-me com Kik e perguntei-lhe o que havia acontecido. Ele olhou para mim, com aquele sorriso amplo e vagaroso de que eu tanto gostava desde que ele era bem pequenino. - Se vai trabalhar clandestinamente, Tia Corrie, tem que aprender a não fazer perguntas. Trabalho clandestino?! "Se vai trabalhar clandestinamente..." Será que Kik estava trabalhando com aquele grupo secreto e ilegal? E será que Willem estava? Todos nós sabíamos da existência de um grupo clandestino na Holanda - ou pelo menos suspeitávamos. Os atos de sabotagem, em sua maioria, não eram mencionados em nossa imprensa

censurada, mas havia abundância de rumores. Uma fábrica explodira. Um trem que levava prisioneiros tinha sido detido e sete ou dezessete, ou setenta - deles haviam escapado. Cada vez que se ouvia o relato, esse parecia mais extraordinário. Esses rumores, porém, eram sempre a respeito de fatos que críamos ser contrários à vontade de Deus: roubos, fraudes, mortes. Será que Deus queria isto para um tempo como este? Como deveria um crente agir, quando o mal domina? *** Um mês depois da batida na loja de peles, dando nossa caminhada habitual, eu e papai notamos algo que nos pareceu tão estranho, que nós paramos. Andando em nossa direção, como tantas vezes, vinha o "Buldogue", com suas pernas curtas e seu jeitão engraçado. Por essa altura, já nos havíamos acostumado à estrela amarela; então, o que estava diferente? Num instante vi o que era: os cães. Ele não estava acompanhado de seus cães. O "Buldogue" passou por nós, aparentemente sem nos ver. Como se tivéssemos combinado, eu e papai nos voltamos e começamos a segui-lo. Ele virou uma porção de esquinas, e nós atrás dele, embora um pouco acanhados por não termos uma razão plausível para segui-lo. Apesar de que ele e papai se tinham cumprimentado com um aceno de chapéu muitas vezes, nunca se tinham falado, e nem ao menos sabíamos o seu nome. Por fim, ele parou diante de uma lojinha de artigos de segunda mão, tirou uma penca de chaves, abriu a porta e entrou. Olhamos através da janela, para o interior da loja atulhada de

objetos. Logo à primeira vista, vimos que não se tratava de um desses ajuntamentos de quinquilharias e cadeiras sem assento. Aquelas peças haviam sido escolhidas por uma pessoa que amava a beleza. - Precisamos trazer Betsie aqui, falei. Um sininho tiniu por sobre a porta quando entramos. Lá estava o "Buldogue", sem chapéu, abrindo uma gaveta, ao fundo do aposento. - Permita-me apresentar-me, senhor, principiou papai. Meu nome é Cásper ten Boom, e esta é minha filha Cornélia. O "Buldogue" apertou-nos as mãos e notei novamente as profundas rugas de seu rosto. - Harry de Vries, disse. - Sr. Vries, nós temos muitas vezes admirado sua... é... afeição pelos seus cães. Esperamos que estejam bem. O homenzinho olhou-nos, primeiro um e depois o outro. Seus olhos empapuçados encheram-se lentamente de lágrimas. - Se estão bem? repetiu. Creio que estão. Espero que estejam bem. Estão mortos. - Mortos?! perguntamos juntos. - Eu mesmo pus o veneno na tigela de comida, e depois os pus a dormir; meus queridos animais! Os meus pequenos! Se vocês tivessem podido vê-los a comer... Eu esperei até ajuntarmos bastante cupons de carne. Eles estavam acostumados a sempre ter carne. Olhamos para ele sem compreender ainda. - Foi por causa do racionamento? sugeri. Com um aceno, ele convidou-nos a passar para uma saleta

dos fundos e ofereceu-nos assentos. - Minha senhora, eu sou judeu. Ninguém sabe quando eles vão aparecer aqui para nos levar, a mim e a minha esposa - embora ela seja gentia. Ela corre perigo por ter se casado comigo. O "Buldogue" ergueu o rosto e seu queixo ficou mais proeminente. - Nós não nos preocupamos muito conosco. Nós somos crentes, eu e Cato. Quando morrermos, iremos ficar com Jesus, e isto é tudo que nos interessa. Mas eu falei com ela: "E os cachorros? Se formos presos, quem os alimentará? Quem vai dar-lhes água ou levá-los a passear? Eles vão ficar esperando e não irão entender." Agora, porém, não tenho mais que me preocupar. - Prezado amigo, disse papai, agarrando uma das mãos dele com ambas as suas, agora que seus queridos companheiros não podem mais passear com você, não quer dar a mim e à minha filha a honra de nos acompanhar? Ele não queria. - Isto faria com que corressem perigo, insistiu. Aceitou, porém, um convite para nos visitar. - Depois que escurecer, afirmou. Foi assim que, na semana seguinte, o Sr. Vries bateu à nossa porta lateral, trazendo consigo sua meiga e tímida esposa, Cato. Dentro em pouco, ambos eram visitas habituais para nós. A maior alegria do "Buldogue" em nossa casa, depois de conversar com papai, eram os volumes de teologia judaica que agora ocupavam a estante de mogno de Tia Jans. Ele se tornara cristão há quarenta anos, sem no entanto deixar de ser judeu. - Um judeu completo, dizia. Seguidor daquele judeu perfeito.

Os livros haviam pertencido ao rabino de Haarlem. Ele os trouxera para papai "... para o caso de eu não poder continuar cuidando deles... por tempo indeterminado". Depois acenou para uma fileira de garotos que vinham atrás dele, e que entraram tropeçando ao peso dos enormes livros. - Meu passatempo - colecionar livros. E, sabe, meu velho amigo, os livros não envelhecem como nós. Depois que nos formos, eles ainda falarão a gerações futuras, que não veremos. É, os livros têm que ser preservados. O rabino fora o primeiro a desaparecer de Haarlem. *** Estranho como, às vezes, é um evento insignificante que acaba sendo um marco decisivo. À medida que as prisões de judeus se tornavam mais e mais freqüentes, comecei a buscar e entregar serviços para nossos fregueses judeus, para que não precisassem vir ao centro. Assim foi que uma noite cheguei à casa de um médico. Era de uma tradicional família holandesa: os retratos de seus antepassados, nas paredes, poderiam ter sido tirados de um livro de História da Holanda. Estávamos conversando sobre assuntos que sempre surgiam quando gente se reunia naqueles dias - racionamento, notícias da Inglaterra - quando, do alto da escada, uma vozinha infantil gritou: - Papai, o senhor não veio nos cobrir. O Dr. Heemstra levantou-se imediatamente. Pediu licença, e correu escada acima. Daí a pouco, ouvimo-lo brincar com as crianças, e escutamos as risadas agudas dos dois pequenos.

Foi só isto, nada mais. A Sra. Heemstra estava me ensinando a aumentar a ração de chá com folhas de roseira. No entanto tudo havia mudado. Naquele instante, a realidade dos fatos sacudiu o torpor que parecia envolver-me desde a invasão. A qualquer momento, haveria uma batida na porta. Essas crianças, o pai e a mãe subiriam a um caminhão... O Dr. Heemstra voltou e nossa palestra continuou. Ainda conversando, elevei uma oração silenciosa a Deus. "Senhor Jesus, eu me ofereço para ajudar o teu povo. Em qualquer parte. A qualquer hora." Foi então que se deu um fato extraordinário. Enquanto orava, aquela visão passou diante de meus olhos novamente. Vi aqueles quatro cavalos pretos e a praça. Como fizera na noite da invasão, procurei divisar quem eram os passageiros. Eu, papai, Betsie, Willem, saindo de Haarlem, deixando o lugar que para nós significava segurança e estabilidade, e partindo... para onde?

Capítulo 6 - O Quarto Secreto Era domingo, dia 10 de maio de 1942, exatamente dois anos após a rendição da Holanda. Nem o ensolarado céu de primavera, nem as flores em seus caixilhos dos postes, eram a verdadeira expressão da atmosfera da cidade. Soldados alemães vagavam pelas ruas, alguns parecendo não ter superado ainda os excessos de uma noite de sábado, outros já em busca de garotas, e alguns (poucos), à procura de uma igreja. A cada mês que passava, a ocupação parecia mais severa, com as restrições aumentando sempre. O último suplício imposto aos holandeses fora o decreto que declarava ser crime cantar o nosso hino nacional, o Wilhelmus. Eu, papai e Betsie estávamos a caminho de Velsen, uma cidadezinha não muito distante de Haarlem, de cuja igreja reformada Peter era organista. Ele conseguira o cargo vencendo uma competição entre quarenta candidatos, sendo que os outros eram todos mais velhos e mais experimentados que ele. O órgão de Velsen era um dos melhores do país, e nós íamos lá muitas vezes, embora o trem parecesse cada vez mais vagaroso. Quando nos sentamos, apertados naquele banco lotado, Peter já estava tocando totalmente invisível para nós, em seu posto na galeria do órgão. Uma vantagem da ocupação, para a Holanda, fora isto: as igrejas estavam constantemente cheias. Depois do cântico dos hinos e das orações, vinha o sermão, que nesse dia, aliás, foi muito bom. Gostaria que Peter prestasse

mais atenção a ele. Peter achava que os sermões serviam apenas para gente velha, como eu e sua mãe. Eu completara cinqüenta anos, e, para Peter, nessa idade, a vida já passara definitivamente. Às vezes, eu instava com ele para que se lembrasse de que a morte e as questões decisivas da vida podiam ocorrer em qualquer idade, para qualquer um de nós - principalmente nos tempos em que vivíamos. Ele retrucava, galantemente, que era um músico bom demais para morrer jovem. A oração final terminou. Foi aí que, como tocada por uma corrente elétrica, toda a congregação se pôs subitamente atenta. Sem preâmbulo algum, com todos os registros abertos em seu volume máximo, Peter começara a tocar o Wilhelmus. Apesar de seus oitenta e dois anos, papai foi o primeiro a se levantar. Agora, todos se levantavam. Atrás de nós, alguém começou a cantar. Outro juntou-se a este, depois outro. Daí a pouco todos cantávamos. Era a voz da Holanda cantando o hino proibido. Cantamos a toda força dos pulmões. Cantamos nossa unidade, nossa esperança, nosso amor ao país e à rainha. Até parecia que no dia do aniversário de nossa derrota, por um instante, sentíamo-nos vitoriosos. Após o culto, ficamos à porta lateral da igreja, aguardando que Peter saísse. Passou-se bastante tempo antes que ele viesse juntar-se a nós, tal o número de pessoas que queriam abraçá-lo, apertar sua mão, bater-lhe nas costas. Ele estava visivelmente satisfeito consigo mesmo. Entretanto, agora que o momento de glória havia passado, eu estava, como sempre, zangada com ele. A Gestapo iria saber daquilo com toda a certeza. Talvez já soubesse: havia espiões seus por toda

a parte. Pensei em Nollie, preparando o almoço para nós. Pensei nos outros filhos e em Flip. E se ele perdesse sua posição na escola? E para que Peter se arriscara tanto? Não fora pela vida de outrem, mas simplesmente pela beleza de um gesto ousado, por um momento de desafio, sem nenhum significado real. Já em casa, Peter transformou-se num herói, quando tivemos de relatar o acontecido várias vezes. As únicas pessoas que pensavam como eu eram duas judias que estavam morando com Nollie. Uma era uma velhinha austríaca que Willem enviara para lá, a fim de se esconder. "Katrien", como eles a haviam rebatizado, passava por empregada da família, embora Nollie houvesse me segredado que nem mesmo a própria cama ela arrumava. Provavelmente, ela nem sabia fazer a cama, já que era de uma família aristocrática e rica. A outra era uma jovem holandesa, loura de olhos azuis, que possuía cartão de identificação falso - um trabalho perfeito -que lhe havia sido fornecido pela organização de resistência clandestina da Holanda. Os documentos eram tão perfeitos, e Annaliese era tão diferente de uma judia típica, na concepção dos nazistas que ela saía de casa livremente, fazia compras, auxiliava na escola. Passava por uma amiga da família que perdera o marido no bombardeio de Rotterdam. Katrien e Annaliese, como eu, não compreendiam a atitude de Peter, ao praticar um ato deliberado que atrairia a atenção das autoridades. Passei toda a tarde aflita, vivendo momentos de tensão cada vez que ouvia o barulho de um carro, pois somente a polícia, os

alemães e os membros do Partido Socialista tinham carros então. Chegou a hora de retornarmos ao Beje, e nada acontecera. Durante os dois dias seguintes eu ainda me preocupei, mas depois concluí que, ou Peter não havia sido delatado, ou a Gestapo estava ocupada com coisas mais importantes. Na manhã de quartafeira, quando estávamos abrindo nossa banca de trabalho, Cocky, a irmãzinha de Peter, entrou correndo pela loja. - Vovô! Tia Corrie! Prenderam Peter. Eles o levaram! - Quem? Para onde? Ela não sabia. Somente três dias mais tarde foi que a família recebeu a informação de que ele havia sido levado para a prisão federal de Amsterdam. *** Faltavam cinco minutos para o novo toque de recolher, 8:00h. Peter já estava preso há duas semanas. Eu, papai e Betsie estávamos assentados à mesa da sala de jantar. Papai recolocava os relógios em seus bolsinhos. Betsie costurava, e, como sempre, nosso grande gato preto se aninhara em seu colo. Uma batida à porta da ruela, e eu olhei para o espelho junto à janela. À pouca claridade daquele crepúsculo de primavera, vi uma mulher. Carregava uma maleta de viagem e vestia um casaco de peles, o que era estranho, para essa estação do ano, e usava um grosso véu. Desci correndo e abri a porta. - Posso entrar? perguntou. Sua voz soou aguda pelo medo.

- Naturalmente, respondi, dando um passo atrás. Ela deu uma espiadela por sobre os ombros, e depois entrou no hall. - Meu nome é Kleermaker, e sou judia. - Muito prazer. Estendi a mão para pegar a valise, mas ela manteve-a segura. - Quer subir? Papai e Betsie levantaram-se quando entramos. - Sra. Kleermaker, meu pai, minha irmã. - Eu já ia fazer chá, disse Betsie. Chegou bem a tempo de tomar chá conosco. Papai afastou uma cadeira da mesa para a Sra. Kleermaker. Ela sentou-se ainda segurando a maleta. O "chá" era, na realidade, uma infusão feita com folhas já muitas vezes usadas, que amassáramos mais, e que mal coloriam a água. A Sra. Kleermaker aceitou-o alegremente, e passou a nos contar que o seu marido fora preso e seu filho fugira para esconderse. No dia anterior, a S.D. - a polícia que operava sob as ordens da Gestapo - tinha lhe ordenado que fechasse sua loja de roupas. Ela temera voltar ao apartamento que ocupava na sobreloja. Ouvira que éramos amigos de um senhor desta mesma rua... - Nesta casa, disse papai, o povo de Deus é sempre bemvindo. - Há quatro camas vazias lá em cima, disse Betsie. Seu único trabalho será escolher em qual delas quer dormir. Então, para meu espanto, ela acrescentou: - Mas primeiro, quer me dar uma mão na cozinha? Quase não

acreditei no que ouvia. Betsie nunca permitia que alguém a ajudasse na sua tarefa. "Sou uma solteirona enjoada", dizia. A Sra. Kleermaker ergueu-se com uma ânsia quase patética, e começou a ajuntar os pratos e xícaras. *** Dois dias depois, a mesma cena se repetiu. A hora era a mesma, pouco antes de 8:00h, de uma noitinha de sábado. Outra vez a batida furtiva na entrada lateral. Dessa vez era um casal idoso. - Entrem! A mesma história, o mesmo apego às poucas possessões que lhes restavam, o mesmo olhar assustado por sobre os ombros, o mesmo passo indeciso. Os vizinhos tinham sido presos, e receavam que amanhã talvez fosse a vez deles. Naquela noite, após o devocional, nós seis resolvemos examinar o problema. - Este lugar é perigoso, disse aos nossos hóspedes. A chefatura de polícia fica a meia quadra daqui. No entanto, não temos outro lugar para lhes indicar. Percebi que estava na hora de eu fazer outra visita a Willem. Assim, no dia seguinte, repeti a incômoda viagem a Hilversum. - Willem, disse-lhe, estamos com três judeus lá em casa. Será que você poderia arranjar esconderijos para eles? Ele levou a mão aos olhos, e foi aí que notei como sua barba estava grisalha. - Está ficando muito difícil, respondeu. A cada dia que passa

está mais difícil. Está começando a faltar alimento até nas fazendas. Eu ainda tenho uns locais, mas poucos. Entretanto eles não aceitam ninguém sem cartão de racionamento. - Sem cartão? Mas os judeus não recebem cartões! - Eu sei. Willem virou-se e olhou pela janela. Pela primeira vez eu me indaguei como é que ele e Tine estavam se arranjando para alimentar os velhinhos que se encontravam sob seus cuidados. - Eu sei, repetiu. E não podemos fabricar cartões falsos. Eles mudam muito depressa e percebe-se logo a falsificação. Já com cartões de identidade a coisa é diferente. Conheço vários gráficos que os fazem. Mas para isso precisa-se de um fotógrafo, naturalmente. Um fotógrafo? Gráficos? De que é que Willem estava falando? - Willem, se uma pessoa precisa de cartões de racionamento - já que não há cartões falsos - o que é que se faz? Ele voltou-se da janela vagarosamente. Parecera haver se esquecido de mim e do meu problema. - Cartões de racionamento? Fez um gesto vago. A gente rouba. Olhei para aquele ministro da Igreja Reformada Holandesa. - Então, Willem, será que você pode roubar - quero dizer... pode arranjar três cartões para mim? - Não, Corrie. Estou sendo muito vigiado. Você não compreende isto? Cada passo que dou está sendo observado. Ele passou o braço pelo meu ombro e prosseguiu num tom carinhoso.

- Mesmo que eu ainda possa trabalhar mais algum tempo, é melhor você ter seus próprios recursos. Quanto menos ligação você tiver comigo ou qualquer outra pessoa, melhor será. Sacolejando no trem, de volta para casa, pensei muito nas palavras de Willem: "Seus próprios recursos." Isso me parecia tão sério... Como iria encontrar um fornecedor de cartões roubados? Quem é que eu conhecia que poderia...? Naquele momento, um nome me veio à mente: Fred Koornstra. Ele fora funcionário da companhia de eletricidade, e tinha vindo ao Beje muitas vezes para ler o relógio da luz. Tinha uma filha retardada, agora adulta, que freqüentara os cultos que eu realizava todos os domingos, especialmente para excepcionais. Agora, ele trabalhava no Departamento de Alimentação. Não era lá que os cartões de racionamento eram emitidos? Naquela noite, após o jantar, saí pedalando pelas nossas ruas calçadas de paralelepípedos. Os pneus da minha velha e fiel bicicleta haviam se acabado, e eu me unira às centenas de ciclistas que iam rodando ruidosamente com apenas o aro de metal. Cada saliência da rua me lembrava dolorosamente que eu já estava com cinqüenta anos de idade. Fred, um homem calvo, de porte militar, recebeu-me à porta e olhou-me inquisitivamente, quando lhe disse que desejava falar-lhe sobre o culto de domingo. Convidou-me a entrar, fechou a porta e disse: - Bem, Corrie, o que é que você quer realmente? "Senhor", orei em silêncio, "se não for seguro para mim confiar em Fred, interrompe esta conversa, antes que seja tarde demais." - Primeiro, preciso dizer-lhe que temos hóspedes inesperados

no Beje. Alguns dias atrás veio uma senhora sozinha, depois um casal, e quando voltei à tarde, encontrei outro casal. Fiz uma pequena pausa e continuei. São todos judeus. O rosto de Fred continuou impassível. - Nós podemos arranjar-lhes esconderijos, mas precisamos de uma coisa: cartões de racionamento. Fred sorriu. - Agora já sei por que você veio aqui. - Há algum jeito de você nos conseguir alguns cartões dentre os que você registra? - Não, Corrie; não há. Eles são autenticados de vários modos. São verificados e reverificados. A esperança que começara a surgir dentro de mim ruiu por terra. Fred, porém, estava franzindo a sobrancelha. - A menos que... começou. - A menos que o quê? - A menos que seja em forma de assalto. O Departamento de Alimentação de Utrecht foi assaltado no mês passado, e a polícia só pegou os homens; os cartões não foram recuperados. Ele ficou em silêncio por uns instantes. - Se fosse ao meio-dia, quando apenas eu e o outro atendente estamos lá... e se eles nos encontrassem amordaçados... Ele estalou os dedos. E eu conheço um sujeito que poderia fazer isso. Lembra-se do... - Não! interrompi-o, recordando-me do aviso de Willem. Não me diga quem e nem como. Arranje os cartões para mim, se puder. Fred fitou-me por uns instantes. - De quantos precisa?

Abri a boca para dizer cinco, mas, para meu assombro, o número que falei foi "cem". Uma semana mais tarde, quando Fred me abriu a porta, levei um susto ao vê-lo. Seus olhos estavam arroxeados e o lábio inferior inchado e tinha um corte. - Meu amigo fez o papel dele muito bem, foi tudo que disse. Mas ele conseguira os cartões. Sobre a mesa, em um envelope de papel manilha, estavam os cem "passaportes" para a segurança. Fred já tinha cortado deles o canhoto de continuação. Esse era apresentado ao Departamento de Alimentação, no último dia do mês, e, em troca, a pessoa recebia o cartão para o mês seguinte. Com aqueles cupons, Fred poderia continuar emitindo os cartões para nós "legalmente". Concordamos em que seria muito arriscado para mim, vir à sua casa todo mês. Que tal se ele fosse ao Beje, com seu velho macacão da companhia de eletricidade? Nosso medidor ficava no hall, ao pé da escada. Quando cheguei em casa, examinei o primeiro degrau, levantando a tábua de cima, como Peter havia feito para esconder o rádio, e encontrei um vão no interior dele. Peter ficaria orgulhoso de me ver, pensei enquanto preparava o esconderijo, e senti-me invadida por uma onda de saudade daquele rapaz corajoso e confiante. Até ele teria que reconhecer que os olhos e dedos de um relojoeiro serviam para alguma coisa, pensei dando um passo para trás, para admirar o trabalho concluído. A dobradiça estava fora de vista, bem afundada na madeira, e a parede vertical do degrau estava intata. Senti-me ridiculamente satisfeita. Nosso primeiro teste foi no dia primeiro de julho. Fred entraria

pela loja como sempre fizera, transportando os cartões sob a camisa. Ele viria às 5:30h, e Betsie tinha instruções para não deixar nenhum dos seus "fregueses" por ali. Às 5:25h, para meu horror, a porta da loja se abriu, e um policial entrou. Era um homem alto, de cabelo vermelho, cortado rente, e seu nome era Rolf van Vliet, e isto era tudo o que eu sabia. Ele comparecera à nossa festa do centenário da loja, mas quase toda a força policial viera. Ele não era dos que passavam aqui nas manhãs de inverno para tomar café. Ele trouxera um relógio para limpeza, e parecia com disposição para um bom bate-papo. Minha boca ficou seca, mas papai palestrava alegremente, enquanto retirava a capinha de trás e examinava o relógio. Que íamos fazer? Não havia jeito de avisar Fred Koornstra. Precisamente às 5:30h, ele abriu a porta da loja e entrou, vestido com seu macacão azul de trabalho. Pareceu-me que seu estômago estava bem alto, pelo menos uns trinta centímetros mais alto. Com maravilhosa tranqüilidade, ele cumprimentou papai, o policial e a mim. - Boa tarde! disse cortês, mas levemente irritado. Atravessou a porta ao fundo da loja e cerrou-a atrás de si. Agucei os ouvidos para escutar o ruído da portinhola secreta. Agora! Rolf deve ter ouvido também. A porta abriu-se de novo. Tão grande era o autocontrole de Fred que não escapou pela porta lateral, mas regressou pela loja. - Boa tarde, disse novamente. - Boa tarde.

Cruzou a porta da rua e saiu. Dessa vez conseguíramos, mas eu sabia que teríamos de arranjar um modo de avisá-lo. Enquanto isso, nas semanas que decorreram após a inesperada visita da Sra. Kleermaker, muita coisa aconteceu no Beje. Tendo recebido os cartões de racionamento, ela e o casal idoso que aparecera depois dela, e os outros que os seguiram, todos haviam encontrado refúgio em lugares seguros. Todavia aquele povo perseguido continuava chegando, e seus problemas eram, às vezes, mais complicados que providenciar cartões e esconderijos. Se uma judia estava grávida, onde iria para ter o bebê? Se um judeu escondido morria, como fazer para enterrá-lo? - Arrume seus próprios recursos, dissera Willem. Desde que o nome de Fred me ocorrera, começara a compreender um fato estranho: metade da população de Haarlem era de amigos nossos. Conhecíamos enfermeiras de maternidades e funcionários do cartório de registros. Tínhamos conhecidos em todos os tipos de negócios e repartições públicas da cidade. Naturalmente, não sabíamos qual era o ponto de vista político dessas pessoas, mas - e ao pensar nisso senti meu coração saltar Deus sabia. Minha tarefa era só seguir as instruções dele, passo a passo, levando a ele, em oração, toda e qualquer decisão. Eu sabia que não era esperta, nem astuciosa, nem sagaz. Se o Beje estava se tornando um ponto de encontro e de fornecimento de suprimentos, isso se devia a uma estratégia muito melhor que a minha. Alguns dias após a primeira "visita" de Fred, a campainha soou bem depois do toque de recolher. Corri escada abaixo esperando encontrar outro triste e inseguro refugiado. Eu e Betsie já tínhamos acomodado os quatro novos hóspedes daquela noite: uma

senhora judia e seus três filhos. Para minha surpresa, vi Kik encostado à parede da ruela em sombras. - Pegue a bicicleta, ordenou-me com seu modo brusco. E ponha uma blusa de frio. Quero apresentá-la a algumas pessoas. - Agora? Depois do toque de recolher? Eu sabia, porém, que seria inútil fazer perguntas. A bicicleta dele também estava sem pneus, e os aros estavam envoltos em tiras de pano. Ele fez o mesmo com a minha, a fim de silenciar o barulho do metal, e daí a pouco estávamos pedalando pelas ruas escuras de Haarlem, a uma velocidade que me assustaria mesmo à luz do dia. - Ponha a mão no meu ombro, sussurrou Kik. Eu conheço bem o caminho. Passamos por ruas mais desertas, atravessamos pontes e contornamos esquinas que mal enxergávamos. Por fim, cruzamos um largo canal e percebi que chegáramos a um bairro elegante da cidade: Aerdenhout. Rodamos por uma entrada de carros, cercada de árvores frondosas. Para meu espanto, Kik pegou minha bicicleta e carregou as duas, a dele e a minha, escada acima. Uma criada de uniforme branco engomado e chapeuzinho pregueado abriu-nos a porta. O vestíbulo estava entulhado de bicicletas. Foi então que eu o vi: um olho em mim e outro na porta, seu vasto estômago chegando antes dele. Pickwick. Ele conduziu a mim e a Kik para a sala, onde se achavam algumas das pessoas de aparência mais distinta que eu já vira, distribuídas em pequenos grupos, tomando café e conversando. Logo de momento, minha atenção ficou presa ao aroma que enchia o

ambiente. Seria possível? Estariam servindo café de verdade? Pickwick pegou-me uma xícara e encheu-a de café, de uma cafeteira que estava sobre um armário baixo. Depois de dois anos sem café, era a primeira vez que eu via nosso café holandês, escuro, saboroso, de cheiro forte. Ele serviu-se também, adoçando com os seus infalíveis cinco torrões, como se o racionamento nem existisse. Outra criada de uniforme engomado estava passando uma bandeja de bolo. Segui Pickwick pela sala, comendo o bolo e engolindo o café, apertando a mão das pessoas que ele me apresentava. Essa apresentação era muito estranha. Não se mencionavam nomes; apenas ocasionalmente, um endereço com a informação: "Pergunte pelo Sr. Smit." Quando eu já fora apresentada ao quarto Smit, Kik explicou: - É o único sobrenome que conhecemos no nosso mundo subterrâneo. Então aquele era mesmo o grupo da resistência clandestina! Mas de onde seriam estas pessoas? Nunca as tinha visto antes. Compreendi tudo no minuto seguinte: aquele grupo era de âmbito nacional. Sua principal tarefa consistia em manter ligação com a Inglaterra e com as forças holandesas livres, que estavam lutando em algum lugar do continente. Também mantinham uma rota secreta que os tripulantes de aviões aliados abatidos poderiam seguir para chegar à costa, no mar do Norte. Eles se interessaram pelo meu esforço de auxiliar os judeus de Haarlem. Corei até a raiz dos cabelos, ao ouvir Pickwick apresentar-me como "a cabeça de uma grande organização que

opera nesta cidade". Um espaço vazio sob um degrau e os poucos amigos que auxiliávamos aqui e ali não faziam uma organização. Aquelas pessoas, sim, é que pareciam competentes e disciplinadas, verdadeiros profissionais. Contudo eles me apertaram a mão, saudando-me com uma cortesia solene, cada um revelando o setor em que poderia me ser útil. Documentos de identidade falsos. Um carro de chapa oficial. Falsificação de assinaturas... Em um canto da sala, Pickwick apresentou-me a um homenzinho franzino, de barbicha espetada. - Nosso anfitrião informou-me, disse ele formalmente, que seu centro de operações não tem um quarto secreto. Isso constitui um grande perigo tanto para aqueles que você ajuda como para você e seus companheiros de trabalho. Com sua permissão eu lhe farei uma visita na semana que vem... Só muitos anos mais tarde foi que vim a saber que ele era um dos mais famosos arquitetos da Europa. Eu o conhecia apenas como Sr. Smit. Pouco antes de eu e Kik iniciarmos nossa corrida de volta ao Beje, Pickwick pegou-me pelo braço. - Tenho uma boa notícia para você, minha cara. Soube que Peter vai ser solto. *** E foi mesmo, três dias depois. Estava magro e pálido, mas nem um pouco intimidado pelos dois meses que passara naquela cela de concreto. Nollie, Tine e Betsie gastaram a ração de açúcar de um mês inteiro, com os bolos que fizeram para a festa de

comemoração de sua volta. Certa manhã, o primeiro freguês a aparecer na loja foi um homem de barba rala, chamado Smit. Papai retirou do olho seu óculo de joalheiro. Se havia uma coisa de que ele gostava mais do que fazer um novo amigo, era descobrir alguma ligação deste com um outro amigo seu. - Smit, repetiu alegremente. Conheço vários Smits em Amsterdam. Será que você é parente do... - Papai, interrompi, este é o homem de quem lhe falei. Ele está aqui para... é... para inspecionar a casa. - Ah! É fiscal de construções? Então deve ser o Smit que trabalha naquela repartição da Rua Grote Hout. Será que eu não... - Papai, insisti, ele não é fiscal nenhum, e o nome dele não é Smit. - Não é Smit? Eu e o Sr. Smit tentamos explicar a papai, mas ele simplesmente não compreendia como uma pessoa podia usar outro nome que não o seu. Enquanto eu conduzia o Sr. Smit para dentro, nós o ouvíamos murmurar para si mesmo: - Eu conheci um Smit que morava na Rua Koning... O Sr. Smit examinou e aprovou o esconderijo de cartões sob o degrau. Também deu como aceitável o sistema de alarme que tínhamos inventado: uma placa triangular de madeira, com um reclame dos "Relógios Alpina", que eu pendurara à janela da sala de jantar. Se a placa estivesse ali, Fred podia entrar. Quando, porém, lhe mostrei o cubículo que ficava por trás do armário do canto, ele balançou a cabeça. Alguém, ao reformar a casa, deixara ali um nicho, e nós estávamos guardando jóias,

moedas de prata e outros objetos de valor nele, desde o início da ocupação. Não somente o rabi trouxera sua coleção de livros para nós, mas também outras famílias de judeus nos tinham entregado seus objetos de valor, para que os guardássemos. O vão era espaçoso bastante para uma pessoa se ocultar ali, se necessário, mas o Sr. Smit refutou a idéia sem hesitação. - Seria o primeiro lugar em que eles procurariam. Mas não se dê ao trabalho de tirar estas coisas daí. Isto é somente prata mesmo. Estamos mais interessados em salvar vidas humanas, não objetos. Começou a subir a nossa escada espiralada e, quanto mais subia, mais entusiasmado ficava. Ele parava aqui e ali, deliciado com os patamares em posições singulares; bateu nas paredes tortas, e riu alto ao ver os pisos desnivelados das duas velhas casas. - Que coisa mais impossível! exclamou, admirado. Que coisa mais improvável, inacreditável e difícil de se imaginar. Se todas as casas fossem como esta, você teria diante de si um homem menos preocupado. Afinal, chegamos ao topo da escada, entramos no meu quarto e ele soltou uma exclamação de prazer. - Aqui está! disse. O esconderijo tem que ser o mais alto possível, continuou, todo animado. Assim a pessoa tem tempo de alcançá-lo enquanto a busca é feita embaixo. Ele debruçou-se na janela, e girou a cabeça para um lado e para outro, seu cavanhaque apontando para uma e outra direção. - Mas aqui é meu quarto... O Sr. Smit nem me deu atenção. Já estava tirando as medidas. Afastou da parede nosso velho e oscilante guarda-roupa, e, com surpreendente facilidade, puxou minha cama para o centro do

quarto. - A parede falsa ficará aqui. Ainda empolgado, pegou um lápis e riscou uma linha no assoalho, a quase um metro da parede. Depois ergueu-se e ficou a olhá-la pensativamente. - Essa é a largura máxima que eu posso marcar, disse. Dá para um colchão estreito. É; dá sim. Tentei protestar, mas o Sr. Smit simplesmente tinha se esquecido de que eu existia. Nos dias que se seguiram, ele e seus auxiliares entraram e saíram da casa várias vezes. Nunca batiam. Cada vez que vinham, traziam alguma coisa. Ferramentas num jornal dobrado. Alguns tijolos dentro de uma valise, etc. - Madeira?! exclamou ele quando lhe perguntei se uma parede de madeira não seria mais fácil. Madeira ressoa muito. Ouvese logo. Não, não. Tijolo é o único material que se pode usar numa parede falsa. Depois que a parede foi erguida, vieram os pedreiros para rebocar; depois o carpinteiro e finalmente o pintor. Seis dias após iniciado o trabalho, o Sr. Smit chamou papai, Betsie e a mim para vermos como ficara. Paramos à entrada do quarto e abrimos a boca de espanto. O cheiro de tinta fresca estava no ar, mas nada naquele quarto parecia pintado de novo. Todas as quatro paredes tinham a mesma aparência manchada e encardida, que a fuligem do carvão, nosso principal combustível, emprestava às paredes velhas. A velhíssima cornija ao redor do teto parecia intata, lascada aqui e ali, e soltando a tinta em alguns pontos; era a mesma que ali

estava há um século e meio. A parede do fundo tinha marcas de umidade, e eu que vivia naquele quarto há cinqüenta anos, quase não acreditava que esta não era a original, e, sim, uma nova, construída a noventa centímetros da verdadeira parede. Estantes embutidas cobriam toda a face dela, velhas estantes abauladas, cuja madeira empolada exibia as mesmas manchas que a parede. No canto inferior esquerdo, abaixo da última prateleira de baixo, havia uma abertura quadrada de 60 cm por 60 cm, fechada por uma porta corrediça, que dava acesso ao quartinho secreto. O Sr. Smit inclinou-se e abriu a portinhola. Ajoelhamo-nos e entramos rastejando. Dentro podia-se ficar de pé, sentar, ou até deitar, um de cada vez, no pequeno colchão. Um respiradouro, feito na parede verdadeira, arejava o aposento. - Deixe sempre um jarro de água aqui, instruiu-nos o Sr. Smit, entrando também. Troque a água uma vez por semana. Vitaminas e biscoito de marinheiro são coisas que duram muito. Toda vez que houver alguém na casa que não seja residente oficial, todas as suas coisas devem ser guardadas aqui. Saímos de um em um, voltando ao meu quarto. - Pode voltar a dormir aqui, disse-me o homem. Tudo deve continuar exatamente como antes. Bateu com o punho na parede. Esta aqui a Gestapo pode procurar um ano, declarou. Eles nunca vão encontrar.

Capítulo 7 - Eusie Peter estava de volta, e, no entanto; não estava mais a salvo que qualquer outro rapaz de boas condições físicas. Na Alemanha, as fábricas de munição estavam necessitando desesperadamente de operários. Muitas vezes, os soldados cercavam uma certa área sem qualquer aviso, e davam uma batida, arrebanhando todos os homens entre 16 e 30 anos, para os transportarem para lá. Este método de busca e recrutamento relâmpago era denominado razzia, e todas as famílias que tinham filhos rapazes viviam apavoradas, temendo-a. Flip e Nollie tinham preparado um esconderijo para casos de emergência, logo que a razzia começou. Havia um pequeno depósito sob o piso da cozinha. Eles alargaram sua abertura de acesso, puseram um grande tapete sobre ela e colocaram a mesa no lugar. Depois que vira o Sr. Smit construir o quartinho secreto no Beje, eu percebi logo que aquele abrigo era totalmente inseguro e inadequado. Uma razão é que estava embaixo, quando deveria estar no alto, e, provavelmente, como diria o Sr. Smit: "Era o primeiro lugar em que procurariam." Entretanto não se pretendia que ele resistisse a uma busca feita por pessoas treinadas, e, sim, a uma batida rápida realizada por soldados. Devia ser um local para se desaparecer de vista por cerca de meia hora. E para isso, pensei, deve servir... Foi no aniversário de Flip que a razzia veio àquela rua tranqüila, de casinhas iguais. Eu, papai e Betsie nos dirigíamos para lá bem cedo, levando cerca de cem gramas de chá inglês, que Pickwick nos dera.

Quando chegamos, Nollie, Annaliese e as duas meninas mais velhas ainda não estavam de volta. Uma loja recebera um carregamento de sapatos de homem, e Nollie estava decidida a conseguir um par para Flip "mesmo que tenha que ficar na fila o dia todo". Estávamos na cozinha, conversando com Cocky e Katrien, quando, de repente, Peter e seu irmão, Bob, entraram correndo, pálidos de susto. - Depressa! Soldados! Estão duas casas abaixo e vêm para cá. Afastaram a mesa do lugar, puxaram o tapete e abriram a portinhola. Bob desceu primeiro e deitou-se no chão; depois, Peter tombou por cima dele. Fechamos o buraco, puxamos o tapete sobre ele, e recolocamos a mesa no lugar. Com as mãos tremendo, eu, Betsie e Cocky jogamos uma toalha bem grande sobre a mesa, e começamos a dispor os pratos para o chá. Ouvimos a porta da frente ser aberta ruidosamente, depois outro barulho junto a nós: Cocky derrubara uma xícara. Dois alemães fardados irromperam pela cozinha, fuzis em riste. - Fiquem onde estão! Não se movam! Botas pesadas subiam a escada para o andar superior. Os soldados deram uma olhada ao redor com visível desgosto, ao verem só mulheres e um velho. Se tivessem observado Katrien, teriam percebido que ela tinha algo a esconder, pois seu rosto era uma máscara de terror. Todavia eles tinham outras idéias em mente. - Onde estão os homens? perguntou a Cocky o soldado menor, em um holandês estropiado, e com forte sotaque. - Essas aqui são minhas tias, respondeu ela; este é meu avô;

meu pai está na escola, minha mãe saiu, e... - Não perguntei pela tribo inteira! explodiu ele em alemão. Depois retomou o holandês: Onde estão seus irmãos? Cocky olhou-o por um segundo, e abaixou os olhos. Meu coração parou. Eu sabia como Nollie educara os filhos, mas certamente, numa situação destas, era permissível dizer-se uma mentira. - Você tem irmãos? o oficial perguntou outra vez. - Sim, respondeu ela suavemente. Tenho três. - Quantos anos têm eles? - Vinte e um, dezenove e dezoito. De cima vinha o rumor de portas sendo abertas e fechadas e móveis sendo arrastados. - Onde estão? Cocky inclinou-se e começou a recolher os pedaços de xícara quebrada. O homem puxou-a, fazendo-a erguer-se. - Onde estão seus irmãos? - O mais velho está na faculdade de teologia. Muitas vezes, ele não vem para casa à noite porque... - E os outros dois? Cocky nem parou para pensar. - Ora, estão debaixo da mesa. Com um movimento da arma, o soldado indicou-nos que devíamos nos afastar e pegou a ponta da toalha. A um aceno seu, o outro acocorou-se com a arma apontada. Então, o primeiro puxou a toalha. Afinal, a tensão contida explodiu: Cocky rompeu num riso histérico. Os soldados giraram nos calcanhares. Será que aquela

garota estava rindo deles? - Não pense que somos tolos! resmungou o menor. E, raivosamente, saiu da sala. Daí a instantes, todo o grupo se retirou, infelizmente, porém, não antes que o soldado que se mantivera calado, visse e se apoderasse de nosso precioso pacotinho de chá. Foi uma festa diferente, a daquela noite. Passamos do alívio a uma quase discussão, coisa incomum em nossa família tão unida. Nollie apoiou Cocky, afirmando que teria respondido do mesmo modo. - Deus protege a quem fala a verdade. Peter e Bob, sendo os mais interessados no caso, não concordavam com ela. Nem eu. Eu nunca tivera a coragem de Nollie - nem a mesma fé. Contudo eu via quando uma coisa era ilógica. - Não faz sentido dizer a verdade, e fazer uma mentira! E os documentos falsos de Annaliese? E o falso uniforme de empregada de Katrien? - Põe guarda, Senhor, à minha boca, recitou Nollie. Vigia a porta dos meus lábios. Salmo 14! completou com ar de vitória. - Certo; mas e o rádio? Eu tive que mentir com os lábios para poder ficar com ele. - E estou seguro de que o que saiu de seus lábios foi dito em amor. A voz tranqüila de papai repreendeu o rubor de meu rosto. Amor. Como era que se mostrava amor? Como Deus poderia demonstrar, ao mesmo tempo, amor e verdade, em um mundo como este? Morrendo. A resposta me ocorreu da maneira mais vivida e

aterradora possível: a forma de uma cruz marcara a História. *** Nos primeiros meses de 1943, tornava-se cada vez mais difícil arranjar casas no interior, para o grande número de judeus que se apresentava no nosso centro clandestino. Mesmo tendo cartões de racionamento e documentos forjados, não conseguíamos lugares para todos. Sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, teríamos que começar a esconder pessoas na cidade mesmo. O triste para nós foi que os primeiros fossem nossos mais queridos amigos. Íamos em meio a um dia cheio na loja, quando Betsie entrou furtivamente na oficina pela porta de trás. - Harry e Cato estão aí, disse. Ficamos espantados. Harry nunca vinha ao Beje durante o dia, por temer que sua estrela amarela pudesse nos causar problemas. Eu e papai seguimos Betsie apressadamente escada acima. Ele nos relatou o que acontecera - a mesma história de sempre. Na noite anterior, haviam recebido a visita de um membro do Partido Socialista com uma ordem de confisco da loja. Não importava se ele era cristão ou não. Qualquer judeu podia se converter depressa só para evitar perseguição, dissera o socialista. Naquela manhã, aparecera lá um alemão fardado para oficializar o ato: a loja foi fechada "para o bem da segurança nacional". - Se eles pensam que eu represento perigo para a segurança nacional, disse Harry, não vão se contentar só em tomar a loja. Claro que não iam. No momento, porém, não dispúnhamos de esconderijos no interior. O único lugar disponível em toda a nossa

rede clandestina era a casa da Sra. De Boer, que ficava a apenas quatro quadras do Beje. Naquela mesma tarde, bati à sua porta. Era uma mulher gorda; trajava uma bata azul, de algodão, e calçava chinelas. Nós fornecíamos cartões de racionamento para ela, e já uma vez conseguíramos, com sua ajuda, uma operação de apêndice para um dos nossos. Ela mostrou-me os aposentos de que dispunha, no sótão. Já havia ali dezoito judeus, a maioria deles entre 20 e 25 anos. - Eles já estão fechados aqui há muito tempo, explicou. Eles cantam, dançam, fazem muita algazarra. - Se a senhora acha que mais um casal vai ser muito... - Não! Não posso rejeitá-los. Traga-os hoje à noite. Nós damos um jeito. E assim, Harry e Cato passaram a viver na casa da Sra. De Boer, em um daqueles quartinhos pequenos. Betsie ia lá todos os dias para levar-lhes ora um pão feito em casa, ora um pouco de chá, ora fatias de frios. Entretanto sua maior preocupação não era pela alimentação deles, mas pela sua segurança pessoal. - Eles estão correndo perigo, disse-nos. Aqueles jovens estão mesmo a ponto de estourar. Estavam fazendo tanto barulho, que escutei da rua. Naquele triste e rigoroso inverno, tivemos outros motivos de preocupação também. Apesar de ter nevado pouco, o frio chegou cedo e demorou a acabar, e o combustível estava escasso. As árvores começaram a desaparecer aqui e ali, nas praças e nas margens do canal, à medida que o povo as cortava para o fogão e a lareira.

Essa situação - casas sem aquecimento e muito úmidas pesava mais nas crianças e nos velhos. Certo dia, Christoffels não apareceu nem na hora da leitura bíblica, nem do trabalho. A dona do quarto onde morava, encontrou-o morto em seu leito: a água do jarro congelada. Sepultamos nosso velho consertador de relógios com seu maravilhoso terno e colete que usara no dia do centenário da loja, há seis anos (e parecia ter sido há tanto tempo!). A primavera chegou muito devagar. Fizemos uma festinha para comemorar meu 51.° aniversário, no quartinho de Harry e Cato de Vries. Uma semana depois, no dia 22 de abril, Cato apareceu no Beje, sozinha. Logo que entrou, rompeu em lágrimas. - Aqueles rapazes ficaram loucos. Ontem à noite, oito deles saíram de casa. Resultado: foram detidos. E eles nem pensaram em raspar a costeleta. A Gestapo não teve nenhuma dificuldade para extrair informações deles. A polícia dera uma batida na casa, disse-nos, às quatro da manhã. Eles a soltaram, logo que viram que não era judia. - Mas todos os outros... Harry, a Sra. De Boer também... o que vai acontecer com eles? Nos três dias que se seguiram, Cato ia ao posto policial, e ficava ali até a hora de recolher, importunando os guardas para que a deixassem ver seu marido. Quando eles a mandavam embora, atravessava a rua e ficava no passeio, esperando em silêncio. Na sexta-feira, pouco antes de fecharmos para o almoço, a loja ainda cheia, um soldado empurrou a porta da rua e entrou. Hesitou um instante, e depois seguiu em frente, passando à oficina.

Era Rolf van Vliet, o mesmo policial que estivera na loja naquele primeiro dia em que Fred viera trazer nossos cartões de racionamento. Ele retirou o quepe, e, outra vez, minha vista foi atraída para aqueles cabelos espantosamente vermelhos. - Este relógio continua desregulado, disse Rolf. Tirou o relógio de pulso e, colocando-o sobre minha mesa, inclinou-se. Estava dizendo alguma coisa? Mal conseguia ouvi-lo. - Harry de Vries será levado para Amsterdam amanhã. Se quiser vê-lo, venha às três em ponto, e continuou: Está vendo? O ponteiro de segundos pára aqui no alto. Às três da tarde, eu e Cato atravessamos a grande porta de duas bandas da chefatura. O oficial de serviço era o próprio Rolf. - Venham comigo, disse meio rispidamente. Guiou-nos através de uma porta e um corredor de teto bem alto. Estacou junto a um portão de ferro, trancado. - Esperem aqui, disse. Do outro lado, alguém abriu o portão e ele entrou. Demorou lá vários minutos. Depois, a passagem se abriu de novo e nos encontramos

frente

a

frente

com

Harry.

Rolf

conservou-se

ligeiramente afastado, enquanto Harry abraçava Cato. - Apenas alguns instantes, sussurrou Rolf. Eles separaramse, olhando-se nos olhos. - Sinto muito, disse Rolf. Ele tem que voltar agora. Harry beijou a esposa e em seguida apertou minha mão com um gesto solene. Lágrimas nos vieram aos olhos. Então, pela primeira vez, ele falou. - Vou fazer desse lugar para onde estão me levando meu posto de testemunho do evangelho de Jesus.

Rolf pegou-o pelo cotovelo. - Nós vamos orar por você várias vezes por dia, Harry, gritei, enquanto o portão se fechava. Tive uma forte impressão interior, que não revelei a ninguém, de que esta seria a última vez que veríamos nosso amigo "Buldogue". *** Naquela noite conversamos a respeito de Rolf: eu, Betsie e os doze ou treze jovens que nos ajudavam nesse trabalho, levando e trazendo mensagens. Se Rolf já pusera em jogo sua segurança para nos falar da transferência de Harry, talvez ele devesse trabalhar conosco. - Senhor Jesus, orei em voz alta, isto pode representar perigo para nós e para Rolf. Todavia, no momento em que dizia estas palavras, senti-me inundada por uma onda de certeza a respeito. Por quanto tempo, pensei, seríamos orientados por esse dom de Sabedoria? Designei um de nossos meninos para seguir Rolf, no dia seguinte, quando este deixasse o serviço, para descobrir onde ele morava. Os rapazes mais velhos, os que poderiam ser apanhados para trabalhar nas fábricas de armamentos da Alemanha, só saíam depois do escurecer, e, na maioria das vezes, disfarçados com roupas femininas. Na semana seguinte fui à casa de Rolf. - Você nem calcula como foi bom poder ver o Harry, disse quando já me encontrava dentro de casa. De que modo poderemos

lhe retribuir este favor? Rolf passou os dedos pelos cabelos de cor berrante. - Bom, há um modo: A servente da cadeia tem um filho jovem que por duas vezes quase foi pego. Ela está desesperada para encontrar um lugar para ele se esconder. - Talvez eu possa fazer alguma coisa, disse. Será que ela pode "ver" se o relógio dela está precisando de conserto? No dia seguinte, quando eu estava conversando com dois de nossos novos voluntários no quarto de Tia Jans, Toos surgiu à porta. Eu estava deixando todo o serviço da loja nas mãos dela e de papai, por causa do crescimento de nossa "operação clandestina", que exigia mais e mais do meu tempo. - Há uma senhora esquisita lá embaixo, disse Toos. Falou que seu nome é Mietje, e que foi Rolf quem a mandou vir aqui. Fui encontrá-la na sala de jantar. Ao apertar sua mão, notei-a calosa e áspera pelos anos de trabalho lavando assoalhos. Havia um tufo de pêlos bem no seu queixo. - Soube que tem um filho do qual muito se orgulha, disse-lhe. - Oh! Sim! O rosto dela se iluminou ao ouvir-me mencionar o rapaz. Peguei o grande despertador que ela trouxera. - Venha apanhar seu relógio amanhã à tarde. Eu espero poder lhe dar uma boa notícia. Naquela noite, nossos mensageiros nos deram seus relatórios. Aquele inverno longo e rigoroso estava nos abrindo vagas em vários lugares. Havia uma em uma granja de cultivadores de tulipas, mas o dono agora queria ser pago pelo risco que corria. Tínhamos que providenciar-lhe pagamento - em moedas de prata, não em

notas - e mais um cartão de racionamento. Não era sempre que um dos nossos "anfitriões" exigia pagamento pelos serviços prestados, mas quando um pedia, pagávamos alegremente. Quando Mietje apareceu no dia seguinte, tirei da bolsa uma nota de pequeno valor, e rasguei um pedaço do canto. - Isto é para seu filho, disse-lhe. Ele deve dirigir-se para Gravenstenenbrug, hoje à noite. Há um toco de árvore perto da ponte - cortaram essa árvore no inverno passado. Ele deve esperar ali, de frente para o canal. Um homem vai aparecer e perguntar se ele tem troco para uma certa quantia. Seu filho deve mostrar-lhe este cantinho cortado, e depois deve seguir o homem sem fazer perguntas. Betsie entrou na sala de jantar quando Mietje estava segurando entre suas mãos ásperas a minha. - Eu vou lhe pagar este favor. Algum dia eu vou encontrar um jeito de lhes retribuir por isto. Eu e Betsie nos entreolhamos sorrindo. Como é que esta mulher simples poderia nos dar o tipo de auxílio de que precisávamos? *** Nosso trabalho se expandiu bastante. Cada vez que surgia um novo problema, uma nova solução era encontrada também. Por intermédio de Pickwick, por exemplo, ficamos conhecendo o chefe do departamento da telefônica que cuidava de ligações e desligações de aparelhos. Com muita perícia, modificando a instalação e os números, ele conseguiu, em pouco tempo, recolocar nosso telefone

em funcionamento.

Que dia aquele, quando nosso velho telefone

de parede tocou estrepitosamente, pela primeira vez, depois de três anos. E como precisávamos dele! A esta altura, já contávamos com oitenta pessoas - entre senhoras, velhos e jovens - formando fileiras com os "contraventores de Deus", como às vezes nos apelidávamos jocosamente. Muitos deles nunca se viam uns aos outros. Conservávamos os encontros pessoais em número menor possível. O Beje, contudo, era conhecido de todos. Era o nosso "quartel-general", o centro de uma teia que se estendia em muitas direções, o ponto onde as linhas se reuniam em um nó. Mas se o telefone foi um sucesso, representava também um novo risco - assim como qualquer novo agente ou esconderijo que era agregado ao movimento. Regulamos a campainha do telefone para soar o mais suavemente possível; mas quem poderia estar passando no hall quando ele chamasse? Do mesmo modo, por quanto tempo os curiosos que transitavam por nossa rua iriam crer que aquela lojinha de relógios era mesmo tão movimentada quanto aparentava? Realmente, ainda éramos muito procurados para consertos: inúmeros fregueses entravam e saíam. Entretanto havia movimento em demasia, principalmente à tardinha. O toque de recolher, agora, era às 7:00 hs , e, na primavera e no verão, este horário não nos deixava muita margem de tempo para trabalhar depois do escurecer, pois anoitecia tarde, e nossos agentes só podiam andar à vontade pelas ruas, aproveitando a escuridão da noite.

Eu estava pensando nisso, meio impaciente, sentada à minha banca de trabalho, no dia 1.° de junho de 1943, hora e meia antes do toque de recolher. Seis de nossos auxiliares ainda não tinham retornado, e por isso, muitos de nossos problemas ainda estavam sem solução, e nós precisávamos resolvê-los antes das 7:00 hs. Uma coisa era que, sendo o primeiro dia do mês, Fred Koornstra viria trazer os cartões de racionamento. Os cem cartões que há um ano me haviam parecido um pedido extravagante, agora já eram pouquíssimos para a demanda, e Fred era apenas um de nossos fornecedores. Recebíamos cartões roubados até de cidades distantes, como Delft. Quanto tempo vamos conseguir manter isto? eu me indagava. Por quanto tempo ainda poderemos contar com essa proteção estranha? Minha linha de pensamento foi interrompida pela campainha lateral. Eu e Betsie chegamos ali ao mesmo tempo. Na ruela, achava-se uma jovem judia, tendo nos braços um pequeno volume, envolto num cobertor. No homem de pé atrás dela, reconheci um dos médicos da maternidade. Já dentro do hall, ele informou-nos que o bebê nascera prematuramente. Ele mantivera mãe e filho no hospital mais do que era permitido, já que ela não tinha lugar para onde ir. Betsie estendeu os braços e tomou o bebê. Nesse momento, Fred abriu a porta, vindo da loja. Ele piscou, indeciso, ao ver outras pessoas no hall; depois, sem hesitação, virouse para o relógio da luz. O jovem médico ao ver aquele homem que ele pensava ser um funcionário da companhia de eletricidade ficou branco como o colarinho da própria camisa.

Tive vontade de acalmá-los a ambos, mas quanto menos componentes do nosso grupo se conhecessem uns aos outros, melhor para a segurança de todos. O pobre médico se despediu apressadamente, e eu e Betsie subimos com a moça para a sala de jantar, cerrando a porta para deixar Fred entregue ao seu trabalho. Betsie serviu uma tigela de sopa de osso - um osso já muitas vezes cozido - que preparara para o jantar. O bebê começou um vagido agudo; balancei-o enquanto a mãe jantava. Aqui estava um novo perigo: um pequeno fugitivo, novo demais para compreender a loucura de se fazer barulho. Nós já abrigáramos muitas crianças judias no Beje para passar uma ou duas noites, e mesmo a mais novinha delas aprendera a guardar o silêncio misterioso das criaturas caçadas. Contudo, com duas semanas de idade, este bebê ainda iria descobrir como seu mundo era perigoso e pouco acolhedor. Precisávamos encontrar um esconderijo para eles que fosse distanciado de outras casas. No dia seguinte, uma solução perfeita para o problema entrou na loja. Era um pastor conhecido nosso, que dirigia uma igreja numa cidadezinha próxima. Sua casa ficava longe da rua, e era cercada de árvores. - Bom-dia, pastor, disse, sentindo as peças do quebra-cabeças se engrenarem perfeitamente. Em que posso servi-lo? Olhei o relógio que ele trouxera para consertar. Precisava de uma peça bem rara. - Para o senhor, pastor, faremos o melhor que pudermos. Agora quero lhe confessar uma coisa. Os olhos do pastor se turbaram.

- Confessar? Afastei-o da porta da oficina, e levei-o até a sala de jantar. - Confesso-lhe que eu também estou querendo algo. O rosto dele se fechou numa carranca. O senhor estaria disposto a receber em sua casa uma senhora judia e um bebê? Se não o fizer, eles serão presos. Ele ficou muito pálido e deu um passo para trás. - Minha senhora, espero que não esteja envolvida nessa atividade ilegal, nesse negócio clandestino. Isto não é seguro. Pense no seu pai e em sua irmã - ela nunca foi muito forte. Num impulso de momento, disse ao pastor que esperasse, e corri escada acima. Betsie instalara os recém-chegados no antigo quarto de Willem, o mais distante da rua. Pedi permissão à mãe para levar a criancinha; em meus braços não pesava quase nada. De volta à sala, descobri o rosto do bebê. Houve um longo silêncio. O homem curvou-se um pouco e, a despeito de si mesmo, esticou a mão e tocou no punhozinho agarrado ao cobertor. Durante um instante, vi medo e piedade lutarem dentro dele. Depois ele ergueu os ombros. - Não. Absolutamente, não. Poderíamos perder a vida por causa dessa criança judia. Sem ser percebido, papai chegara à porta. - Dê-me essa criança, Corrie, disse. Papai segurou o bebê junto ao peito, sua barba branca roçando o rostinho; seus olhos fixos nele eram tão azuis e sem malícia como os do próprio bebê. Afinal, ergueu o rosto para o pastor. - Você disse que poderíamos perder a vida por causa dessa

criança. Eu consideraria isto a maior honra que poderia ser conferida à minha família. Bruscamente, o pastor girou nos calcanhares e se retirou. Assim, tivemos que tomar a pior solução para o problema. Na saída de Haarlem havia uma chácara que aceitava refugiados, conquanto que fosse por pouco tempo. Não era um bom lugar, pois a Gestapo já estivera lá uma vez. Contudo não havia nenhum outro refúgio disponível para onde pudéssemos enviá-los sem aviso prévio. Naquela tarde, dois de nossos agentes levaram a mulher e a criança para lá. Algumas semanas mais tarde soubemos que o lugar fora revistado pela polícia. Quando os soldados chegaram ao celeiro, onde a mulher estava escondida, ela, e não o bebê, começou a gritar histericamente. Ela, o filhinho e seus protetores foram todos presos. Nunca ficamos sabendo o que lhes sucedeu. *** Embora tivéssemos um amigo na central telefônica, não podíamos estar certos de que nossa linha não fora censurada, portanto criamos um código em termos de relógio, para passar mensagens clandestinas. - Recebemos um relógio de senhora para ser consertado, mas não temos uma das molas. Sabe onde posso encontrar uma? (Uma senhora judia precisa de um esconderijo e não conseguimos vaga com as pessoas que nos ajudam sempre.) - Temos um relógio com um problema no mostrador. Um dos números soltou-se e está atrapalhando a passagem do ponteiro.

Conhece alguém que faz este tipo de conserto? (Há um judeu aqui cujos traços são definidamente semíticos. Sabe de alguém que esteja disposto a correr um risco maior?) - Sentimos muito, mas o relógio de criança que deixaram conosco não tem conserto. Vocês estão com o recibo? (Uma criança judia morreu em um de nossos esconderijos. Precisamos de uma licença para sepultamento.) Certo dia em meados de junho, o telefone tocou e recebemos a seguinte mensagem: - Estamos com um relógio de homem que está dando muito trabalho. Não conseguimos encontrar ninguém para consertá-lo. Um dos problemas é que o mostrador é muito antigo... Tratava-se de um judeu cujos traços revelavam sua origem, pessoa para quem era difícil se achar um esconderijo. .- Mandem p relógio para nós e veremos o que podemos fazer aqui mesmo. Exatamente às 7 da noite, a campainha tocou. Olhei para o espelho da janela da sala de jantar, onde nos encontrávamos tomando chá de folha de rosas e pedículos de cereja. Mesmo vendo apenas um lado do seu rosto percebi que se tratava do nosso "relógio antiquado".

Sua figura, suas roupas, seu modo de fiar em

pé pareciam saídos de uma comédia musical judia. Corri à porta. - Entre! Era um homem magro de uns trinta e poucos anos, orelhas de abano, calva incipiente e óculos pequenos, que se inclinou diante de mim num cumprimento cerimonioso. Gostei dele imediatamente. Logo que a porta se fechou, ele pegou um cachimbo. - A primeira coisa que quero saber, disse, é se eu deveria ter

deixado para trás o meu amigo cachimbo. Meyer Mossel e seu cachimbo não se separam facilmente, mas para a senhora, bondosa amiga, se o cheiro de fumaça for se apegar às suas cortinas, eu me despedirei alegremente da minha amiga, a nicotina. Soltei uma risada. De todos os judeus que haviam vindo a nossa casa, ele era o primeiro a fazê-lo com alegria e o primeiro a mostrar interesse pelo nosso bem-estar. - É lógico que pode conservar o cachimbo! respondi. Meu pai mesmo gosta de fumar seus charutos, isto é, quando encontra algum, hoje em dia. - Ah, esses nossos tempos! Meyer Mossel encolheu os ombros de maneira grandiosa e ergueu os braços. Que é que se pode fazer se o acampamento está infestado de bárbaros? Encaminhei-o à sala de jantar. Havia sete pessoas à mesa: um casal de judeus aguardando vaga num esconderijo, três dos nossos operadores clandestinos, papai e Betsie. Meyer Mossel olhou diretamente para papai. - Mas o quê! exclamou. Um dos patriarcas! Era a coisa mais acertada para se dizer a papai, e ele retornou a graça com o mesmo bom humor. - Ora essa! Um irmão do povo escolhido! Às 8:45h, papai tirou da estante nossa Bíblia com cantoneiras de bronze. Abriu-a em Jeremias, onde havíamos parado na noite anterior, depois, obedecendo a uma súbita inspiração, passou a Bíblia para Meyer. - Quer nos dar a honra de ler para nós hoje? pediu-lhe. Pegando o livro com carinho, Meyer levantou-se. Extraiu do bolso um pequeno barrete, e, a seguir, com uma voz profunda, meio

entoando, meio rogando, leu as palavras do velho profeta de maneira tão sentida e tão pungente, que nos pareceu ouvir o próprio clamor do exílio. Depois, Meyer Mossel nos revelou que havia sido um "Cantor" (pessoa que dirige o ofício numa sinagoga) em Amsterdam. Apesar de toda a sua jocosidade ele sofrera muito. Quase toda a sua família fora presa; sua esposa e filhos estavam escondidos no norte, em uma fazenda cujos proprietários haviam se recusado a aceitá-lo "por motivos óbvios", disse com uma careta dirigida contra seu próprio rosto inconfundível. Gradualmente, nós percebemos que esse homem agradável estava no Beje para ficar. Certamente, não era o lugar ideal, mas para Meyer nada poderia ser ideal agora. - Mas pelo menos o seu nome não precisa "denunciá-lo" também, disse-lhe certa noite. Eu ainda me lembrava de Eusébio, um dos "Pais da Igreja", do século XIV sobre o qual ouvira no tempo em que Willem estudava História da Igreja. - Acho que devemos chamá-lo de Eusébio, decidi. Estávamos num dos aposentos de Tia Jans, com Kik e outros rapazes que tinham vindo nos trazer alguns salvo-condutos forjados, e ficaram, pois estavam atrasados e não alcançariam suas casas antes do toque de recolher. Meyer recostou-se na cadeira e olhou o teto pensativamente. Tirou o cachimbo da boca. - Eusébio Mossel, disse como que degustando as palavras. Não; não está bom. Eusébio Gentio Mossel. Nós todos rimos.

- Não seja teimoso, disse Betsie; tem que trocar os dois nomes. Kik olhou de soslaio para papai. - Vovô, que tal Smit? Parece que este nome está bem popular hoje em dia. - É parece mesmo! respondeu papai, sem entender a piada. Muitíssimo popular. E ele ficou sendo Eusébio Smit. Foi fácil trocar o nome de Meyer. Daí a pouco ele já era "Eusie", mas conseguir que comesse nossa comida "impura" era outra coisa. O problema era que tínhamos que estar satisfeitos com qualquer tipo de alimento que obtivéssemos. Neste terceiro ano de ocupação, às vezes, precisávamos ficar em fila horas e horas para comprar o que houvesse. Certo dia, o jornal anunciou que, com o cupom número quatro, poderíamos adquirir lingüiça de porco. Era a primeira vez, em semanas, que íamos ter carne. Betsie preparou o "banquete" com carinho, guardando todo e qualquer restinho de gordura para temperar outros pratos, mais tarde. - Eusie, disse Betsie ao carregar para a mesa o fumegante cozinhado de carne de porco e batata, chegou o momento. Eusie bateu o cachimbo para esvaziá-lo da cinza, e começou a analisar o problema em voz alta. Ele, que nunca tinha comido alimento impuro; ele, o filho mais velho de um filho mais velho, de uma família respeitável, estava sendo solicitado a comer carne de porco. Betsie serviu o prato dele. - Bom apetite!

O cheiro saboroso chegou ao nosso paladar faminto por carne. Eusie passou a língua nos lábios. - Estou certo de que no Talmude há uma provisão para uma situação dessas, disse. Espetou o garfo no pedaço de carne, mordeu-o avidamente, e girou os olhos para cima em sinal de prazer, e completou: E eu vou começar a procurar, logo que acabar de jantar. A chegada de Eusie como que quebrou o restinho de hesitação que ainda nos continha. Num período de três semanas, aceitamos mais três adições à nossa família. Primeiro foi Jop, nosso aprendiz do momento, cujas idas e vindas de sua casa no subúrbio para o trabalho, em duas ocasiões, quase terminaram com sua prisão e conseqüente envio para as fábricas. Da segunda vez que isto aconteceu, seus pais nos perguntaram se ele podia ficar no Beje. Concordamos. Os outros dois novos moradores eram Henk, um jovem advogado, e Leendert, professor. Leendert fez uma boa contribuição para a vida secreta do Beje: instalou nosso sistema de alarme. Por esta altura, eu já aprendera a fazer sozinha a viagem noturna à casa de Pickwick, quase tão habilmente quanto Kik. Uma certa noite, depois que peguei minha xícara de café, meu amigo de olhos

tortos

sentou-me

numa

cadeira

e

passou-me

uma

descompostura. - Cornélia, disse-me ajeitando seu corpanzil numa poltrona forrada de veludo que era pequena demais para ele, ouvi dizer que vocês não têm sistema de alarme. Isto é uma loucura! E também fui informado de que não realizam treinamentos regulares com os hóspedes.

Eu sempre me espantava ao ver como Pickwick estava bem informado sobre tudo que acontecia no Beje. - Tenho certeza de que vão dar uma batida lá qualquer dia desses, continuou, não há como evitar. Tanta gente entrando e saindo, e com um membro do Partido Nacional Socialista morando na casa dos Kan... Seu quartinho secreto não vai adiantar nada, se as pessoas não puderem alcançá-lo a tempo. Eu conheço o Leendert. É um bom homem, e um eletricista passável. Peça-lhe para instalar uma campainha em cada cômodo que tenha uma janela ou porta dando para a rua. Depois, dê treinos regulares para eles, até conseguirem se abrigar no quartinho, sem deixar traços de sua presença, em menos de um minuto. Vou mandar alguém para orientá-la no início. Saí da casa de Pickwick bem preocupada. Talvez ele estivesse certo. Talvez todo esse tempo de trabalho clandestino sem deslizes nos tivesse levado a nos descuidarmos um pouco. Talvez nos tivéssemos tornado muito autoconfiantes. Naquele mesmo dia, pedi a Leendert para instalar o sistema de alarme. Ele colocou uma campainha no topo da escada, com volume bastante para ser escutada em todos os aposentos da casa, mas não do lado de fora. Depois, ele pôs botões para a campainha em todos os pontos de onde se pudesse perceber bem a aproximação de um possível problema. Um era logo abaixo da janela da sala de jantar, perto do espelho que dava para a porta lateral. Outro, embaixo, no hall, perto da porta; havia um junto à porta que dava para a Rua Barteljoris. Além desses, outro estava no balcão da loja, um em cada banca de consertos na oficina e um junto à janela do quarto dianteiro de Tia

Jans. Estávamos prontos para realizar nossa primeira corridatreino. Os quatro ocupantes extras de nossa casa já estavam fazendo duas viagens diárias ao quarto secreto: uma pela manhã, para guardar as roupas de dormir, de cama e artigos de toalete; outra, à noite, para guardar os objetos utilizados durante o dia. Pessoas do nosso grupo que também precisavam passar a noite conosco, deixavam ali capas de chuva, chapéus, e outras coisas que houvessem trazido consigo. Tudo isto já resultava numa boa quantidade de passadas pelo meu pequeno quarto - agora ainda diminuído em um metro. Muitas vezes, à noite, minha última visão antes de dormir, seria de Eusie, em seu longo camisolão e barrete de dormir, passando suas roupas do dia pela abertura secreta. A finalidade dos treinamentos era ver o tempo que eles gastariam para chegar ao quartinho, a qualquer hora do dia ou da noite, sem aviso prévio. Um rapaz alto, de rosto magro, apareceu em casa, certo dia, enviado por Pickwick para me ensinar a realizar os treinos. - Smit! exclamou papai, logo que o rapaz se apresentou. É verdadeiramente assombroso! Ultimamente tem chegado aqui um Smit atrás do outro. Mas você se parece muito com... O Sr. Smit se desembaraçou gentilmente da conversa genealógica de papai, e seguiu-me escada acima. - Uma das ocasiões que eles preferem para batidas é à hora das refeições, disse-me. Outra é bem no meio da noite. Ele foi de cômodo em cômodo mostrando várias evidências de que havia mais de três pessoas residindo na casa.

- Cuidado com cestas de lixo e cinzeiros. Parou à porta de um dos quartos. - Se a batida for à noite, eles têm que, além de levar lençóis e cobertores, virar o colchão. Um dos testes da polícia é justamente procurar o calor do corpo no colchão. O Sr. Smit ficou para almoçar conosco. Havia onze pessoas à mesa nesse dia, incluindo uma senhora judia que chegara na noite anterior, e uma outra senhora e sua filhinha que estavam ali para acompanhar a primeira ao esconderijo. Iam para uma fazenda em Brabant, e partiriam logo após o almoço. Betsie tinha acabado de trazer um cozinhado que preparara com tanta habilidade que mal se notava a falta da carne, quando, sem nenhum aviso, o Sr. Smit inclinou-se para trás em sua cadeira e apertou o botão da campainha que se encontrava abaixo da janela. O toque soou acima de nossa cabeça. Todos começaram a se erguer rapidamente, agarrando copos e pratos, correndo para a escada, enquanto o gato, assustado e aflito, arranhava a cortina querendo subir por ela. Gritos de "Mais depressa!" e "Silêncio!" e "Está derramando!" chegavam até nós. Eu, papai e Betsie arranjávamos mesas e cadeiras para dar a impressão de que um almoço para três se processava normalmente. - Não! Deixe minha cadeira, disse o Sr. Smit. Por que não se poderia ter um convidado para o almoço? Aquela senhora e a garotinha também poderiam ter ficado. Afinal, estávamos os quatro de volta à mesa, e reinava um perfeito silêncio no andar de cima. O movimento todo levara quatro minutos. Pouco depois reunimo-nos em volta da mesa outra vez. O Sr.

Smit expôs as evidências incriminantes que havia encontrado: duas colheres e um pedaço de cenoura na escada, cinzas num quarto "desocupado". Todos olharam para Eusie que corou até a ponta de suas grandes orelhas. - Aquilo ali também, apontou para os chapéus da senhora e sua filha ainda dançando em seus ganchos, na parede da sala de jantar. Se têm que se esconder, parem para pensar em tudo que trouxeram consigo. Além disso, vocês foram muito lentos. Na noite seguinte, eu toquei o alarme, e, desta vez, conseguimos cortar um minuto e trinta e três segundos na corrida. Na quinta tentativa, diminuímos a duração dela para um minuto e trinta e dois segundos. Nunca conseguimos, porém, alcançar a marca ideal sugerida por Pickwick, de menos de um minuto, mas com a prática, aprendemos a largar o que estivéssemos fazendo e ajudar os que tinham de ser escondidos, a chegar ao quartinho em setenta segundos. Eu,

papai

e

Toos

inventamos

algumas

técnicas

de

retardamento que utilizaríamos para deter a Gestapo, caso entrassem pela loja; Betsie também criou sua própria estratégia para o caso de baterem à porta lateral. Com estas táticas, esperávamos conseguir detê-los pelos preciosos e salvadores setenta tiques do relógio. Esses treinos se associavam muito à idéia de medo - sempre presente, nunca mencionado - que atormentava nossos amigos, e por isso procurávamos evitar que se tornassem sérios demais. - Vamos fazer disto um jogo, dizíamos. Vamos tentar bater nosso recorde.

Um de nossos companheiros possuía uma confeitaria numa rua próxima. No começo do mês eu ia lá e lhe entregava um certo número de cupons para açúcar. Mais tarde, quando resolvia realizar um treino, voltava lá e apanhava alguns bolinhos recheados - um prêmio de valor incalculável naqueles dias de falta de doces - e os guardava em minha banca, para dar como presente pelo melhor tempo do treino. A cada vez, meu pedido de bolinhos aumentava. Agora, além dos nossos funcionários que queríamos iniciar no sistema, tínhamos mais três hóspedes permanentes: Thea Dacosta, Meta Monsanto e Mary Itallie. Mary, com 76 anos, era nossa hóspede mais idosa e a que representava o maior problema também. No momento em que ela pisou na soleira da porta, ouvi o chiado da sua respiração asmática, que fizera com que outras pessoas se recusassem a dar-lhe esconderijo. Já que sua enfermidade comprometia a segurança dos outros, levamos a questão ao grupo reunido. Os sete mais implicados - Eusie, Jop, Henk, Leendert, Meta e Mary -juntaram-se a nós no quarto fronteiro. - Não é necessário fingirmos, comecei. Mary tem um problema que, principalmente após a subida de uma escada, poderia colocar-nos a todos em perigo. No silêncio que se seguiu, a respiração trabalhosa de Mary parecia ainda mais evidente. - Posso falar? perguntou Eusie. - Lógico. - Parece que todos nós estamos aqui nesta casa por causa

de uma ou outra dificuldade. Somos os filhos órfãos que ninguém aceitou. Qualquer um de nós está pondo os outros em perigo. Proponho que Mary fique. - Ótimo! disse Henk, o advogado. Vamos votar. Algumas mãos começaram a se erguer, mas Mary estava se esforçando para falar. - Voto secreto, conseguiu finalmente dizer. Ninguém deve se sentir constrangido. Henk apanhou uma folha de papel da escrivaninha do cômodo adjacente, e rasgou-o em nove pedaços. - Vocês também, disse entregando papel para mim, papai e Betsie. Se nós formos encontrados, vocês sofrerão também. Em seguida, ele distribuiu alguns lápis. - Escrevam "não", se pensam que é muito arriscado, e "sim", se acham que ela deve ficar. Durante alguns momentos só ouvimos o ruído dos lápis sobre o papel; depois, Henk recolheu os votos dobrados. Abriu-os em silêncio, depois, estendendo a mão, deixou-os cair no colo de Mary. Nove pedacinhos de papel; nove vezes a palavra "sim". *** E assim nossa "família" ficou completa. Outras pessoas ficavam conosco um dia ou uma semana, mas estes sete permaneceram - era o núcleo de nosso feliz lar. Se fomos felizes, em tal ocasião e em tais circunstâncias, devemos grandemente a Betsie. Já que a atividade física de nossos hóspedes era sempre tão restrita, nossos serões, sob a orientação

dela, tornaram-se uma porta aberta para um mundo novo. Às vezes, realizávamos pequenos concertos: Leendert ao violino, e Thea, que por sinal era ótima musicista, ao piano. Outras vezes, ela anunciava "uma noite dedicada a Vondel" (o Shakespeare da Holanda), cada um lendo uma parte. Ela convenceu Eusie a nos dar aulas de hebraico, uma vez por semana, e Meta, de italiano. Essas atividades tinham que ser curtas porque agora a cidade tinha força elétrica apenas durante algumas horas por noite, e as velas tinham que ser poupadas para alguma emergência. Quando as lâmpadas começavam a tremer e a diminuir, íamos para a sala de jantar, onde minha bicicleta estava montada num suporte próprio. Um de nós subia a ela, os outros tomavam assento ao redor, e então, enquanto o ciclista pedalava a toda força para fazer o farol funcionar, alguém continuava a ler do capítulo onde havíamos parado na noite anterior. Logo que pernas e gargantas se cansavam, nós nos revezávamos, e, desse modo, lemos várias histórias, romances e peças teatrais. Papai sempre subia para seu quarto às 9:15h, após o devocional, mas o resto ficava, relutando em desfazer o círculo, com pena de ver o serão se encerrar. - Ah, bom! dizia Eusie esperançosamente, quando afinal subíamos para deitar, talvez haja um treino hoje. Já há quase uma semana que não provo um daqueles bolinhos.

Capítulo 8 - Nuvens Escuras Embora nossos serões fossem agradáveis, os dias estavam se tornando cada vez mais cheios de tensão. O movimento crescera; o grupo era numeroso; a teia, muito espalhada. Há um ano e meio já estávamos levando essa existência dupla. Na aparência, ainda éramos uma família composta de um relojoeiro idoso e suas duas filhas solteironas, residindo na sobreloja da relojoaria. Na realidade, o Beje era o centro de um círculo clandestino que agora alcançava pontos distantes da Holanda. Diariamente, chegavam aqui dúzias de agentes, relatórios, apelos. Mais cedo ou mais tarde, iríamos cometer um erro. Eu me preocupava muito à hora das refeições. Era tanta gente, agora, que tínhamos de dispor as cadeiras ao redor da mesa em sentido diagonal. Nosso gato gostava muito desse arranjo. Eusie lhe tinha dado o nome hebraico de Maher Shalal Hashbaz, cujo significado - aliás bem sugestivo - era: "apressando-se em direção aos espólios, apressando-se a agarrar a presa". Com as cadeiras assim juntas, M. S. Hashbaz saltava de ombro em ombro, dando voltas, ronronando fortemente, rodando sem parar. Eu estava inquieta por sermos tantos ali. A sala de jantar ficava apenas cinco degraus acima do nível da rua. Quem passasse podia ver-nos pela janela. Colocamos uma cortina branca que, conquanto não impedisse a entrada da luz, vedava um pouco a visão. Ainda assim, eu só nos considerava a salvo dos olhares curiosos, à noite, quando descíamos os grossos cortinados para o

blecaute. Certo dia, ao almoço, olhando através da cortina rala, pensei ter visto um vulto lá fora, no beco. Quando olhei de novo, um minuto mais tarde, ainda estava lá. Não havia razão alguma para permanecer ali, a não ser que estivesse querendo saber o que se passava no Beje.

Levantei-me e afastei a cortina uns dois

centímetros. De pé, a alguns passos de distância, aparentemente imobilizada por uma forte emoção, estava Katrien, a velha amiga que morava em casa de Nollie. Corri à porta, abri-a apressadamente, e puxei Katrien para dentro. Apesar de estar fazendo bastante calor naquele dia de agosto, suas mãos estavam geladas. - Katrien, o que está fazendo aqui? Por que estava ali parada? - Ela ficou louca, soluçou. Sua irmã enlouqueceu. - Nollie? O que aconteceu? - Eles foram lá, respondeu. A polícia. Não sei o que eles sabiam, nem quem contou para eles. Sua irmã e Annaliese estavam na sala e eu escutei. Ela começou a soluçar. Eu a ouvi dizer... - Ouviu-a dizer o quê? eu quase gritava. - Ouvi-a contar para eles. Eles apontaram para Annaliese e perguntaram: "Ela é judia?" e sua irmã disse: "É." Senti meus joelhos tremerem. Annaliese. A jovem Annaliese, loura e linda, com documentos perfeitos. E ela tinha confiado em nós. Ah! Nollie, Nollie, que foi você fazer por causa de sua rígida honestidade? - E daí? perguntei.

- Não sei. Saí correndo pela porta dos fundos. Ela ficou louca. Deixei Katrien na sala de jantar, rodei minha bicicleta para fora do hall e saí pedalando o mais depressa que podia os dois quilômetros até a casa de Nollie. Nesse dia, o céu não mais me parecia amplo. Ao chegar à esquina da Rua Bos en Hoven, encostei a bicicleta a um poste, e parei ofegante, com o coração aos pulos. Depois, o mais calmamente que pude, subi na calçada, seguindo em direção à casa. A não ser por um carro parado junto ao meio-fio, tudo parecia enganosamente tranqüilo. Passei direto. Nenhum ruído escapava por entre as cortinas brancas. Nada distinguia esta casa das outras casinhas iguais, que havia de um e outro lado da rua. Quando cheguei à esquina oposta, virei e comecei a voltar. Naquele momento, a porta se abriu e Nollie apareceu. Atrás dela vinha um homem de terno marrom. Um minuto depois, surgiu outro homem, meio puxando, meio carregando Annaliese. O rosto da moça estava branco como cal. Enquanto iam até o carro, duas vezes eu tive a impressão de que ela ia desmaiar. A porta do velho carro bateu, o motor roncou e eles partiram. Rodei de volta para o Beje tentando controlar lágrimas de desespero. Pouco depois, soubemos que Nollie havia sido levada para a delegacia próxima ao Beje, e colocada numa das celas ao fundo do prédio. Annaliese, porém, fora encaminhada para o velho prédio do teatro judeu, em Amsterdam, de onde eles eram transportados para os campos de extermínio, na Alemanha e na Polônia. Foi Mietje, a encurvada, acabada e pequena Mietje, cujo oferecimento de ajuda havíamos desprezado, que nos conservou em

contato com Nollie. Ela está bem disposta, dizia-nos ela, cantando hinos e outras canções com aquela sua vozinha doce de soprano. Como é que ela podia cantar quando havia traído um ser humano? Betsie fazia pão todos os dias, e Mietje o entregava a ela; também levou-lhe, a seu pedido, sua blusa de frio, azul, com flores bordadas nos bolsos, de que ela tanto gostava. Foi Mietje também quem nos trouxe outro recado de Nollie, um que era dirigido especialmente a mim: "Nada de mal acontecerá a Annaliese. Deus não vai deixar que a levem para a Alemanha. Ele não vai deixar que ela sofra por eu ter obedecido a ele." Seis dias depois da prisão de Nollie, o telefone tocou. Era Pickwick. - Será que posso lhe pedir o incômodo de vir você mesma trazer o relógio? Entendi que era uma mensagem que não podia ser passada pelo telefone. Parti imediatamente para Aerdenhout, levando comigo um relógio de homem, como medida de segurança. Ele esperou estarmos dentro de casa, com a porta fechada. - O teatro judeu foi tomado ontem à noite. Conseguiram libertar quarenta judeus. Um deles, uma jovem, insistiu em que o seguinte recado fosse enviado a Nollie: "Annaliese foi liberta." Pickwick fixou em mim um de seus olhos arregalados. - Entendeu? Assenti com a cabeça, invadida por uma alegria e alívio grandes demais, para poder falar. Como é que Nollie soubera? Por que ela sempre tivera tanta certeza?

Depois de passar dez dias na cadeia de Haarlem, Nollie foi transferida para a prisão federal em Amsterdam. Pickwick informou-nos que o médico alemão encarregado do hospital da prisão era muito bondoso, e, de vez em quando, conseguia a soltura de alguém alegando condições precárias de saúde. Resolvi ir imediatamente a Amsterdam para vê-lo. Mas o que poderia dizer-lhe? indaguei-me enquanto aguardava no hall de entrada de sua residência. Como poderia eu obter as boas graças daquele homem? Rodando por ali, farejando minhas mãos e pernas, estavam três enormes cães, da raça dobermann. Lembrei-me do livro que estávamos lendo à noite, à luz do farol da bicicleta: Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas. Uma das técnicas defendidas por Dale Carnegie, o autor do livro, era: "Descubra o hobby da pessoa que deseja influenciar." Hobby: cães. Será que...? Afinal, a empregada retornou e conduziu-me a uma saleta. - Que idéia boa, doutor! disse em alemão, ao homem de cabelos grisalhos sentado no sofá. - Idéia boa? - É; trazer estes cães maravilhosos consigo. Eles devem lhe fazer companhia, agora que tem que estar distante de sua família. O rosto do médico se iluminou. - Gosta de cachorros? Quase que os únicos cachorros que eu conhecia eram os buldogues de Harry de Vries. - Os de que mais gosto são os buldogues. Gosta deles? - As pessoas em geral não sabem de uma coisa, respondeu entusiasmado, mas os buldogues são os que se afeiçoam mais

facilmente. Conversamos sobre cães durante aproximadamente dez minutos, eu esquadrinhando minha mente para lembrar tudo que ouvira ou lera sobre estes animais. Depois, abruptamente, o médico ficou em pé. - Mas estou certo de que não veio aqui para falar de cães. O que é? Olhei-o de frente. - Tenho uma irmã na prisão aqui em Amsterdam. Eu estava pensando que... eu acho que ela não está bem. O médico sorriu. - Então você não está nem um pouco interessada em cachorros. .- Estou interessada agora, respondi sorrindo também; mas estou mais interessada em minha irmã. - Como é o nome dela? - Nollie van Woerden. Ele saiu da saleta e voltou depois com um caderninho marrom. - É. Ela chegou há pouco. Diga-me alguma coisa sobre ela. Por que está presa? Arriscando um pouco, disse-lhe que o crime de Nollie havia sido dar abrigo a uma judia. Disse-lhe também que ela tinha seis filhos, que, se deixados sem cuidados, se tornariam um peso morto para o Estado. (Não mencionei que o mais novo tinha agora dezessete anos.) - Bem, vamos ver. Ele dirigiu-se para a porta. Você vai me dar licença agora.

No trem de volta para Haarlem, sentia-me esperançosa; não me sentia assim desde que minha irmã fora presa. Os dias se passavam; uma semana, duas, e não recebemos mais notícias. Voltei a Amsterdam. - Vim ver como estão os seus dobermanns, disse ao médico. Ele não aderiu à minha brincadeira. - Você não deve me importunar. Sei que não veio aqui para falar sobre os cães. Tem que me dar tempo. Concluí que não havia nada mais a fazer senão esperar. *** Era um dia claro de setembro, e almoçávamos – dezessete pessoas apertadas em torno da mesa. De repente, Nils, que estava assentado diretamente à minha frente, empalideceu. Nils era um dos nossos, e viera nos comunicar que Katrien chegara sã e salva a uma fazenda ao norte de Alkmaar. Abaixando a voz, ele falou: - Não se virem, mas há alguém espiando por sobre a cortina. Sobre a cortina? Mas isso é impossível! A pessoa teria que estar a três metros do solo. Um silêncio pesado caiu sobre a mesa. - Está de pé numa escada lavando as janelas, informou Nils. - Mas eu não contratei ninguém para lavar as janelas, disse Betsie. O que quer que fosse, não podíamos ficar ali sentados, paralisados, numa quietude culposa. Eusie teve uma idéia. - Parabéns pra você! começou a cantar. Parabéns pra você! Nós compreendemos e nos unimos a ele com muita animação.

- Parabé - éns, vovô... A música ainda ecoava pelo Beje, quando saí para a rua, pela porta lateral e parei perto da escada, e olhei para o homem que segurava um balde e uma esponja. - O que está fazendo? Nós não contratamos ninguém para lavar a janela, e ainda mais agora, durante a nossa festinha... O homem tirou um papel do bolso e deu uma olhada. - Não é aqui a residência dos Kuipers? - Não; é do outro lado da rua. Bom, entre e venha para a festa. Ele acenou que não. Agradeceu-me mas tinha que trabalhar. Olhei-o, enquanto atravessava a Rua Barteljoris com sua escada e chegava à confeitaria dos Kuipers. - Deu certo? perguntou-me um coro de vozes, quando regressei à sala de jantar. Será que ele estava mesmo nos espionando? Não respondi. Eu não sabia. *** O mais difícil era justamente isto: nunca se podia ter a certeza. Uma das grandes incógnitas para mim era saber como eu me portaria sob o fogo do interrogatório. Se estivesse acordada não tinha dúvidas, mas, e se eles aparecessem à noite? Várias vezes, nosso pessoal tentou me ajudar nesse sentido Nils, Henk, Leendert - entravam de repente em meu quarto, sem aviso, e sacudiam-me para me despertar, atirando-me perguntas ao mesmo tempo.

Da primeira vez que isto se deu, pensei ser a polícia mesmo. Alguém batia fortemente à porta, depois o facho de uma lanterna feriu meus olhos. - De pé! Levante-se! Eu não conseguia ver a pessoa que me falava. - Onde estão escondidos aqueles nove judeus? - São somente seis agora. Seguiu-se um silêncio terrível. A luz do quarto foi acesa e vi Rolf com as mãos na cabeça em desespero. - Oh! não, não! dizia. Não é possível que esteja tão ruim assim! - Pense bem, disse-me Henk, de pé atrás dele. A Gestapo está tentando apanhá-la numa armadilha. A resposta é: "Que judeus? Não há judeu nenhum aqui." - Vamos tentar de novo? - Agora não dá mais, disse Rolf. Você está bem desperta. Alguns dias depois, tentaram novamente. - Os judeus que vocês escondem, de onde vêm eles? Senteime meio tonta. - Não sei; eles apenas aparecem aqui. Rolf atirou o chapéu no chão. - Não, não, não! gritou. Que judeus? Não há nenhum judeu aqui. Será que você não aprende? - Vou aprender, prometi. Eu vou melhorar. E assim foi. Na vez seguinte, eu acordei melhor. Seis ou sete vultos escuros rodeavam a cama. - Onde vocês escondem os cartões de racionamento? perguntou uma voz.

Dentro do primeiro degrau da escada, naturalmente, mas desta vez não me deixaria apanhar. Ocorreu-me outra resposta engenhosa: - No relógio frísio, perto da escada. Kik sentou-se à beira da cama e passou o braço pelos meus ombros. - Foi bem melhor, Tia Corrie, disse. Desta vez, pelo menos a senhora tentou. Mas, lembre-se: não há nenhum cartão extra, só os dos três, da senhora, do vovô e Betsie. Não há atividade clandestina aqui; a senhora não sabe do que eles estão falando... Gradualmente, com a repetição dos treinos, eu melhorei, mas ainda assim, quando fosse para valer, quando viessem os agentes da Gestapo, policiais treinados em extrair a verdade dos outros, como agiria? *** Por causa de seu trabalho clandestino, Willem vinha a Haarlem freqüentemente. Seu rosto enrugado trazia agora uma expressão de algo semelhante ao desespero. Já houvera duas batidas ao seu abrigo de velhos, e, embora ele tivesse conseguido enganá-los a respeito da maioria dos judeus que ainda residiam lá, levaram uma velhinha cega e doente. - De noventa e um anos! disse-nos muitas vezes. Ela nem conseguia andar. Tiveram que carregá-la para o carro. Até então, a posição de Willem como ministro do evangelho tinha impedido a ação direta contra ele e Tine; mas era muito vigiado, disse-nos, e cada vez mais de perto. Para ter um motivo real para

suas visitas a Haarlem, ele começou a dirigir uma reunião semanal de oração no Beje, toda quarta-feira pela manhã. Entretanto Willem não era pessoa de fazer nada por rotina principalmente orar - e, daí a pouco, a reunião estava sendo assistida por dezenas de interessados, que se achavam sedentos para crer em alguma coisa, nesse quarto ano de ocupação. A maioria dos que vinham a esses cultos no Beje não tinham a mínima idéia da vida dupla que se levava ali. De certo modo, eles representavam mais perigo, pois estavam sempre cruzando com nossos auxiliares, e com mensageiros de outros grupos clandestinos que subiam ou desciam aquelas escadas estreitas. Por outro lado, poderia ser de grande vantagem estas pessoas desligadas do movimento estarem sempre por ali. Pelo menos, esperávamos que fosse. *** Estávamos assentados à mesa, certa noite, após o toque de recolher, os três ten Boom, nossos sete "hóspedes permanentes", e mais dois judeus para quem estávamos à procura de esconderijo, quando a campainha da porta da loja tocou. Um freguês? A esta hora, depois de fechada a loja? E era um freguês muito corajoso, para andar pela Rua Barteljoris depois do toque de recolher. Tirei as chaves do bolso e desci para o hall; abri a porta da oficina, atravessei a loja apalpando no escuro. Parei à porta e fiquei à escuta. - Quem está aí? gritei. - Lembra-se de mim?

Era uma voz masculina falando em alemão. - Quem é? perguntei na mesma língua. - Um velho amigo que vem visitar. Abra a porta! Girei a chave e entreabri a porta. Era um soldado alemão fardado. Antes que eu pudesse alcançar o botão de alarme situado atrás da porta, ele empurrou-a e entrou. Tirou o chapéu, e, na meia escuridão de um entardecer de outubro, reconheci o relojoeiro alemão que papai tinha despedido há quatro anos. - Otto! gritei. - Capitão Altschuler, corrigiu-me. Nossa posição agora está invertida, não é mesmo, minha senhora? Olhei para suas insígnias. Ele não era capitão, nem nada parecido, mas deixei passar. Ele correu os olhos pela loja. - O mesmo lugarzinho atulhado, disse. Estendeu o braço para acender a luz mas eu pus minha mão sobre o interruptor. - Não! Não temos cortinado para o blecaute aqui. - Bom, vamos para cima para recordar os velhos tempos. Aquele velho limpador de relógios ainda está por aí? - Christofells? Morreu no inverno passado, com a falta de combustível. Otto encolheu os ombros. - Não foi grande perda. E o nosso santo ledor de Bíblia? Eu estava me aproximando aos poucos do balcão onde havia outro botão. - Papai vai bem, obrigada. - Não vai me convidar para subir e cumprimentá-lo? Por que ele estava tão interessado em subir? Será que esse rapaz maldoso

tinha vindo só para gozar seu triunfo, ou suspeitava mesmo de alguma coisa? Meu dedo encontrou a campainha. - Que foi isso? Otto virou-se desconfiado. - Isso o quê? - Esse barulho. Ouvi uma espécie de cigarra. - Não ouvi nada. Otto já se encaminhava para a oficina. - Espere, gritei. Deixe-me trancar a porta que eu quero subir com você. Quero ver quanto tempo eles vão levar para reconhecê-lo. Demorei na porta o máximo que pude. Definitivamente: ele estava mesmo desconfiado. Depois, segui-o atravessando a porta e entrando no hall. Não vinha ruído algum da sala de jantar, nem das escadas. Passei na frente dele e bati à porta. - Papai, Betsie, gritei numa voz que esperava que soasse em tom de brincadeira. Dou a vocês três... não... seis chances de adivinhar quem está aqui. - Sem adivinhações. Otto adiantou-se e abriu a porta bruscamente. Papai e Betsie ergueram o rosto do prato. A mesa estava posta para três, meu prato com a refeição não terminada, do outro lado da mesa. Estava tudo tão perfeito que, até eu que vira doze pessoas comendo ali, quase não podia acreditar que havia apenas um velho inofensivo jantando com as filhas. O cartaz do relógio "Alpina" estava sobre o armário: eles não haviam esquecido nada. Sem esperar convite, Otto puxou uma cadeira. - Bem, exultou ele, foi como eu disse, não foi? - É; parece, respondeu papai suavemente.

- Betsie, disse eu, sirva chá ao capitão Altschuler. Otto provou o líquido que Betsie colocara para ele e olhou para nós. - Onde conseguiram chá? Ninguém na Holanda tem chá de verdade. Que tolice minha! Arranjáramos o chá com Pickwick. - Se quer mesmo saber, respondi, foi com um oficial alemão; mas não pergunte mais nada. Tentei dar a impressão de que lidávamos com os altos comandos da ocupação. Otto ficou mais uns quinze minutos. Depois, sentindo talvez que já enfatizara sua vitória bastante diante de nós, saiu para a rua vazia. Foi somente meia hora depois que tivemos coragem de dar o sinal de que tudo estava bem para aqueles nove, que estavam doloridos e ainda tremendo de susto. *** Na segunda semana de outubro, em meio a uma manhã cheia da confusão dos problemas do nosso movimento clandestino, o telefone tocou embaixo no hall. Apressei-me a atendê-lo; somente eu, papai ou Betsie atendíamos o telefone. - Hei! disse a voz. Não vem me buscar? Era Nollie. - Nollie! Quando... como... onde está você? - Na estação de Amsterdam! Só que não tenho dinheiro para a passagem. - Fique aí. Nós vamos agora mesmo. Pedalei até a casa dela, e, juntamente com Flip e com os

filhos que se encontravam em casa no momento, fomos para Amsterdam. Vimos Nollie antes mesmo de o trem parar. Sua blusa de frio, de um azul brilhante, era como um pedaço do céu naquela estação sombria. Após quase dois meses de prisão, Nollie parecia muito pálida, mas era a mesma Nollie de sempre. O médico da prisão, contou-nos, tinha considerado sua condição de saúde como precária, por causa de

sua

baixa

pressão

arterial,

o

que

poderia

prejudicá-la

permanentemente, deixando seus seis filhos a cargo da sociedade. Ao relatar isto, seu rosto honesto tinha uma expressão de admiração, mas para mim, suas palavras tinham o sabor perfeitamente permissível de um abuso da verdade. *** O Natal de 1943 estava se aproximando. A neve que caíra era o único elemento festivo da ocasião. Parecia que cada família tinha um ente querido na cadeia, ou num campo de trabalhos forçados, ou então, foragido. Desta vez, o significado religioso do dia, era o ponto alto para todos nós. No Beje, tínhamos que comemorar não somente o Natal, mas também o Chanucah, a "Festa das Luzes". Betsie arranjou um candelabro próprio para a celebração entre as coisas que estavam guardadas detrás do armário do canto da sala de jantar. Diariamente, nós acendíamos uma vela, e Eusie lia uma parte da história dos Macabeus. Depois, cantávamos os tormentosos e melancólicos hinos do deserto. Naqueles dias, éramos todos judeus.

Na quinta noite da Festa, encontrávamo-nos ao redor do piano, quando a campainha da porta lateral tocou. Abri-a, e vi a Sra. Beukers, esposa do dono da ótica ao lado, de pé sobre a neve. A Sra. Beukers era gorda e calma, enquanto seu marido era magro e tenso. Nesta noite, porém, seu rosto redondo tinha uma expressão de preocupação. - Será que os seus judeus poderiam cantar um pouco mais baixo? sussurrou ela. Estamos ouvindo tudo através da parede e... bem, tem gente de todo tipo nesta rua... Voltei ao quarto de Tia Jans, e ali comentamos a comunicação dela bem consternados. Já que a família Beukers sabia de tudo sobre nossas atividades, outras pessoas deveriam saber também. Pouco depois, descobrimos que uma dessas pessoas era o próprio chefe de polícia. Numa manhã sombria de janeiro, quando parecia que iria nevar novamente, Toos irrompeu no "escritório" do movimento clandestino, um dos quartos da Tia Jans, com uma carta na mão. No envelope, vi o selo da polícia de Haarlem. Rasguei o canto do envelope. Dentro, em papel timbrado do chefe, havia uma mensagem escrita à mão. Li-a em silêncio e depois em voz alta. "Favor comparecer em meu gabinete esta tarde, às 3:00h." Ficamos uns vinte minutos tentando entender aquilo. Alguns pensavam que não poderia ser um aviso de prisão. Por que a polícia me daria uma chance de escapar? Mesmo assim, era bom prepararnos para uma possível busca e detenção. Os nossos auxiliares saíram sorrateiramente, um a um. Os residentes esvaziaram cestas de lixo e recolheram restos de costura,

em preparação para uma fuga rápida para o quarto secreto. Queimei, em nossa estufa de carvão da sala de jantar alguns papéis que poderiam me incriminar. O gato compreendeu que havia uma certa tensão no ar e mergulhou para debaixo do guarda-comida. Depois, tomei um banho - que talvez fosse o meu último banho durante meses - e preparei uma maleta de prisão, seguindo as instruções de Nollie e de outras pessoas: Bíblia, lápis, agulha e linha, sabão (ou o que chamávamos de sabão naqueles dias), escova e pente. Vesti minhas roupas mais grossas, várias peças de roupa de baixo e uma segunda blusa de frio. Pouco antes de três horas, abracei papai e Betsie e me encaminhei para a Rua Smede, andando por sobre a neve parcialmente derretida. O policial de serviço era um velho conhecido meu. Olhou para a carta e depois para mim com uma expressão de curiosidade. - Por aqui, disse-me. Bateu em uma porta onde se lia: "Chefe". O homem que estava sentado à mesa tinha cabelos vermelhos, grisalhos, e os penteava para a frente, a fim de disfarçar a calvície. O rádio estava ligado. Ele estendeu o braço e girou o botão do volume, não para diminuir, mas para aumentar. - Cornélia ten Boom, disse, entre. - Como vai o senhor? Ele levantou-se para fechar a porta. - Sente-se, falou. Sei tudo a seu respeito, sabe? Sobre o seu trabalho. - O senhor se refere à relojoaria. Provavelmente, está pensando mais no meu pai do que em mim.

Ele sorriu. - Não; falo do seu trabalho. - Ah! Quer dizer do meu trabalho com crianças retardadas? Deixe-me contar-lhe alguma coisa... - Não, minha senhora, ele abaixou a voz. Não estou falando de seu trabalho com retardados, e, sim, do "outro" trabalho. Quero que a senhora saiba que alguns de nós aqui nos solidarizamos com seus esforços. Agora, ele sorria abertamente. Eu também sorri. - Tenho um pedido a lhe fazer. Ele sentou-se na ponta da mesa, e olhou-me fixamente. Abaixou a voz a um ponto que mal dava para ouvir. Ele também trabalhava com a resistência, disse-me, mas havia ali um homem, no departamento de polícia, que estava passando informações para a Gestapo. - Não temos outro jeito senão matá-lo. Um arrepio correu-me pela espinha. - Não temos outra alternativa, continuou ele sussurrando. Não podemos prendê-lo - todas as prisões estão controladas pelos alemães. Se ele continuar livre, outros morrerão. Eis o que pensei: será que no seu movimento, a senhora conhece alguém que possa... - Matá-lo? Recostei-me na cadeira. Seria aquilo uma armadilha para fazer-me admitir a existência de um grupo mencionando nomes? - Senhor, disse-lhe afinal, vendo-o piscar impacientemente, eu sempre acreditei que minha função é salvar vidas, não tirá-las. Todavia entendo seu problema, e quero fazer-lhe uma sugestão. O senhor ora?

- Acho que nestes dias todos nós oramos. - Então, vamos orar agora e pedir que Deus toque o coração deste homem para que não continue a trair seus concidadãos. Houve uma longa pausa. Depois, ele inclinou a cabeça em aprovação. - Eu gostaria muito de fazer isto. E foi assim que, ali, bem no coração da chefatura de polícia, com o rádio a berrar as últimas posições conseguidas pelos avanços alemães, começamos a orar. Pedimos a Deus que aquele holandês pudesse ver o seu próprio valor e o dos outros seres humanos diante de Deus. Quando terminamos, ele se levantou e apertou minha mão. - Obrigado, minha senhora, muito obrigado. Agora estou vendo que errei em pedir-lhe aquilo. Ainda carregando minha maleta de prisão atravessei o vestíbulo e saí à rua; virei a esquina e me encaminhei para o Beje. Em casa, todos me rodearam querendo saber como havia sido, mas não contei tudo. Não queria que papai e Betsie soubessem que nos haviam pedido a morte de alguém. Seria uma carga a mais para eles, totalmente desnecessária. *** A entrevista com o chefe de polícia deveria ter me dado mais ânimo. Aparentemente, tínhamos amigos em cargos elevados. Na realidade, porém, essa notícia teve efeito contrário em nós. Ali estava um exemplo de que nosso segredo não era segredo nada. Toda a cidade parecia ter conhecimento de nossas atividades.

Sabíamos que tínhamos de parar; mas como? Quem manteria aquela rede de suprimentos e informações, da qual dependia a segurança de tantas pessoas? Se tivéssemos que abandonar um dos nossos esconderijos - o que acontecia freqüentemente - quem se encarregaria de coordenar a mudança para outro local? Tínhamos que continuar, apesar de sabermos que o momento da derrota não demoraria a chegar. E acabou chegando em primeiro lugar para Jop, nosso aprendiz de dezessete anos que havia se mudado para o Beje, justamente em busca de mais segurança. No fim de janeiro de 1944, de tardezinha, Rolf entrou furtivamente na loja. Olhou para Jop. Acenei com a cabeça afirmativamente. Jop estava a par de tudo que se passava ali. - Hoje à noite vão dar uma batida numa casa que fica em Ede. Há alguém aqui que possa ir lá avisá-los? Não. Não havia ninguém. Não havia nenhum mensageiro, nenhum dos nossos acompanhantes àquela hora da tarde. - Eu vou, disse Jop. Abri a boca para protestar e dizer que ele era inexperiente, e também podia ser apanhado para o trabalho forçado. Depois, lembrei-me

daquelas

pessoas

ali

naquela

casa,

totalmente

desavisadas. Tínhamos muitos vestidos e lenços femininos em casa... - Então, ande depressa, rapaz, disse Rolf. Você tem que ir imediatamente. Deu-lhe todas as explicações necessárias, e depois saiu apressadamente. Alguns minutos mais tarde, Jop estava pronto -uma atraente mocinha morena, vestindo um casaco comprido, de lenço

nos cabelos e um regalo de peles cobrindo as mãos. Será que ele estava com um pressentimento? Quando chegou à porta, para minha surpresa, ele virou-se e me beijou. Jop deveria regressar às 7:00h - toque de recolher. Deu 7:00h, e nada. Talvez ele tivesse atrasado e resolvera voltar no dia seguinte. Na manhã seguinte, realmente tivemos uma visita, mas não era Jop. Era Rolf. No minuto em que entrou percebi que vinha com más notícias. - É sobre o Jop, não é? - Sim. - O que aconteceu? Rolf soubera tudo pelo sargento que ficara no turno da noite. Quando Jop chegara à casa, a Gestapo já se encontrava lá. Ele tocou a campainha e a porta foi aberta. Fingindo-se ser o dono da casa, o agente da polícia mandou-o entrar. - Agora, Corrie, continuou Rolf, temos que enfrentar os fatos. A Gestapo vai extrair informações dele. Já o levaram para Amsterdam. Quanto tempo ele vai conseguir ficar de boca fechada, eu não sei. Mais uma vez pensamos em fechar o trabalho, e outra vez concluímos que não poderíamos. Naquela noite, eu, papai e Betsie oramos durante muito tempo depois que os outros já haviam ido dormir. Sabíamos que, apesar dos riscos que aumentavam dia a dia, não tínhamos outra escolha - era seguir em frente. Esta era a hora das trevas: não podíamos fugir a ela. Talvez a verdade fosse que Deus só poderia revelar seu poder total quando nosso esforço humano atingisse o seu

limite máximo, e fracassasse.

Capítulo 9 - A Batida Alguém entrou em meu quarto, e eu abri os olhos penosamente. Era Eusie, trazendo suas roupas de cama e objetos pessoais para guardá-los no quartinho secreto. Depois dele vinham Mary e Thea com suas coisas. Fechei os olhos novamente. Era o dia 28 de fevereiro de 1944. Havia dois dias, eu estava de cama com uma forte gripe. Minha cabeça latejava, minhas juntas ardiam. Qualquer ruído - o chiado da respiração de Mary, o arranhado da portinhola - dava-me vontade de gritar. Agora, ouvia Henk e Meta entrando, e depois as risadas de Eusie ao entregar aos outros os seus objetos do dia, através da abertura. Vão embora todos vocês! Deixem-me em paz! Apertei os lábios para não gritar. Finalmente, apanharam roupas e pertences e saíram, fechando a porta atrás de si. Onde estava Leendert? Por que não subira? Então lembrei-me de que ele estava fora, instalando um sistema de alarme elétrico, semelhante ao nosso, em outras casas que abrigavam fugitivos. Caí num sono febril. O fato seguinte de que tive consciência, foi Betsie, de pé ao lado da cama, com uma xícara de chá quente na mão. - Sinto muito ter que acordá-la, Corrie, mas há um homem lá embaixo que insiste em falar com você, e só com você. - Quem é? - Diz que é de Ermelo. Nunca o vi antes. Assentei-me,

sentindo-me bem fraca. - Não tem importância. Tenho que levantar mesmo. Amanhã é o dia dos cartões de racionamento. Tomei o chá escaldante, e depois levantei-me com esforço. Ao lado da cama, estava minha maleta de prisão, arrumada e pronta, desde o dia em que fora chamada a comparecer perante o chefe de polícia. Eu tinha até adicionado mais alguns itens a ela. Além da Bíblia, roupas e objetos pessoais, ela agora continha aspirinas, comprimidos de um composto ferroso para Betsie, por causa da anemia, e várias outras coisas. Ela se tornara uma espécie de talismã para mim, um tipo de segurança contra os horrores da prisão. Vesti-me vagarosamente e saí. A casa parecia girar. Desci lentamente, agarrando-me ao corrimão. Ao passar diante do quarto de Tia Jans, ouvi vozes e fiquei surpresa. Olhei para dentro. Ah! Eu havia me esquecido. Era quarta-feira, e aquelas pessoas estavam ali para a reunião de oração semanal que Willem dirigia. Vi Nollie servindo o "café da ocupação", que era como designávamos aquela infusão feita com raiz de cereja e figo seco. Peter já se achava sentado ao piano, como sempre fazia, para o acompanhamento musical. Continuei a descer, encontrando outras pessoas que subiam. Quando entrei na loja, sentindo os joelhos fracos, um homenzinho de cabelos cor-de-areia levantou-se para vir ao meu encontro. - D. Corrie! - Pois não. Há um velho ditado holandês que diz: Conhece-se um homem pelo modo como ele nos encara. Aquele homem nunca me

fitava diretamente nos olhos; seu olhar parecia estar num ponto qualquer do meu rosto, entre o queixo e o nariz. - É algum relógio? perguntei. - Não, minha senhora, é um assunto muito mais sério! Seus olhos circularam pelo meu rosto. - Minha esposa foi presa. Estávamos escondendo judeus. Se ela for interrogada, a vida de todos nós estará em perigo. - Não vejo como eu poderia ajudá-lo, disse-lhe. - Preciso de seiscentos guílderes. Há um policial em Ermelo que poderá ser subornado por esta quantia. Eu sou pobre, mas soube que a senhora conhece algumas pessoas... - Que pessoas? - Isto é uma questão de vida ou de morte, minha senhora. Se eu não conseguir esse dinheiro logo, ela vai ser levada para Amsterdam, e então será muito tarde. Havia um quê de estranho naquele homem que me fez vacilar. No entanto, como poderia arriscar-me a deixar de ajudá-lo? - Volte daqui a meia hora. Vou arranjar o dinheiro. Pela primeira vez, ele me olhou nos olhos. - Nunca me esquecerei disto, disse. Não dispúnhamos de toda aquela quantia ali no Beje, por isso mandei Toos ao banco com instruções para entregar o dinheiro a ele, mas não lhe dar nenhuma informação. Depois, subi as escadas outra vez, com muita dificuldade. Se dez minutos antes eu estivera ardendo em febre, agora tremia de frio. Parei no quarto de Tia Jans para pegar uma pasta de documentos de cima da mesa. Depois, com um pedido de desculpas a Willem e aos outros, continuei a subir para o quarto.

Troquei de roupa, enchi de água o vaporizador, que já se secara, e estava assobiando em seu fogãozinho, e fui para a cama. Tentei estudar os nomes e endereços que se achavam na pasta. Em Zandvoort precisavam de cinco cartões; em Overveen, nenhum. Dezoito iriam para... Meus olhos pareciam vencidos pela doença; os papéis dançavam à minha frente. A pasta escorregou de minha mão e eu caí no sono. *** Em meu sonho, uma campainha tocava, tocava, e tocava. Por que aquilo não parava? Ouvi o barulho de pés a correr e vozes assustadas. - Depressa! Depressa! Sentei-me na cama depressa. Eles passavam correndo perto de minha cama. Voltei-me a tempo de ver os pés de Thea desaparecendo pela portinhola. Meta seguiu-se a ela; depois Henk. Mas, eu não planejara realizar um treino hoje. Quem será que... a não ser que... a não ser que não fosse um treino. Eusie passou correndo, pálido, o cachimbo chocalhando dentro do cinzeiro que segurava com mãos trêmulas. Por fim, meu cérebro embotado percebeu que aquilo era uma situação real de emergência. Uma, duas, três pessoas já se encontravam no quartinho secreto, quatro, quando vi a meia vermelha e o sapato preto de Eusie sumindo de vista. Mas, e Mary? A velhinha surgiu à porta do quarto, boca aberta, ofegando. Saltei da cama e puxei-a e depois empurrei-a para ajudá-la a atravessar o quarto.

Eu estava fechando a portinhola quando um senhor magro de cabelos brancos entrou correndo no quarto. Reconheci-o logo: era do grupo de Pickwick, um alto membro da resistência. Não tinha a mínima idéia de que ele estava em casa. Ele mergulhou pela portinhola atrás de Mary. Cinco, seis. Com Leendert fora, o grupo estava completo agora. Por fim, empurrei o painel e voltei para a cama. Ouvi as portas sendo abertas e fechadas embaixo, e passos pesados na escada. Todavia foi um outro ruído que me fez gelar o sangue nas veias: a respiração sufocada e arquejante de Mary. Pus-me a orar. - Senhor Jesus, tu tens poder para curar. Cura Mary agora. Foi então que meus olhos caíram sobre a pasta com suas listas de nomes e endereços. Agarrei-a. Abri a portinhola com um arranco e atirei a pasta para dentro. No momento em que acabava de me enfiar novamente na cama, a porta do quarto foi aberta abruptamente. - Seu nome? Sentei-me devagar, procurando parecer sonolenta. - O quê? - Seu nome? - Cornélia ten Boom! Era um homem alto, grandalhão, pálido e de feições estranhas. Vestia-se à paisana, um terno azul. Virou-se e gritou para baixo. - Tem mais uma aqui, Willemse. Depois, voltou-se para mim. - Levante-se e vista-se. Enquanto eu saía de sob as cobertas, ele tirou um pedaço de

papel do bolso e consultou-o. - Então, você é a chefe! Olhou-me com renovado interesse. Diga-me, onde estão escondendo os judeus? - Não sei do que é que o senhor está falando. Ele riu. - E não sabe nada sobre um círculo de resistência, também. Nós vamos ver isto. Como ele não tirasse os olhos de cima de mim, comecei a vestir a roupa sobre o pijama mesmo, ouvidos atentos para algum barulho que partisse do quartinho. - Quero ver seus documentos. Peguei o saquinho pendurado ao pescoço. Quando retirei dele minha carteira de identidade, um bolo de notas veio junto e caiu ao chão. O homem simplesmente inclinou-se e apanhou-as, e enfiouas no bolso. Depois, pegou meus documentos e examinou-os. O quarto ficou em silêncio durante alguns minutos. E o chiado do peito de Mary - por que eu não o ouvia? Ele atirou-me os documentos de volta. - Depressa! Mas ele não tinha nem a metade da pressa que eu tinha de deixar aquele quarto. Em minha precipitação, abotoei a blusa de frio toda errada, e apenas calcei os sapatos sem me preocupar em amarrá-los. Eu já estava pronta para agarrar a maleta de prisão. Espere! Ela ainda estava onde eu a deixara, encostada à portinhola secreta, onde eu a atirara no momento de pânico. Se eu tirasse aquela maleta dali, com aquele homem observando todos os meus movimentos, será que não atrairia a atenção dele para o último lugar da terra onde eu a queria? Foi a coisa mais difícil que já fiz: sair

daquele quarto deixando a maleta para trás. Desci as escadas, meio trôpega, os joelhos tremendo, tanto pela doença, como pelo medo. Um policial fardado estava diante da entrada dos quartos de Tia Jans. A porta estava fechada. Será que a reunião terminara, e Willem, Nollie e Peter tinham escapado? Ou será que ainda estavam lá? Quantas pessoas inocentes estariam envolvidas? O homem empurrou-me de leve, e eu continuei a descer para a sala de jantar. Papai, Betsie e Toos estavam sentados em cadeiras encostadas à parede. Com eles achavam-se três dos nossos agentes que deviam ter chegado depois que eu subira. No chão, junto à janela, estava a placa do relógio "Alpina", partida em três pedaços. Alguém conseguira derrubá-la da janela. Havia outro agente da Gestapo ali, à paisana. Sentado à mesa, deslizava a mão por um monte de rijksdaalders de prata, e jóias, que se achavam sobre a mesa. Tratava-se do material que estivera escondido no vão que havia por trás do armário do canto: realmente, fora ali o primeiro lugar que procuraram. - Aqui está mais uma que é registrada neste endereço, disse o oficial que me conduzira para baixo. Pela informação que tenho, é a chefe do negócio todo. O homem que estava à mesa, a quem ele chamara de Willemse, olhou-me rapidamente, e depois voltou a se concentrar no material recolhido, que se achava à sua frente. - Você sabe o que fazer, Kapteyn. Kapteyn agarrou-me pelo cotovelo e empurrou-me escada abaixo, para a parte traseira da loja. Havia outro soldado fardado junto à porta. Kapteyn fez-me atravessar a loja e empurrou-me contra

a parede. - Onde estão os judeus? - Não há nenhum judeu aqui. Ele bateu-me com força no rosto. - Onde vocês escondem os cartões de racionamento? - Não sei do que você está falando.., Kapteyn bateu-me novamente. Perdi o equilíbrio, indo de encontro ao relógio astronômico. Antes que eu pudesse me recobrar, ele me atingiu de novo, uma, duas, três vezes, com tanta força que minha cabeça era atirada para trás. Outra bofetada. - Onde é o quarto secreto? Senti gosto de sangue na boca. Minha cabeça girava; ouvi um zumbido no ouvido. Estava perdendo os sentidos. - Senhor Jesus, gritei, protege-me. A mão dele estacou no ar. - Se repetir este nome eu a mato. Ao contrário da ameaça, porém, deixou cair o braço. - Já que você não quer falar, aquela magrinha falará. Subi as escadas tropegamente, à sua frente. Ele empurroume para uma das cadeiras encostadas à parede. Olhos ainda embaçados, vi-o conduzir Betsie para fora da sala. De cima vinha o barulho de batidas de martelo e de madeira se partindo, revelando que um grupo de policiais treinados estava à procura do quarto secreto. De repente, ouvimos a campainha da porta lateral embaixo. Mas, e a placa? Será que não tinham visto que o quadro do relógio "Alpina" não estava no lugar? Olhei para a janela, e tive um choque. Nosso triângulo de madeira estava de volta ali - alguém havia juntado os pedaços cuidadosamente.

Ergui os olhos mas já era tarde: Willemse fitava-me atentamente. - Foi o que pensei, disse. Era um sinal, não era? Em seguida, levantou-se e correu para baixo. No andar superior, as batidas de martelo e o vaivém das botas haviam cessado. A porta lateral foi aberta e ouviu-se a voz de Willemse, suave e fingidamente insinuante, dizendo: - Entre, por favor. - Já sabem da notícia? era uma voz de mulher. Prenderam Tio Herman. Pickwick? Não?! - Ah! ouvi Willemse exclamar. Quem mais estava com ele? Interrogou-a até onde pôde, e depois deu-lhe voz de prisão. Medo e confusão estampados no rosto, ela veio sentar-se junto à parede. Lembrei-me apenas de que era uma pessoa que às vezes levava recados para nós, dentro da cidade. Olhei com angústia para a placa à janela, que anunciava ao mundo que tudo estava bem no Beje. Nossa casa se tornara uma armadilha. Quantos mais cairiam nela antes do dia terminar? E Pickwick? Será que havia mesmo sido preso? Kapteyn reapareceu com Betsie, à porta da sala de jantar. Os lábios dela estavam inchados e uma mancha roxa começava a se formar em seu rosto. Ela deixou-se cair numa cadeira próxima àquela em que eu me achava. - Betsie! Ele te machucou! Ela limpou o sangue da boca com a ponta dos dedos. - Estou com tanta pena dele. Kapteyn girou nos calcanhares; seu rosto estava lívido.

- Os prisioneiros que permaneçam em silêncio, berrou. Dois homens desceram ruidosamente as escadas e penetraram na sala carregando um objeto. Haviam descoberto nosso velho rádio debaixo da escada. - Respeitadores da lei vocês, hein? continuou Kapteyn. - Ei, você! O velho! Estou vendo que acredita na Bíblia. Apontou para o nosso velho livro na estante. O que é que diz aí sobre prestar obediência ao governo? - Temei a Deus, recitou papai, e aquelas palavras, em seus lábios, pareciam trazer bênção e paz ao ambiente. Temei a Deus, honrai a rainha. Kapteyn olhou-o fixamente. - Não tem isto lá, não. A Bíblia não diz isto. - Realmente, admitiu papai. Ali diz: "Temei a Deus, honrai o rei", mas em nosso caso é a rainha. - Não é nem o rei nem a rainha, gritou Kapteyn. Nós agora somos o governo constituído, e vocês estão infringindo a lei. A campainha tocou de novo. Outra vez o mesmo processo: perguntas e prisão. O rapaz, um de nossos agentes, mal tinha recebido ordens de sentar-se quando a sineta soou novamente. Parecia-me que nunca recebêramos tantas visitas: a sala estava ficando lotada. Eu sentia mais pena dos que tinham vindo ali somente para uma visita de cortesia. Um idoso missionário aposentado foi introduzido, o queixo tremendo de pavor. Pelo menos uma coisa era certa, eles não haviam descoberto ainda o quartinho secreto, já que se ouviam as passadas e batidas de martelo lá em cima. Um novo som pôs-me alerta. Embaixo, no hall, o telefone

estava chamando. - Isso é um telefone! gritou Willemse. Ele correu os olhos pela sala, depois agarrou-me pelo pulso e puxou-me escada abaixo. Pegou o fone e chegou-o ao meu ouvido, segurando-o ele mesmo. - Fale! ordenou-me apenas com uma mímica labial. - É da residência e loja ten Boom, disse o mais rigidamente que ousava. Todavia a pessoa que estava do outro lado da linha não percebeu a diferença. - D. Corrie, a senhora está em perigo. Prenderam Herman Sluring! Já sabem de tudo! A senhora deve tomar cuidado! E ela continuou falando, falando, e o policial a meu lado ouvindo tudo. Mal o fone fora posto no gancho, tocou de novo. Era voz de homem, e dava a mesma mensagem: - Tio Herman foi preso e levado para a delegacia. Isto significa que já sabem de tudo... Afinal, quando na terceira vez atendi com as mesmas palavras formais e estranhas, a pessoa do outro lado desligou. Willemse arrebatou o fone de minha mão. - Alô! Alô! gritava ele. Mexeu com o gancho na parede. A linha fora mesmo interrompida. Ele me empurrou escada acima, até minha cadeira. - Nossos amigos ficaram espertinhos, informou a Kapteyn, mas eu ouvi o bastante. Aparentemente, Betsie havia recebido permissão para sair do lugar. Ela se achava de pé junto ao armário de louça, cortando fatias de pão. Fiquei surpresa ao constatar que já era hora do almoço. Betsie passou a vasilha de pão, mas eu recusei. A febre estava alta

de novo. Minha garganta doía; a cabeça latejava. Um homem surgiu à porta. - Já procuramos pela casa toda, Willemse, disse ele. Se existe um quarto secreto aqui, foi construído pelo próprio diabo. Willemse olhou para Betsie, dela para papai, e dele para mim. - Aqui há um quarto secreto, respondeu calmamente. E há gente nele agora; senão, eles já teriam confessado. Está certo. Vamos colocar uma guarda ao redor da casa até que eles se transformem em múmias. Em meio ao sentimento de horror que se seguiu a esta declaração, senti uma leve pressão em meus joelhos. Maher Shalal Hashbaz pulara em meu colo e encostava-se a mim. Corri a mão no seu pelo negro e lustroso. O que seria dele agora? Eu queria evitar pensar naqueles seis lá em cima. Já se havia passado meia hora desde que a campainha tocara pela última vez. A pessoa que chamara e entendera a minha mensagem ao telefone, tinha dado o alarme. O aviso fora dado: ninguém mais cairia na armadilha do Beje. Parece que Willemse chegara à mesma conclusão, pois, de repente, ele ordenou que todos se levantassem e pusessem casacos e chapéus e descessem. Eu, papai e Betsie fomos retidos e saímos por último. À nossa frente, desceram as pessoas que estavam no quarto de Tia Jans. Contive a respiração enquanto examinava o grupo. Ao que parecia, a maioria dos que tinham vindo para a reunião de oração havia se retirado antes da batida, mas infelizmente, nem todos. Ali vinha Nollie e atrás dela, Peter. Por fim, Willem. A família toda. Papai, todos os seus quatro filhos e um neto. Kapteyn deu-me

um empurrão. - Andando! Papai tirou seu chapéu do gancho. Na porta da sala de jantar, ele parou para puxar os pesos do velho relógio frísio. - Não podemos deixar o relógio parar, disse. Papai... será que ele pensava mesmo que nós voltaríamos antes de os pesos chegarem embaixo? A neve das ruas estava derretida. Enquanto seguíamos pela ruela lateral e alcançávamos a rua, vi a água suja empoçada nas valas. A caminhada até a delegacia não tomou mais que um minuto, mas quando ali entrei estava tremendo de frio. Corri os olhos pelo vestíbulo à procura de Rolf ou de algum outro conhecido, mas não vi ninguém. Uma guarnição de soldados alemães ali estava para reforçar o batalhão local. Fomos levados por um corredor, e chegamos ao portão de ferro onde eu vira Harry de Vries pela última vez. No fim dele, havia um salão amplo que antes fora uma quadra de esportes. As janelas eram altas e tapadas com telas de metal. As tabelas e cestas estavam amarradas ao teto. Havia uma mesa no centro, à qual se sentava um oficial alemão. Havia também algumas esteiras de ginástica no chão, e eu me deixei cair em uma delas. Durante as duas horas que se seguiram ele anotou nomes e endereços e outros dados. Procurei averiguar quantos haviam sido presos conosco, na batida do Beje: contei trinta e cinco pessoas. Outros que haviam sido detidos em batidas anteriores estavam por ali deitados nas esteiras, e alguns deles eram conhecidos nossos. Procurei Pickwick, mas não o vi. Um dos que estavam ali era um relojoeiro que muitas vezes fora ao Beje a negócios e parecia

muito aborrecido com o que nos sucedera. Ele aproximou-se de nós e sentou-se a nosso lado. Por fim, o policial saiu. Era a primeira vez que podíamos conversar entre nós livremente depois que a sineta de alarme soara no Beje. Esforcei-me para me sentar. - Depressa! falei com voz rouca. Temos que decidir o que vamos dizer. Alguns podem simplesmente dizer a verdade, mas... As palavras me morreram na garganta. Pareceu-me, apesar do meu cérebro estar embotado pela doença, que Peter dirigia-me a carranca mais feroz que eu já recebera. - Se eles descobrirem que o Tio Willem estava falando sobre o Velho Testamento hoje de manhã, isso pode trazer encrenca para ele, Peter completou para mim. Com um gesto de cabeça, ele apontou para uma certa direção. Ergui-me vacilante. - Tia Corrie, disse-me quando nos achávamos do outro lado, aquele homem, o relojoeiro, é informante da Gestapo. Bateu de leve em minhas costas como se eu fosse uma criança tola. - Deite-se outra vez, Tia Corrie, e, por favor, não fale mais nada. Acordei com o barulho da porta sendo escancarada estrepitosamente, e Rolf entrando. - Silêncio aqui! berrou. Ele aproximou-se de Willem e inclinou-se para ele, dizendolhe algo que não consegui ouvir. - Os banheiros ficam nos fundos, continuou em voz alta. Podem ir lá, um de cada vez, e sob escolta.

Willem veio sentar-se a meu lado. - Ele disse que podemos nos desfazer de papéis e documentos comprometedores, picando-os bem pequenos, e depois jogando-os no vaso. Enfiei as mãos nos bolsos. Havia vários pedaços de papel e uma carteira com algumas notas. Estudei-os um a um, tentando imaginar como os explicaria diante de um tribunal. Ao lado da fileira de sanitários, havia um jarro de água com uma caneca de estanho presa a ele por uma corrente. Alegremente, bebi bastante - era o primeiro líquido que tomava, depois do chá que Betsie me levara pela manhã. À tardinha, um policial entrou na quadra com uma grande cesta de pães frescos. Não consegui comer. Água era a única coisa que me apetecia, apesar de eu já me sentir acanhada de estar sempre pedindo para ser levada lá fora. Quando entrei de volta, pela última vez, um grupo de pessoas havia se reunido ao redor de papai, para termos um pequeno culto. Todos os dias da minha vida haviam se encerrado assim: ouvindo aquela voz profunda e firme confiando-nos, a todos, com segurança e zelo, aos cuidados de Deus. A Bíblia ficara para trás, numa prateleira, mas grande parte dela achava-se em depósito no coração dele. Os olhos azuis de papai pareciam se fixar num ponto que se achava fora daquela prisão, de Haarlem, fora da terra, enquanto ele repetia de cor: "Tu és o meu refúgio e o meu escudo; na tua palavra eu espero... Sustentame e serei salvo." Nenhum de nós dormiu bem naquela noite. Cada vez que alguém queria sair, tinha que saltar pelo menos uns doze. Afinal, a

luz do dia começou a penetrar pelas altas janelas teladas. Novamente, trouxeram-nos pãezinhos. Passei a manhã toda cochilando encostada à parede; a dor agora concentrava-se em meu peito. Era meio-dia quando alguns policiais entraram no salão e nos ordenaram

que

nos

levantássemos.

Vestimos

os

casacos

apressadamente e saímos em fila pelos corredores frios. Na rua, havia um grande número de pessoas junto às barricadas levantadas pela polícia. Assim que eu e Betsie saímos ladeando papai, um murmúrio de horror foi ouvido, à vista do "bom velho de Haarlem" sendo levado à prisão. À porta, estava estacionado um ônibus verde com vários soldados ao fundo. Algumas pessoas subiam a ele enquanto parentes e amigos, no meio da multidão, choravam ou apenas os olhavam fixamente. Eu e Betsie seguramos o braço de papai e começávamos a descer os degraus que levavam à rua, quando algo nos fez parar perplexos. Alguém passou rente a nós, escoltado por dois soldados, um de cada lado, sem casaco e sem chapéu - era Pickwick. O alto de sua calva mostrava inúmeros ferimentos; sua barba estava grudada com sangue coagulado. Ele conservou os olhos baixos ao ser conduzido para o ônibus. Eu, papai e Betsie nos ajeitamos em um dos assentos fronteiros. Pela janela, pude ver Tine entre a multidão. Era um desses dias claros de inverno, quando o próprio ar parecia luminoso. O ônibus deu um arranco e partiu. A polícia abriu caminho por entre o povo, para o carro passar vagarosamente. Espiei pela janela com fome nos olhos, querendo reter a imagem de Haarlem que desaparecia. Atravessávamos a Praça Grote Markt, e as paredes da catedral pareciam emitir o

reflexo de milhares de tons acinzentados, à luz cristalina. Estranhamente, pensei já ter vivido aquele momento antes. Foi então que me lembrei. A visão. Na noite da invasão. Eu tinha visto tudo. Willem, Nollie, Pickwick, Peter - todos nós - sendo levados contra a vontade, sendo obrigados a atravessar aquela praça, saindo da cidade. Eu vira tudo aquilo no sonho - todos nós partindo de Haarlem, sem poder voltar. Qual seria nosso destino?

Capítulo 10 - Scheveningen, a Penitenciária Deixando Haarlem, o ônibus tomou a estrada do sul, paralela à linha costeira. À direita, víamos as colinas arenosas da região das dunas e as silhuetas dos soldados recortadas contra as orlas. Percebemos claramente que não estávamos sendo levados para Amsterdam. A viagem de duas horas terminou em Haia. O veículo detevese em frente a um edifício novo e funcional. Até nós chegou a informação de que se tratava do quartel general da Gestapo, na Holanda. Todos nós - menos Pickwick que parecia incapaz de erguer-se de seu lugar - fomos levados para um salão amplo, onde se repetiu o mesmo processo cansativo de se recitar nome, endereço e ocupação. Um longo balcão cortava o aposento em seu comprimento, e, por trás dele, vi, com espanto, Willemse e Kapteyn. À medida que cada um dos prisioneiros de Haarlem se aproximava, um ou outro se inclinava e falava alguma coisa com o homem que estava assentado à máquina de escrever, e daí a pouco, ouvia-se o matraquear das teclas. De repente, os olhos do interrogador caíram sobre papai. - E aquele velho? perguntou. Tinha que ser preso também? Ei, você! Willem encaminhou papai à mesa. O chefe da Gestapo inclinou-se para diante. - Gostaria de mandá-lo de volta para casa, disse. Dê-me

apenas sua palavra de que não causará mais problemas. De onde eu estava, não conseguia ver o rosto de papai; só via suas costas eretas e a cabeça branca encimando os ombros, mas ouvi bem sua resposta. - Se eu voltar para casa hoje, disse ele clara e firmemente, amanhã abro minhas portas para qualquer pessoa que precisar de mim. Toda a amabilidade desapareceu do rosto do homem. - Volte para a fila, berrou. Schnell! (Rápido.) Não vamos tolerar mais atrasos! Mas atraso era o que mais havia naquele lugar. À proporção que nos adiantávamos pelo balcão, vinham mais perguntas, mais exames de documentos, mais idas e vindas dos policiais. Lá fora, a luz do sol ia desmaiando para encerrar aquele curto dia de inverno. Não tínhamos comido nada a não ser os pãezinhos e nem bebido água, a não ser a que tomáramos pela manhã. À minha frente, na fila, Betsie respondeu "solteira", pela vigésima vez naquele dia. - Quantos filhos? perguntou o interrogador. - Sou solteira, repetiu Betsie. Ele nem levantou os olhos. - Quantos filhos? perguntou rispidamente. - Nenhum, respondeu ela resignadamente. À noitinha, um homenzinho gorducho, com uma estrela amarela ao peito, foi levado ao fundo da sala, passando por nós. Uma agitação súbita vindo dali, atraiu os olhares de todos. O pobre homem tentava impedir que lhe tirassem algo que segurava firmemente. - É minha, gritava ele. Não podem tomar de mim! Não podem

tomar minha carteira! Será que ele perdera a razão? Para que pensava ele que o dinheiro lhe valeria agora? E continuou a lutar, para evidente divertimento dos homens que o cercavam. - Aqui, judeu! ouvi um deles dizer. Em seguida, ergueu o pé e chutou o homenzinho por trás do joelho. É assim que tiramos as coisas de um judeu. Fazia tanto barulho! era a única coisa que eu conseguia pensar enquanto os via continuar a chutá-lo. Agarrei-me ao balcão, para

não

desmaiar,

escutando

aqueles

ruídos

surdos.

Incompreensivelmente, comecei a sentir um ódio desesperado daquele judeu; ódio, por ser tão indefeso e por achar-se tão à mercê deles. Afinal, ouvi que o arrastavam para fora. De repente, achei-me diante do interrogador. Ergui a cabeça e encontrei o olhar de Kapteyn, de pé atrás dele. - Esta mulher é a cabeça do grupo, disse. Apesar do estado de confusão em que me encontrava, sabia que era muito importante que o outro homem cresse nele. - É verdade o que o Sr. Kapteyn está dizendo, disse eu. Esses outros... eles não sabem nada. A culpa é toda... Meu inquisidor não se deixou perturbar. - Nome? - Cornélia ten Boom, e eu sou... - Idade? - Cinqüenta e dois. Essas outras pessoas aqui não tem nada a ver... - Ocupação?

- Mas eu já disse vinte vezes! explodi em desespero. - Ocupação? repetiu ele. Já estava escuro quando afinal deixamos aquele lugar. O ônibus verde não se achava mais à vista. No lugar dele, divisamos um caminhão do exército com toldo de lona. Dois soldados tiveram que ajudar papai a subir pela traseira do veículo. Não havia sinal de Pickwick. Eu, papai e Betsie tomamos assento em um dos bancos laterais. O caminhão não tinha molas e sacolejava fortemente naquelas ruas esburacadas pelas bombas. Colocando o braço ao redor dos ombros de papai, procurei proteger-lhe as costas de se chocarem contra a parede lateral do caminhão. De pé, ao fundo da carroceria, Willem nos informava o que ia vendo na cidade às escuras. Saíramos do centro e, ao que parecia, estávamos nos dirigindo para o oeste, em direção a Scheveningen. Nosso destino seria, então, a penitenciária federal de mesmo nome. O veículo parou abruptamente; ouviu-se um ranger de gonzos. Avançou mais um pouco, e parou de novo. De trás, veio o ruído dos pesados portões sendo fechados. Descemos e descobrimos que nos achávamos num pátio rodeado de altos muros. O Caminhão estava sendo levado para um hangar longo. Alguns soldados nos conduziram para dentro do prédio. Pisquei ao brilho intenso das luzes. - Nasen gegen Maver! (De frente para a parede!) Recebi um empurrão por trás, e vi-me encarando uma superfície de reboco rachado. Olhei para os lados, até onde minha vista alcançava, primeiro à esquerda e depois à direita. Junto a mim estava Willem. Mais duas pessoas abaixo, estava Betsie. Do outro lado, vi Toos.

Como eu, todos estavam de rosto voltado para a parede. Onde estava papai? Foi um longo período de espera, e as marcas da parede que se achavam diante de meus olhos viraram silhuetas de pessoas, paisagens e animais. Uma porta abriu-se à direita. - As prisioneiras sigam-me! A voz da mulher era metálica como o próprio rangido da porta. Ao afastar-me da parede, corri os olhos pela sala à procura de papai. Lá estava ele - a alguns passos da parede, sentado em uma cadeira de encosto. Um dos guardas deve tê-la trazido para ele. A policial já se encaminhava pelo corredor que se divisava através da porta aberta. Eu, porém, deixei-me ficar fitando desesperadamente a meu pai, Willem, Peter, e todos os nossos bravos agentes da resistência. - Papai, gritei de súbito, fique com Deus! Ele voltou a cabeça em minha direção. A luz da lâmpada do teto refletiu em seus óculos. - E vocês também, minhas filhas, disse ele. Virei-me e segui as outras. A porta bateu logo que passei. E vocês também! E vocês também! Ah, pai, quando nos veríamos de novo? A mão de Betsie segurou a minha. Ao longo do corredor havia uma passadeira de palha. Pisamos nela, fugindo à umidade do piso de concreto. - As prisioneiras têm que andar fora da esteira, anunciou a voz monótona da guarda às nossas costas. Afastamo-nos imediatamente da passagem privilegiada. Mais adiante, alcançamos uma mesa à qual se assentava

uma mulher fardada. À medida que cada prisioneira chegava junto a ela, declinava o nome, pela milésima vez naquele dia, e depunha os objetos de valor. Eu, Nollie e Betsie desprendemos nossos belos relógios de pulso. Ao entregar o meu à mulher, ela apontou para a aliança de ouro que pertencera a mamãe. Retirei-a do dedo e coloquei-a sobre a mesa juntamente com a carteira contendo algumas notas em dinheiro. Prosseguimos em nossa caminhada corredor abaixo. Nos dois lados, víamos portas e mais portas - portinhas estreitas, de metal. Agora, a fila de mulheres parou: a guarda estava enfiando a chave numa fechadura. Ouvimos o ruído da lingüeta girando, o rangido das dobradiças. A mulher examinou um papel, depois chamou o nome de uma mulher que eu nem conhecia, mas que estivera na reunião de oração de Willem. Será possível que tudo acontecera ontem? Hoje era quintafeira? Os acontecimentos do Beje pareciam pertencer a uma outra existência. A porta foi fechada com uma batida seca. A coluna reiniciou a marcha. Outra porta foi destrancada, outro ser humano foi encerrado ali dentro. Notei que não estavam colocando duas mulheres de Haarlem juntas numa mesma cela. Um dos primeiros nomes a ser chamado foi o de Betsie. Ela mal atravessara o umbral da porta, antes mesmo que pudesse virar-se para um aceno de despedida, e a porta cerrou-se. Duas portas abaixo foi a vez de Nollie deixar-me. O barulho daquelas duas

portas

prosseguíamos.

permaneceu

em

meus

ouvidos

enquanto

Num certo ponto o corredor se bifurcava; entramos à esquerda. Depois, dobramos à direita, e à esquerda de novo, um mundo interminável de concreto e aço. - Cornélia ten Boom. Outra porta rangiu. A cela era longa e estreita, pouco mais larga que a porta mesmo. Uma mulher ocupava o único catre existente; havia mais três deitadas em esteiras de palha, no chão. - Deixe esta aqui ficar com o catre, disse a guarda. Ela está doente. E parece que para confirmar suas palavras, mal a porta se fechara sobre mim, fui tomada por um forte acesso de tosse. - Não queremos gente doente aqui, gritou alguém. Elas puseram-se de pé, afastando-se de mim o quanto lhes permitia o estreito cubículo. - Eu... sinto muito..., principiei, mas uma voz me interrompeu. - Não se preocupe. Não é culpa sua. Vamos, Frau Mikes, deixe-a ficar com o catre. A jovem virou-se para mim. Eu penduro seu casaco e o chapéu. Sentindo-me muito agradecida, entreguei-lhe o chapéu, o qual ela ajuntou a uma coleção de roupas que se achavam penduradas em ganchos, ao longo da parede. Conservei o casaco, porém, apertando-o bem contra mim. O catre já estava desocupado e para ele me dirigi, tremendo muito, esforçando-me para não espirrar e nem ao menos respirar, ao passar junto às outras. Tombei na cama, e, imediatamente, veio-me novo acesso de tosse, provocado pela escura nuvem de pó que se desprendera do imundo colchão. Afinal, a tosse acalmou e eu me deitei.

O cheiro acre da palha me chegava às narinas. Através do colchão fino, eu sentia as ripas de madeira. "Nunca vou ser capaz de dormir numa cama destas", pensei, mas o fato de que tive consciência a seguir, foi que já era de manhã, e alguém batia ruidosamente à porta. - Comida! anunciaram minhas colegas de cela. Levantei-me com esforço. O visor da porta foi abaixado horizontalmente, formando uma bandeja, e uma pessoa, do lado de fora, colocava sobre ela uns pratos de folha, contendo um mingau fumegante. - Tem mais uma aqui! gritou pela abertura a mulher que se chamava Frau Mikes. Precisamos de cinco pratos. Outro prato foi posto na portinhola-prateleira. - Se você não estiver com fome eu a ajudo, disse-me Frau Mikes. Peguei um prato, olhei para aquele mingau cinzento e aguado, e estendi-o para ela sem dizer palavra. Daí a pouco os pratos foram recolhidos e o visor foi fechado com uma batida. Um pouco mais tarde, a chave girou na fechadura de novo, o ferrolho correu e a porta foi aberta apenas o tempo necessário para que o balde sanitário fosse entregue. A bacia também foi passada e logo depois devolvida com água limpa. As mulheres recolheram as esteiras e as colocaram num dos cantos, e, enquanto o faziam, ergueram uma nova nuvem de poeira, que novamente me lançou num acesso de tosse. Foi então que nos sobreveio o tédio da prisão - que muito breve eu iria aprender a temer mais que tudo. A princípio, tentei superá-lo conversando com as outras. Entretanto, apesar de elas serem corteses até demais para pessoas que estavam vivendo

praticamente amontoadas, elas ignoraram minhas perguntas e nunca fiquei sabendo muita coisa a seu respeito. Vim a descobrir que a jovem que tinha me tratado com bondade na noite anterior era baronesa, e tinha apenas dezessete anos. Ela caminhava constantemente pela cela, de manhã até a hora em que a lâmpada era desligada à noite: seis passadas da parede à porta, mais seis da porta à parede, desviando-se das que estavam assentadas no chão, de um lado para outro, como um animal enjaulado. Frau Mikes era austríaca, e havia trabalhado na faxina de um grande edifício em sua cidade. Estava muito saudosa de seu canário, e chorava muito. - Coitadinho! dizia ela. O que vai ser dele agora? Ninguém vai lembrar-se de dar-lhe comida. Isto me fez recordar de nosso gato. Será que ele conseguira escapar para a rua, ou estaria morrendo de fome dentro da casa lacrada? Eu o visualizava rondando por entre as pernas das cadeiras da sala de jantar, sentindo a falta dos ombros sobre os quais ele gostava de caminhar. Eu procurava não deixar minha mente se esgueirar para a parte superior da casa, não a deixava subir as escadas para saber se Thea, Mary, Eusie... Não! Eu não poderia fazer nada por eles aqui desta cela. Deus sabia que eles estavam lá. Uma das prisioneiras estava em Scheveningen há três anos. Ela ouvia o barulho do carrinho de refeições muito antes de nós, e, pelos ruídos dos passos, sabia quem estava passando no corredor. - É a encarregada da enfermaria; há alguém doente. Essa é a quarta vez que uma pessoa da cela 316 sai para uma audiência.

O mundo dela se resumia naquele cubículo e no corredor. Pouco depois descobri a vantagem de se ter esta visão estreitada, e por que as prisioneiras, instintivamente, se esquivavam de perguntas acerca de outras áreas da vida. Nos primeiros dias que passei na prisão, eu vivia em verdadeira angústia, preocupada com papai, Betsie, Willem e Pickwick. Será que papai estava conseguindo se alimentar? Será que o cobertor de Betsie era tão fino quanto o meu? Esses pensamentos, porém, levaram-me a um tal desespero, que logo me esforcei para não ceder a eles. Numa tentativa de fixar minha mente em outra coisa, pedi a Frau Mikes para me ensinar o jogo de cartas que ela estava constantemente jogando. Ela havia feito as cartas com pedaços de papel higiênico - cada prisioneira recebia dois por dia. Ela ficava o dia inteiro sentada na beira do catre, deitando as cartas à sua frente, e depois recolhendo-as de novo. Demorei bastante para aprender, já que o jogo de baralho nunca fora permitido no Beje. Agora, ao começar a entender o jogo de "paciência", eu me perguntava o porquê da intolerância de papai aos jogos de cartas - nada poderia ser mais inocente que aquela sucessão de desenhos denominados paus, espadas, ouros... Com o passar dos dias, porém, comecei a ver um perigo sutil naquilo. Quando as cartas iam bem, meu moral subia. Era um bom augúrio: alguém de Haarlem fora solto. Contudo, se eu perdia... talvez alguém estivesse doente; talvez nossos amigos tivessem sido encontrados. Por fim, tive que parar. Afinal, eu já estava mesmo me cansando de ficar tanto tempo sentada. Comecei, mais e mais, a passar os dias como passava as noites: revirando-me naquele

colchão fino, procurando em vão uma posição cômoda que me aliviasse todas as dores. Minha cabeça latejava continuamente; agulhadas percorriam meu braço, e, ao tossir, cuspia sangue. Certa manhã, eu me contorcia no catre quando a porta de metal se abriu, dando entrada à guarda de voz metálica que eu vira na primeira noite, quando chegara ali, quinze dias atrás. - Cornélia ten Boom! Pus-me de pé penosamente. - Pegue o chapéu e o casaco e venha comigo. Olhei ao redor, esperando uma indicação do que iria acontecer comigo. - Você vai ser levada para fora da prisão, informou-me nossa especialista. Quando mandam pegar o chapéu é porque vai para fora. Eu já estava com o casaco e então tirei do gancho o chapéu, e saí para o corredor. A mulher trancou a porta e saiu andando tão vigorosamente que, ao segui-la, cuidando para não pisar na esteira, senti meu coração martelar. Olhei ansiosamente para as portas fechadas em ambos os lados do corredor; não conseguia me lembrar mais em quais delas minhas irmãs haviam entrado. Afinal, chegamos ao pátio amplo, cercado de muros altos. O céu! Era a primeira vez que o via naquelas duas últimas semanas, o céu azul! Como as nuvens passavam tão altas! Como eram brancas e limpas! Lembrei-me de repente de como mamãe gostava do céu. - Depressa! falou rispidamente a mulher. Apressei-me em direção ao automóvel preto e brilhante ao lado do qual ela se achava. Abriu a porta traseira e eu entrei. Havia mais duas pessoas ali: um soldado e uma mulher de rosto cinzento, encovado. Na frente, junto ao motorista, estava derreado um homem de aspecto doentio, cuja

cabeça rolava descontroladamente, de um lado para outro, no encosto do assento. Assim que o carro deu partida, a mulher ao meu lado tossiu, levando à boca uma toalha suja de sangue. Logo compreendi tudo: nós três estávamos doentes. Talvez estivéssemos sendo levados para um hospital. O grosso portão da prisão se abriu e nos encontramos no mundo exterior, rodando pelas ruas largas da cidade. Eu contemplava tudo extasiada. Via pessoas andando, olhando as vitrinas, parando para conversar com amigos. Seria mesmo verdade que havia duas semanas eu era livre assim? O carro estacou diante de um grande edifício. Foi preciso que tanto o policial como o motorista ajudassem o homem a subir os três lances da escada. Chegamos a uma sala de espera cheia de pacientes, e nos sentamos sob o olhar vigilante do soldado. Quando já havia decorrido aproximadamente uma hora, pedi permissão para ir ao banheiro. O soldado falou com a enfermeira de uniforme imaculadamente branco que se achava à mesa da recepção. - Venha por aqui, disse secamente. Guiou-me por um pequeno corredor, entrou no banheiro comigo e fechou a porta. - Depressa! Há alguma coisa que eu possa fazer? Pisquei sem compreender. - Sim, pode. Uma Bíblia. Poderia me conseguir uma Bíblia? E... uma agulha e linha, uma escova de dentes, sabonete! Ela mordeu os lábios em dúvida. - Há muitos doentes hoje, e ainda com o soldado... mas verei o que posso fazer. E saiu. A bondade dela parecia encher aquele quartinho de

uma claridade tão brilhante como a dos azulejos brancos e as torneiras luzentes. Meu coração jubilou enquanto lavava o rosto e o pescoço. Uma voz masculina gritou à porta: - Vamos! Você já está aí há bastante tempo. Enxagüei-me apressadamente e segui o soldado de volta à saleta. A enfermeira estava de volta ao seu lugar, tão fria e eficiente quanto antes, mas não ergueu os olhos. Depois de outro longo período de espera, meu nome foi chamado. O médico pediu-me para tossir; tirou minha temperatura e pressão arterial; auscultou-me com o estetoscópio e anunciou que eu estava com pleurisia e ameaça de tuberculose. Ele anotou qualquer coisa em um pedaço de papel. Depois colocou uma das mãos na maçaneta e a outra, por um instante, em meu ombro. - Espero estar-lhe fazendo um favor, dando este diagnóstico, disse em voz baixa. Na sala de espera, o soldado já estava de pé, aguardando minha saída. Quando atravessei o aposento a enfermeira levantouse subitamente e passou por mim de maneira brusca. Senti um pequeno volume tocar na minha mão. Escorreguei-o para o bolso do casaco, e segui o soldado escada abaixo. A outra mulher já se encontrava no carro. O homem doente não voltara. Durante todo o percurso de volta, minha mão era atraída para o objeto que estava em meu bolso, alisando-o, acompanhando seu contorno com a ponta dos dedos. "O Senhor, é tão pequeno, mas mesmo assim pode ser... concede, Senhor, que isto seja uma Bíblia."

Os muros altos surgiram à nossa frente; o portão fechou-se rangendo às nossas costas. Afinal, no fim do longo corredor vazio, alcancei a cela e tirei o pacote do bolso. Minhas companheiras agruparam-se ao meu redor, enquanto eu desembrulhava o jornal com dedos trêmulos. Até mesmo a baronesa interrompeu sua incessante caminhada para me observar. À vista de dois sabonetes - do tipo usado antes da guerra Frau Mikes levou a mão à boca para suprimir um grito de triunfo. Nem escova de dentes, nem agulha, mas - que riqueza! - uma caixa de alfinetes de mola. Melhor que tudo, porém, era, não uma Bíblia completa, mas os quatro evangelhos, em quatro volumes. Dividi os sabonetes e alfinetes entre nós cinco mas, embora eu oferecesse os livros também, elas os recusaram. - Se a pegarem com isto, explicou a nossa "autoridade" em prisão, dobram sua sentença, e dão-lhe kalte kost também. Kalte kost - a alimentação constituída apenas de pão, sem a ração diária de pratos quentes, era a ameaça que pairava sobre nossa cabeça. Se fizéssemos muito barulho: kalte kost; se fôssemos vagarosas ao passar o balde: kalte kost, Para mim, porém, o kalte kost era um preço baixo a pagar pela posse dos preciosos livrinhos que agora segurava entre as mãos. *** Dois dias depois, já perto da hora em que as luzes deve riam ser desligadas, a porta da cela se abriu e uma policial entrou. - Cornélia ten Boom, pegue suas coisas, disse secamente. Olhei-a com uma esperança louca crescendo dentro de mim.

- Você quer dizer que... - Silêncio! Sem conversa! Não demorei muito a recolher minhas coisas: o chapéu e uma camisa de baixo que eu tentara lavar na já muito usada água da bacia, e que estava secando. Estava sempre vestida com o casaco, com seu valioso conteúdo nos bolsos. Por que essa exigência de silêncio? eu me indagava. Por que não me permitem nem mesmo uma palavrinha de despedida com minhas colegas de cela? Será que era tão errado assim que a guarda sorrisse de vez em quando, ou que desse uma explicação simples? Despedi-me das outras com um olhar, e saí com aquela mulher aprumada para o corredor. Ela parou para trancar a porta e depois seguiu, mas na direção contrária. Não estávamos indo para a saída, mas sim aprofundando-nos mais e mais pelas intrincadas passagens da prisão. Ainda sem dizer palavra, ela deteve-se diante de uma porta e destrancou-a. Entrei. A porta cerrou-se atrás de mim. O ferrolho foi colocado e a chave girou. Esta cela era semelhante à outra - seis passos de comprimento, dois de largura, um catre ao fundo. Esta, porém, estava vazia. Ouvindo os passos da mulher morrendo na distância, encostei-me à fria porta de metal. Só! Sozinha entre aquelas quatro paredes... Não devo deixar o pensamento vagar; tenho que agir com calma e ser prática. Seis passos. Assento-me no catre. Este tinha cheiro pior que o outro: a palha parecia podre. Estiquei a mão e peguei o cobertor. Alguém vomitara nele. Afastei-o de mim, mas já era tarde. Corri para o balde junto à porta, e inclinei-me sobre ele sentindo-me muito fraca.

Naquele momento a luz se apagou. Tateei de volta à cama e deitei-me no escuro, trancando os dentes para não me deixar vencer pelo mau cheiro dos lençóis, aconchegando meu casaco mais contra mim. O frio era penetrante ali. O vento açoitava a parede. Aquela cela devia ser bem perto da parte externa da prisão: nunca ouvira o silvo do vento assim na outra. O que fizera eu para ser separada do convívio dos outros? Será que haviam ficado sabendo de minha conversa com a enfermeira naquele consultório médico? Ou talvez alguma das pessoas das que foram presas em Haarlem tivesse sido interrogada e revelara toda a verdade sobre o nosso grupo. Talvez minha sentença fosse anos e anos de confinamento solitário. De manhã, a febre estava pior. Eu não conseguia nem pôrme de pé para pegar o prato de alimento na porta, e uma hora mais tarde foi recolhido sem ter sido tocado. À tardinha, a portinhola de comunicação foi aberta de novo e o pão grosseiro da prisão foi colocado ali. A esta altura, eu já estava desesperada de fome, mas também mais fraca, e, por isso, incapaz de andar. A pessoa que estava de fora percebeu a situação. Pegou o pão e atirou-o para mim. Ele caiu no chão, próximo da cama. Agarreio e comecei a comê-lo avidamente. Durante vários dias o jantar me foi entregue desse modo. De manhã, a porta se abria e uma mulher de guarda-pó azul trazia o prato até o catre. Eu estava tão faminta pela presença de um ser humano quanto por alimento, e tentava, com a voz rouca, iniciar uma palestra. A mulher, obviamente uma prisioneira como eu, apenas limitava-se a balançar a cabeça, com um olhar assustado para o hall. A porta se abria diariamente também, para dar passagem ao

encarregado da enfermaria que me trazia uma injeção muito dolorosa, de um líquido amarelo, numa ampola imunda. Da primeira vez que ele veio, segurei-o pela manga do casaco. - Por favor, sussurrei com voz áspera, você não viu um velho de oitenta e quatro anos, de cabelos brancos, barba? Cásper ten Boom? Você deve ter lhe levado remédio! O homem puxou o braço. - Não sei de nada. A porta da cela foi escancarada, até bater contra a parede. No umbral estava a guarda. - Prisioneiros em solitária não têm permissão para conversar! Se disser mais uma palavra a qualquer um de nossos servidores, vai receber kalte kost até o fim de sua pena. E a porta se fechou sobre nós dois. O mesmo encarregado tirava minha temperatura toda vez que vinha me ver. Eu tinha que tirar a blusa e colocar o termômetro debaixo do braço. Este sistema não me parecia muito preciso. E não era: no fim da semana, uma voz me gritou pela abertura: - Levante-se e pegue a comida você mesma. Sua febre acabou. Não vamos mais servi-la. Eu tinha certeza de que a febre não abaixara, mas nada podia fazer senão me arrastar, tremendo, até a porta, para pegar o prato. Depois que o recolocava, eu me deitava de novo na palha fétida, preparando-me para o palavrório maldoso que viria a seguir. - Veja só a grande dama; voltou para a cama! Vai ficar deitada o dia todo? Nunca compreendi por que deitar era um crime tão grande, nem qual era a vantagem de se levantar...

Agora que eu estava sozinha, meus pensamentos tornaramse um problema ainda maior. Eu não podia orar pelos meus familiares e amigos, tal era o temor e a saudade que me assaltavam ao lembrar cada um deles. "Senhor, os meus entes queridos", eu orava. "Tu os vês. Tu os conheces. Abençoa-os a todos!" Os pensamentos eram inimigos. Aquela maleta de prisão... quantas e quantas vezes eu a abri, e apalpei mentalmente aqueles objetos que haviam ficado para trás. Uma blusa limpa. Um vidro cheio de aspirina. Pasta de dentes com sabor de hortelã, e... Aí eu me apercebia do que estava fazendo. Que coisa mais ridícula, tais pensamentos! Se eu tivesse a chance de viver novamente aquela situação, será que daria mais importância àqueles pequenos confortos do que a vidas humanas? É lógico que não. Todavia, na escuridão da noite, com o vento silvando, e a febre latejando, eu retirava a maleta de um canto escondido de minha mente, e a esquadrinhava mais uma vez. Uma toalha para colocar sobre esta palha que irritava a pele. Uma aspirina... *** Esta cela só era melhor que a outra numa coisa: tinha uma janela. Sete barras de ferro numa direção, quatro na outra. Era alta; alta demais para se olhar por ela, mas por aqueles vinte e oito quadrinhos eu via o céu. Eu ficava o dia todo com os olhos naquele pedaço de céu. Às vezes, algumas nuvens se moviam por ali. Umas eram brancas; outras, cor-de-rosa com orlas douradas. Quando o vento soprava do

oeste, eu ouvia o barulho do mar. O melhor de tudo, porém, era que, durante quase uma hora diariamente, um recorte xadrez de luz solar penetrava naquela cela escura. E esse período de uma hora estava se alongando gradualmente, à medida que os dias se passavam, e o sol mudava seu trajeto um pouco mais para o norte. Com o tempo se aquecendo, eu melhorei, fiquei mais forte e já me levantava para deixar o sol dar em cheio no meu rosto e peito, movendo-me ao longo da parede para acompanhá-lo, e, por fim, subindo ao catre para gozar os últimos raios, na ponta dos pés. Com a recuperação de minha saúde, eu conseguia firmar os olhos por mais tempo. Eu estivera me alimentando das Escrituras, com um verso de cada vez. Agora, como se fosse um homem faminto, eu ingeria grandes porções dos evangelhos de uma assentada, testemunhando o magnificente drama do Calvário em seu todo. À medida que isto se dava, um pensamento incrível começou a beliscar-me a mente. Será que nada disto - desse sofrimento todo que me parecia uma perda tão desnecessária: esta guerra, esta prisão, a cela - nada disto fora acidental, nem imprevisto? Seria tudo isto parte de um plano, que fora revelado pela primeira vez no Calvário? Não fora Jesus - e aqui minha leitura, tomou um profundo interesse - não fora Jesus aparentemente derrotado, tão completa e decisivamente como foram nosso grupinho e nossos humildes projetos? Entretanto, se os evangelhos continham mesmo a mostra de como Deus agia, então a derrota era apenas o começo. Eu passeava os olhos pela celazinha vazia e desprovida de tudo e me indagava

que vitória poderia advir de um lugar assim. *** Nossa colega "sabe-tudo" da outra cela havia me ensinado a fazer uma faquinha com uma barbatana de espartilho, afiando-a contra o piso cimentado. Estranhamente, parecia-me de grande importância não perder a noção do tempo. Assim, com minha barbatana afiada risquei um calendário na parede, perto da cama. Ao fim de cada dia, aqueles dias iguais, desinteressantes, eu colocava um x no quadrinho correspondente. Fiz também um registro de datas importantes, abaixo do calendário. Detenção: 28 de fevereiro de 1944 Transferência para Scheveningen: 29 de fevereiro de 1944 Início do confinamento solitário: 16 de março de 1944 Agora, uma nova data era adicionada: Aniversário na prisão: 15 de abril de 1944 Aniversário significava festa, mas foi em vão que procurei um objeto de aparência festiva. Na outra cela, pelo menos, havia duas peças de roupas coloridas: o chapéu vermelho da baronesa, a blusa amarela de Frau Mikes. Como eu me arrependia de meu mau gosto em roupas! Bom, mas ao menos música eu poderia ter em minha festa de aniversário. Decidi-me pela canção que falava sobre a "Noiva de Haarlem"; ela devia estar toda florida agora. Aquela cançãozinha infantil recordou-me tudo de novo: os galhos brotando, as pétalas caindo como neve na calçada de tijolos... - Silêncio aí!

Uma rajada de batidas caiu sobre a porta de ferro. - Os prisioneiros em solitária têm que ficar em silêncio. Sentei-me na cama, abri o Evangelho de João e li até a profunda tristeza do meu coração se desfazer. *** Dois dias depois do meu aniversário, fui levada pela primeira vez ao enorme e barulhento quarto de banho. Uma guarda de expressão austera caminhava a meu lado, sua carranca proibindome de sentir prazer naquela excursão. Todavia nada podia diminuir o gozo de pisar naquele corredor amplo depois de semanas seguidas de reclusão. À entrada do banheiro, várias mulheres aguardavam a vez. Apesar do silêncio obrigatório que se observava, esta proximidade de outros seres humanos me dava alegria e forças. Examinei bem o rosto das que saíam, mas nem Betsie, nem Nollie estava entre elas, nem ninguém de Haarlem. No entanto, pensei, estas aqui são minhas irmãs, todas elas. Que riqueza imensa, a de simplesmente poder ver outros seres humanos. O banho também foi maravilhoso: a água limpa e tépida caindo em minha pele irritada, escorrendo por entre meus cabelos emaranhados. Voltei à cela com uma resolução: da próxima vez que tivesse permissão para ir ao chuveiro, levaria comigo três dos evangelhos. A solitária estava me ensinando que não se podia ser rico sozinho. Mas não fiquei sozinha muito tempo. Apareceu na cela uma pequena formiga preta, muito ativa. Eu estava para pisar no lugar

onde ela se achava, ao levar o balde para a porta, certa manhã, quando compreendi a imensa honra que me era conferida. Ajoelheime e fiquei a contemplar o maravilhoso desenho de suas patinhas e de seu corpo. Pedi-lhe desculpas por ser tão grande, e prometi-lhe que nunca mais iria caminhar tão descuidadamente. Depois de alguns instantes, ela desapareceu por uma rachadura do chão. Quando meu pão da tarde me foi entregue, espalhei algumas migalhas por ali, e, para meu encanto, ela surgiu quase que imediatamente. Era o começo de uma boa amizade. Agora, além da visita diária do sol, eu gozava da companhia desta corajosa e simpática hóspede - e pouco depois, de toda uma pequena comitiva. Se eu estivesse lavando roupas na bacia, ou amolando a ponta de minha faquinha, eu parava imediatamente, para dedicar-lhes minha atenção integral. Seria imperdoável esbanjar duas atividades diversas, fazendo-as no mesmo período de tempo. *** Uma noite, quando eu riscava no meu calendário entalhado na parede o fim de outro longo dia, ouvi gritos no fim do corredor, que foram respondidos por alguém que se achava mais próximo. Depois, o barulho começou a vir de todas as direções. Que estranho os prisioneiros estarem fazendo tanto alarido! Onde estariam os guardas? A portinhola não havia sido fechada depois que o pão me fora entregue, há duas horas. Encostei o ouvido a ela, mas não consegui entender nada do tumulto lá fora. Ouvi nomes sendo mencionados

de uma cela para outra. Algumas cantavam; outras batiam na porta. As guardas deviam ter saído. - Por favor, calma! pediu alguém. Vamos aproveitar bem este tempo antes que eles voltem! - O que está acontecendo? gritei pelo orifício. Onde estão os guardas? - Foram para a festa, informou-me a mesma pessoa. Hoje é aniversário de Hitler. Então os nomes que estavam dizendo eram os seus próprios. Aqui estava nossa chance de nos identificarmos e pedirmos notícias dos outros. - Meu nome é Corrie ten Boom! gritei pela abertura. Minha família está toda aqui. Será que alguém sabe alguma coisa sobre Cásper ten Boom, Betsie ten Boom, Nollie van Woerden e Willem ten Boom? Repeti os nomes aos gritos até quase ficar rouca, e ouvi-os sendo repetidos corredor abaixo, de boca em boca. Eu também passei nomes à direita e à esquerda, fazendo funcionar nosso sistema de comunicação. Logo, as respostas começaram a gotejar de volta. - A Sra. van der Elst está na cela 228... - O braço de Pietje está bem melhor... Algumas informações eu quase não desejava passar: - A audiência foi péssima: ele fica na cela sem falar nada. - Ao meu marido Joost: nosso filhinho morreu na semana passada... Além dos recados particulares, havia também rumores acerca da situação do mundo lá fora, cada um mais otimista do que o outro.

- Está havendo uma revolução na Alemanha! - Os aliados invadiram a Europa! - A guerra não dura mais que três semanas. Afinal os nomes que eu gritara começaram a voltar. - Betsie ten Boom está na cela 312. Pediu para dizer a você que Deus é bom. Ah! Era Betsie; era Betsie mesmo! Depois: - Nollie van Woerden estava na cela 318, mas foi solta há mais de um mês. Liberta! Graças a Deus! Toos também fora liberta. As notícias da ala masculina demoraram mais a chegar, mas quando chegaram, meu coração pulou de alegria. - Peter van Woerden: liberto! Herman Sluring: liberto! Willem ten Boom: liberto! Até onde eu sabia, todos os que haviam sido detidos na batida do Beje - à exceção de Betsie e eu - haviam sido libertos. Somente de papai não ouvi nada, embora lançasse seu nome repetidas vezes ao murmúrio do hall. Ninguém parecia tê-lo visto. Ninguém parecia saber nada. *** Cerca de uma semana mais tarde, a porta da cela se abriu e uma das encarregadas atirou no chão um pacote embrulhado em papel marrom. Apanhei-o, senti-lhe o peso, e girei-o entre os dedos. O papel do embrulho havia sido rasgado, e depois recolocado sem

qualquer cuidado, mas mesmo assim reconheci o desvelo amoroso de Nollie. Sentei-me no catre e abri-o. Ali estava - tão minha conhecida! - como se fosse a visita de um ente querido, a blusa de frio azul. Ao vesti-la, foi como se sentisse os braços de Nollie em meu ombro. No pacote também havia biscoitos, vitaminas, agulha e linha, e uma toalha de cor vermelho-brilhante. Como Nollie conhecia bem a fome de cor que se sente numa prisão! Ela até enrolara os biscoitos num alegre papel celofane vermelho. Quando mordia o primeiro biscoito, tive uma inspiração. Afastei o catre da parede, colocando-o sob a lâmpada. Subi à cama, ajeitei o papel ao redor da lâmpada à guisa de quebra-luz. Imediatamente, um alegre reflexo avermelhado encheu o desolado quartinho. Eu estava embrulhando os biscoitos no papel marrom quando meus olhos deram com o sobrescrito feito pelos caprichosos dedos de Nollie: a letra inclinando-se ligeiramente para a direção do selo. Mas... a letra de Nollie não era inclinada... O selo! Não recebêramos, certa vez, uma mensagem escrita debaixo do pequeno quadrado do selo? Rindo de minha própria capacidade de imaginação, umedeci o papel na água da bacia e procurei retirar o selo. Palavras! Havia uma coisa escrita ali - mas era tão miúdo que tive de subir ao catre e chegar o papel à luz. "Todos os relógios do armário estão a salvo." Salvos! Então - então Eusie, Henk, Mary todos haviam escapado do quartinho secreto! Fugiram! Estavam livres! Rompi num choro convulsivo, e ouvi passos pesados des-

cendo o corredor. Apressadamente, saltei da cama, e empurrei-a de volta à parede. A portinhola foi aberta. - O que está havendo aqui? - Nada, nada. Eu... eu não vou fazer isso mais. A portinhola foi fechada de novo. Como será que eles conseguiram? Como será que passaram pelos guardas? Ah, não importa, Senhor. Tu estavas lá, e isso é o que realmente importa. *** A porta se abriu um dia para deixar entrar um oficial alemão, seguido da guardiã chefe da prisão. Meus olhos famintos correram pela sua farda bem passada e pelas suas condecorações de cores brilhantes. - Cornélia ten Boom, começou ele em excelente holandês, tenho algumas perguntas a fazer-lhe, e creio que poderá ajudar-me. A mulher carregava um pequeno tamborete que se apressou em colocar no chão para ele. Olhei em sua direção. Seria esta obsequiosa criatura a mesma mulher de voz temível, o terror da ala feminina? O alemão sentou-se, indicando-me que devia tomar assento no catre. Havia alguma coisa naquele gesto que me fez lembrar do mundo lá fora. Ele tirou uma caderneta, e, quando começou a ler uma série de nomes, eu me senti subitamente cônscia de minhas roupas amarfanhadas e de minhas unhas compridas e quebradiças. Para meu alívio, eu não conhecia mesmo nenhum daqueles nomes, e agora eu compreendia a vantagem de se ser um anônimo "Sr. Smit". O homem levantou-se.

- Acha que já está se sentindo bem para comparecer a um interrogatório breve? Novamente constatei suas maneiras bondosas. - Acho que sim. O oficial saiu, a guardiã seguindo-lhe nos calcanhares, cheia de mesuras, carregando o tamborete. *** Era o dia 3 de maio. Eu estava sentada no catre costurando. Depois que recebera o pacote de Nollie, eu arranjara uma nova e maravilhosa ocupação. Desfiara cuidadosamente a toalha vermelha, e, com seus fios, eu bordara lindas figuras no pijama, o qual apenas recentemente deixara de usar sob o vestido. Bordara uma janela com cortina de babados, uma flor com um incontável número de pétalas e folhas. Estava começando uma cabeça de gato no bolso direito, quando o visor se abriu e fechou com um único movimento. No chão da cela estava uma carta. Larguei o pijama e saltei do catre. Era a letra de Nollie. Por que será que minha mão tremia ao apanhá-la? A carta fora aberta, e retida, também: o carimbo postal tinha a data de uma semana atrás. Mas era uma carta de casa - minha primeira carta! Por que este medo súbito? Desdobrei o papel. "Corrie, você precisa ter coragem!" Não! Não! Eu não tinha coragem. Forcei-me a ler mais. "Tenho que dar-lhe uma notícia muito triste. Papai sobreviveu

à prisão apenas dez dias. Ele está com o Senhor agora." Fiquei com o papel entre os dedos tanto tempo que o facho de sol entrou na cela e brilhou sobre ele. Pai... pai... a carta brilhava pela claridade axadrezada enquanto eu lia o resto. Nollie não sabia dos detalhes, nem como nem onde morrera, nem mesmo onde fora sepultado. Passos soaram sobre a passadeira de palha de coqueiro. Corri à porta e encostei-me à abertura. - Por favor! Por favor! A pessoa parou e a portinhola se abriu. - O que há? - Por favor, recebi uma notícia muito ruim... por favor, não se vá! - Espere um pouco. Os passos se afastaram, regressando pouco depois com uma penca de chaves. A porta da cela foi aberta. - Aqui está. A moça entregou-me um comprimido e um copo de água. - É um sedativo. - Esta carta chegou agora e diz que meu pai... diz que meu pai morreu, expliquei. Ela me olhou espantada. - Seu pai? exclamou num tom de assombro. Compreendi que eu deveria parecer velha e decrépita para aquela jovem. Ela permaneceu à porta por alguns instantes, visivelmente embaraçada com minhas lágrimas. - O que quer que lhe aconteça, disse por fim, foi você mesma quem o atraiu para si, quando transgrediu a lei.

- Senhor Jesus, comecei a murmurar enquanto ouvia seus passos morrendo no corredor, após haver batido a porta, que tolice a minha pedir auxílio humano, quando tu estás aqui. E pensar que papai está contemplando a tua face agora! que ele e mamãe estão juntos novamente, caminhando pelas ruas brilhantes... Afastei o catre da parede, e escrevi outra data embaixo do meu calendário: 9 de março de 1944: Papai foi liberto!

Capítulo 11 - O Tenente Eu estava acompanhando uma das guardas - caminhando atrás dela, mas um pouco à direita para não pisar na sagrada passadeira - por um corredor que eu não conhecia. Viramos à direita, demos alguns passos, e, depois, à direita outra vez... que interminável labirinto, essa prisão! Por fim, chegamos a um pequeno pátio interno. Uma chuvinha fina estava caindo. Fazia um frio cortante, naquela manhã do fim de maio: após três meses de prisão, eu comparecia a um interrogatório pela primeira vez. Em três de seus lados, o pátio era rodeado por uma construção alta, de janelas fechadas por barras de ferro. No quarto, havia uma parede alta junto à qual se erguia uma fileira de cômodos. Então estas eram as cabines onde os famigerados interrogatórios tinham lugar! Senti minha respiração curta e difícil ao me recordar dos relatos que eu própria passara adiante, no dia do aniversário de Hitler. "Senhor Jesus, tu também foste levado a um interrogatório. Ensina-me o que devo fazer!" Foi aí que algo chamou minha atenção. A pessoa que utilizava a quarta cabine fizera um canteirinho de tulipas ao lado. Agora, elas estavam murchas: não eram mais que algumas hastes esguias e folhas amareladas, mas... "Senhor, concede que eu vá para a número quatro." A guarda havia parado um instante para desatar a sua longa capa militar, presa ao ombro, e envolver-se nela. Agora, ela seguiu

pelo caminho, triturando o cascalho. Passou pela primeira cabine, pela segunda, pela terceira. Estacou diante da cabine com o canteirinho, e bateu à porta. - Ja! Herrein! (Pois não! Entre!) gritou uma voz masculina. Ela empurrou a porta, fez a continência de braço estendido, e saiu de novo. O homem estava fardado e carregava suas condecorações, e trazia uma arma no coldre. Tirou o chapéu, e eu reconheci o oficial bondoso que fora me ver na cela. - Eu sou o Tenente Rahms, disse encaminhando-se à porta para fechá-la após mim. A senhora está tremendo! Espere, vou acender o fogo. Achegou-se a uma pequena estufa redonda, e encheu-a de carvão que retirara de um recipiente ao lado, lembrando em tudo um anfitrião alemão recebendo uma visita. E se aquilo fosse apenas uma cilada? Estes gestos bondosos e humanos... talvez ele tivesse descoberto que tais artifícios eram mais efetivos para arrancar a verdade de gente solitária e faminta de atenção e afeto, do que a brutalidade. "Senhor, não deixes que por uma credulidade tola eu ponha em perigo a vida de outras pessoas." - Espero que não tenhamos mais dias frios como este, nesta primavera, disse ele. Ele puxou uma cadeira para mim, e eu a aceitei cansadamente. Como era estranho recostar-me numa cadeira, e colocar as mãos nos braços dela depois de três meses sem ver uma! O calor da estufa estava gradualmente se espalhando pela saleta. Apesar de minhas prevenções, comecei a relaxar-me. Aventurei-me a um tímido comentário a respeito das tulipas.

- Cresceram bastante; devem ter sido lindas. - Ah, foram! ele pareceu-me ridiculamente satisfeito. Foram as melhores que já consegui. Em casa, sempre planto as batatas holandesas. Conversamos sobre flores por alguns instantes, e depois ele disse: - Gostaria de poder ajudá-la, D. Cornélia, mas a senhora tem de me dizer tudo. Pode ser que eu consiga fazer alguma coisa pela senhora, mas só se não ocultar nada de mim. Então, ali estava a verdade. Aquela cordialidade, o interesse amistoso de que eu duvidara um pouco - tudo era mesmo um ardil para extrair informação. E por que pão? Ele era um oficial e tinha uma tarefa a cumprir Entretanto eu também, de certo modo, tinha minha tarefa. Ele me interrogou durante uma hora, e fez uso de todos os truques psicológicos sobre os quais os jovens do nosso grupo clandestino me haviam alertado. Aliás eu me senti como uma estudante que se prepara muito bem para um exame difícil e, na hora de fazer a prova, vê-se argüida apenas a respeito das questões mais elementares. Descobri que eles criam que o Beje fora o centro de onde partiam ordens de assalto a vários almoxarifados de racionamento de alimento do país. De todas as atividades ilegais que me pesavam na consciência, esta era a de que eu tinha menos conhecimento. Eu nada sabia dos detalhes da operação, a não ser que recebia os cartões roubados e os passava adiante. Aparentemente, minha ignorância no assunto ficou bem patente, e o Tenente Rahms parou de anotar minhas respostas desanimadoras e incoerentes.

- Das suas outras atividades, o que a senhora gostaria de contar? - Outras atividades? Ah! o senhor quer saber a respeito de minhas reuniões para retardados? E me lancei animadamente num relato de minha tentativa de evangelizar pessoas de mente fraca. O tenente arqueou as sobrancelhas, num espanto cada vez maior. - Que desperdício de tempo e energias! exclamou afinal. Se a senhora quer conseguir adeptos, uma pessoa normal vale por todos os lunáticos do mundo! Olhei-o de frente, fitando seus inteligentes olhos azulacinzentados: a filosofia nazista, pensei, apesar do canteiro de tulipas. E para meu assombro, ouvi-me dizer corajosamente: - Posso dizer-lhe a verdade, Tenente Rahms? - Minha senhora, esta audiência está baseada na suposição de que a senhora me concederá esta honra. - A verdade, senhor, disse engolindo em seco, é que o ponto de vista de Deus é, às vezes, tão diferente do nosso, que não poderíamos nem mesmo chegar perto dele, se Deus não nos tivesse dado um Livro no qual ele nos diz tudo. Eu sabia ser loucura minha falar daquele jeito a um oficial nazista, mas ele não disse nada e eu prossegui. - Na Bíblia, eu aprendi que, aos olhos de Deus, nosso valor não é medido por nossa força ou inteligência, mas por sermos feitos por ele. Quem sabe se para ele um lunático tem mais valor que um relojoeiro, ou... do que um tenente? O Tenente Rahms levantou-se abruptamente.

- Isto é tudo por hoje. Caminhou apressadamente até à porta. - Guarda! Ouvi passos no cascalho. - A prisioneira vai voltar à cela. Enquanto seguia a guarda de volta, compreendi que havia cometido um erro. Falara demais. Eu tinha destruído qualquer chance de um possível interesse dele pelo meu caso. Entretanto no dia seguinte foi o próprio Tenente Rahms que abriu a porta de minha cela, e escoltou-me para a saleta de audiência. Ele parecia desconhecer o regulamento que proibia os prisioneiros de pisar na esteira, pois indicou-me que eu devia andar à sua frente, pelo centro do corredor. Evitei os olhos dos guardas ao longo do percurso, sentindo-me culpada como um cachorro treinado que foi encontrado refestelado no sofá da sala. No pátio, o sol brilhava. - Vamos ficar aqui fora hoje, disse ele. A senhora está muito pálida. Não está tomando bastante sol. Com gratidão, segui-o até o canto mais distante, onde o ar estava tépido e parado. Encostamo-nos à parede. - Não dormi nada, a noite passada, disse o tenente. Fiquei pensando naquele livro, onde a senhora leu a respeito das idéias diferentes. Que mais diz nele? Fechei os olhos e percebi o clarão do sol através das pálpebras. - Diz, comecei vagarosamente, que a Luz veio ao mundo para que não tenhamos que andar mais em trevas. Há trevas na vida do senhor, tenente?

Houve uma longa pausa. - Grandes trevas, disse por fim. Eu não suporto o trabalho que faço aqui. De repente, ele começou a me falar de sua esposa e filhos que estavam em Bremen, e sobre o jardim de sua casa, seus cães, seus passeios a pé nas férias de verão. - Bremen foi bombardeada novamente a semana passada. Todos os dias eu me pergunto: será que ainda estão vivos? - Há alguém que está sempre olhando por eles, Tenente Rahms. Jesus é essa Luz que a Bíblia nos revela, a Luz que pode afastar até mesmo trevas iguais às suas. Ele abaixou o visor do quepe, cobrindo os olhos; o emblema da caveira com os ossos cruzados brilhou ao sol. Quando ele falou novamente, foi tão baixo que mal o ouvi. - O que é que a senhora sabe sobre trevas como essas minhas? O interrogatório repetiu-se ainda por dois dias. Ele cessou totalmente de fingir que me questionava sobre minhas atividades clandestinas, e parecia gostar bastante de escutar fatos de minha infância. Mamãe, papai, as tias... ele queria ouvir-me falar deles muitas vezes. Ficou indignado ao saber que papai havia morrido ali em Scheveningen; os documentos da minha pasta não faziam menção deste fato. Eles continham, porém, a razão de meu confinamento na solitária. "A doença da prisioneira é contagiosa." Olhei para as palavras datilografadas que o tenente apontava. Pensei nas longas noites de ventania, no deboche dos guardas, na

lei do silêncio. - Mas se não era por castigo, por que estavam tão irados comigo? Por que eu não podia falar? O tenente acertou as pontas dos papéis à sua frente. - Uma prisão é como qualquer outra instituição, minha senhora; alguns regulamentos, alguns métodos de ação... - Eu não tenho mais esta doença contagiosa. Já estou boa há várias semanas e minha própria irmã está aqui tão perto! Tenente Rahms, se eu pudesse ver Betsie, se eu pudesse conversar com ela durante alguns minutos! Ele ergueu os olhos e eu percebi uma grande angústia neles. - Minha senhora, é possível que eu lhe pareça muito poderoso. Eu uso uma farda, tenho certa autoridade sobre meus comandados, mas estou numa prisão, prezada senhora, uma prisão mais forte que esta aqui. Era a quarta e última sessão de interrogatório, e nós fôramos para dentro a fim de assinar os papéis. Ele reuniu tudo e saiu, deixando-me a sós. Eu sentia ter que me despedir desse homem que estava lutando tanto para chegar à verdade. Parecia que o mais difícil para ele era aceitar o fato de que o cristão deva sofrer. - Como é que a senhora ainda consegue acreditar em Deus? ele me perguntara. Que Deus é este que deixa aquele velhinho morrer aqui em Scheveningen? Ergui-me da cadeira, e, aproximando-me da estufa, estendi as mãos para aquecê-las. Eu também não entendia por que papai morrera em tal lugar. Eu não entendia muitas coisas. De repente lembrei-me da resposta que papai me dera a respeito de questões muito difíceis: "Alguns conhecimentos pesam

demais... você não suportaria... o papai carregará os pesos até que você se torne capaz." Sim! Eu contaria ao Tenente Rahms o caso da mala de viagem - ele gostava muito das histórias que eu lhe contava a respeito de papai. Quando o tenente regressou, porém, vinha acompanhado de uma guarda da ala feminina. - A prisioneira ten Boom já encerrou as audiências e pode retornar à cela, disse. A jovem pôs-se em posição de sentido. Enquanto eu cruzava a porta, o Tenente Rahms inclinou-se para diante. - Ande vagarosamente no corredor F, disse ele. Andar devagar? O que quisera ele dizer? A guarda entrou pelo corredor caminhando tão depressa que tive de correr para poder acompanhá-la. Mais adiante, uma encarregada estava destrancando a porta de uma cela. Atrasei meus passos o máximo que pude, com o coração batendo descompassadamente. Era a cela de Betsie - eu sabia que era! Agora eu já estava bem em frente à porta. Betsie estava de costas para o corredor. Eu só conseguia ver o seu gracioso coque, seu cabelo castanho-claro. As outras mulheres da cela olhavam para fora curiosamente; Betsie inclinara a cabeça e fitava alguma coisa em seu colo. Todavia eu estava vendo que ela já transformara aquela cela em um lar. Incrivelmente, contra toda a lógica, aquela cela estava encantadora. Consegui ver apenas alguns detalhes, ao passar lentamente, relutando em prosseguir. As esteiras estavam enroladas - não empilhadas num canto - e pareciam pequenas colunas redondas, ao longo da parede, cada uma encimada por um chapéu

feminino. Um lenço de cabeça fora disposto na parede, com um efeito decorativo. Vários tipos de alimento estavam arranjados em uma pequena prateleira. Eu quase ouvia Betsie dizendo: "A caixa de biscoitos vermelha no meio." Mesmo os casacos dependurados em seus ganchos pareciam colaborar para tornar o quarto mais convidativo, cada manga caindo sobre o ombro do casaco próximo, como se formassem uma fileira de crianças a dançar. - Schneller! Aber schneller! (Depressa! Mais depressa!) Apressei-me a seguir a guarda. Tinha sido apenas um olhar de relance, não mais que dois segundos, mas eu desci o corredor sentindo a presença do espírito exultante de Betsie a meu lado. *** Durante toda aquela manhã, eu ouvira portas se abrindo e fechando. Agora o ruído de chaves à minha porta: apareceu uma guarda bem jovem, vestida com uma farda nova. - Prisioneira, atenção! falou em tom ríspido. Olhei-a espantada, piscando sem entender; aquela moça estava mortalmente assustada, com um medo terrível de alguém ou de alguma coisa. Aí um vulto surgiu à porta, e uma mulher entrou na cela. Seus traços eram bem feitos, clássicos - o rosto e o porte de uma deusa, esculpidos em mármore. Nem mesmo a mínima parcela de sentimento transparecia em seus olhos. - Estou vendo que aqui também não há lençóis, disse à guarda em alemão. Arranje-lhe dois até sexta-feira. Um deve ser

trocado de quinze em quinze dias. Seu olhar gelado fez uma apreciação acurada de minha pessoa como fizera da cama. - Quantos banhos a prisioneira toma? A guarda passou a língua nos lábios. - Um por semana, Wachtmeisterin. {Senhora oficial!) Um por semana? Um por mês, é o que era! - Bem, agora serão dois por semana. Lençóis! Banho! Será que a situação iria melhorar? A nova supervisora deu dois passos pela cela. Ela não precisou subir no catre para alcançar a lâmpada. Lá se foi meu quebra-luz vermelho. Apontou para uma caixa de biscoitos que viera no segundo pacote que Nollie me enviara. - Não é permitido ter caixas nas celas! gritou à guarda jovem em holandês, como se isso fosse um regulamento há muito estabelecido. Sem saber o que fazer, derramei os biscoitos na cama. Fiz o mesmo com um vidro de vitaminas e um saquinho de balas de hortelã, pressentindo a ordem da chefe. Diferentemente da outra supervisora que berrava e vociferava sem parar, numa voz estridente, esta fazia tudo em profundo silêncio. Com um gesto indicou à guarda que deveria dar uma busca debaixo do colchão. Meu coração subiu para a garganta: o evangelho que me restava estava escondido ali. A jovem ajoelhou-se e correu as mãos por todo o comprimento do catre. Contudo, ou ela estava muito nervosa para fazer um serviço perfeito, ou então uma coisa misteriosa aconteceu, pois ela ergueu-se de mãos vazias.

Logo depois elas se retiraram. Fiquei ali de pé, contemplando a mistura de biscoitos, balas e vitaminas sobre a cama. Imaginei aquela mulher entrando no quarto de Betsie e reduzindo-o a uma cela de quatro paredes nuas e um catre. Um vento gelado soprava em Scheveningen, desbastando, comandando, matando... *** E foi esta mulher alta, de maneiras diretas, que veio à minha cela, na segunda quinzena de junho, acompanhada do Tenente Rahms. Ao ver a seriedade com que ele me fitava, cortei a tempo a saudação que quase me escapava. - Venha ao meu escritório, disse ele secamente. O notário chegou. Parecíamos totalmente estranhos. - Notário? perguntei estupidamente. - Para a leitura do testamento de seu pai. Ele teve um gesto de impaciência; parecia que esta tarefa sem importância havia lhe interrompido um dia cheio. - É a lei: a família toda tem que estar reunida quando o testamento é aberto. Ele já estava deixando a cela em direção ao corredor. Saí também,

desajeitada,

meio

correndo,

meio

andando,

para

acompanhar o passo da mulher a meu lado. A lei? Que lei? E desde quando o governo alemão da ocupação se importava com as legalidades da Holanda? Família! A família presente... Não, Corrie, não se permita pensar nisso.

Na entrada do pátio, a mulher parou, e, sempre ereta e impassível, voltou pelo corredor. Segui o Tenente Rahms pelo caminho ensolarado, naquela tarde de verão. Ele abriu-me a porta da quarta cabine. Antes que meus olhos pudessem se ajustar à semiescuridão ambiente, eu já estava envolvida pelo abraço de Willem. - Corrie! Corrie! Minha irmãzinha! Há cinqüenta anos ele não me tratava assim. Agora era um braço de Nollie, o outro ainda agarrado a Betsie, como se com sua força ela pudesse nos conservar juntas para sempre. Betsie! Willem! Nollie! Eu não sabia que nome gritar primeiro. Tine também estava lá, e Flip também, e outro homem. Quando pude olhar para ele, reconheci o notário de Haarlem, que já fora à nossa loja algumas vezes para alguns serviços legais. Nós nos examinávamos bem, fazendo uma confusão de perguntas, todas a um só tempo. Betsie estava magra e pálida do confinamento, mas foi a aparência de Willem que me chocou mais. Seu rosto estava encovado, amarelado, marcado pela dor. Ele saíra assim de Scheveningen, informou-me Tine. Dois dos oito homens que estavam amontoados na mesma cela que ele haviam morrido de hepatite. Willem! Eu não suportava vê-lo tão acabado. Enfiei meu braço pelo seu, aproximando-me bastante dele para que não tivesse de olhá-lo, e adorando ouvir sua voz profunda e fluente. Ele não parecia consciente de seu próprio estado de saúde: sua preocupação estava voltada para Kik. Seu filho, aquele rapaz louro e simpático, havia sido preso no mês anterior, quando auxiliava um pára-quedista norte-americano a alcançar a costa do mar do Norte. Eles criam que ele fora embarcado num trem de prisioneiros para a Alemanha.

Quanto a papai, haviam descoberto mais alguns fatos acerca de seus últimos dias. Soubemos que ele adoecera na cela e fora levado para o hospital municipal de Haia. Lá, entretanto, não encontraram leitos vagos, e ele morrera no corredor mesmo. Como não levara a pasta do seu processo, não houve possibilidade de ser identificado. Os funcionários do hospital enterraram aquele velhinho desconhecido no cemitério dos indigentes. Cria-se que seu túmulo fora localizado. Dei uma olhada para o Tenente Rahms. Enquanto conversávamos, ele conservava-se de costas para nós, fitando a estufa, agora apagada e fria. Abri apressadamente o pacote que Nollie me colocara nas mãos quando me abraçara. Era o que meu coração já havia adivinhado: uma Bíblia, a Bíblia completa num pequeno volume, enfiado num embornal de pano, amarrado com um barbante para ser carregado ao pescoço, como fizéramos com os cartões de identidade. Passei-o pela cabeça, num movimento rápido, e deixei-o escorregar pelas costas, sob a blusa. Nem mesmo encontrava palavras para agradecer-lhe. No dia anterior, eu dispusera de meu último evangelho, na fila do chuveiro. - Não sabemos todos os detalhes, Willem estava dizendo a Betsie em voz baixa. Depois de alguns dias, eles afastaram os soldados do Beje, e puseram guardas da polícia lá. No quarto dia, ele cria, o chefe de polícia conseguira designar Rolf e outro homem de nosso grupo para a guarda. Eles encontraram os judeus passando bem, embora famintos e doloridos; conseguiram arranjar-lhes esconderijos seguros e os conduziram para lá. - E agora? perguntei. Estão todos bem? Willem abaixou para mim seus olhos fundos. Ele nunca

soubera disfarçar bem uma verdade triste. - Estão todos bem, Corrie; todos, menos Mary. A pobre Mary Itallie, disse-me, fora presa perto dali, quando andava por uma rua. Não se sabia para onde ela estava indo, nem por que se expusera assim em pleno dia. - Tempo esgotado! O Tenente Rahms deixou sua contemplação da estufa e fez um gesto de cabeça para o notário. - Vamos proceder à leitura do testamento. Era um documento breve e informal: o Beje ficava para mim e Betsie enquanto o quiséssemos. Se vendêssemos a casa e a loja, ele sabia que nós nos lembraríamos de seu amor por todos nós. Ele nos colocava, com alegria, sob o constante cuidado de Deus. No silêncio que se seguiu, abaixamos a cabeça. - Senhor, orou Willem, nós te agradecemos por estes momentos que passamos juntos aqui, sob a proteção deste homem bondoso. Como podemos agradecer-lhe? Não temos possibilidades de prestar-lhe nenhum favor. Senhor, permite-nos partilhar com ele essa herança de nosso pai. Toma-o, Senhor, e à sua família sob teu cuidado constante. Do lado de fora, os passos da guarda rangiam no caminho de cascalho.

Capítulo 12 - Vught, o Campo de Concentração - Peguem suas coisas! Preparem-se para partir! Coloquem os objetos pessoais numa fronha! Os gritos das guardas ecoavam pelos corredores. Pus-me de pé no centro da cela, sentindo grande agitação. Partir! Então - então alguma coisa estava acontecendo! Íamos deixar a prisão! A contrainvasão devia ter-se iniciado! Arranquei da fronha a bucha de palha que enfiara nela. Que maravilha aquele pedaço de pano grosseiro havia sido para mim, nessas duas semanas; uma excelente proteção contra a irritação da palha e o mau cheiro da roupa de cama. Quase não me importava que os prometidos lençóis nunca tivessem sido entregues. Com as mãos tremendo, joguei na fronha meus poucos pertences: a blusa azul, meu pijama - ostentando bordados na frente e nas costas - a escova de dentes, o pente e o resto de meus biscoitos, que eu enrolara em papel sanitário. A Bíblia continuava no embornal de pano, pendurada às minhas costas, de onde eu só a retirava para ler. Vesti o casaco e o chapéu e fiquei junto à porta, segurando minha fronha firmemente com ambas as mãos. Era bem cedo; o pratinho de desjejum ainda não fora recolhido. Eu não demorara nada para me aprontar. Passou-se uma hora. Sentei-me no catre. Duas horas. Três. Fazia calor naquela tarde de junho. Tirei o casaco e o chapéu e coloquei-os sobre a cama, perto de mim.

Passou-se mais algum tempo. Olhei para o orifício de entrada das formigas, esperando uma visita de despedida de minhas pequenas amigas, mas elas não apareceram. Provavelmente, eu as assustara com o movimento desusado da manhã. Enfiei a mão na fronha, peguei uma das bolachas e esmigalhei-a, colocando os pedacinhos ao redor da rachadura. Nada. Estavam bem escondidas. De repente, compreendi que aquilo era uma mensagem para mim, um recado mudo de um vizinho para outro. Eu também tinha meu esconderijo para as horas difíceis. Era Jesus, o meu refúgio perfeito. Apertei o dedo contra a pequenina fenda. A luz do sol claro da tarde apareceu na parede, e moveu-se vagarosamente pela cela. De súbito, recomeçou o clangor do lado de fora. Portas se abriam; ferrolhos eram soltos. - Saiam! Schnell! (Rápido!) Todas para fora, e nada de conversa. Agarrei o chapéu e o casaco. Minha porta rangeu e se abriu. - Formar fileiras de cinco... e a guarda já estava na cela seguinte. Saí para o hall. Cheio de uma parede à outra. Nunca pensara que havia tantas mulheres naquele corredor. "In-va-são", dizíamos umas às outras apenas com um movimento de lábios. A mensagem silenciosa varreu aquele grupo de mulheres como uma corrente elétrica. Certamente, a invasão da Holanda começara. Por que outra razão estariam evacuando a prisão? Para onde seríamos levados? Qual seria nosso destino? Para a Alemanha? Não! Ó Jesus querido, para a Alemanha, não! Afinal veio a ordem de sairmos e marchamos por aqueles

corredores frios, cada uma carregando o pequeno volume de seus pertences dentro da fronha. Emergimos no vasto pátio fronteiriço, para outra longa espera. Esta, porém, foi mais agradável, com o sol da tardinha dando-nos às costas. Um pouco distante, à nossa direita, viam-se as colunas de homens. Girei a cabeça até onde pude, mas não vi Betsie. Por fim, o imenso portão foi aberto e vários ônibus cinzentos penetraram ali. Subi ao terceiro deles. Os assentos haviam sido retirados; as janelas, foscadas. O ônibus deu um arranco forte ao partir, mas estávamos apertadas demais para cair. Quando parou, descobrimos que nos encontrávamos em uma estação de trem de carga nos arredores da cidade. Outra vez a ordem de formação em fileiras. A voz dos guardas estava tensa e estridente. Tínhamos que conservar os olhos em frente. Às nossas costas, ouvia-se o ruído dos ônibus que chegavam e depois se afastavam. Ainda estava claro, mas pela dor que sentia no estômago, sabia que já passara muito da hora do jantar. Foi então que, à minha frente, à esquerda, no último grupo de prisioneiras, reconheci aquele coquezinho de cabelo castanho de Betsie. Decidi que, de algum modo, eu daria um jeito de me aproximar dela. Agora, ao invés de ansiar para que o dia acabasse logo, comecei a desejar que ficássemos ali até escurecer. Lentamente, a luz daquele longo dia de junho se escoou. Um trovão ribombou e uma chuva fina começou a cair. Por fim, um longo comboio surgiu, com a luz dos vagões apagada. Freou com estrépito, e depois rodou à frente mais um pouco; depois, parou novamente. Daí a instantes deu marcha a ré. Durante cerca de uma hora o trem

ficou em manobras, para diante e para trás. Quando veio a ordem para embarcarmos estava completamente escuro. A massa de prisioneiros moveu-se para diante. À nossa retaguarda, os guardas gritavam e praguejavam: era evidente que estavam nervosos por transportarem tantos prisioneiros de uma vez. Insinuei-me por entre o grupo, forçando passagem em direção à esquerda. Ombros e cotovelos se interpunham em meu caminho, e eu me esquivava por entre eles. Alcancei Betsie quando já nos encontrávamos perto dos degraus do trem, e agarrei a mão dela. Embarcamos juntas, e encontramos lugar em um compartimento já lotado, e, juntas, choramos de gratidão. Os quatro meses passados em Scheveningen haviam sido os primeiros, em cinqüenta e três anos, que passávamos separadas. Eu sentia que poderia suportar quase qualquer coisa, se tivesse Betsie ao meu lado. As horas rolavam, e o trem permanecia parado no desvio. Para nós, no entanto, elas voavam, pois tínhamos muito que nos dizer. Betsie falou-me de cada uma de suas companheiras de cela, eu lhe falei das minhas - e da fresta na qual elas se escondiam nos momentos de emergência. Como sempre, Betsie havia dado aos outros tudo que possuía. A Bíblia que Nollie lhe enviara clandestinamente, ela a dividira toda em livros e a distribuíra entre as outras. Deviam ser duas ou três da madrugada quando afinal começamos a nos movimentar. Encostamos o rosto à vidraça, mas não vimos luzes e a lua estava encoberta pelas nuvens. O pensamento que pairava em cada mente era: estaríamos indo para a Alemanha? Num certo ponto, conseguimos distinguir uma torre que Betsie estava segura de ser a catedral de Delft.

Cerca de uma hora depois, o matraquear das rodas sobre o trilho começou a soar diferente: atravessávamos um desvão - e bem longo! Vários minutos se passaram e ainda não chegáramos ao outro lado. Eu e Betsie nos entreolhamos. Seria a ponte Moerdijk? Então íamos para o sul. Não era para a Alemanha, mas para o sul, para Brabant. Choramos de alegria, pela segunda vez naquela noite. Apoiei a cabeça no encosto de madeira do assento e fechei os olhos, rememorando uma outra viagem para Brabant. A mão de mamãe apertando a de papai cada vez que o trem balançava. Fora em junho, também - aquele junho do primeiro sermão de Willem, do jardim ao fundo da casa paroquial, de Karel... Eu devo ter adormecido ainda revivendo aquele outro dia de junho, pois, quando reabri os olhos, o trem parará. Gritos de comando nos ordenavam que marchássemos: Schneller! Aber schnell! (Rápido! Mais rápido!) Uma luz brilhante entrava pela janela. Eu e Betsie saímos aos trambolhões junto com as outras pela ala central do vagão, e depois pelos degraus de ferro. Estávamos no meio de um bosque. Holofotes presos às árvores iluminavam um caminho largo, precariamente aberto na mata, que estava cheio de soldados empunhando armas. Fustigados pelos berros dos guardas, nós entramos pela passagem ladeada de canos de rifles. - Schneller! Cerrar fileiras! Manter o passo! Fileiras de cinco! Betsie já estava com a respiração difícil, e eles ainda berravam conosco que nos apressássemos mais. Tinha chovido muito, e havia poças fundas no caminho. Uma senhora de cabelos brancos desviou-se para um lado a fim de evitar uma poça; um soldado atingiu-lhe as costas com a coronha de sua arma. Tomei a fronha de

Betsie carregando-a juntamente com a minha e passei meu braço pelo dela para ampará-la na caminhada. Marchamos neste pesadelo por quase dois quilômetros. Por fim chegamos a uma cerca de arame farpado que circundava um conjunto de alojamentos de madeira. Não havia camas no que entramos, apenas mesas e bancos sem encosto. Betsie e eu deixamo-nos cair em um deles. Senti no braço as batidas irregulares de seu coração. Com a cabeça apoiada na mesa, dormimos de exaustão. Quando despertamos, a luz do sol jorrava pela janela. Estávamos famintas e com sede. Não tínhamos comido nada, nem bebido água desde a manhã do dia anterior, em Scheveningen. Contudo, nem um guarda ou oficial apareceu nos alojamentos durante as primeiras horas do dia. Finalmente, quando o sol já estava se pondo, chegou um grupo de prisioneiros com uma grande tina contendo uma substância grossa, fumegante, que engolimos vorazmente. E assim começou nossa estada naquele lugar que descobrimos chamar-se Vught, nome da cidadezinha próxima. Diferentemente de Scheveningen, que era uma prisão mesmo, Vught tinha sido construído pelas tropas de ocupação, para servir de campo de concentração para prisioneiros políticos.

Ainda não nos

achávamos no campo propriamente dito, mas numa espécie de alojamento de quarentena, nos arredores do campo. O maior problema, para nós ali, reunidas ao redor daquelas fileiras de mesas, sem nada para fazer, era a ociosidade. Nossas guardas eram as mesmas de Scheveningen. Elas serviram bem enquanto estávamos fechadas dentro das celas, mas aqui, pareciam

completamente desnorteadas. Seu único recurso para manter a disciplina era berrar palavrões e distribuir castigos indistintamente. Meia ração para o grupo todo! Outra chamada em posição de sentido. Proibição de conversas durante vinte e quatro horas! Havia apenas uma supervisora que nunca ameaçava nem levantava a voz. Era a matrona alta e silenciosa de Scheveningen. Ela surgiu em Vught no terceiro dia que estávamos lá, durante a chamada geral da madrugada, e, logo, um espírito de ordem tomou conta de nossas desarrumadas e rebeldes fileiras. As filas saíam retas agora; as mãos colavam-se bem ao lado, e os sussurros cessaram por completo quando aqueles olhos azuis de gelo varreram o grupo. Nós a apelidáramos entre nós de "General". Durante uma das longas chamadas, uma mulher grávida derreou-se ao chão, sua cabeça chocando-se surdamente contra a ponta de um banco. A "General" nem ao menos fez uma pausa, em sua monótona leitura de nomes. Estávamos neste campo externo de Vught há duas semanas, quando eu e Betsie e mais umas doze pessoas fomos chamadas pelo nome, durante a chamada matinal. Depois que as outras foram dispensadas, a "General" distribuiu uns formulários datilografados para nós, e disse que deveríamos apresentar-nos no alojamento da administração às 9:00h. Um homem da turma de alimentação - que já estava em Vught há muito tempo, e era do campo central - sorriu para nós alegremente, ao servir-nos nossa concha de desjejum. - Vocês estão livres, sussurrou. Esses formulários cor-de-rosa significam liberdade.

Fitamos o papel em nossa mão incredulamente. Livres? Livres para sair... para ir para casa? As outras se chegaram a nós, abraçando-nos, cumprimentando-nos. As mulheres que haviam sido da mesma cela que Betsie em Scheveningen choravam abertamente. Que crueldade ter que deixá-las ali! - A guerra deve acabar logo, dizíamos. Esvaziamos nossas fronhas, e distribuímos nossos poucos pertences com aquelas que iriam ficar. Bem antes de 9:00h, já nos encontrávamos na grande antesala do escritório da administração. Depois, fomos levadas para dentro e nossos formulários foram examinados, carimbados e entregues a um dos guardas. Seguimos o homem por um corredor e chegamos a outro escritório. O processo se repetiu por horas e horas. Éramos mandadas de uma sala para outra, de um oficial para outro. Fomos interrogadas, tiramos impressões digitais e depois fomos levadas para outro lugar. O grupo de prisioneiras foi sendo aumentado, até que já nos contávamos em quarenta ou cinqüenta, numa fila ao lado de uma alta cerca de tela, encimada por arame farpado. Fora havia um bosque de vidoeiros brancos, acima, o céu azul de Brabant. Nós também pertencíamos àquele mundo livre. No escritório seguinte, havia uma fileira de mesas ocupadas por mulheres. Chamada a uma delas, recebi um envelope pardo. Derramei seu conteúdo na mão, e vi, espantada, meu relógio de marca Alpina, a aliança de mamãe, e até meu dinheiro. Eu não via aquelas coisas desde o dia que chegáramos a Scheveningen. Dinheiro... isso pertencia ao mundo das lojas e bondes. Nós poderíamos ir a uma estação de estrada de ferro. "Duas passagens

para Haarlem, por favor..." Seguimos por uma estrada cercada de arame farpado dos dois lados, e penetramos por um grande portão, chegando finalmente a um conjunto de construções baixas de telhado de zinco. Mais filas e mais esperas, mais idas e vindas de uma mesa para outra. Mas aquilo tudo se tornara irreal para mim. Por fim, estávamos diante de um balcão alto, e uma jovem nos disse: - Entreguem seus objetos pessoais no guichê C. - Mas eu tinha acabado de recebê-los! - Relógios, bolsas, jóias... Mecanicamente, como uma máquina sem vontade própria, entreguei o relógio, anel e dinheiro por um guichê gradeado. Uma mulher fardada pegou-os e colocou-os numa caixa de metal. - Mova-se! A seguinte! Então - não íamos ser soltas? Já fora, um oficial de rosto rosado mandou-nos formar em coluna por duas, e depois saímos, atravessando uma larga praça de treino. Em uma das extremidades dela, havia um grupo de homens de cabeça raspada, vestidos de macacões listrados, cavando uma vala. O que significava aquilo? O que significava todo aquele dia de filas e esperas? O rosto de Betsie estava pálido de cansaço, e ela tropeçou várias vezes no caminho. Atravessamos outra cerca, e entramos num terreno onde havia um edifício de concreto em forma de U. Uma jovem oficial que usava uma capa militar estava à nossa espera. - Prisioneiras, alto! gritou o oficial de rosto vermelho. Fraulein, por favor, explique a elas a função da casamata. - A casamata, começou a jovem, falando numa voz monótona

de guia de museu, é para abrigar aquelas que deixarem de obedecer os regulamentos do campo. Os quartos são "confortáveis", embora não muito grandes: mais ou menos do tamanho de um armário. Para acelerar o processo educacional, as mãos da pessoa são atadas acima da cabeça... Enquanto aquele horrível recitativo ainda se processava, dois guardas saíram do prédio carregando um homem. Estava vivo, pois suas pernas estavam se movendo, mas ele não parecia ter controle sobre elas. Seus olhos estavam encovados e giravam nas órbitas. - Ninguém parece gostar muito das acomodações ali, continuou a moça, na mesma cadência, destacando bem as palavras. Agarrei o braço de Betsie, ao ouvir a ordem para nos colocarmos de novo em marcha, mais para firmar-me do que para auxiliá-la. Era a maleta de viagem de papai, que eu via novamente. Essa crueldade era demais para se entender, demais para se suportar. "Pai celeste, carregue-a para mim." Seguimos o oficial por uma estrada ampla, com alojamentos dos dois lados, e, por fim, paramos junto de uma construção cinzenta. Era o ponto final de uma série de esperas, filas, esperas; tínhamos chegado ao campo de Vught, propriamente dito. Os alojamentos eram quase idênticos ao que tínhamos deixado naquela manhã, com a diferença que estes tinham camas, além das mesas e bancos. Ainda não recebêramos permissão para nos sentar: houve uma última espera enquanto a supervisora, com uma calma deliberada e exasperante, conferia nossos documentos, com uma lista que tinha em mãos. - Betsie, suspirei, quanto ainda vai demorar? - Muito tempo, talvez. Talvez muitos anos. Mas não po-

deríamos encontrar melhor forma de passarmos o resto da vida. Voltei-me e olhei para ela. - De que é que você está falando? - Dessas moças. Aquela jovem da casamata. Corrie, se as pessoas podem aprender a odiar, podem aprender a amar. Temos que encontrar a maneira de ensinar-lhes isto, eu e você; não importa o tempo que levar... E ela prosseguiu falando, quase se esquecendo, no ímpeto do entusiasmo, de falar baixinho, e eu, aos poucos, fui percebendo que ela estava se referindo às guardas. Olhei para a policial sentada à mesa, adiante de nós. Eu via apenas um uniforme cinza e um quepe com viseira; Betsie via um ser humano em grande necessidade. Então eu me indaguei - e não era a primeira vez - que tipo de pessoa era essa minha irmã, que tipo de caminho ela palmilhava, enquanto eu, ao seu lado, pisava o chão firme desta nossa terra. *** Alguns dias depois, fomos chamados à supervisora para distribuição de serviço. Bastou um olhar dela à figura frágil e ao rosto pálido de Betsie, para que a dispensasse com um aceno de mão, para que voltasse ao alojamento onde as mais idosas e doentes passavam o dia fazendo os uniformes da prisão. A roupa das mulheres em Vught era um macacão azul, com uma estria vermelha na perna. Era prático e confortável, uma boa variante para nossas próprias roupas, as quais usávamos desde o dia em que fôramos presas.

Aparentemente, eu devia estar forte bastante para trabalhar, pois ela me disse para me apresentar à fábrica da Phillips. Essa "fábrica" era, na realidade, outra longa construção semelhante aos tipos de alojamentos, e que pertencia ao agrupamento do campo. Mesmo de manhã, o piche, sob o telhado fino, estava começando a dar bolhas, ao calor do forte sol de julho. Segui a guarda até o amplo salão onde várias centenas de pessoas se encontravam sentadas a mesas de pranchas, sobre as quais se viam pequeninas peças de rádio. Dois oficiais, um homem e uma mulher, estavam percorrendo o corredor entre os bancos, e os prisioneiros trabalhavam inclinados sobre sua tarefa. Coube-me um lugar num dos bancos da frente. Minha tarefa era medir pequeninas varetas de vidro e empilhá-las de acordo com o comprimento. Era um serviço monótono. O calor do telhado parecia causar uma pressão enorme sobre a cabeça. Eu desejava ao menos poder perguntar o nome e a procedência dos que me ladeavam, mas o único ruído que se ouvia ali era o clique-clique das peças de metal sendo ajustadas, e o rangido das botas dos oficiais. Eles pararam à porta, perto da qual eu me achava. - A produção subiu novamente na semana passada, disse o oficial, em alemão, a um homem alto, de cabeça raspada, e de uniforme listado. Você receberá uma menção por causa disto. Contudo nós ainda estamos recebendo reclamações a respeito de defeitos na fiação. Temos que melhorar o controle de qualidade. O homem fez um gesto vago como que pedindo desculpas. - Se houvesse mais alimentação, Herr Officier (Senhor Oficial), murmurou ele. Desde que houve o corte na ração, notamos esta diferença. Eles ficam sonolentos, têm dificuldade de se

concentrar... A voz dele lembrava-me a de Willem, grave, bem timbrada, e com apenas um leve sotaque holandês, ao falar em alemão. - Então, você tem que acordá-los. Relembre-lhes as penalidades. Se os soldados do front podem lutar com meia ração, então estes preguiçosos... A um olhar terrível da mulher, ele parou e passou a língua nos lábios. - Isto é, estou falando como exemplo. Não há confirmação de que as rações do front tenham sido reduzidas. Pois bem! Eu o responsabilizo por isso! E os dois oficiais retiraram-se juntos. Por alguns momentos, o prisioneiro supervisor olhou-os pela porta aberta. Depois, ergueu vagarosamente a mão esquerda e deixou-a cair, com um tapa na perna. O salão explodiu. De sob as mesas, apareceram blocos, livros, lã, latas de pãezinhos, etc. Alguns saíram do lugar e formaram pequenos núcleos de conversação espalhados por todo o aposento. Uma meia dúzia me rodeou: Quem era eu? De onde viera? Sabia alguma novidade sobre a guerra? Depois de uma meia hora de conversa, o supervisor nos relembrou da quota diária, e os trabalhadores começaram a regressar aos seus lugares. Vim a saber que o nome do encarregado era Moorman, e havia sido diretor de uma escola católica para meninos. No terceiro dia, ele se aproximou do meu banco. Soubera que eu andara por toda a linha de montagem, para saber o destino da minha pilhazinha de varetas. - Você é a primeira operária, disse-me, que demonstra algum interesse pelo que fazemos aqui.

- Eu estou muito interessada, respondi-lhe. Sou relojoeira. Ele fitou-me com grande atenção. - Então aqui há um outro trabalho de que você gostará muito. Conduziu-me para o lado oposto daquela imensa coberta onde era feita a montagem final dos relês. Era um trabalho minucioso e que exigia muito, embora não fosse tão difícil quanto o conserto de relógios. E o Sr. Moorman estava certo. Gostei demais da tarefa, e isto ajudou-me a atravessar melhor o dia de onze horas de trabalho. Não somente para mim, mas para todos os outros operários da Phillips, Moorman agia mais como um paciente irmão mais velho do que como chefe. Eu o via mover-se incessantemente entre seus comandados, aconselhando, encorajando, procurando um serviço mais simples para os mais cansados, um mais pesado para os irrequietos. Já estávamos em Vught há um mês, quando vim a saber que seu filho de vinte anos havia sido fuzilado ali mesmo em Vught, na semana em que lá chegáramos. Nada dessa tragédia pessoal transparecia em seus modos, em seu cuidado conosco. Nas primeiras semanas, ele parou muitas vezes junto ao meu banco, mais para observar meu estado de ânimo, do que meu trabalho. De vez em quando, seus olhos percorriam a fila de relés à minha frente. - Minha cara senhora, não se lembra mais para quem está trabalhando? Estes rádios são para os aviões de combate! Então, estendia a mão e retirava um fio de seu encaixe, ou uma válvula da montagem. - Agora, coloque-os de volta no lugar errado. E mais devagar. Você já ultrapassou sua quota diária, e ainda não é nem meio-dia.

*** A hora do almoço, se eu pudesse passá-la com Betsie, seria a melhor hora do dia. Os operários da Phillips só tinham permissão para deixar a fábrica ao fim do dia de trabalho, às 6:00h. Os prisioneiros que serviam na cozinha entravam trazendo grandes caçambas contendo uma espécie de sopa de trigo e ervilhas, sem gosto, mas nutritiva. Aparentemente, tinha havido um corte na ração, mas ainda assim, a alimentação era melhor e mais abundante que em Scheveningen, onde não havia uma refeição ao meio-dia. Depois de comermos, tínhamos uma deliciosa meia hora para caminharmos pela área da fábrica, gozando do ar fresco e do maravilhoso sol de Brabant. Na maioria das vezes, eu procurava um canto tranqüilo perto da cerca, e me deitava sobre a terra quente e dormia (as atividades do dia começavam às 5:00h da manhã). Com a brisa, chegavam até nós os doces aromas de verão das fazendas que ficavam ao redor. Às vezes, eu ficava a sonhar que eu e Karel estávamos passeando de mãos dadas por uma daquelas estradinhas da roça. Às 6:00h da tarde, havia outra chamada, e depois seguíamos de volta para os alojamentos. Betsie sempre me esperava à porta do nosso, e sempre tínhamos tanto que nos contar que parecia que estiváramos separadas por uma semana. - O casal de namorados que trabalha perto de mim, os belgas, resolveram ficar noivos. - A Sra. Heerma - aquela cuja avó foi levada para a Alemanha - hoje ela permitiu que eu orasse por ela. Numa destas ocasiões, a notícia que Betsie me deu dizia

respeito a nós, diretamente. - Uma senhora de Ermelo foi transferida para a secção de costura hoje. Quando eu me apresentei, ela disse: "Mais uma!" - O que ela queria dizer com isto? - Corrie, você se lembra de que, no dia que nós fomos presas, um homem fora à loja? Você estava doente e eu tive que acordá-la. Eu me lembrava bem. Lembrava-me daqueles olhos inquietos, da estranha sensação de mal-estar que não era causada só pela febre. - Parece que todo mundo de Ermelo o conhecia. Ele começou a trabalhar para a Gestapo desde o primeiro dia de ocupação. Ele delatou os dois irmãos daquela mulher e depois, ela e o marido. Quando o povo de Ermelo descobriu isso, ele já fora para Haarlem e se unira a Willemse e Kapteyn. Seu nome era Jan Vogel. Meu coração pareceu se incendiar ao som daquele nome. Pensei nas horas finais de papai, sozinho e confuso num corredor de hospital. Pensei em nosso trabalho tão abruptamente interrompido. Pensei em Mary Itallie, presa quando caminhava por uma rua. Eu sabia que se Jan Vogel aparecesse diante de mim agora, eu o mataria. Betsie puxou a sacolinha de pano de sob o macacão, e estendeu-a para mim, mas eu balancei a cabeça. Agora, Betsie ficava com a Bíblia durante o dia, já que ela tinha mais oportunidade de lêla e ensiná-la aqui no alojamento do que eu na fábrica. À noite, realizávamos uma reunião de oração clandestina, para quantos pudessem ajuntar-se ao redor de nossa cama. - Você dirige hoje, Betsie. Estou com dor de cabeça.

Era mais do que dor de cabeça. Todo o meu ser doía por causa da violência dos meus sentimentos contra o homem que havia nos prejudicado tanto. Não dormi nada naquela noite e, no dia seguinte, em minha banca de trabalho, eu mal ouvia a conversa ao meu redor. Depois de uma semana, eu havia chegado a um tal estado de desespero que me sentia doente de corpo e espírito. O Sr. Moorman parou perto do meu banco para indagar se havia algo de errado comigo. - Errado? Sim; há uma coisa errada comigo. E narrei-lhe o que acontecera naquela manhã, no Beje. Eu queria contar ao Sr. Moorman e a toda a Holanda como Jan Vogel atraiçoara seu país. O que mais me espantava em tudo, porém, era Betsie. Ela passara por tudo aquilo e parecia não ter a mínima parcela de ódio. Uma noite, quando eu sabia que minha inquietação na cama a mantinha acordada, disse-lhe: - Betsie, você não sente nada contra este Jan Vogel? Isso não a incomoda? - Lógico, Corrie, e muito. Eu sinto muito por ele, desde que soube da verdade - e oro por ele toda vez que seu nome me vem à mente. Como ele deve estar sofrendo! Fiquei acordada muito tempo, no imenso alojamento em sombras, invadido apenas pelo ruído do ressonar e dos leves movimentos de centenas de mulheres. Novamente ocorria-me que esta minha irmã, com quem eu convivera toda a minha vida, pertencia a uma ordem diferente de seres. Ela não estava insinuando de maneira suave, que eu era tão culpada quanto Jan Vogel? Não era verdade que ele e eu estávamos diante de um Deus que tudo vê,

e éramos culpados do mesmo pecado de assassinato? Pois eu o havia matado em meu coração e com minha língua. - Senhor Jesus, orei, falando para a grosseira fazenda da roupa de cama, eu perdôo Jan Vogel, e peço-te que tu me perdoes também. Eu o prejudiquei grandemente. Abençoa-o e a sua família também... Naquela noite, pela primeira vez desde que soubera o nome do nosso delator, eu dormi profundamente, um sono sem sonhos, até ouvir o apito que nos despertava para a chamada matinal. *** Em Vught, alguns dias eram melhores, outros piores. A chamada da manhã, muitas vezes, era cruelmente longa. Se o menor regulamento fosse desobedecido, como por exemplo, se uma prisioneira chegasse tarde para a verificação noturna, o grupo inteiro era punido com chamada às 4:00h da madrugada, ou mesmo às 3:30h e tínhamos que ficar em posição de sentido até as costas doerem e as pernas terem cãibras. Naquele verão, porém, o ar estava cálido e o céu cheio de pássaros ao nascer do dia. Gradualmente, no leste, uma luz rosa-dourada iluminava aquele imenso céu de Brabant, e eu e Betsie nos dávamos as mãos, em admiração. Às 5:30h, tomávamos café - um café amargo e muito quente com pão preto, e depois partíamos em fila para os locais de trabalho. Eu sempre apreciava esta caminhada até a fábrica. Parte da estrada ladeava um pequeno bosque, e estávamos separados daquele mundo de brilhantes gotas de orvalho apenas por uma cerca de

arame

farpado.

Passávamos

também

por

uma

parte

do

acampamento dos homens, e muitas das mulheres se esforçavam para tentar identificar maridos e filhos por entre as fileiras de cabeças raspadas e macacões listrados. Este era outro dos paradoxos de Vught. Eu me sentia continuamente grata de estar outra vez no meio das outras pessoas. Uma coisa, porém, que eu não percebera quando me encontrava em confinamento solitário, era que ter companheiros significa ter os seus problemas também. Nós todas sofríamos com as mulheres cujos maridos e filhos estavam no acampamento: os castigos na secção masculina eram muito mais duros que na feminina; havia fuzilamentos freqüentes. Quase que diariamente ouvia-se uma salva de tiros que logo levava todo mundo a indagar: quantos, desta vez? Quem seriam eles? A Sra. Floor, a mulher que se sentava junto a mim na mesa de montagem, era comunista. Ela e o marido haviam conseguido enviar os dois filhinhos para a guarda de amigos, antes de serem presos, mas ela se preocupava o dia todo com eles e com o Sr. Floor, que era tuberculoso. Ele trabalhava com o grupo da fábrica de cordas, cujo prédio era perto do nosso, e, na hora do almoço, eles trocavam algumas palavras através da cerca de arame que separava os dois recintos.

Embora ela estivesse esperando uma criança

para setembro, nunca comia o seu pedaço de pão da manhã e o passava para ele. Eu achava que ela estava muito magra, para uma mulher em seu estado, e muitas vezes dei-lhe o meu pedaço, mas ela o dava para o marido. Contudo, apesar da tristeza e da ansiedade - e ninguém ali estava livre de sofrer as duas - havia risos também no pavilhão da

Phillips. Ora era alguém que fazia uma imitação do nosso pomposo e convencido segundo tenente; ora, uma brincadeira de cabra-cega, uma canção cantada em cânone, de banco em banco, até que... - Chuva pesada! Chuva pesada! O sinal poderia vir de qualquer dos bancos próximos à janela. A fábrica estava situada no centro do terreno da Phillips; não havia jeito de nenhum oficial aproximar-se sem ser visto. Num instante, cada pessoa estaria no seu lugar, e o único barulho que se ouviria, seria o ruído convencional das peças sendo montadas. Um dia, as palavras do código ainda estavam sendo repetidas ao fundo do longo pavilhão, quando uma Aufseherin (supervisora) meio gorducha, surgiu à porta. Ela deu uma olhada furiosa por todo o salão, rosto vermelho de raiva, por ter aplicado a si as palavras "chuva pesada". Ela berrou e falou por cerca de quinze minutos, depois tirou-nos nossa meia hora de folga ao meio-dia, ao ar livre. Depois disso, resolvemos adotar um sinal mais neutro: "Quinze". - Já montei quinze painéis de controle. Durante as longas tardes de verão, as brincadeiras e conversas diminuíram um pouco, pois cada um permanecia em seu lugar, a sós com os próprios pensamentos. Fiz marcas num dos lados da mesa para corresponder aos dias que faltavam até primeiro de setembro. Não havia nada de oficial a respeito daquele dia, apenas um comentário feito casualmente pela Sra. Floor de que a pena para os acusados de falsificação ou roubo de cartões de racionamento era de seis meses. Então, se fosse essa a acusação contra

nós,

e

se

contassem

nosso

tempo

de

prisão

em

Scheveningen, deveríamos ser postas em liberdade no dia 1.° de setembro.

- Corrie, não sabemos nada com certeza, disse-me Betsie, certo dia, quando lhe lembrei que metade de agosto já se fora. Fiquei com a impressão de que, para Betsie, aquilo não importava muito. Olhei para ela sentada em nossa cama, naqueles momentos finais do dia, antes que a luz se apagasse, remendando meu macacão, exatamente como fazia ao clarão da lâmpada de nossa sala de jantar. O modo de ela se sentar fazia-me pensar numa cadeira de encosto alto e um tapete a seus pés, em vez da imensa fileira de catres sobre um assoalho de madeira, totalmente desguarnecido. Na primeira semana que passáramos ali, ela colocara mais alguns colchetes no seu macacão para melhor ajustar a gola ao pescoço, e, feito isto, parecera-me que ela estava tão contente de estar em Vught, lendo a Bíblia para pessoas que nunca a tinham ouvido, como se estivesse no Beje, distribuindo sua sopa aos pobres e famintos. Quanto a mim, eu decidira, firmemente, esperar pelo dia 1.° de setembro. *** Então, de repente, começou a parecer que não íamos ter que esperar tanto. Ouvimos rumores de que a Brigada Princesa Irene estava na França, movendo-se em direção à Bélgica. Essa brigada era uma guarnição das forças holandesas que haviam fugido para a Inglaterra, durante os cinco dias de guerra; agora, estava em marcha para retomar o que era seu. Notava-se claramente que os guardas estavam tensos. A chamada era uma agonia. Os velhos e enfermos que demoravam a

chegar ao seu lugar eram espancados sem misericórdia. Até mesmo o grupo da "luz vermelha" era chamado à ordem. Aquelas jovens eram, em geral, muito favorecidas. Eram prostitutas, a maioria delas de Amsterdam, e estavam presas não por causa de sua profissão - que era considerada um dever patriótico - mas por terem contagiado soldados alemães. Geralmente, elas eram bem desinibidas e desembaraçadas ao se defrontarem com os guardas; mas agora, até mesmo elas tinham de formar em linha bem reta e ficar horas e horas em rígida posição de sentido. O batalhão de fuzilamento era ouvido mais e mais vezes. Certo dia, a Sra. Floor não regressou à banca de trabalho após o almoço. Meus olhos sempre demoravam um pouco a se reajustar à obscuridade da fábrica depois da intensa claridade do ar livre. Com minha visão recuperando-se gradualmente, vi o pedaço de pão preto que ainda estava em seu prato. Ninguém o levara para o Sr. Floor. Os dias se passavam, e nossos sentimentos oscilavam entre o horror e a esperança. Tudo que possuíamos eram rumores. A brigada estava na fronteira da Holanda. A brigada fora destruída. A brigada nunca chegara à costa. Mulheres que não freqüentavam nossa reunião de oração em sussurros, agora se chegavam a nós, querendo obter sinais e predições da Bíblia. No dia 1.° de setembro, a Sra. Floor teve uma menina que viveu apenas quatro horas. Vários dias depois, nós acordamos à noite, ao som de detonações à distância. Bem antes de soar o apito para a chamada, o alojamento todo estava de pé, indo e vindo por entre as camas. Seria um bombardeio? Fogo de artilharia? Naturalmente, a brigada tinha

chegado a Brabant. Hoje mesmo deveria estar em Vught. Os gritos e ameaças dos guardas, quando estes chegaram, não nos assustavam em nada. Todos estavam de cabeça virada, pensando em casa e fazendo planos. - As plantas já devem estar todas mortas, disse Betsie, mas nós poderemos arranjar umas mudas com Nollie! Vamos lavar todas as janelas para deixar a luz do sol entrar. Na fábrica, o Sr. Moorman tentou nos esfriar o ânimo. - Isso não é barulho de bomba, disse ele, nem de tiros de rifle. É de demolição. São os alemães. Provavelmente, eles estão demolindo pontes. Isto quer dizer que esperam um ataque a qualquer momento, mas não quer dizer que já tenha começado. Ainda pode demorar muito. Suas palavras nos fizeram arrefecer um pouco, mas, à medida que as explosões se aproximavam mais, nada poderia impedir que nossa esperança aumentasse. Elas estavam tão perto que chegavam a nos doer os tímpanos. - Abram a boca, gritou o Sr. Moorman para nós. Fiquem de boca aberta; isso ajuda a aliviar a pressão. Nossa refeição do meio-dia foi dentro do pavilhão, com as janelas fechadas. Uma hora depois de retomarmos o trabalho - ou melhor, sentarmos às bancas: ninguém conseguia se concentrar veio a ordem de regressarmos aos dormitórios. As mulheres que tinham maridos ou namorados trabalhando na fábrica, abraçavam-se a eles com uma súbita ansiedade. Betsie estava me aguardando à porta de nosso alojamento. - Corrie, a brigada chegou? Estamos livres? - Não, ainda não. Não sei. Ah, Betsie, estou com tanto medo;

por que isto? O alto-falante do lado dos homens fez soar o sinal de atenção. Nós não recebemos ordem alguma, e ficamos rodando por ali, sem propósito certo, esperando, sem saber o quê. Ouvimos a leitura de nomes na secção masculina, mas não conseguíamos distingui-los. Um medo insano e repentino tomou conta das mulheres ali. Um silêncio mortal caiu sobre os dois lados do imenso campo. O alto-falante emudecera. Nós nos entreolhávamos caladas, quase temendo até respirar. O som dos fuzis feriu o ar. Algumas mulheres começaram a chorar. Mais tiros. Outra vez. As execuções duraram duas horas. Alguém contara: mais de setecentos prisioneiros foram executados naquele dia. Dormiu-se pouco no alojamento, naquela noite. Não houve chamada na manhã seguinte. Mais ou menos às 6:00h, recebemos ordem de apanhar nossas coisas. Eu e Betsie colocamos nossos pertences

dentro

das

fronhas

que

havíamos

trazido

de

Scheveningen: escova de dentes, agulhas, linhas, um vidrinho de remédio que viera num pacote da Cruz Vermelha, e a blusa azul de Nollie que era a única coisa que trouxéramos da secção de quarentena, quando de lá viéramos há dois meses e meio. Tirei a sacola da Bíblia das costas de Betsie e transferi-a para mim. Ela estava tão magra que o volume era claramente visível entre suas espáduas. Fomos levadas a um campo onde alguns soldados estavam distribuindo cobertores que tiravam de um caminhão. Quando chegou nossa vez, apanhamos dois cobertores novos, macios e

bonitos. O meu era branco com listas azuis; o de Betsie, branco e vermelho. Deveriam ter sido confiscados de alguma família abastada. O êxodo começou perto do meio-dia. Saímos pela escadinha feia, com alojamentos dos dois lados, passamos pela casamata, pelos agrupamentos de prédios cercados de arame farpado, e, por fim, chegamos ao caminho de terra batida que cortava o bosque, e pelo qual marcháramos aos tropeções naquela noite chuvosa de junho. Betsie agarrou-se ao meu braço; sua respiração era difícil, como sempre acontecia quando ela tinha que caminhar qualquer distância. - Marchar em frente! Schnell! Dobrar o passo! Passei o braço pelos ombros de Betsie, e quase carreguei-a pelo resto do caminho. Chegamos então ao fim da estrada, e permanecemos em fila, olhando para os trilhos da estrada de ferro, mais de mil mulheres ali, pisando nos calcanhares umas das outras. Um pouco mais afastado, o grupo de homens também aguardava. Era impossível reconhecer quem quer que fosse entre aquelas cabeças raspadas que brilhavam ao sol de outono. A princípio pensei que o trem ainda não chegara; mas depois compreendi que aqueles vagões de carga que ali se achavam, eram para nós. Os homens já estavam sendo embarcados, cada um erguendo-se como podia a fim de alcançar a alta porta. Não víamos a locomotiva, mas apenas uma longa fileira de vagões pequenos, montados sobre grandes rodas, e que sumia de vista em ambas as direções, com metralhadoras colocadas no topo deles, de intervalo a intervalo. Alguns soldados vinham se aproximando, parando em cada carro para abrir as portas corrediças. À nossa frente, escancarou-se

a boca escura do carro. As mulheres começaram a avançar. Fomos levadas de roldão, procurando segurar bem os cobertores e fronhas. Betsie ainda estava respirando com dificuldade, por causa da rápida caminhada. Tive que empurrá-la para que pudesse subir. Logo de princípio, não consegui ver nada no interior do vagão. Num dos cantos enxerguei uma sombra alta, disforme. Era uma pilha de pães pretos, dezenas e dezenas de pães empilhados uns sobre os outros. Seria uma viagem longa, então... O pequeno vagão estava ficando lotado. Fomos empurradas até à parede dos fundos. Ali caberiam, quando muito, trinta ou quarenta pessoas, mas os soldados continuavam empurrando mulheres para dentro, praguejando e fazendo ameaças com as armas. Gritos de protesto partiam do centro do grupo, mas ainda assim o aperto continuava. Somente quando já havia oitenta mulheres amontoadas ali, foi que a porta se fechou, e o ferrolho foi colocado. Algumas estavam chorando; outras desmaiavam, embora naquele aperto permanecessem de pé. Quando já estávamos pensando que as do meio iriam morrer sufocadas ou pisadas, conseguimos arranjar um modo de nos sentarmos no assoalho do vagão: passando as pernas ao redor umas das outras, como uma equipe de regata. - Sabe de que sou grata a Deus? A voz suave de Betsie surpreendeu-me no meio daquela confusão toda. - Estou alegre de que papai esteja no céu. Papai! Ah, papai, por que eu chorara por sua causa?

O sol começou a aquecer o trem parado; a temperatura ali dentro foi se tornando insuportável; o ar, viciado. Uma mulher ao meu lado estava tentando arrancar um prego da madeira velha do carro. Afinal ele se soltou; com a ponta, ela começou a alargar o orifício. Outras seguiram seu exemplo, e, em pouco tempo, começaram a circular entre nós, lufadas de ar vindo de fora. Passaram-se algumas horas antes que o trem desse um arranco para a frente e partisse. Pouco depois parou; depois arrancou de novo, seguindo bem devagar. O resto do dia e noite adentro, foi a mesma coisa: parava, arrancava; parava subitamente, arrancava. Uma vez, quando era meu turno de ficar junto ao respiradouro que abríramos, vi alguns homens carregando um pedaço de trilho retorcido. Os trilhos deviam ter sido destruídos. Passei a notícia para as outras. Talvez eles não conseguissem consertá-los a tempo. Talvez ainda estivéssemos na Holanda quando o momento de libertação chegasse. Senti que a testa de Betsie queimava. A moça da "luz vermelha" que se encontrava atrás de mim, apertou-se mais para que Betsie pudesse deitar em meu colo. Eu também fiquei dormindo e acordando durante algum tempo, descansando a cabeça no ombro da amável moça que estava atrás de mim. Numa dessas vezes tive um sonho. Sonhei que estava caindo uma chuva de pedras, e eu ouvia as pedrinhas batendo nas janelas da frente do quarto de Tia Jans. Abri os olhos. Estava chovendo mesmo. As pedrinhas se chocavam contra a parede do carro. Todas estavam acordadas e conversando. Outra saraivada de pedras. Foi então que ouvimos o matraquear da metralhadora no

teto do trem. - É barulho de balas! gritou alguém. Estão atacando o trem. Outra vez o ruído de pedrinhas sendo atiradas contra o vagão, e, em seguida, a resposta da metralhadora. Será que a brigada

chegara

afinal?

Os

tiros

diminuíram

até

cessarem

completamente. O trem ainda ficou parado mais de uma hora. Depois, começou a avançar vagarosamente de novo. Pela madrugada, alguém gritou um aviso de que estávamos atravessando a cidade fronteiriça de Emmerich. Chegáramos à Alemanha.

Capítulo 13 - Ravensbruck, o Campo de Extermínio Durante dois dias e duas noites, fomos nos internando mais e mais naquela terra cheia de terrores para nós. Ocasionalmente, os pães eram distribuídos, passando de mão em mão. Entretanto nenhuma providência fora tomada quanto ao cuidado sanitário, e o ar do vagão estava de tal modo, que quase ninguém conseguia comer. Pior que o aglomerado dos corpos, porém, foi a obsessão que gradualmente tomou conta de nós: à sede. Nas duas ou três vezes que o trem parou, a porta foi parcialmene aberta, e um balde de água introduzido. Contudo nós nos tornáramos como animais, destituídas de qualquer senso de organização e raciocínio. As que se encontravam junto à entrada, ficavam com tudo. Por fim, na manhã do quarto dia, o comboio parou e a porta foi totalmente aberta. Como criancinhas de colo, engatinhamos até a saída e descemos. À nossa frente, um lindo lago azul parecia sorrir para nós. A distância, em meio a um bosque de sicômoros, erguia-se a torre aguda de uma igrejinha branca. As prisioneiras mais fortes começaram a buscar vasilhas de água do lago. Bebemos avidamente, aliviando lábios inchados e ressequidos. O trem estava bem menor; os carros dos homens haviam sido desligados. Havia apenas alguns soldados - e alguns pareciam não ter mais que uns quinze anos - para a guarda das mil mulheres. E não eram necessários mais que aqueles. Mal podíamos caminhar, quanto mais resistir. Depois de algum tempo, formaram-nos em colunas desor-

denadas, e partimos. A estrada rodeava o lago por cerca de um quilômetro e meio, depois, desviava-se em direção a uma colina. Eu receava que Betsie não agüentasse subi-la, mas parecia que a vista das árvores e do céu a havia reanimado, e, afinal, ela me amparava tanto quanto eu a ela.

Encontramos várias pessoas da região

pelo caminho, alguns a pé, outros em carroças. Extasiei-me olhando para as crianças que pareciam todas lindas, de rosto rosado e saudáveis. Elas retribuíam meus olhares com grande interesse. Notei, porém, que os adultos não nos fitavam. Quando nos aproximávamos, viravam o rosto. Do topo da colina avistamos o campo. Era como uma imensa cicatriz escura em meio à verdura da paisagem: um conjunto de alojamentos baixos, de cor cinzenta, cercado de muros de concreto, nos quais havia torres de vigia, a intervalos regulares. Bem no centro, uma chaminé quadrada deitava uma fumaça fina e pardacenta. - Ravensbruck! O nome foi passando de boca em boca até o fim da fila como uma maldição murmurada entre dentes. Este era, então, o famigerado campo de extermínio de mulheres, do qual até mesmo em Haarlem ouvíramos falar. Aquela construção atarracada, aquela fumaça que se dissolvia à luz do sol - não! Eu não queria olhar para aquilo! Enquanto descíamos estrada abaixo, tropegamente, senti a Bíblia sacolejar às minhas costas. A boa nova de Deus! Será que ele a enviara para este nosso mundo atual também? Agora já estávamos bem próximos, e víamos o emblema da caveira encimando os ossos cruzados, colocado em alguns pontos do muro, para indicar a existência dos fios eletrificados que corriam

por toda a extensão dele. Os portões foram abertos, e nós passamos. Um grande número de alojamentos surgiu aos nossos olhos. Junto ao muro, via-se uma fileira de torneiras. Corremos para elas, estendendo mãos, braços e pernas e até a cabeça sob a torrente de água, procurando livrar-nos do mau cheiro dos vagões. Um grupo de guardas, fardados de azul-escuro, arremeteram-se contra nós, gritando e empurrando, brandindo cassetetes curtos. Afinal, conseguiram nos afastar dali, e nos conduziram por um caminho que corria pelo meio dos alojamentos. Este campo era muito mais sujo que Vught. Ali, pelo menos, quando passeávamos pela área, podíamos ver os bosques e campos. Aqui, a vista sempre esbarrava na mesma muralha de concreto. O campo fora construído em um grande vale artificial, cujos lados se viam por trás dos muros eletrificados. Por fim, paramos. Uma vasta tenda de lona - sem paredes laterais - estendia-se por cerca de um acre de terreno, o chão recoberto de palha. Eu e Betsie procuramos um espaço próximo à beirada e deixamo-nos cair nele. No mesmo instante, pusemo-nos de pé. Piolhos! A palha estava infestada de piolhos. Ficamos de pé durante alguns minutos, abraçando cobertores e fronhas para não tocarem a palha infestada. Por fim, tivemos que estender o cobertor sobre a palha e sentar nele. Algumas prisioneiras haviam trazido tesouras de Vught: estavam todas se apressando em cortar o cabelo umas das outras. Uma tesoura chegou até nós. Tínhamos que fazer o mesmo, lógico; seria uma loucura deixar o cabelo longo neste lugar. Quando, porém, cortei as ondas do cabelo castanho de Betsie, chorei.

À tardinha, houve uma movimentação em um dos lados da tenda. Um grupo de guardas estava afastando as mulheres de sob a lona.. Erguemo-nos rapidamente e agarramos nossos cobertores. Acerca de cem metros da tenda a corrida parou. Ficamos por ali, sem saber o que fazer. Não sabíamos se um novo grupo de prisioneiros chegara, ou qual era a causa de nos terem mandado sair da tenda. Algumas mulheres começaram a estender o cobertor no chão duro, e cascalhado. Lentamente, chegamos à conclusão de que teríamos que passar a noite ali mesmo. Estendemos meu cobertor no chão; deitamos sobre ele lado a lado, e cobrimo-nos com o de Betsie. - A noite é escura, e longe do lar estou... começou Betsie a cantar com sua voz suave de soprano, e outras uniram-se à dela. Guia-me, Senhor... No meio da noite, fomos despertados pelo ronco de um trovão e uma chuva forte. As cobertas ficaram logo empapadas; poças se formavam debaixo de nós. Pela manhã, todo o campo era um imenso pântano alagado: mãos, rostos e roupas, tudo estava coberto de lama negra. Ainda estávamos torcendo os cobertores, quando veio a ordem de nos enfileirarmos para o café. Não era realmente café, mas um

líquido

ralo,

aproximadamente

da mesma cor;

contudo

estávamos satisfeitas de poder tomá-lo. Seguíamos em fila dupla, passando junto à cozinha improvisada do campo. Deram também uma fatia de pão preto a cada prisioneira. Somente à tarde foi que houve outra refeição - uma tigelinha de sopa de nabo, e uma batata cozida. Nesse meio tempo, tivemos que ficar de pé em posição de

sentido sobre a mesma terra molhada onde passáramos a noite. Nosso grupo estava na extremidade do campo, perto da muralha externa, e víamos bem os fios eletrificados que corriam sobre ela. Dois dias se passaram assim; à noite, deitávamo-nos no mesmo lugar de antes. Não choveu novamente, mas a terra e os cobertores ainda estavam úmidos. Betsie começou a tossir. Retirei a blusa azul de Nollie de minha fronha e envolvi-a nela. Dei-lhe algumas gotas de óleo vitaminado. Na manhã seguinte, ela estava sofrendo terríveis cólicas intestinais. Naquele segundo dia, ela teve muitas vezes que pedir permissão à nossa impaciente monitora, à frente da fila, para ir até a vala que nos servia de banheiro. No terceiro dia, quando já nos preparávamos para deitar ao ar livre, foi-nos dito que nos apresentássemos ao centro de triagem de recém-chegados. Uma caminhada de dez minutos, e chegamos ao centro. Entramos vagarosamente por um longo corredor, e depois numa sala ampla. Ali, sob a luz forte da lâmpada do teto, vimos algo que nos fez desesperar. Cada mulher, assim que passava por uma mesa onde havia vários oficiais, colocava seu cobertor, fronha e o que mais tivesse a um canto, onde já havia uma pilha de outros desses objetos. Em outra mesa mais adiante, ela tinha que tirar toda a roupa, atirá-la em outro canto, e passar diante de uns doze oficiais, para dirigir-se ao chuveiro. Ao sair, estaria vestindo apenas uma camisola fina da prisão e teria um par de sapatos. Mais nada! Mas Betsie precisava daquela blusa de malha. Precisava das vitaminas! Mais que tudo, precisávamos de nossa Bíblia. Como poderíamos viver naquele lugar sem ela? Entretanto como eu

poderia passar por entre aqueles olhos observadores sem o macacão para cobri-la? Já estávamos chegando à primeira mesa. Desesperadamente, enfiei a mão na fronha, tirei o vidro de vitaminas e segurei-o firme na mão bem fechada. Com relutância, arriei as outras coisas no monte que estava aumentando rapidamente. "Senhor", orei, "tu nos deste este livro precioso; tu o conservaste a salvo em outras inspeções; tu o usaste tantas vezes..." Betsie vacilou e cambaleou contra mim. Olhei para ela, alarmada. Seu rosto estava lívido, os lábios apertados. Um guarda passava por nós; roguei-lhe que me mostrasse onde ficava o toalete. Sem nem mesmo olhar para nós, inclinou a cabeça na direção dos chuveiros. Timidamente, eu e Betsie saímos da fila e fomos até a porta do grande aposento, que recendia a umidade. Estava vazio, aguardando o próximo grupo de cinqüenta mulheres que devia ali entrar. Dirigi-me ao guarda que estava na porta. - Por favor, onde é o banheiro? Ele nem me olhou. - Use o ralo do chuveiro, respondeu rispidamente. Logo que pusemos os pés para dentro, ele bateu a porta às nossas costas. Ficamos a sós naquele lugar, aonde voltaríamos instantes depois, sem roupa alguma. Junto à entrada, estavam as roupas da prisão que iríamos vestir. Na frente e nas costas de cada uma fora aplicado um enorme X de outro tecido. Então, vi mais uma coisa: num dos cantos estavam alguns bancos de madeira. Estavam mofados, cobertos de lodo e infestados de baratas, mas, para mim, eram como a mobília do próprio céu.

- A blusa! Tire a blusa! murmurei apressadamente, ao mesmo tempo que procurava tirar o barbante do meu pescoço. Betsie entregou-me a blusa, e, num minuto, enrolei nela a Bíblia e o vidro de vitaminas, e escondi nosso precioso embrulho atrás dos bancos. Assim, quando fomos introduzidas naquele aposento, dez minutos depois, não estávamos pobres, mas ricas. Ricas por esta nova evidência do cuidado divino por nós, revelando-nos que ele era o Deus de Ravensbruck também. Ficamos debaixo dos jatos gelados enquanto durou a água, sentindo-a suavizar nossa pele picada de insetos. Depois, molhadas e pingando, agrupamo-nos ao redor da pilha de roupas, pegando-as, passando-as adiante, à procura de alguma que nos servisse. Encontrei um vestido bem largo para Betsie, que cobriria bem a blusa azul quando ela a vestisse. Enfiei-me num também, e depois estiquei a mão por detrás dos bancos, e, rapidamente, escorreguei o pequeno embrulho para dentro do decote. O volume ficou muito visível sob a roupa. Amassei-o o mais que pude, empurrei-o para a cintura, mas não havia jeito de disfarçálo muito com aquele vestido fino. Enquanto o fazia, porém, estava incrivelmente tranqüila, segura de que aquilo não era de minha responsabilidade, mas de Deus, e que tudo o que eu tinha a fazer era seguir em frente. Ao deixarmos a sala dos chuveiros, os guardas estavam revistando cada prisioneira, apalpando frente, costas e lados. A mulher que se encontrava à minha frente foi examinada três vezes. Betsie, atrás de mim, foi revistada também; mas ninguém me tocou. Junto à porta da saída, novo teste: algumas guardas davam

uma segunda busca. Diminuí o passo quando me aproximei delas, mas a Aufseherin (supervisora) deu-me um empurrão pelo ombro. - Ande! Está atrasando a fila! Assim, eu e Betsie chegamos ao alojamento 8, nas primeiras horas da manhã, trazendo não somente a Bíblia, mas uma nova experiência do poder daquele cuja história ela narra. Já havia três mulheres dormindo na cama que nos fora designada. Elas se ajeitaram para abrir espaço para nós, mas o colchão cedia na beirada, e eu escorreguei para o chão várias vezes. Por fim, decidimos nos deitar de lado, atravessadas, e conseguimos ajustar ombros e cotovelos. O cobertor já estava bem acabado, em comparação com o que devolvêramos naquela manhã, mas naquele ajuntamento, pelo menos, acabamos por nos aquecer umas às outras. Betsie vestira a blusa azul sob o vestido, e colocou-se entre mim e as outras. Gradualmente, o seu tremor cessou e ela pôde dormir. Fiquei acordada por muito tempo, vendo o facho de luz da lanterna da ronda varrer a parede dos fundos numa linha circular, e ouvindo, à distância, os gritos dos guardas que patrulhavam a muralha. *** Em Ravensbruck, a chamada era feita meia hora mais cedo que em Vught. Às 4:30h tínhamos que estar de pé do lado de fora, ao frio da madrugada escura, em posição de sentido, em grupos de cem - dez colunas de dez. Às vezes, depois de haver estado horas e horas nesta posição, entrávamos no alojamento apenas para ouvir o

apito de novo. - Todos para fora! Em fila para a chamada! O alojamento 8 era a seção de quarentena. Próximo a ele talvez situado ali deliberadamente, para servir de advertência às recém-chegadas - erguia-se o edifício onde eram dadas as punições. Durante o dia todo, e, às vezes, parte da noite, partiam dali sons que pareciam vir do próprio inferno. Não eram expressões de raiva, nem de qualquer outra emoção humana, mas de uma crueldade fria: golpes aplicados a intervalos regulares, e gritos de dor que os seguiam no mesmo ritmo. E nós ficávamos ali, formadas em coluna por dez, mãos ao lado, tremendo, desejando ardentemente poder apertar os ouvidos para impedir aqueles sons de chegarem até eles. No momento em que éramos dispensadas, voltávamos correndo para dentro, pisando nos calcanhares umas das outras, na ânsia de reduzir nosso mundo a proporções mais compreensíveis. A situação foi ficando cada vez mais difícil. Mesmo entre aquelas quatro paredes havia miséria demais, muito sofrimento sem propósito. A cada dia, alguma coisa se tornava insuportável, tornavase pesada demais. - Quer carregar isto também para mim, Senhor Jesus? Todavia, enquanto tudo o mais ficava confuso, uma realidade se tornava mais clara para nós: a razão de nos acharmos ali. Não sabíamos por que os outros tinham de sofrer também. Quanto a nós, sempre que não estávamos na fila para a chamada, fazíamos da Bíblia o centro de um crescente círculo de socorro e esperança. Como mendigos aconchegados ao redor de uma fogueira, nós nos reuníamos ali, aquecendo o coração ao lume e ao calor da Palavra.

Quanto mais negra era a noite que nos circundava, mais bela, verdadeira e brilhante era a luz da mensagem divina. "Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?... Em todas estas cousas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou." Eu corria os olhos ao redor, enquanto Betsie lia, vendo a luz tremular de rosto em rosto. Mais que vencedores... Não era um pedido, era um fato. Nós sabíamos disso; nós o experimentávamos a cada minuto - pobres, odiadas, famintas. Somos mais que vencedores! Paulo não diz: "Seremos", mas, "Somos". A vida em Ravensbruck decorria em dois níveis totalmente diversos. Um era o da vida exterior, visível, que a cada momento era mais terrível. O outro, o da vivência que tínhamos com Deus, melhorando dia a dia, verdade após verdade, glória após glória. Houve vezes em que, ao retirar a Bíblia de sua sacola, eu sentia as mãos trêmulas, pelo mistério de tudo aquilo. Ela parecia totalmente nova, parecia ter sido escrita recentemente. Às vezes eu me espantava de a tinta não estar molhada... Eu sempre crera na Bíblia, mas sua leitura agora não tinha nada a ver com aquela crença. Era uma descrição do modo como a nossa vida era na atualidade - era o céu, o inferno, a maneira de os homens agirem e de Deus operar. Eu lera o relato da prisão de Jesus milhares de vezes, como os soldados o haviam espancado, rido dele, e o chicoteado. Tais acontecimentos, agora, tinham corpo. Sexta-feira, era repetida a humilhação da inspeção médica. O corredor do hospital, onde esperávamos nossa vez, não tinha aquecimento, e as paredes guardavam o frio do outono. Apesar

disso, não podíamos nem mesmo envolver-nos com os braços. Tínhamos que ficar eretas, em posição de sentido, enquanto caminhávamos lentamente por entre duas fileiras de guardas que sorriam zombeteiramente. Eu não entendia como eles podiam encontrar prazer em olhar aquelas pernas finas e aqueles estômagos afundados pela fome. Estou certa de que não há visão mais patética do que a de um corpo humano carente de cuidados e de amor. Eu não compreendia, tampouco, a necessidade de se tirar toda a roupa, pois, quando afinal chegávamos no consultório, um médico examinava a garganta, e outro - provavelmente dentista - olhava nossos dentes, e ainda outro fazia um exame das mãos, por entre os dedos. Nada mais. Descíamos outra vez pelo longo corredor e recolhíamos nossos vestidos à porta. Foi num desses dias, enquanto esperávamos, tremendo de frio, que outra página da Bíblia adquiriu vida para mim. Ele foi crucificado nu. Eu não sabia. Nunca pensara nisso. Os quadros e crucifixos o mostravam envolto num pedaço de pano. Isto, porém -compreendi num relance - era o respeito e a reverência do artista. Naquele dia, naquela outra sexta-feira, não houvera reverência; não mais que a que eu via nos rostos que nos rodeavam. Inclinei-me para Betsie à minha frente. Suas espáduas se salientavam sob a pele arroxeada. - Betsie, tiraram a roupa dele também. Ouvi seu suspiro curto. - Ah, Corrie, e eu nunca agradeci a ele por isto... A cada dia o sol despontava mais tarde; o ar demorava mais a se aquecer. Vai ser melhor, muito melhor, diziam todos, quando

formos para o alojamento definitivo. Cada prisioneira vai ter seu próprio cobertor e a própria cama. E cada uma adicionava ao quadro aquilo que desejava ter. Para mim, era uma enfermaria, onde Betsie receberia remédio para aquela tosse. - Vai haver uma enfermeira para cada alojamento. Disse isto tantas vezes, que eu própria fiquei convencida. Eu estava lhe dispensando uma gota de óleo vitaminado no pão preto diariamente, mas, quanto ele ainda duraria? eu me indagava. - E principalmente, se você o ficar passando às outras toda vez que alguém espirra, disse a Betsie. Na segunda semana de outubro, recebemos a ordem para nos mudarmos. Marchamos em coluna por dez, descendo por uma larga alameda coberta de cascalho, e depois uma rua estreita, alinhada de alojamentos. Paramos várias vezes, enquanto números eram cantados em Ravensbruck nunca se mencionavam nomes. Por fim, o meu e o de Betsie foram chamados: "Prisioneira 66729; prisioneira 66730." Saímos em fila com mais dez mulheres, e nos achamos diante do longo e escuro alojamento 28. Metade das vidraças estava quebrada, e estas haviam sido substituídas por pedaços de pano. A porta, no centro, dava entrada para um grande cômodo, onde duzentas ou mais prisioneiras se inclinavam sobre suas agulhas de tricô. Sobre mesas, no centro do saguão, viam-se pilhas e pilhas das meias de lã de cor cinza, usadas pelo exército. Em cada lado havia duas portas que davam para dois quartos maiores - os maiores dormitórios que já víramos. Eu e Betsie

seguimos uma prisioneira-guia e entramos na porta à direita. Por causa das inúmeras janelas quebradas e tapadas com pano, o quarto estava meio escuro. Nosso nariz logo captou a idéia geral do quarto: estava imundo. O encanamento devia estar entupido; a roupa de cama estava suja

e cheirava

mal. Quando nos

acostumamos

à

obscuridade, vimos que as camas não eram individuais; na realidade, eram imensos beliches, formados por três quadrados superpostos, e enfileirados bem juntos uns dos outros, com estreitos corredores entre eles, para locomoção. Seguimos em fila por um - a passagem não comportava mais que uma pessoa - lutando contra a sensação de claustrofobia, que nos causavam aquelas camas-plataforma. Não havia ninguém naquele enorme quarto; suas ocupantes deviam estar em seus setores de trabalho. Afinal, a mulher nos indicou uma plataforma central, no meio de um bloco delas. Para chegar até lá, tínhamos que nos elevar ao segundo nível, e depois, atravessar de gatinhas, três dessas plataformas cobertas de palha, chegando por fim à nossa, a qual deveríamos compartilhar com - quantas mais? A "cama" superior era muito próxima, e não podíamos nos sentar. Deitamo-nos, tentando superar o enjôo que nos sobreveio devido ao cheiro nauseante da palha. Ouvimos as outras prisioneiras que tinham vindo conosco procurando seus lugares. De súbito, eu meu sentei, batendo a cabeça contra a ripa da cama de cima. Algo havia picado minha perna. - Pulga! gritei. Betsie, isto aqui está fervilhando de pulgas! Arrastamo-nos pelas plataformas vizinhas, com a cabeça

abaixada para evitar outra pancada. Pulamos para a passagem e dirigimo-nos para um lugar mais iluminado. - Aqui uma! E outra aqui! queixei-me. Betsie, como vamos viver num lugar desses? - Ensina-nos; ensina-nos, Senhor. Ela o dissera tão tranqüilamente que precisei de algum tempo para perceber que estava orando. Parecia que, para ela, não havia separação entre oração e vida. - Corrie, exclamou ela repentinamente. Ele já respondeu. Antes de pedirmos, como ele sempre faz. Na Bíblia, hoje de manhã. Onde foi? Leia de novo aquele trecho. Dei uma rápida olhada ao redor, para ver se havia algum guarda à vista, depois retirei a Bíblia da sacola. - Foi em 1 Tessalonicenses, respondi. Já estávamos em nossa terceira leitura do Novo Testamento desde que deixáramos Scheveningen. - Aqui está: "... consoleis os desanimados, ampareis os fracos e sejais longânimos para com todos. Evitai que alguém retribua a outrem mal por mal; pelo contrário, segui sempre o bem entre vós e para com todos." Parecia ter sido escrito especialmente para a situação de Ravensbruck. - Continue, disse Betsie. Não foi só isso. - Bom... "Regozijai-vos sempre. Orai sem cessar. Em tudo, dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco." - É isso, Corrie. Aí está a resposta. "Em tudo, dai graças..." Isto é tudo que podemos fazer. Podemos começar a dar graças a

Deus agora mesmo por todas as coisas deste novo alojamento. Olhei-a espantada, e depois corri os olhos por aquele quarto malcheiroso. - Que coisas? perguntei. - Por termos sido mandadas para aqui juntas. Mordi os lábios. - Obrigada, Senhor Jesus! - E pelo que você tem nas mãos agora! Olhei para a Bíblia. - Ah, sim. Damos-te graças, Senhor, por não ter havido inspeção quando chegamos aqui. Obrigada por estas mulheres, aqui neste dormitório, que irão encontrar-te através destas páginas. - Isso! ajuntou Betsie. Obrigada pelo excesso de gente. Já que somos tantas, muitas vão ter a chance de ouvir a tua Palavra. Ela olhou-me esperando minha aquiescência. - Corrie! insistiu. - Ah, está bem. Obrigada pelo acúmulo de gente, que é tão incômodo, sufocante, importuno. - Damos-te graças, continuou Betsie serenamente, pelas pulgas, e por... Pelas pulgas? Isso já era demais! - Betsie, nem Deus pode me fazer dar graças pelas pulgas. - "Em tudo dai graças", recitou ela. Aí não diz "Dai graças nas situações agradáveis". As pulgas fazem parte deste lugar em que Deus nos colocou. E foi assim que, apertadas entre montes de camasplataforma, demos graças pelas pulgas. Desta vez, porém, eu estava segura de que Betsie estava enganada. ***

Pouco depois das 6:00h, chegaram as outras mulheres do alojamento 28. Vinham cansadas, suarentas e sujas, pelo longo horário de trabalho forçado. Uma vizinha de plataforma nos informou que o prédio fora construído para abrigar quatrocentas pessoas. Havia ali agora mil e quatrocentas, e, a cada semana, novas residentes eram acrescentadas, à medida que os campos de concentração da Polônia, França, Bélgica e Áustria eram fechados, como haviam sido os da Holanda, e as prisioneiras eram enviadas para o interior da Alemanha. Havia nove mulheres no nosso quadrado, que fora construído para quatro, e quando as outras descobriram que tinham de dar lugar para mim e Betsie, começaram a resmungar. Havia oito sanitários, fétidos e transbordantes, para todo o grupo; para se chegar a um deles,

tínhamos

primeiro

que

passar

por

sobre

nossas

companheiras, e depois sobre as ocupantes das outras plataformas que se encontravam entre a nossa e a passagem mais próxima, sempre com o risco de se adicionar mais peso aos já vergados suportes, e cair sobre as que nos ficavam embaixo. Isso aconteceu várias vezes naquela primeira noite. Ouvíamos o ruído do suporte se quebrando, um berro e gritos abafados. Quando não era o suporte que se quebrava, era a chuva de palha que nos vinha da plataforma superior, ao menor movimento, e que era seguida de palavrões. No alojamento 8, quase todas éramos holandesas. Aqui, nem mesmo a bênção de uma língua comum havia, e entre pessoas cansadas e mal alimentadas, as brigas surgiam constantemente. Naquele momento havia uma disputa em andamento porque

as que dormiam junto às janelas as haviam fechado por causa do frio. Logo, várias vozes foram ouvidas, exigindo que fossem reabertas. De vários pontos daquele lado do quarto, elevava-se o clamor de brados e gritos, discussões, tapas, lágrimas. Senti Betsie agarrar minha mão no escuro. - Senhor Jesus, orou em voz alta, envia tua paz para este quarto. Tem-se orado muito pouco neste lugar, mas onde quer que tu estejas, Senhor, o espírito de luta cessa... A mudança foi gradual, mas sensível. Uma a uma as explosões de raiva foram passando. - Vamos fazer um trato, era uma voz falando em alemão com sotaque escandinavo. Você vem dormir aqui que está quente, e eu fico com seu lugar perto da janela. - E misturar seus piolhos com os meus? a voz desta tinha um tom irônico. Não, obrigada. - Já sei! essa tinha um cicio francês. Vamos abrir só a metade. Assim, nós ficamos meio geladas e vocês meio sufocadas. Uma onda de gargalhadas correu pelo quarto. Deitei novamente naquela palha malcheirosa, e pensei em mais uma circunstância pela qual eu podia estar grata a Deus: Betsie estava no alojamento 28. *** Ali, como no setor de quarentena, a chamada era feita às 4:30h. Éramos despertadas às 4:00h por um apito, e sem nem mesmo parar para limpar do cabelo e roupas os pedaços de palha, começávamos a corrida para a fila da ração de café e pão, no

cômodo central. Quem chegasse por último nada encontrava. A contagem era feita na ampla alameda que ia para o hospital, chamada Lagerstrasse. Ali nos reuníamos aos ocupantes dos outros alojamentos - cerca de 35.000 pessoas ao todo - um grupo enorme que se espalhava á perder de vista, à luz fraca das lâmpadas, os pés entorpecidos pelo contato com o chão frio. Após as chamadas, as turmas de trabalhadores eram distribuídas. Betsie e eu fomos designadas para a fábrica da Siemens. O imenso complexo da Siemens, um aglomerado de centros de produção e terminais ferroviários, ficava a mais de dois quilômetros do acampamento. A "Brigada da Siemens", composta de milhares de pessoas, atravessava os portões de ferro encimados por fios eletrificados, e penetrava num mundo de árvores, relva e horizonte. O sol surgia quando estávamos perto da lagoa; o ouro dos campos, naquele fim de outono, dava-nos grande soerguimento moral. O trabalho, entretanto, era um tormento. Eu e Betsie tínhamos que levar um carrinho pesado até um desvio, onde o enchíamos com enormes chapas de metal, que retirávamos de um vagão, e depois empurrávamos para o portão de recepção da fábrica. Nosso dia de trabalho era de onze horas. Uma vantagem era que, ao almoço, recebíamos uma batata cozida e um prato de sopa rala. Os que trabalhavam no acampamento não tinham refeição ao meio-dia. No regresso ao campo, mal agüentávamos mover as pernas inchadas e doloridas. Os soldados que nos escoltavam, berravam imprecações, mas nós não conseguíamos andar depressa: só arrastando os pés, às polegadas. Notei, novamente, que o povo da

região sempre virava o rosto ao passar por nós. De volta ao alojamento, entrávamos em outra fila, na saleta central - será que nunca teriam fim estas filas e esperas? - (para receber nossa concha de sopa de nabo. Depois, o mais rápido que podíamos, e a despeito do aperto de gente, eu e Betsie nos dirigíamos para um canto de nosso quarto, onde realizávamos um culto. Na nossa plataforma a iluminação não chegava para a leitura, mas ao fundo havia uma lâmpada que projetava na parede um pálido círculo de luz. Era ali que nos reuníamos com um número sempre crescente de mulheres. Aqueles cultos do alojamento 28 foram inesquecíveis. Numa mesma reunião, teríamos um recitativo do Magnificat - o cântico de Maria - em latim, feito por um grupo de católicas, um hino cantado à meia voz, pelas luteranas, e um cantochão, pelas ortodoxas. A cada momento, o grupo aumentava, espalhando-se pelas plataformas próximas, assentando-se nas beiradas e fazendo com que aquelas altas estruturas gemessem e vergassem, ameaçando quebrar-se ao peso delas. No fim, eu ou Betsie abriríamos a Bíblia. Já que só as holandesas entendiam nosso texto, fazíamos a interpretação para o alemão. Depois, ouvíamos aquelas palavras vivas sendo passadas adiante em francês, polonês, russo, tcheco e holandês de novo. Aquelas noites, ali sob a lâmpada, eram pequenos prelúdios do céu. Às vezes, eu pensava em Haarlem, nas igrejas lá, separadas por uma cerca de ferro e uma barreira de doutrinas. Nesses momentos, eu via como, nas trevas, a luz de Deus brilhava mais intensamente. A princípio, realizávamos aqueles cultos com certo receio. Contudo, como com o passar do tempo nenhum guarda aparecesse,

ficamos um pouco mais ousadas. Havia tantas mulheres que queriam se reunir conosco, que decidimos realizar outro culto após a chamada noturna. Lá fora, na Lagerstrasse, estávamos sob observação rígida; os guardas, com suas confortáveis capas de lã, andavam de um lado para outro. O mesmo se dava na saleta central: havia sempre meia dúzia de guardas ou policiais do campo. Entretanto, no amplo dormitório, não havia quase supervisão alguma. Não compreendíamos aquilo. *** Havia ainda outro fato estranho. O vidrinho de óleo vitaminado continuava entregando suas gotas. Parecia impossível que um frasco tão pequeno pudesse render tanto, com tantas gotas sendo tiradas diariamente. Era meu intuito poupá-las - Betsie estava cada vez mais fraca. Mas outras estavam doentes também. Era difícil dizer não a olhos que ardiam em febre, a mãos que tremiam com calafrios. Tentei dá-las apenas às que estivessem muito fracas - mas estas eram em grande número também: quinze, vinte, vinte e cinco... Mesmo assim, cada vez que eu virava o vidrinho, uma gota surgia. Como podia ser aquilo? Olhei-o contra a luz, tentando ver quanto ainda restava, mas ele era marrom-escuro e eu não conseguia enxergar bem. - Na Bíblia, há a história de uma mulher cuja botija de azeite nunca se esvaziou, disse Betsie. Ela abriu a Bíblia no livro de 1 Reis, na história da viúva de Sarepta, em cuja casa o profeta Elias se hospedou, e leu:

"Da panela a farinha não se acabou, e da botija o azeite não faltou, segundo a palavra do Senhor, por intermédio de Elias." Bom, mas na Bíblia há muitas ocorrências maravilhosas. Uma coisa era crer que esses milagres podiam acontecer há milhares de anos; outra muito diferente, era vê-los ocorrerem hoje em dia, conosco mesmos. E, no entanto, acontecia, num dia, no outro dia, e no outro, e até um pequeno grupo de espectadores se formou ao redor para ver as gotas caírem nas fatias de pão. Muitas vezes, eu ficava acordada à noite, recebendo a chuva de capim do colchão de cima, tentando entender a maravilha daquela bênção, que nos era concedida. - Talvez saiam somente uma ou duas moléculas, disse eu a Betsie uma noite, e quando entram em contato com o ar elas se expandem. Ouvi-a rir suavemente no escuro. - Não tente explicar o fato, Corrie. Aceite-o como sendo um grande presente de um Pai amoroso. Certo dia, Mien aproximou-se de nós, acotovelando-se por entre o grupo, na fila do jantar. - Veja o que eu trouxe para vocês. Mien era uma jovem holandesa muito bonita que ficáramos conhecendo em Vught. Ela trabalhava no hospital, e, muitas vezes, conseguia roubar algumas preciosidades da sala dos funcionários e trazer para nós, no alojamento 28. Ora era uma folha de jornal para tapar uma vidraça quebrada, ora uma fatia de pão que fora deixada no prato de uma enfermeira. Desta vez, ela nos presenteou com uma sacolinha de pano; espiei para dentro dela. - Vitaminas! gritei. Depois, lançando um olhar apreensivo ao

guarda que estava próximo, sussurrei: Levedura! - É! ela sussurrou também. Havia três vidros enormes. Tirei a mesma quantia de cada um. Engolimos aquele caldo de nabo, maravilhadas com nosso súbito enriquecimento. De volta ao quarto, peguei o vidrinho de entre a palha. - Vamos terminar com as gotas primeiro, decidi. Naquela noite, porém, apesar de eu deixar o frasco virado muito tempo e o sacudir com força, nem uma só gota saiu. *** No princípio de novembro, cada prisioneiro teve direito a um casaco. Tanto o de Betsie como o meu eram de fabricação russa, e, aparentemente, tinham sido guarnecidos de peles: havia marcas de costura e fiapos de linha na gola e nos punhos, de onde haviam sido arrancadas. Os destacamentos para o trabalho da Siemens foram suspensos, e nós começamos a calcular que o lugar fora atingido num dos bombardeios que agora eram ouvidos todas as noites. Eu e Betsie fôramos designadas para trabalhar no próprio campo, no nivelamento de uma parte do terreno. Este serviço também era pesado, penoso para as costas. Muitas vezes, quando eu me inclinava para pegar algum peso, sentia uma pontada no coração; à noite, a dor nas pernas era insuportável. Entretanto o maior problema para mim era a saúde de Betsie. Certa manhã, a terra estava molhada e bem pesada, após uma noite de chuva. Ela nunca conseguia mesmo carregar muita terra; nesse

dia, o pouquinho que apanhava com a pá, fazia-a tropeçar, ao levá-lo para as depressões que estávamos aplainando. - Schneller! (Mais rápido!) gritou uma guarda. Não dá para ir mais depressa? Por que elas tinham que gritar? eu me perguntava, ao enterrar minha pá na lama negra. Por que não podiam simplesmente falar, como qualquer ser humano? Ergui-me vagarosamente, o suor secando-se em minhas costas. Lembrava-me de onde ouvira aquele som louco pela primeira vez. No Beje. No quarto de Tia Jans. A voz que nos vinha pelo alto-falante do rádio, um som estridente que permaneceu no ar, mesmo depois que Betsie se levantara abruptamente e o desligara... - Moleza! Preguiçosa! A guarda arrancou a pá das mãos de Betsie, e foi pelo grupo todo exibindo o pouquinho de terra que fora tudo que ela conseguira pegar. - Vejam o que a "senhora baronesa" está carregando! Ela vai ficar exausta! Os outros guardas, e mesmo algumas das prisioneiras riram. Sentindo-se aprovada, ela se lançou numa imitação zombeteira do andar trôpego de Betsie. Havia um guarda conosco, nesse dia, e quando havia um homem por perto, as guardas ficavam muito animadas. Como as risadas aumentassem, senti uma raiva assassina. A guarda era jovem e bem nutrida - não era culpa de Betsie se ela era velha, e passava fome! Para meu espanto, porém, Betsie também estava rindo. - É! Eu ando assim mesmo! disse ela. Mas é melhor você me

deixar carregar minhas "colheradas", senão tenho que parar de todo. O rosto gordo da mulher ficou rubro. - Sou eu quem resolve quem pára e quem não pára. E retirando o chicotinho do cinto, golpeou Betsie no pescoço e no peito. Fiquei fora de mim. Agarrei minha pá, e fiz menção de correr para ela. Betsie colocou-se na minha frente, antes que alguém pudesse ter visto meu gesto. - Corrie, pediu-me ela tomando meu braço e abaixando-o. Corrie, continue a trabalhar! Ela tomou minha pá e enterrou-a na lama. A guarda atirou a pá de Betsie em nossa direção desdenhosamente. Peguei-a meio estonteada. Uma mancha vermelha apareceu na gola de seu vestido; no pescoço, via-se um vergão. Betsie notou a direção de meu olhar e levou a mão - sua mão magra e ossuda - onde o chicote a atingira. - Não olhe para isso, Corrie. Olhe só para Jesus. Ela retirou a mão: estava tinta de sangue. *** Nos meados de novembro as chuvas começaram. Eram chuvaradas frias, que duravam o dia todo, e alagavam tudo, deixando gotas de umidade nas paredes internas. A Lagerstrasse agora nunca estava seca; mesmo quando a chuva parava, havia poças imensas pela estrada. Nós não tínhamos permissão de evitálas, ao fazermos as fila, e, às vezes, ficávamos com água até o tornozelo. À noite, o alojamento recendia a sapato molhado.

Pouco tempo depois, Betsie começou a escarrar sangue. Fomos à enfermaria, mas o termômetro registrou apenas 38,5°C, o que não era bastante para que ela fosse admitida no hospital. E eu com as minhas fantasias de uma enfermeira e um dispensário em cada alojamento! Tudo que havia era uma imensa sala vazia, onde todos os doentes se reuniam, tendo muitas vezes que esperar do lado de fora durante horas e horas, na chuva. Eu passei a odiar aquele aposento sombrio, cheio de mulheres doentes, a sofrer, mas tínhamos que ir lá várias vezes, pois a saúde de Betsie estava piorando sempre. Ela não o detestava como eu; para ela, aquilo ali era simplesmente um ambiente onde podia falar de Jesus - assim como em qualquer outro lugar. Onde quer que ela estivesse, no trabalho, na fila de alimentação, no dormitório, Betsie falava aos que a rodeavam, acerca da presença de Cristo e do desejo dele de possuir cada vida. À medida que seu corpo enfraquecia, sua fé parecia aumentar. E a enfermaria era "um local muito importante, Corrie. Algumas destas pessoas estão no limiar da eternidade". Finalmente, certo dia, a temperatura dela chegou a 40°C, que era a exigida para internamento no hospital. Tivemos que esperar muito, antes que uma enfermeira aparecesse para conduzir Betsie e mais umas cinco ou seis doentes ao hospital propriamente dito. Acompanhei-as até a porta que dava acesso à ala, e depois, lentamente, voltei ao alojamento. Como de costume, parei à porta do dormitório. Ele me lembrava um formigueiro. Algumas mulheres já estavam dormindo, após o longo período de trabalho, mas a maioria ainda se movia, algumas esperando vagar-se um dos banheiros, outras retirando

piolhos de si mesmas ou de outras. Voltei-me e me enfiei por entre as alas cheias, e dirigi-me ao fundo, onde o culto já estava se encerrando. Quando eu e Betsie íamos para a enfermaria, deixávamos a Bíblia com a Sra. Wielmaker, uma boa católica, de Haia, que conhecia alemão, francês, latim e grego, e traduzia os textos para estas línguas. Algumas se acercaram de mim e perguntaram por Betsie. Como estava ela? Quanto tempo teria que ficar? As luzes se apagaram e começou a escalada das camas. Icei-me para o andar do meio, e dirigi-me ao meu lugar, arrastando-me por sobre as que já estavam deitadas. Que diferença ocorrera nesse lugar depois que Betsie viera para aqui! Quando antes este era o momento das brigas e palavrões, agora, o imenso dormitório se enchia de murmúrios de "Ah, perdão!" "Desculpe-me!" "Não foi nada!" Cheguei à minha plataforma, e deitei-me num lugarzinho no meio. Um facho de lanterna varreu o quarto, detendo-se onde se percebia algum movimento. Alguém fincou um cotovelo em minhas costas; o pé de outra encontrava-se a poucos centímetros de meu rosto. Estranho como alguém ainda podia se sentir tão sozinho num lugar tão superlotado como aquele!

Capítulo 14 - A Blusa Azul Pela manhã havia um nevoeiro úmido suspenso no acampamento. Fiquei contente de Betsie não ter que estar lá fora. Aquela cobertura de névoa permaneceu sobre Ravensbruck o dia todo: um dia sombrio de sons abafados e sol escondido. Eu fora escalada para o setor das batatas: carregávamos cestas cheias de batatas e as despejávamos em compridas valetas. Depois, elas seriam recobertas de terra para proteção contra o rigor do inverno. Eu estava grata por aquele trabalho árduo, pois ajudava-me a me manter aquecida, e também pelos pedaços de batata crua que comíamos quando os guardas não nos observavam. No dia seguinte, a neblina branca ainda presente, minha saudade de Betsie tornou-se insuportável. Logo que fomos dispensadas, após a chamada, cometi uma temeridade. Mien havia me ensinado, um modo de chegar ao hospital sem passar pela sentinela à porta. A janela do sanitário, aos fundos, era bem ampla, e, de tão emperrada, não se fechava direito. Como eles não permitissem visitas no hospital, os parentes dos doentes muitas vezes entravam por ali. O nevoeiro estava bem denso, e foi relativamente fácil alcançar a janela sem ser vista. Galguei-a, e tapei o nariz com a mão por causa do forte mau cheiro. Havia uma fileira de toaletes, sem tampo, sem portas, todos cheios até as bordas e rodeados do que lhes sobrava. Corri para a porta, e parei de súbito, a pele toda

arrepiada. Junto à parede, diretamente em frente, vi cerca de dez ou doze cadáveres, despidos, deitados de costas, lado a lado. Alguns estavam de olhos abertos, como se estivessem fixos no teto. Fiquei ali parada, paralisada de horror. Dois homens entraram carregando um corpo envolto num lençol. Nem mesmo me olharam. Compreendi que me tomavam por um dos pacientes. Passei por eles e entrei no corredor, o estômago embrulhando por causa do que vira. Depois de alguns momentos, dirigi-me para a esquerda, sem saber que rumo tomar. O hospital era uma confusão de portas e corredores. Em pouco, eu já não estava mais certa se saberia voltar aos banheiros. E se a turma saísse para o trabalho antes de eu voltar? Foi então que me pareceu reconhecer um dos corredores. Fui de porta em porta, correndo de uma para outra. Por fim, encontrei a enfermaria onde Betsie havia entrado. Não havia nenhum funcionário do hospital à vista. Andei por entre as fileiras de camas olhando bem cada rosto. - Corrie! Betsie estava sentada numa cama junto à janela. Parecia bem melhor; seus olhos brilhavam e o rosto encovado tinha readquirido um pouco da cor. Nenhum médico ou enfermeira a havia examinado ainda, disse-me, mas o fato de poder ficar deitada e não ter que sair, já fizera muita diferença. Três dias depois, ela regressou ao alojamento 28. Não fora examinada nem recebera medicação, e sua testa me parecia febril. Entretanto a alegria de vê-la de volta abafou minhas preocupações. O melhor de tudo foi que, após sua breve hospitalização, ela recebeu designação para permanecer na "brigada do tricô", que era o grupo que víramos assentado às mesas no quarto central, naquele

primeiro dia que ali chegáramos. Este trabalho era reservado para as prisioneiras mais fracas, e, agora, elas se espalhavam pelos dormitórios também. As que trabalhavam nos quartos eram menos vigiadas que as que estavam no cômodo central, e assim, Betsie viu-se livre grande parte do dia para falar às outras. Ela tecia muito depressa e sempre completava sua quota antes do meio-dia. Agora, ela ficava sempre com a Bíblia, e passava horas seguidas, lendo-a em voz alta, indo de plataforma em plataforma. Uma noite, regressei ao acampamento, após ter trabalhado nos bosques adjacentes à cata de gravetos. Havia uma camada fina de neve no chão, o que tornara difícil encontrá-los. Betsie me esperava como sempre, para que pudéssemos estar juntas na fila do jantar. Seus olhos brilhavam. - Você me parece muito satisfeita, disse-lhe. - Você sabe que nunca entendemos a razão por que tínhamos tanta liberdade nesses quartos, falou-me. Descobri por quê. Naquela tarde, contou, tinha havido uma confusão no seu grupo de tricô, acerca do tamanho das meias, e elas pediram à supervisora que fosse até lá, e resolvesse o caso. - Mas ela não quis. Ela não queria entrar; as guardas também não. Sabe por quê? Betsie mal conseguia disfarçar o tom de triunfo de sua voz. - Por causa das pulgas! Foi o que ela disse: "Este lugar está cheio de pulgas!" Meu pensamento retornou ao primeiro dia, à primeira hora que passáramos ali. Lembrei-me de Betsie, com a cabeça inclinada; lembrei-me de ela ter dado graças a Deus por aqueles insetos, com

os quais eu jamais poderia me reconciliar. *** Apesar de não mais precisar pegar no trabalho pesado, Betsie ainda tinha que se submeter ao suplício da chamada, duas vezes por dia. Em dezembro, à medida que a temperatura caía, elas se tornavam verdadeiros testes de resistência, aos quais muitos não sobreviveram. Numa manhã escura, quando o gelo cristalizado nas lâmpadas deitava um halo de luz ao redor de cada uma delas, uma jovem retardada, que se encontrava duas fileiras à nossa frente, caiu subitamente ao chão. Uma guarda avançou para ela, e começou a chicoteá-la, enquanto a moça berrava de dor e medo. A situação era sempre mais horrível quando a espancada era uma dessas criaturas inocentes. A guarda continuava a golpeá-la. Era a que apelidáramos de "Serpente", por causa do vestido de tecido brilhante que sempre usava. Naquele momento, eu o via sob a longa capa,rebrilhando à luz da lâmpada cada vez que ela erguia o braço. Senti-me aliviada quando afinal a jovem ficou em silêncio, quieta, caída no chão recoberto de cascalho. - Betsie, sussurrei quando a "Serpente" já se distanciava, o que poderíamos fazer por essas pessoas? Quero dizer, depois. Não poderíamos arranjar um lar para elas, cuidar delas, dar-lhes carinho? - Corrie, eu peço a Deus todos os dias, exatamente isso -que nós possamos mostrar a elas que o amor é maior que tudo. Somente mais tarde, quando eu já estava apanhando gra-

vetos, foi que compreendi que, enquanto eu estivera pensando na moça retardada, Betsie referira-se à sua algoz. *** Alguns dias depois, minha turma de trabalho recebeu ordens de ir ao hospital para se submeter a um exame médico. Deixei o vestido na pilha que estava à porta, e reuni-me às outras mulheres. À nossa

frente,

um

médico

estava

examinando-as

com

um

estetoscópio, com o cuidado deliberado de um verdadeiro exame. - Para que é isso? perguntei à mulher que estava à minha frente. - Inspeção para transferência, murmurou em resposta, sem ao menos virar a cabeça. Para as fábricas de munição. Transferência! Mas eles não podiam fazer isso! Não podiam me mandar embora! Oh! Deus! Não deixe que me separem de Betsie! Para meu horror, porém, passei de um setor para outro -coração, pulmões, pele e couro cabeludo, garganta - e ainda não fora dispensada. Muitas haviam sido mandadas de volta no decorrer do exame; contudo as que ficaram não pareciam assim tão melhores. Estômagos inchado?, peitos afundados, pernas muito finas... A Alemanha deveria estar necessitando desesperadamente de mãode-obra. Parei diante de uma mulher que trajava um uniforme branco imundo. Ela pôs uma mão fria no meu ombro e colocou-me diante de um quadro de oculista na parede. - Leia a menor linha que conseguir.

- Eu... parece que não consigo ler nenhuma. (Perdoa-me, Senhor!) Só a letra de cima, aquele E maiúsculo. A letra era F. A mulher pareceu ver-me pela primeira vez. - Acho que você enxerga melhor que isto. Quer ser rejeitada? Em Ravensbruck, a transferência para munições era considerada um privilégio; dizia-se que as condições de vida e de alimentação nas fábricas eram bem melhores que as dali do campo. - Claro, doutora. Minha irmã está aqui. Ela não está passando bem. Não posso deixá-la. Ela sentou-se à mesa e rabiscou qualquer coisa num pedaço de papel. - Volte amanhã para uma consulta, para a receita de óculos. De volta à fila, desdobrei o pedacinho de papel azul. A prisioneira 66730 tinha instruções para comparecer ali, no dia seguinte, às 6:30h, para uma consulta mais detalhada, a fim de se passar a receita para os óculos. Seis e meia era a hora que os prisioneiros eram embarcados nos veículos de transferência. Assim,

quando

as

imensas

carretas

romperam

pela

Lagerstrasse, no dia seguinte, eu me achava no corredor do hospital, aguardando minha vez na clínica de olhos. O rapaz que me atendeu talvez fosse mesmo oculista, mas todo o seu equipamento consistia de uma caixa cheia de óculos, que variavam desde um bifocal com armação de metal, a um par de óculos de criança com armação de plástico. Não encontrei nenhum que me servisse, e fui mandada de volta para o trabalho. Entretanto eu não tinha sido escalada para nenhum trabalho, já que estivera designada para ser transferida. Voltei para o

alojamento 28, sentindo-me meio insegura. Entrei na saleta central. A supervisora olhou para mim por sobre as cabeças da turma de mulheres. - Número? Dei meu número, e ela o anotou num livrinho de capa preta. - Apanhe um novelo e uma dessas folhas de papel com a receita, continuou. Você vai ter que arranjar lugar no dormitório; não há mais espaço aqui. Dito isto, voltou-se para a pilha de meias já concluídas sobre a mesa. Fiquei por um instante no centro da sala, piscando espantada. Depois, pegando uma meada daquela lã cinza escura, atravessei apressadamente a porta do dormitório. E assim começaram os melhores e mais gloriosos dias que passei em Ravensbruck. Naquele santuário das "pulgas de Deus", eu e Betsie falamos para todas as prisioneiras daquele quarto. Houve ocasião de estarmos ao lado de leitos de morte que se revelaram verdadeiros portais dos céus. Vimos mulheres que haviam perdido tudo, enriquecerem-se de esperanças. Aquele grupo de tricotadoras do alojamento 28 tornou-se o centro de oração daquele corpo enfermo que era Ravensbruck, intercedendo por todo o campo: tanto pelos guardas - pela insistência de Betsie - como pelas prisioneiras. Nossa oração ultrapassava as muralhas de concreto: orávamos por toda a Europa, pela Alemanha e pelo mundo -como mamãe fizera outrora, da sua prisão em um corpo entrevado. Enquanto orávamos, Deus nos falava acerca do mundo de após guerra. Foi algo de extraordinário; naquele lugar, onde altofalantes e apitos tomavam o lugar das decisões, Deus indagava de

nós o que iríamos fazer nos anos que se seguiriam. Betsie estava sempre certa de qual seria nossa tarefa. Íamos ter uma casa, uma casa bem grande - maior que o Beje -onde as pessoas que tinham sido atingidas pelo horror dos campos de concentração, poderiam viver até que se sentissem aptas para voltar ao mundo novamente. - Será uma linda casa, Corrie. O assoalho é todo taqueado; estatuetas nas paredes, uma escadaria ampla... e jardins! Jardins ao redor de toda a casa, para poderem cultivar flores. Faz bem à gente cultivar flores, Corrie, cuidar delas. Eu a olhava espantada, enquanto ela dizia estas coisas. Ela falava como se estivesse vendo - era como se aquela escadaria majestosa e os jardins cheios de flores de cores alegres fossem a realidade, e o alojamento sujo e atulhado de gente, a visão imaginária. *** Mas não era. Era a verdade dolorosa e crua, e era durante as chamadas que ó peso acumulado de tudo aquilo parecia querer me sufocar. Certa manhã, três mulheres de nosso alojamento demoraram alguns minutos para sair, desejando resguardar-se um pouco mais do frio. Durante a semana seguinte, todo o alojamento foi punido com uma hora a mais em posição de sentido. As luzes da Lagerstrasse nem estavam acesas, quando éramos tiradas da cama às 3:30h. Foi durante este alinhamento que precedia a chamada, certa manhã, que eu vi algo em que, até então, eu me recusara a

acreditar. No outro extremo da rua apareceram faróis acesos, que se refletiam sobre a neve. Vimos algumas camionetas com a carroceria aberta atrás aproximarem-se espirrando lama e neve semi-derretida. Pararam em frente do hospital. A porta se abriu, e surgiu uma enfermeira amparando uma velhinha cujas pernas se dobravam, enquanto ela descia as escadas. A enfermeira, gentilmente, ajudou-a a subir ao veículo. Agora vinham muitos e muitos, velhos e doentes, apoiando-se às enfermeiras e ao pessoal do hospital. Por último, vieram os enfermeiros carregando macas. Nossos olhos pareciam fixar-se hipnoticamente em cada detalhe da cena, mas nosso cérebro se recusava a aceitar o que víamos. Sempre soubéramos que, quando o acúmulo de gente atingisse um certo grau, os mais doentes seriam levados àquela construção de tijolos, ao pé da grande chaminé quadrada. Mas, aquelas mulheres ali, bem à nossa frente, aquelas ali? Não era possível! E sobretudo, eu não conseguia conciliar aquilo com a gentileza e a bondade das enfermeiras. Aquela que estava agora naquele carro, ali bem próximo a nós, e que se inclinava solicitamente, ternamente, sobre o seu paciente... o que pensaria ela agora? *** E o frio aumentava. Certa noite, durante a chamada, um grupo começou a bater os pés ritmadamente. Outros se uniram a eles e o ruído aumentou. Os guardas nem tentaram nos fazer parar, e daí a pouco, toda a coluna estava marcando passo no lugar, batendo os sapatos já tão gastos contra a terra gelada, para reavivar

a circulação dos pés e pernas. Daí em diante, esse foi o som que sempre se ouvia na hora da chamada: o barulho de milhares de pés na longa estrada escura. À medida que o frio aumentava, crescia também a pior tentação que se sofria num campo de concentração: pensar apenas em si mesmo. Ela tomava as formas mais diversas e sutis. Descobri que, quando conseguíamos nos colocar no meio do grupo, na formação para a chamada, ficávamos mais bem protegidas do frio. Eu sabia que aquilo era egoísmo meu: quando eu e Betsie estávamos no centro, alguém tinha que estar na periferia. Como era fácil dar-lhe um nome mais digno! Eu agia assim pelo bem de Betsie. Tínhamos um ministério importante ali, e por isso precisávamos estar bem de saúde. Na Polônia era mais frio que na Holanda, e assim as mulheres polonesas talvez não se ressentissem do frio tanto quanto nós. O egoísmo tinha vida própria. Quando vi que o saquinho de levedo que Mien havia nos trazido estava se esgotando, comecei a retirá-lo de sob a palha somente depois que as luzes se apagavam; assim, as outras não o veriam e não poderiam pedir. A saúde de Betsie era mais importante. (Tu sabes, Senhor, ela pode fazer tanto por elas! Lembra-te daquela casa, após a guerra!) Apesar de não ser muito certo, isso não era assim tão errado, era? Não tão horrível quanto o sadismo, a matança, e as outras monstruosidades que testemunhávamos em Ravensbruck. Isto, porém, era um truque de Satanás: expunha-nos à maldade de forma tão gritante que a gente era levada a crer que nossos pecados secretos não eram nada. E o câncer aumentou. Na segunda semana de dezembro,

cada ocupante de nosso alojamento recebeu mais um cobertor. No dia seguinte, chegou um grande grupo de prisioneiras vindo da Tchecoslováquia. Uma delas foi enviada para nossa plataforma, mas não lhe foi dado nenhum cobertor, e Betsie insistiu que lhe déssemos um dos nossos. Naquela noite, então, eu lhe "emprestei" um. Não o "dei" para ela. No coração, eu me aferrara ao meu direito de posse àquele cobertor. Teria sido coincidência? Toda a alegria e poder que eu gozava, quase que imperceptivelmente desapareceram do meu trabalho de conforto e consolação. Minhas orações passaram a ter um toque mecânico. A leitura bíblica tornou-se pesada e sem vida. Betsie tentou tomar o meu lugar, mas a tosse a impedia de ler em voz alta. Eu continuei lutando para manter um culto que tinha perdido sua realidade. Este estado de coisas permaneceu até que numa tarde fria e chuvosa, quando mal conseguia ler à fraca luz que penetrava pela janela cheguei à parte em que Paulo fala de seu "espinho na carne". Fosse qual fosse aquele "espinho", ele pedira a Deus três vezes que lhe retirasse aquela fraqueza. E todas as vezes Deus lhe respondeu: "Confie em mim." Por fim, Paulo concluiu que - as palavras pareciam saltar da página e vir ao meu encontro - aquela fraqueza era algo por que ele tinha que dar graças a Deus. Paulo sabia que nenhuma daquelas maravilhas e milagres que acompanhavam seu ministério provinha de sua própria virtude ou poder.

Eram realizados na força de Cristo, nunca na

de Paulo. E ali estava a verdade agora. Sua luz brilhou para mim, como se fosse o sol entrando no alojamento 28. O pecado que eu realmente cometera não fora o de escorregar para o centro do grupo

para escapar ao frio. O verdadeiro erro estava em eu pensar que o poder para a transformação de vidas vinha de mim.. Naturalmente, não era minha integridade que importava, e, sim, a de Cristo. O dia terminava - mais um curto dia de inverno. Eu não conseguia mais enxergar as palavras tão bem. Fechei a Bíblia e voltei-me para aquelas mulheres se achegando ao meu redor, e faleilhes a verdade a meu respeito - confessei meu egoísmo, minha mesquinhez, minha falta de amor. Naquela noite, a grande alegria de servir a Deus retornou ao meu coração. *** A cada chamada matinal o vento parecia mais cortante. Sempre que podia, Mien, clandestinamente, nos passava jornais que tirava do pessoal do hospital, para forrarmos nossa roupa. A blusa azul de Nollie, que Betsie usava sob o vestido, estava preta de tinta de impressão. O frio parecia estar afetando as pernas de Betsie. Às vezes, pela manhã, ela não conseguia movê-las, e nós tínhamos que carregá-la. Não era difícil. Ela não pesava mais que uma criança. Todavia, ela não poderia bater os pés, como nós fazíamos, para conservar

o

sangue

circulando.

Quando

regressávamos

ao

dormitório, eu massageava seus pés e mãos, mas parecia que as minhas mãos pegavam a friagem das dela. Uma semana antes do Natal, Betsie acordou de manhã sentindo-se incapaz de mover braços e pernas. Desci por entre as alas, apressadamente, abrindo caminho com os ombros, e cheguei à saleta do centro. Quem estava de guarda era a "Serpente".

- Por favor, pedi. Betsie está doente. Ela tem que ser levada para o hospital! - Sentido! Dê seu número. - Prisioneira 66730 apresentando-se. Por favor, minha irmã está doente. - Todas as prisioneiras têm que se apresentar para a contagem. Se ela está doente, pode dirigir-se à enfermaria. Maryke de Graaf, uma holandesa que ocupava a plataforma acima da nossa, ajudou-me a fazer uma "cadeira de braços" e carregar Betsie. A batida rítmica já havia começado na Lagerstrasse. Levamo-la para o hospital e paramos. À luz das lâmpadas da rua, vimos a fila de doentes que se estendia até a extremidade do prédio e depois sumia de vista, dobrando a esquina. Havia três corpos no chão, sobre a neve suja, ainda jazendo onde haviam caído. Sem dizer palavra, eu e Maryke nos viramos e a carregamos de volta para a Lagerstrasse. Após a chamada, levamo-la para a cama. Sua fala era lenta e pastosa, mas ela estava tentando dizerme alguma coisa. - O campo, Corrie... o campo de concentração. Nós somos responsáveis. Tive que inclinar-me sobre ela para poder ouvir. O campo era na Alemanha, mas não mais uma prisão: era um lar onde as pessoas que haviam sido moldadas por essa filosofia de ódio e força poderiam ir morar, de livre vontade. Não haveria muralhas, nem arame farpado, e os alojamentos teriam caixas de flores nas janelas. - Vai lhes fazer bem... ver as plantas crescerem. A gente aprende a amar com as flores... Agora eu já sabia quem eram as pessoas a quem ela se

referia. Os alemães. Pensei na "Serpente" de pé à porta do alojamento, naquela manhã. "Dê seu número. Todas as prisioneiras têm que se apresentar para a contagem..." Olhei para o rosto enrugado de Betsie. - O campo vai ser na Alemanha mesmo, Betsie? Em vez do casarão que iríamos organizar na Holanda? - Não, não! ela parecia chocada. A casa vai ser antes. Já está pronta, só esperando a gente... com janelas altas, a luz do sol jorrando para dentro... Foi tomada por um acesso de tosse. Quando finalmente ela se acalmou, havia uma mancha escura de sangue sobre a palha. Ela dormiu intermitentemente, durante todo o dia e a noite seguinte acordando várias vezes, para falar animadamente de algum detalhe novo de nosso trabalho na Holanda ou na Alemanha. - Os alojamentos são cinzentos, Corrie, mas vamos pintá-los de verde, verde-claro brilhante, como a cor da primavera. - Nós vamos estar juntas, Betsie? Vamos fazer tudo isso juntas? Tem certeza disso? - Sempre juntas, Corrie! Eu e você... sempre juntas. Quando a sirene soou na manhã seguinte, eu e Maryke a carregamos para fora de novo. A "Serpente" estava à porta da saída. Quando começávamos a atravessar a porta, ela se colocou à nossa frente. - Levem-na de volta para a cama. - Pensei que todos os prisioneiros... - Leve-a de volta! Sem compreender, recolocamos Betsie na cama. A nevasca

batia ruidosamente contra as janelas. Seria possível que a atmosfera do alojamento 28 tivesse afetado até mesmo aquela policial cruel? Logo que fomos dispensadas, após a chamada, corri para o dormitório. À beira de nossa cama estava a "Serpente". Ao seu lado, dois enfermeiros do hospital estavam estendendo a maca. À minha aproximação, a "Serpente" se endireitou, como que apanhada em falta. - A prisioneira está pronta para ser transferida, disse secamente. Olhei-a mais cuidadosamente: ela se arriscara a enfrentar pulgas e piolhos para evitar que Betsie tivesse que entrar na fila de enfermos. Segui atrás da maca, e ela não me impediu. Nosso grupo de tricotadeiras tinha acabado de se reunir na saleta do centro. Ao passarmos, uma polonesa caiu de joelhos e fez o sinal da cruz. Já fora, fomos açoitados pela tempestade de neve. Acerqueime da maca procurando proteger Betsie um pouco. Passamos pela fila de doentes à espera de serem atendidos, e entramos numa ampla enfermaria. Eles abaixaram a maca, e eu me inclinei sobre ela para ouvir o que dizia. - ... temos que contar aos outros o que aprendemos aqui. Temos que dizer a eles que, por mais profundo que seja o sofrimento, o Senhor pode ir além. Eles vão nos ouvir, Corrie, porque nós estivemos neste lugar. Olhei seu corpo abatido. - Quando será isso, Betsie? - Agora. Já. Muito breve! No começo do ano, Corrie, estaremos fora da prisão. Uma enfermeira avistou-me. Afastei-me até à porta e fiquei

olhando. Deitaram Betsie num catre estreito, perto da janela. Dei a volta para o lado exterior do prédio. Por fim, Betsie me viu; trocamos sorrisos e palavras silenciosas, até que um policial deu comigo e gritou-me para ir andando. Ao meio-dia, deixei meu tricô e fui ao aposento central. - Prisioneira 66730 apresentando-se. Solicito permissão para visitar o hospital. Permaneci de pé, tesa como uma vara. A "Serpente" olhou-me rapidamente e depois rabiscou num pedaço de papel, um passe para mim. Cheguei à porta da enfermaria, mas a horrível enfermeira não me deixou entrar, nem mesmo com o passe. Voltei à janela junto da qual Betsie se encontrava. Esperei a enfermeira deixar o quarto e bati de leve. Ela abriu os olhos e girou a cabeça lentamente. - Você está bem? perguntei só com os lábios. Ela acenou que sim. - Você precisa descansar bem, continuei. Ela respondeu-me com os lábios mas não consegui compreender. Ela formou as palavras de novo. Virei a cabeça de lado, ao nível da dela. Seus lábios azulados se moveram: - ... tanto trabalho para se fazer... A "Serpente" folgou durante a tarde e a noite, e embora eu suplicasse aos guardas várias vezes, não obtive permissão para voltar ao hospital. No dia seguinte, no minuto que fomos dispensados, corri para o hospital, sem me preocupar em obter permissão. Cheguei à janela e levei as mãos à testa, para fazer sombra nos olhos, para ver melhor lá dentro. Havia uma enfermeira entre

mim e Betsie. Escondi-me um instante; esperei um minuto, e depois olhei de novo. Outra enfermeira juntara-se à primeira, as duas cobrindo-me a visão. Depois, uma postou-se aos pés da cama, enquanto a outra se colocava à cabeceira: olhei ansiosamente para o vulto sobre a cama. Parecia uma estátua esculpida em marfim. Estava sem roupa; eu distinguia cada costela, e o contorno dos dentes através da pele enrugada do rosto. Levei alguns instantes para compreender que era Betsie. Cada enfermeira pegou um lado do lençol. Carregaram-na do quarto antes que meu coração se recuperasse e voltasse a pulsar. Betsie! Ela tinha tanto para fazer! Não podia... Onde a estariam levando? Para onde haviam se dirigido? Saí da janela e comecei a correr ao redor do edifício, com o peito ardendo pelo esforço da respiração. Lembrei-me do banheiro aos fundos; a janelinha - era ali que... Meus pés me levaram mecanicamente a rodear o prédio. Com a mão no peitoril, parei. E se ela estivesse lá mesmo? E se tivessem posto Betsie naquele assoalho? Comecei a caminhar. Vaguei muito tempo, ainda com aquela dor no peito. Meus pés, porém, sempre me levavam de volta àquela janela. Eu não entrava; eu não olhava. Betsie não podia estar lá. Andei mais um pouco, e, estranhamente, embora eu passasse por vários policiais, nenhum deles tentou me deter, nem me interrogar. - Corrie! Voltei-me e vi Mien correndo para mim. - Procurei você por toda a parte. Venha comigo, Corrie! Ela agarrou meu braço e puxou-me para os fundos do hospital. Quando

vi onde ela me conduzia desvencilhei-me dela. - Eu sei, Mien. Eu já sei. Ela não pareceu me ouvir. Pegou-me novamente e levou-me até a janela, e empurrou-me por detrás. No fétido quartinho estava uma enfermeira. Encolhi-me assustada, mas Mien estava atrás de mim. - Esta aqui é a irmã, disse à mulher. Virei a cabeça. Não queria olhar para aqueles cadáveres dispostos ao longo da parede. Mien pôs um braço no meu ombro e empurrou-me através do cômodo guiando-me até aquela visão triste. - Corrie, você está vendo Betsie? Fixei os olhos no rosto de Betsie. Senhor Jesus, o que fizeste? Ó Senhor, o que estás me dizendo! O que estás me dando! Ali estava Betsie: tinha os olhos fechados, como se dormisse, o rosto cheio e jovem. As rugas da preocupação, do sofrimento e o encovado da fome e da doença haviam sumido. À minha frente, estava a Betsie de Haarlem, feliz e em paz. Forte e livre. Esta era a Betsie dos céus, irradiando alegria e saúde. Até o cabelo dela estava arrumado graciosamente, como se um anjo a tivesse preparado. Por fim, voltei-me para Mien. A enfermeira foi à porta, e, sem dizer palavra, abriu-a para nós. - Podem sair pelo corredor, disse suavemente. Olhei mais uma vez para o rosto radiante de minha irmã. Depois, eu e Mien saímos juntas. No corredor, havia um monte de roupas. Bem em cima estava a blusa azul de Nollie. Inclinei-me para apanhá-la. Estava puída e manchada de tinta de jornal, mas era um elo que me ligaria a Betsie. Mien agarrou meu braço. - Não toque nisso! Piolho negro! Eles vão queimar tudo.

E assim deixei para trás o último laço físico que me prenderia a ela. Não me importei. Era até melhor. Agora, o que me unia a Betsie era a esperança dos céus.

Capítulo 15 - As Três Visões A beleza do rosto de Betsie me susteve durante os dias que se seguiram, quando fui de pessoa em pessoa, das que a tinham amado, falando-lhes da sua paz e gozo. Dois dias após a sua morte, a contagem, na hora da chamada, revelou a falta de uma prisioneira. Os outros alojamentos foram dispensados, mas o 28 permaneceu em formação, olhos à frente. O alto-falante deu um estalido, e ouviu-se uma voz anunciar que uma mulher estava faltando: o alojamento todo ficaria de pé ali na Lagerstrasse até que ela fosse encontrada. Esquerda, direita, esquerda, direita - num marca-passo interminável para afugentar o frio das pernas cansadas. O sol surgiu, um sol desmaiado de inverno, que mal dava para aquecer a gente. Olhei para baixo: minhas pernas e tornozelos estavam

inchando

grotescamente.

Pelo

meio-dia,



estava

entorpecida. Como você é feliz hoje, Betsie! Nem frio, nem fome, nada separa você de Jesus agora! A ordem para dispersar veio somente à tarde. Viemos a saber depois que a mulher fora encontrada morta em uma das plataformas superiores. Na manhã seguinte, durante a chamada, ouvi meu nome pelo alto-falante: "Cornélia ten Boom". Por alguns instantes, fiquei ali parada, estupidamente. Eu fora apenas "Prisioneira 66730" durante tanto tempo, que quase não reagia à menção de meu nome. Adiantei-me.

- Fique aí ao lado. O que iria acontecer? Por que eu fora destacada das outras? Será que alguém havia delatado a existência da minha Bíblia? A chamada continuou a se arrastar. De onde estava, eu podia enxergar quase que toda a Lagerstrasse, dezenas de milhares de mulheres a perder de vista, o ar quente de sua respiração suspenso naquela atmosfera fria e escura. A sirene deu o sinal de dispersar. A guarda acenou-me para segui-la. Acompanhei-a, chapinhando pela neve semi-derretida, esforçando-me para me manter em passo com ela, com suas botas de cano longo. Minhas pernas e pés ainda estavam inchados e doloridos por causa do demorado castigo do dia anterior - meus sapatos atados com pedaços de barbante. Fui mancando, atrás da guarda, até o setor da administração, o qual ficava na Lagerstrasse, na extremidade oposta ao hospital. Várias prisioneiras encontravam-se em fila junto a uma mesa grande. O oficial que estava sentado à mesa, carimbou um documento e entregou-o à mulher à sua frente. - Entlassen! disse ele. Entlassen? Libertada? Então aquela mulher estava livre? Será que... nós todas? Ele falou outro nome, e outra prisioneira se chegou à mesa. Uma assinatura. Um carimbo. - Entlassen! Por fim, ele disse: - Cornélia ten Boom. Adiantei-me, firmando-me na mesa. Ele escreveu qualquer coisa no papel, bateu o carimbo, e depois entregou-me. Peguei-o:

um pedaço de papel com meu nome, data de nascimento, e, no alto, em letras grandes: Certificado de Soltura. Estonteada, segui as outras, entrando por uma porta à esquerda. Na outra sala, foi-me entregue um passe de estrada de ferro que me dava direito a transporte dentro da Alemanha, até a fronteira da Holanda. Já fora do escritório, um guarda indicou-me um longo corredor e uma outra sala. As prisioneiras que me haviam precedido estavam tirando a roupa, e depois enfileirando-se junto à parede. - Roupas aqui, disse-me uma prisioneira auxiliar sorrindo. Exame para libertação, informou-me. Tirei a Bíblia, juntamente com o vestido. Enrolei-a nele, e enfiei bem embaixo, no monte de roupas. Reuni-me às outras, e senti a madeira áspera da parede contra minha pele. Era estranho como a palavra soltura tornara aquela burocracia da prisão ainda mais odiosa. Quantas e quantas vezes eu e Betsie tivéramos de ficar assim. No entanto o sentimento de liberdade já se apossara de mim, e a vergonha por essa inspeção era maior que qualquer das anteriores. Afinal, o médico chegou: um rapaz de rosto sardento, vestido de farda. Correu os olhos pela fila com indisfarçável desprezo. Uma a uma tivemos que nos inclinar, virar, abrir os dedos. Quando chegou minha vez, ele examinou-me de alto a baixo, e deteve-se nos meus pés. Seus lábios se contraíram em desgosto. - Edema, disse. Hospital. E saiu. Enfiei o vestido de volta, e, juntamente com outra mulher que não fora aprovada, segui a encarregada para fora do prédio. Amanhecera. O céu cinzento e sombrio cuspia neve.

Entramos pela Lagerstrasse, passando pelas intermináveis fileiras de alojamentos. - Então... não vamos ser libertas? - Acho que vão, respondeu a encarregada, logo que o inchaço das pernas ceder. Eles só soltam as prisioneiras quando estão em perfeitas condições de saúde. Vi-a observar a outra prisioneira: a pele e os olhos dela tinham uma coloração amarelada. A fila de doentes se estendia até o outro lado do hospital, mas nós entramos direto, indo para uma ala aos fundos. O quarto estava cheio, povoado de beliches. Designaram-me uma cama superior, perto de uma mulher cujo corpo estava coberto de pústulas. Estava porém, próxima à parede, e isto me possibilitava manter minhas pernas elevadas. Agora, aquilo era tudo que importava: conseguir que a inchação diminuísse, para eu passar na inspeção. *** Não sei se aquele raio de liberdade revestira Ravensbruck de um aspecto de renovada crueldade, ou se aquela ala era mesmo o lugar mais terrível do campo; o certo é que o sofrimento ali era inimaginável. Ao meu redor, estavam os sobreviventes de um trem que fora bombardeado, quando se dirigia para Ravensbruck. As mulheres estavam horrivelmente mutiladas, sofrendo dores atrozes, mas a cada gemido duas das enfermeiras zombavam delas, arremedando-as. Mesmo as próprias pacientes demonstravam essa indiferença pétrea para com o sofrimento das outras, que era a "doença" mais

fatal dos campos de concentração. Percebi que ela se alastrou e me atingiu também: como é que uma pessoa poderia sobreviver se se apegasse a qualquer forma de sentimento? As que estavam inconscientes e as paralíticas estavam sempre caindo ao chão. Naquela primeira noite, quatro mulheres caíram de beliches superiores e morreram ali mesmo. Era melhor a gente concentrar-se apenas nos próprios problemas e não ver nada, nem pensar. Entretanto não havia jeito de se isolar o som. A noite toda as mulheres gritavam uma palavra que eu não conhecia. - Schieber! Repetidas vezes ouvia-se aquele pedido, feito com voz áspera. - Schieber! Afinal, compreendi que estavam pedindo a aparadeira. Estava claro que a maioria das ocupantes dessa enfermaria não poderia ir ao sanitário imundo que servia à ala. Por fim, ainda relutando em abaixar as pernas, desci do meu catre e entreguei-me àquela tarefa. A gratidão delas era comovente. - Quem é você? Por que está fazendo isto? Era como se a crueldade e a dureza fossem a atitude normal, o certo; e a decência e a bondade, a exceção, o errado. Quando raiou aquela madrugada de inverno, lembrei-me de que era o dia de Natal. *** Todas as manhãs eu ia à clínica, na parte fronteira do hospital. De lá eu ouvia a batida rítmica da Lagerstrasse. Todas as

vezes, ouvia a mesma coisa: "Edema nos pés e nos tornozelos". Muitos dos que iam à clínica eram, como eu, prisioneiros com a ordem de soltura. Alguns já a haviam recebido há meses; seus documentos e passes da estrada de ferro estavam aos pedaços de tanto serem dobrados e desdobrados. E... se Betsie estivesse viva? Teríamos terminado nosso termo na prisão ao mesmo tempo. Ela, porém, nunca passaria no exame médico. E se ela estivesse aqui comigo? E se eu passasse na inspeção e ela... Não há se no reino de Deus, ouvi sua voz suave murmurar. Ele faz tudo na hora certa. Sua vontade é como um refúgio. "Senhor, conserva-me dentro da tua vontade! Não me deixe ficar vagando fora dela, e me perder totalmente." Comecei a procurar alguém a quem dar a Bíblia. Seria tão fácil adquirir outras - várias outras - na Holanda. Não havia muitas holandesas naquela ala, mas, encontrei uma jovem de Utrecht, e passei o cordão do bornal pelo seu pescoço. Na sexta noite, as duas aparadeiras que havia no quarto sumiram. Duas ciganas húngaras ocupavam um beliche no centro do quarto, e seu matraquear era parte da babel de sons que enchia o lugar. Eu nunca chegava perto delas, pois uma estava com gangrena no pé, e gostava de esticá-lo para o rosto de quem passasse por ali. Alguém informou que as aparadeiras estavam com as ciganas, escondidas sob o cobertor, para evitar-lhes a caminhada ao banheiro. Aproximei-me delas e roguei-lhes que as devolvessem, embora não estivesse certa de que entendessem alemão. Subitamente, no escuro, senti algo molhado e viscoso baterme contra o rosto. Uma delas retirara a bandagem do pé e a atirara em mim. Corri dali chorando, e fui ao banheiro para me lavar. Lavei-

me e lavei. Nunca mais voltaria àquela ala. Que me importavam as aparadeiras? Eu não suportaria... Mas é lógico que eu voltei. Eu aprendera muita coisa, nesse último ano, a respeito do que eu podia e não podia suportar. Quando as ciganas me viram descendo o corredor em sua direção, jogaram as aparadeiras no chão. Na manhã seguinte, o médico carimbou a aprovação clínica em meu documento. Os eventos que antes se desenrolavam com tanta lentidão, agora voavam. Numa coberta perto da saída do campo, deram-me roupas. Roupa de baixo, uma saia de lã, uma belíssima blusa de seda, sapatos de boa qualidade, quase novos, um chapéu e um casaco grosso. Deram-me um papel para assinar, no qual se afirmava que eu nunca estivera doente em Ravensbruck, não tivera nenhum acidente e que o tratamento fora bom. Assinei-o. Em outro prédio, recebi uma ração de pão para um dia e cupons de racionamento para mais três dias. Também recebi de volta meu relógio, meu dinheiro e a aliança de mamãe. Por fim, estávamos no portão; éramos dez ou doze pessoas. Os pesados portões de ferro giraram; seguindo uma guarda, marchamos todos para fora. Subimos a colina; agora víamos o lago, todo congelado, naturalmente. Os pinheiros e a torre da igreja ao longe brilhavam ao sol de inverno, como num cartão de Natal antigo. Quase não acreditava no que me acontecia. Talvez estivéssemos apenas nos dirigindo para a fábrica da Siemens; à noite, regressaríamos ao acampamento. No topo da colina, porém, desviamo-nos para a esquerda, indo em direção à vila próxima. Senti meus pés se incharem novamente nos sapatos novos, mas apertei os lábios e forcei-me a continuar. Temia ver a guarda voltar-se e

apontar desdenhosamente para mim: "Edema! Mande-a de volta para o campo." Ao chegarmos à estação, a guarda virou-se e nos deixou sem ao menos olhar para trás. Parecia que todos iríamos até Berlim, depois, cada um tomaria seu rumo. A espera foi longa, naqueles bancos frios de ferro batido. O senso de irrealidade ainda persistia. Só uma coisa parecia verdade: o vazio de meu estômago. Atrasei o mais que pude o momento de comer o pão, mas afinal enfiei a mão no bolso do casaco. O pacote sumira. Saltei do banco, olhei embaixo dele, rememorando meus passos até a estação. Não sabia se o perdera ou se me fora roubado; o fato é que não o tinha mais e nem os cupons de racionamento. Depois de muito tempo, um trem encostou na plataforma e nós subimos a ele, mas era apenas para militares. De tardinha, recebemos permissão para embarcar num trem do correio, somente para ter que descer duas estações abaixo, para dar lugar a um carregamento de alimentos. A viagem tornou-se um pesadelo. Chegamos à imensa terminal ferroviária de Berlim, furada de bombas, depois da meia-noite. Era o dia primeiro de janeiro de 1945. Betsie estava certa; ela e eu estávamos fora da prisão... Confusa e assustada, fiquei vagando pela estação sombria, vendo a neve entrar por uma clarabóia quebrada. Eu sabia que devia procurar o trem de Uelzen, mas depois de tanto tempo agindo apenas sob comando, eu perdera toda a iniciativa. Finalmente, encontrei alguém que me indicou uma plataforma distante. Cada passo, agora, era uma agonia, por causa dos sapatos novos.

Quando afinal alcancei a plataforma designada, a plaqueta de identificação dizia Olsztyn, uma cidade da Polônia, que ficava exatamente na direção oposta. Tive que atravessar aquela enorme área de concreto novamente. À minha frente, vi um velhinho de rosto corado, ajuntando entulho de bombardeio. Quando lhe pedi informação, pegou-me pelo braço e conduziu-me ele mesmo à plataforma certa. - Eu já fui à Holanda, disse-me com uma voz carregada de recordações, quando minha esposa era viva. Ficamos à beira-mar. Havia um trem parado ali, e eu subi a bordo. Passou-se muito tempo antes que aparecesse alguém, mas não ousei sair, com receio de me perder. Quando o trem partiu, eu já estava meio tonta pelo longo tempo sem comer. Na primeira parada fora de Berlim, fui ao café da estação. Mostrei meu dinheiro holandês, e disse à mulher que se achava ao balcão que perdera meus cupons. - Essa história é velha! Saia daqui antes que eu chame a polícia! A viagem foi interminável. Vários trechos foram percorridos muito lentamente. Algumas partes estavam destruídas, e havia desvios longos e muitas baldeações. Às vezes, por medo de bombardeios, não se parava numa estação, e a carga e os passageiros eram desembarcados fora da cidade. Durante todo o tempo, de minha janela, eu contemplava a outrora linda Alemanha. Florestas enegrecidas pelo fogo, as costelas descarnadas de uma igreja dominando uma vila em ruínas. Lágrimas me vieram aos olhos, quando vi Bremen. Em toda aquela imensidão devastada vi apenas um ser humano - uma

velhinha à cata de coisas em um monte de tijolos. Chegando em Uelzen, tivemos que esperar durante muito tempo a troca de trens. Era tarde, e a estação estava deserta. Comecei a cochilar em um bar vazio, e minha cabeça caiu para a frente, descansando na mesa à minha frente. Fui despertada por um tapa no ouvido que quase me mandou ao chão. - Isto aqui não é quarto de hotel! gritou o agente da estação furiosamente. Não pode dormir nas mesas! Trens iam e vinham. Eu embarcava e desembarcava. Por fim, achei-me numa fila, diante de uma coberta da alfândega de uma pequena estação, onde se lia Nieuwerschans. Quando saí, um operário que usava um macacão azul e um boné da mesma cor, aproximou-se de mim. - Olha, acho que não irá muito longe com a perna neste estado! Apóie-se em mim. Ele me falara em holandês. Segurei-me a ele e atravessamos alguns trilhos - eu mancando - e chegamos a um ponto onde havia outro trem parado, a máquina lançando fumaça pela chaminé. Encontrava-me na Holanda! O trem arrancou. Vastos campos, planos e cobertos de neve, passavam diante dá janela. Minha terra! Ainda era a Holanda ocupada; ainda víamos soldados alemães postados ao longo do percurso, mas era minha terra. O comboio iria somente até Groningen, uma cidade ainda próxima à fronteira. Dali para a frente os trilhos estavam destruídos. Somente oficiais do governo tinham permissão para viajar. Reunindo as poucas energias que ainda me restavam, encaminhei-me para um

hospital perto da estação. Uma enfermeira de uniforme branco, imaculado, conduziu-me a um pequeno escritório. Depois que lhe contei minha história, ela saiu. Após alguns instantes, voltou com uma bandeja de chá e roscas. - Não trouxe manteiga, disse-me. Você está subnutrida e deve ter muito cuidado com o que come. Lágrimas de alegria misturavam-se ao chá quente. Aqui estava alguém que se preocupava comigo. Não havia vagas no hospital, informou-me, mas uma das funcionárias estava ausente e eu poderia ficar com o seu quarto. - Já estou enchendo a banheira para você. Segui-a por um corredor, como se estivesse sonhando. O banheiro amplo estava cheio de vapor que subia de uma grande banheira. Nada em minha vida foi tão bom quanto aquele banho. Fiquei muito tempo ali, com água até o queixo, sentindo-a suavizar minha pele cheia de feridas. - Só mais cinco minutos, dizia à enfermeira, cada vez que ela batia à porta. Por fim, peguei a camisola que me entregou e deixei-a conduzir-me a um quarto com a cama já preparada. Lençóis! Lençóis brancos: lençol e virol. Fiquei alisando-os com a ponta dos dedos durante algum tempo. A enfermeira enfiou um travesseiro sob meus pés inchados. Esforcei-me para me manter acordada: era pena dormir e esperdiçar aquela chance de gozar a alegria de deitar numa cama limpa e receber os cuidados de alguém. ***

Permaneci no hospital de Groningen dez dias, sentindo as forças retornarem. Fazia a maioria das refeições com as enfermeiras, no seu próprio refeitório. Na primeira vez que vi a mesa posta com talheres e copos, dei para trás, assustada. - Vocês estão dando uma festa? Não quero atrapalhar; levo uma bandeja e como no quarto mesmo. Ainda não me sentia preparada para risadas e bate-papo informal. A moça que estava a meu lado, riu e afastou a cadeira para mim. - Não é festa, não. É só um jantar - e bem pobre, aliás. Sentei-me, olhando pasmada para a faca, garfo e toalha - eu comera assim antes? todos os dias? Como se fosse um selvagem observando os civilizados, imitei os gestos lentos das outras, ao passarem o pão e o queijo, e mexerem o açúcar no café. Estava ansiosa para rever Willem e Nollie, mas como conseguiria chegar até eles com a proibição de viajar? O telefone estava mais limitado do que nunca, mas afinal a operadora do PBX do hospital conseguiu falar com a telefonista de Hilversum, e passar-lhe as notícias da minha soltura e da morte de Betsie. Nos meados da semana seguinte, a direção do hospital conseguiu lugar para mim num caminhão de alimentos que ia para o sul. Essa viagem clandestina foi feita à noite, de faróis apagados: o alimento havia sido desviado de um carregamento que era destinado à Alemanha. Numa manhã cinzenta, o veículo parou em frente ao Lar dos Velhinhos, de Willem. Uma moça alta, de ombros largos, atendeu à porta e depois saiu correndo para avisar da minha chegada. No momento seguinte, eu abraçava Tine e duas de minhas

sobrinhas. Willem chegou vagarosamente, manquitolando corredor abaixo, apoiado numa bengala. Ficamos abraçados um longo tempo, enquanto eu narrava os detalhes da doença e morte de Betsie. - Eu quase desejo que o mesmo tenha acontecido a Kik, disse Willem devagar. Seria bom se ele estivesse com Betsie e papai agora. Kik fora deportado para a Alemanha, e eles não tinham notícias dele desde então. Recordei o toque de sua mão em meu ombro, ao guiar-me, enquanto rodávamos pelas ruas escuras até a casa de Pickwick. Lembrei-me de sua paciência ao dizer-me: "A senhora não tem cartões a mais, Tia Corrie. Não há judeus aqui." Kik! Será que os jovens e corajosos são tão vulneráveis quantos os velhos e vagarosos? Fiquei duas semanas em Hilversum, tentando aceitar mentalmente a verdade que meus olhos haviam constatado em meus primeiros momentos naquela casa: Willem estava muito mal. Só ele parecia inconsciente deste fato, pois vagava dificultosamente pelos longos corredores do abrigo, levando conforto e aconselhamento aos doentes sob seus cuidados. Havia mais de cinqüenta pacientes no presente momento. O que mais me espantava era o grande número de moças que estavam servindo ali: cozinheiras, enfermeiras, secretárias. Somente alguns dias depois foi que descobri que a maioria daquelas "moças" era, na realidade, rapazes disfarçados, fugindo ao recrutamento para os campos de trabalho forçado, o qual estava cada vez mais rigoroso. Entretanto parecia que eu não poderia descansar, enquanto não chegasse a Haarlem. Nollie estava lá, naturalmente; mas era por causa do Beje também. Alguma coisa naquela casa me atraía, me

acenava dizendo-me para voltar para casa. E mais uma vez enfrentei o problema de como chegar lá. Willem dispunha de um carro oficial para uso do abrigo, mas apenas dentro do perímetro da cidade. Por fim, após várias chamadas telefônicas, ele me comunicou que a viagem fora arranjada. As estradas estavam desertas quando partimos; até o lugar do encontro com o carro que viria de Haarlem, cruzamos apenas com dois veículos. Um pouco adiante, parada no acostamento, sobre a neve, estava uma limusine preta, com placa oficial, as vidraças vedadas por cortinas. Beijei Willem em despedida, e depois entrei rapidamente no carro, pela porta traseira, como havia sido instruída. Mesmo na meia escuridão interior, era difícil não reconhecer aquele volumoso e desajeitado vulto a meu lado. - Tio Herman! gritei. - Cornélia! Com sua mão enorme, segurou a minha. - Deus permitiu-me vê-la novamente. A última vez que eu o vira fora na prisão de Haia, ladeado por dois soldados, tendo a cabeça ferida, coberta de sangue. Agora, ali estava ele, dando de ombros às minhas palavras de pesar, como se aqueles eventos tivessem sido um incidente trivial demais para ser mencionado. Ele parecia-me - como sempre - muito bem informado sobre tudo que ocorria em Haarlem, e enquanto o motorista fardado nos levava rapidamente pelas estradas vazias, deu-me todos os detalhes que eu ansiava saber. Todos os nossos judeus estavam a salvo, exceto Mary Itallie, que fora presa numa rua, e enviada para a Polônia. Nosso grupo ainda estava em funcionamento, embora

muitos dos nossos jovens estivessem foragidos. Ele advertiu-me quanto a mudanças no Beje. Depois que a guarda policial fora retirada, famílias desabrigadas, uma após a outra, haviam se instalado ali, embora ele cresse que, no momento, o lugar estivesse desocupado. Mesmo antes de os selos do governo serem retirados, nossa leal Toos havia retornado de Scheveningen e reabrira o negócio. O Sr. Beukers, nosso vizinho do lado, cedera-lhe espaço em sua ótica e ela estava recebendo pedidos de consertos e encaminhando-os aos nossos relojoeiros em suas próprias casas. Quando meus olhos se ajustaram à meia-luz, pude distinguir melhor as feições de nosso amigo. Tinha um ou outro calombo na cabeça, faltavam-lhe alguns dentes, mas o sofrimento não mudara em nada sua grande e bondosa figura. Agora, o carro já seguia pelas ruas estreitas de Haarlem. Atravessou a ponte do Spaarne, depois a Praça Grote Markt, à sombra da catedral de São Bavo, e, depois, entrou na Rua Barteljoris. Quase antes que o carro parasse, eu já me encontrava fora dele; corri pela ruela lateral, entrei pela porta, e abracei Nollie. Ela e as filhas tinham estado lá a manhã toda, varrendo, lavando janelas, arejando os lençóis, preparando tudo para minha chegada. Por sobre o ombro de Nollie, vi Toos junto à porta interna da loja, rindo e chorando ao mesmo tempo. Rindo porque eu estava de volta, e chorando por papai e Betsie que nunca mais retornariam, e eles eram as duas únicas pessoas do mundo a quem ela se permitira amar. Fomos todos andando pela casa, olhando, tocando em tudo: - Você se lembra como Betsie arranjava estas xícaras?

- Lembra-se como Meta zangou com Eusie por ele ter esquecido o cachimbo aqui? Parei no patamar diante da sala de jantar, e corri os dedos pela madeira lisa do relógio frísio. Quase via papai parando ali, com Kapteyn em seus calcanhares: - Não podemos deixar o relógio parar! Abri a tampa de vidro, acertei os ponteiros pelo meu relógio de pulso, e, vagarosamente, puxei os pesos. Eu chegara em casa. A vida começou de novo, como um relógio: de manhã, conserto de relógios na loja; à tarde, quase sempre, rodando em minha bicicleta sem pneus até a Rua Bos en Hoven. No entanto, inexplicavelmente, eu não me sentia em casa. Ainda aguardava; ainda estava procurando alguma coisa. Durante alguns dias, dei voltas pelas redondezas, pelas ruelas e margens dos canais, chamando nosso gato pelo nome. Uma velhinha que vendia verduras três portas abaixo, contoume que o ouvira miar ali perto, na noite de nossa prisão, e ela o fizera entrar. Nos várias meses que se seguiram, disse-me, as crianças da vizinhança tinham se revezado para trazer comida ao "gatinho do vovô". Traziam restos do lixo, e mesmo pedacinhos de coisas furtados de sua magra alimentação, de sob os olhos vigilantes de suas mães, e assim, Hashbaz se mantivera bem nutrido e gordo. Nos meados de dezembro, continuou ela, ele não aparecera mais ao seu chamado e, depois disso, ela nunca mais o vira. Continuei a procurar, mas com o coração pesado: naquele rigoroso inverno holandês, com a fome que reinava, nenhum gato ou cachorro atendeu ao meu chamado. Mas eu não estava sentindo falta apenas do gato; o Beje

precisava de gente para enchê-lo. Lembrei-me das palavras de papai ao chefe da Gestapo em Haia: "Amanhã abro minhas portas para qualquer pessoa que precisar de mim." Ninguém na cidade estava mais necessitado que os retardados. Desde o início da ocupação nazista, as famílias os haviam encerrado em quartinhos traseiros, escondidos de um governo que dizia serem eles inaptos para viver. Escolas e centros de treinamento especializado tinham sido fechados. Pouco depois, havia um grupo deles morando no Beje. Ainda não podiam sair às ruas, mas, pelo menos, tinham um ambiente novo, e um pouco de organização e treinamento, quando eu podia me ausentar da loja. Entretanto, minha inquietação perdurou. Eu me achava em casa; estava trabalhando, e muito! - ou será que estava mesmo? Muitas vezes eu dava comigo mesma sentada à banca de trabalho e via que estivera com os olhos fixos no vácuo muito tempo. Os consertadores que Toos arranjara para nos auxiliar - antigos aprendizes de papai - eram ótimos. Eu passava cada vez menos tempo na oficina; o que quer ou quem quer que eu procurava não se encontrava ali. Nem na residência. Eu amava aquelas almas cândidas que se achavam sob meus cuidados, mas a casa mesmo não era mais um lar. Por causa de Betsie, comprei plantas para todas as janelas, mas esqueci-me de molhá-las, e se secaram. Talvez eu estivesse sentindo falta daquele desafio do movimento clandestino. Quando a organização nacional me apareceu com um pedido, acedi prontamente. Eles me entregaram um documento falso de soltura, para um prisioneiro que estava na cadeia de Haarlem. Nada podia ser mais simples do que dobrar aquela

esquina e penetrar por aquela porta tão minha conhecida. Contudo, quando as portas se cerraram às minhas costas, meu coração disparou. E se eu não conseguisse sair? E se aquilo fosse uma armadilha? - Às ordens! Um tenente de polícia, um jovem de cabelos vermelhos, apresentou-se saindo de detrás da mesa. - Tem hora marcada? Era Rolf. Por que estaria agindo assim? Será que eu estava sendo detida? Iriam colocar-me numa cela? - Rolf, disse-lhe, não me reconhece? Ele me fitou fixamente, como se tentasse rememorar. - Ah! Naturalmente! disse com voz suave. É a senhora da relojoaria! Soube que sua loja esteve fechada por algum tempo! Deixei cair o queixo. Ora, Rolf sabia perfeitamente... então me lembrei de onde nos encontrávamos: no saguão da chefatura de polícia. E havia cinco ou seis soldados alemães nos espiando. E eu havia chamado pelo nome a um membro do nosso grupo, e havia praticamente admitido haver um certo relacionamento entre nós, quando a regra de ouro do movimento era... Passei a língua nos lábios. Como eu podia ser tão estúpida? Minhas mãos tremiam. Rolf retirou os papéis de entre elas e olhou-os rapidamente. - Estes documentos têm que ser revistos pelo chefe de polícia e pelo comandante militar, em conjunto, disse ele. Será que a senhora pode trazê-los de novo amanhã, às quatro horas da tarde? O chefe está em reunião e vai demorar até... Não ouvi mais nada. Quando ele dissera "amanhã à tarde",

eu me dirigira para a porta. Fiquei parada na calçada até meus joelhos cessarem de tremer. Se eu precisasse de uma prova de que não possuía nenhuma ousadia nem sagacidade em mim mesma, eu a tinha agora. Qualquer momento de coragem ou habilidade que eu tivesse tido, fora apenas um dom especial de Deus, uma capacitação momentânea, por ele dada para que eu pudesse realizar uma determinada tarefa. A ausência de tais qualidades agora mostrava claramente que ele não desejava mais que eu recomeçasse este trabalho. Retomei ao Beje lentamente. E então, no instante que entrei na ruela lateral, fiquei sabendo o que era que eu procurava. Era Betsie. Fora de Betsie que eu sentira falta a cada minuto de cada dia, desde que correra àquela janela de hospital e descobrira que ela deixara Ravensbruck para sempre. Fora Betsie que eu pensara encontrar aqui em Haarlem, na loja, na casa que ela tanto amara. Mas ela não estava aqui. E agora, pela primeira vez depois de sua morte, eu me lembrava de uma coisa. "Temos que contar aos outros, Corrie. Temos que dizer a eles o que aprendemos aqui..." Naquela mesma semana eu comecei a falar disso. Se esse era o novo trabalho de Deus para mim, então ele me daria a coragem necessária e as palavras. Andei pelas ruas e subúrbios de Haarlem, sacolejando em minha bicicleta, levando a todos a mensagem de que a alegria é maior que o desespero. Era uma mensagem de que todos precisavam, naquela primavera de 1945. Agora não havia mais a "Noiva de Haarlem", para encher o ar com sua doce fragrância; dela só restava um toco,

grande demais para ser carregado e transformado em lenha. Não havia mais tulipas a cobrir o chão de um tapete colorido; as batatas haviam sido comidas. Não havia família que não tivesse sua tragédia. Naqueles dias de tanto desespero, falei em igrejas, clubes e lares, a respeito do que eu e Betsie havíamos aprendido em Ravensbruck. Em todas as reuniões, eu contei do anseio de Betsie: uma casa na Holanda, onde todos os que tivessem sido afetados de algum modo pela guerra, pudessem se readaptar à vida. Após uma dessas palestras, uma senhora elegante e de porte aristocrático veio até mim. Eu a conhecia de vista: era a Sra. Bierens de Haan, cuja casa, situada no subúrbio de Bloemendaal, era considerada uma das mais belas da Holanda. Eu nunca a vira; havia visto apenas as árvores que a cercavam, pois fora construída num parque. Fiquei atônita quando aquela mulher bem vestida perguntou-me se eu ainda morava na mesma casa velha, na Rua Barteljoris. - Como foi que... é... moro sim, mas... - Minha mãe me falou muito dessa casa. Ela foi lá várias vezes para ver uma tia sua que, segundo creio, trabalhava em obras de caridade. No mesmo instante, recordei-me de tudo. A porta lateral sendo aberta para dar entrada a um farfalhar de cetim, e um murmúrio de penas de chapéu. Um vestido longo, plumas que tomavam toda a estreita escada. Depois, a Tia Jans de pé à porta, olhando-nos com uma expressão grave que mataria em nós qualquer desejo de bater uma bola, fazer um ruído ou algazarra... - Sou viúva, estava dizendo a Sra. de Haan, mas tenho cinco filhos trabalhando na resistência. Quatro deles estão bem. O outro foi

levado à Alemanha e nunca mais tivemos notícias dele. Quando você estava falando, ouvi uma voz dentro de mim que dizia: "Jan vai voltar, e, em gratidão, você vai dar seu lar para esse projeto de Betsie ten Boom." Duas semanas mais tarde, um garotinho entregou-me um envelope em nossa porta. Dentro havia um bilhete com apenas uma linha, escrita em tinta roxa. "Jan chegou." A Sra. Bierens de Haan recebeu-me à entrada da propriedade. Seguimos por um caminho ladeado de carvalhos, cujos ramos se entrelaçavam acima de nossas cabeças, como um toldo. Dobrando a última curva, eu a vi: uma mansão de cinqüenta e seis cômodos, no centro de um grande gramado. Dois jardineiros idosos trabalhavam nos canteiros. - Deixamos as plantas morrerem, informou-me a Sra. de Haan, mas agora acho que devemos arranjar os jardins novamente. Você não acha que observar as plantas se desenvolverem será uma boa terapia para os ex-prisioneiros? Não respondi. Estava olhando para os espigões do telhado e para as janelas -janelas tão amplas... - Aqui tem... minha garganta estava seca. Acaso o piso é todo taqueado, e tem uma escadaria ladeando o hall central, e estátuas em baixo relevo na parede? Ela fitou-me, surpresa. - Ah! você já esteve aqui, então. Não me lembro... - Não, respondi. Ouvi alguém falar sobre ela... Parei. Como poderia explicar algo que eu mesma não compreendia?

- Alguém que já veio aqui, completou ela sem entender meu assombro. - É, disse-lhe. Alguém que já esteve aqui. *** Na segunda semana de maio, os aliados tomaram a Holanda. A bandeira holandesa drapejava em todas as janelas, e o Wilhelmus era tocado, dia e noite, em nossas rádios, agora operando livremente. O exército canadense transportou para as cidades o alimento que havia sido armazenado ao longo da fronteira. Em junho, chegaram ao nosso Lar, em Bloemendaal, os primeiros de centenas de refugiados que viriam a morar ali. Alguns eram silenciosos, outros falavam incessantemente de suas perdas; uns arredios, outros fortemente agressivos, cada um era um ser humano ferido. Nem todos haviam estado em campos de concentração; alguns tinham ficado dois, três e até quatro anos escondidos em sótãos e quartinhos de despejo. Um dos primeiros foi a Sra. Kan, viúva do proprietário da relojoaria que ficava na mesma rua que a nossa. O marido morrera no esconderijo; ela veio sozinha. Estava velhinha, de cabelos brancos, encurvada e se assustava ao menor ruído. Outros estavam feridos na alma e no corpo, pelos bombardeios ou perda de entes queridos, ou pelos intermináveis deslocamentos durante a guerra. Em 1947, começamos a receber holandeses que tinham sido prisioneiros dos japoneses na Indonésia. Embora não fosse feito de propósito, isto provou ser um dos melhores arranjos para os que tinham estado em prisões na

Alemanha. Entregues a si mesmos, eles tinham a tendência de reviver seus sofrimentos; em Bloemendaal, estavam sempre sendo relembrados de que não eram os únicos que haviam sofrido. Contudo o segredo da cura completa era o mesmo para todos. Cada um tinha uma mágoa que precisava perdoar: o vizinho que o delatara, um guarda brutal, um soldado sádico. O mais estranho, porém, era que os mais difíceis de serem perdoados não eram os japoneses e alemães, mas, sim, um compatriota que se tinha bandeado para o inimigo. Eu via muitos nazistas holandeses nas ruas - cabeças raspadas, olhares furtivos. Estes colaboracionistas estavam em condições tristes. Eram despejados de suas casas ou apartamentos, recusados em empregos e vaiados nas ruas. A princípio, pensei convidá-los para vir para Bloemendaal, e viver lado a lado com as pessoas que eles próprios haviam prejudicado, a fim de procurar criar um sentimento novo de ambas as partes. Descobri, porém, que ainda era muito cedo para se tentar tal coisa com pessoas que ainda estavam se desfazendo de suas mágoas. Duas tentativas nossas terminaram em atritos. Assim, logo que as escolas e centros para retardados foram reabertos, dediquei o Beje para abrigo dos ex-nazistas. E assim foi, naqueles primeiros anos após a guerra: experimentando aqui e ali, cometendo erros, aprendendo. Os médicos, psiquiatras

e

nutricionistas

que

davam

consultas

grátis

a

organizações que cuidavam de vítimas da guerra, muitas vezes expressavam espanto pela nossa disciplina frouxa. Pessoas entravam e saíam nos devocionais matutinos e

noturnos; o comportamento à mesa era horrível; havia um homem que dava uma caminhada pela cidade, todos os dias às três horas da madrugada. Eu não conseguia ser severa bastante para trilar um apito ou fazer reprimendas, nem considerar a hipótese de trancar portas e estabelecer horários rígidos. Uma coisa, porém, era certa: cada um deles, à sua própria maneira e em seu tempo próprio, acabava se livrando da dor profunda que o atormentava. Na maioria das vezes, o processo se iniciava, como Betsie havia previsto, no jardim e na horta. As flores se abriam; as verduras e legumes cresciam, a conversa girava cada vez menos em torno daquele passado amargo, e mais sobre as condições do tempo no dia seguinte. Assim que a mente de uma pessoa se alargava, eu lhe falava dos que estavam no Beje; gente que nunca recebia uma visita, nem uma linha de correspondência. Quando a menção de um nazista deixava de provocar uma erupção de raiva, eu sabia que a cura não demoraria muito. No dia em que a pessoa dizia: "Aquela gente de quem você falou, será que eles gostariam de umas cenouras de nossa horta?" então eu sabia que o milagre se dera. *** Ao mesmo tempo, eu continuei a fazer minhas palestras, em parte, porque o abrigo era sustentado por contribuições, e em parte porque parecia haver um grande interesse pela história de Betsie. Viajei por toda a Holanda, e fui a outras partes da Europa e aos Estados Unidos.

Contudo esse interesse era maior na Alemanha que em qualquer outro lugar. A Alemanha era uma terra em ruínas; as cidades eram cinzas e detritos, mas ainda mais terrível era ver os corações e mentes em cinzas. Bastava cruzar a fronteira para se sentir o grande peso que pairava sobre aquele país. Em uma igreja de Munique eu o vi: o antigo oficial da SS que estivera de guarda diante do chuveiro, no centro de triagem de Ravensbruck.

Era

o

primeiro

de

nossos

algozes

que

eu

reencontrava. Repentinamente, a recordação me assaltou, e senti-me de volta ali: a sala cheia de homens zombeteiros, o monte de roupas, Betsie com o rosto branco de dor. Ele dirigiu-se a mim, sorridente para me cumprimentar, quando a congregação já se dispersava. - Muito obrigado por sua mensagem, D. Corrie, disse ele. E pensar que, como a senhora disse: "Ele apagou todos os meus pecados!" Sua mão estendia-se em minha direção. E eu, que falara tantas vezes em Bloemendaal sobre a necessidade do perdão, conservei a mão abaixada. Ao mesmo tempo que esses pensamentos me queimavam, percebi o pecado que cometia. Jesus Cristo tinha morrido por este homem; poderia eu exigir mais? "Senhor Jesus", orei, "perdoa-me e ajuda-me a perdoá-lo." Tentei sorrir; lutei para estender a mão. Não conseguia. Não sentia nada, nem a menor centelha de calor humano ou caridade. Orei de novo, em silêncio. "Jesus, não consigo perdoá-lo. Dá-me do teu perdão."

Logo que apertei sua mão, um fato incrível aconteceu. Uma espécie de corrente elétrica pareceu passar de mim para ele, brotando de meu ombro e descendo pelo meu braço até ele, e, de meu coração, nasceu um amor tão grande por aquele homem, que quase me sufocou. Foi assim que aprendi que não é em nosso perdão, nem em nossa justiça própria, que repousa a sorte do mundo, mas nos do Senhor. Quando ele nos ordena que amemos os nossos inimigos, ele nos dá, juntamente com a ordem, o seu amor. Era preciso muito amor. A necessidade mais premente da Alemanha de após guerra era lares. Dizia-se haver nove milhões de pessoas desabrigadas. Elas viviam em escombros, em construções semi-destruídas, e em caminhões do exército que haviam sido abandonados. Uma igreja convidou-me para falar a cem famílias de refugiados que estavam vivendo numa fábrica abandonada. Eles penduravam lençóis e cobertas a fim de se isolarem em família. Contudo não havia jeito de se isolar o som: o choro de um bebê, o alarido dos rádios, as palavras ásperas de uma briga entre irmãos... Como poderia eu falar-lhes da realidade de Deus, e depois voltar ao meu quarto tranqüilo, na hospedaria da igreja, nos arredores da cidade? Não; antes de poder falar a este povo, eu tinha de viver entre eles. Foi durante os meses que passei naquela fábrica que o diretor de uma organização assistencial veio falar comigo. Tinham ouvido falar de meu trabalho de reabilitação, na Holanda, disse-me, e gostariam de saber... eu já estava abrindo a boca para informar-lhe que não tinha treinamento profissional no assunto, mas suas

palavras seguintes me silenciaram. - Já temos o local, disse ele. É um campo de concentração que foi recentemente liberado pelo governo. Fomos até Darmstadt para ver o local. Rolos e rolos de arame farpado enferrujado ainda o circundavam. Caminhei por uma estradinha de cascalho, por entre alojamentos cinzentos. Abri uma porta e ela rangeu. Passei por entre as camas de metal. - Precisamos de flores nas janelas, disse. Poremos caixas de flores em todas elas. Teremos que tirar o arame farpado, lógico; depois vamos pintar tudo. De verde. Verde-claro brilhante - a cor das plantinhas novas, quando ressurgem na primavera...

Epílogo Juntamente com uma comissão da Igreja Luterana Alemã, Corrie abriu o campo de Darmstadt, em 1946, para ser abrigo e centro de reabilitação. Funcionou assim até 1960, quando foi demolido para dar lugar a outras construções, na nova Alemanha em desenvolvimento. O Lar de Bloemendaal abrigou exclusivamente ex-prisioneiros e outras vítimas da guerra até 1950, quando então passou a receber qualquer um que precisasse de descanso e cuidados. Ainda hoje encontra-se em operação, com um novo prédio, tendo pacientes de todas as partes da Europa. De 1967 para cá, está sob a orientação da Igreja Reformada Holandesa. Willem morreu em dezembro de 1946, de tuberculose espinhal. Seu último livro, um estudo sobre os sacrifícios do Velho Testamento, ele o escreveu de pé, pois a dor que sentia, causada pela enfermidade, não lhe permitia sentar-se. Instantes antes de morrer, ele abriu os olhos para dizer a Tine: "Kik está bem; ele está muito bem." Foi somente em 1953 que a família veio a saber que o rapaz morrera em 1944, no campo de concentração de Berger-Belsen. Hoje existe em Hilversum uma rua de nome ten Boom, em homenagem a Kik. Após suas experiências na guerra, Peter van Woerden dedicou seu dom musical a Deus. Ele já compôs muitos hinos, tendo

musicado muitos salmos e provérbios. Ele, a esposa e seus cinco filhos viajam por toda a Europa e Oriente Médio, transmitindo a mensagem do amor de Deus, através da música. Em 1959, Corrie voltou a Ravensbruck, com um grupo que fora ali para homenagear as 96.000 mulheres que morreram naquele campo. Ali, Corrie veio a saber que sua soltura se deveu a erro burocrático: uma semana depois, todas as prisioneiras de sua idade foram levadas às câmaras de gás. Com mais de oitenta anos, Corrie ten Boom continuava suas infatigáveis viagens, em obediência ao desejo de Betsie de que "deviam contar aos outros". Ela visitou e falou em dezenas de países, dentro e fora da Cortina de Ferro. Todos os seus ouvintes: sejam estudantes africanos, plantadores de cana-de-açúcar em Cuba, prisioneiros de uma penitenciária da Inglaterra, operários poloneses, etc, ouviram a mesma mensagem - a que ela aprendeu em Ravensbruck: Jesus transforma a derrota em vitória, e a perda em ganho.*

*

Corrie ten Boom veio a falecer aos 91 anos, no dia 15 de abril de 1983, data de seu aniversário. (N. do E.)

Três Maneiras de Aplicar a Mensagem Deste Livro à Sua Vida O segredo da vitória de Corrie ten Boom não está no fato de que tenha sido uma pessoa excepcional, pois, ela própria dizia ser uma pessoa "muito fraca e bem comum". As verdades que ela descobriu podem ser aplicadas à vida de qualquer um de nós. O processo de aplicação destas verdades é muito simples: basta substituir os detalhes da história dela pelas situações particulares de cada um, sejam problemas de família, de emprego, ou outros obstáculos e oportunidades que Deus nos permitir enfrentar. Eis alguns exemplos de como isto pode ser feito: 1. Deus controla tudo, até mesmo as ocorrências que nos parecem cruéis ou sem objetivo. Escreva abaixo os seus problemas "mais difíceis". Talvez você se pergunte por que as crianças têm que sofrer com a guerra, ou como um Deus amoroso pode permitir a violência de um furacão. Escreva todas as suas dúvidas pessoais, tais como: doenças na família, um acidente de carro, uma falência comercial, etc. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Agora, tome-as uma a uma e transfira o fardo para Deus. "Senhor, eu não sei qual é a solução para estas coisas, mas

não quero crer que não haja solução para elas. Tu sabes por que elas ocorrem, Senhor, e quando eu estiver forte bastante - e for sábio, e tiver amor - tu me mostrarás." Nas linhas abaixo, registre o seguinte: (1) respostas parciais ou totais, às perguntas acima (colocando a data de cada uma); (2) o aumento de liberdade, força e energia conseguido ao se enfrentar os outros problemas. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ 2. Deus dá graça para as necessidades presentes; juntamente com tristezas e dificuldades, ele dá forças. Como fez o pai de Corrie naquela viagem para Amsterdam, Deus só nos entrega a passagem no momento de subirmos ao trem. Escreva abaixo, dez causas atuais de ansiedade (sono perdido? preocupações?) ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Agora, releia a lista tendo em mente a seguinte pergunta: quantas dessas situações realmente pertencem ao dia de hoje? Em quantas delas estou tentando passar à frente de Deus? 3. Deus quer que demos graças em todas as circunstâncias. Nosso louvor e gratidão a Deus abrem, de maneira misteriosa e estranha, o caminho para que ele nos abençoe como deseja. Nas

linhas abaixo, escreva cinco fatos pelos quais você está grato a Deus. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Faça pausas durante o decorrer do dia para agradecer a Deus por estas bênçãos, e verá que seu próprio senso de justiça e amor aos outros - e principalmente do amor de Deus - se desenvolvem gradualmente. Nestas linhas, escreva cinco situações atuais pelas quais você não está absolutamente grato. ____________________________________________________ ____________________________________________________ ____________________________________________________ Agora, discipline-se e dê graças a Deus por estas coisas também e veja como ele toma esta sua nova atitude diante destes fatos, para mudá-los completamente.

Os Autores Nos anos que se seguiram ao último capítulo deste livro, Corrie ten Boom viajou por todo o mundo, principalmente pelos países da Cortina de Ferro, levando a mensagem de uma vida triunfante. Com mais de oitenta anos, ela ainda se permitia apenas alguns dias de repouso por ano, em sua casa. Escreveu vários livros devocionais que têm encantado a milhões de leitores. Foi uma oradora maravilhosa, que usou uma linguagem viva, atraente, principalmente para auditórios jovens, e isso era apenas uma de suas muitas características. Neste livro, é narrada, pela primeira vez, a história completa de sua fé, a qual já comoveu, empolgou e transformou muitas vidas, em muitos lugares. Os escritores a quem Corrie ten Boom narrou suas memórias registradas neste livro são John e Elizabeth Sherrill. Ambos colaboradores da revista Guideposts. Seus livros anteriores foram: A Cruz e o Punhal, Eles Falam em Outras Línguas e O Contrabandista de Deus.

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