STUART B. SCHWARTZ Tradução de Saulo Adriano
Os furacões e a formação das sociedades caribenhas
STUART B. SCHWARTZ é professor da Universidade de Yale (EUA) e autor de, entre outros, Escravos, Roceiros e Rebeldes (Edusc).
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“Temporal, temporal, allá viene el temporal. ¿Que será de mi Borinken, cuando llegue el temporal?”1.
odo porto-riquenho conhece esta plena 2 e sabe cantar seu refrão, e em sua ilha, onde nos meses de julho a outubro todos com freqüência verificam as previsões do tempo e olham para o céu, a canção parece descrever uma situação genérica, um modo de vida e uma realidade comum. Poucos se lembram
hoje que a canção foi composta originalmente para recordar um furacão específico: o grande furacão San Felipe, que atravessou Porto Rico diagonalmente em 13 de setembro de 1928. Furacões estão longe de ser uma novidade para os habitantes das ilhas; porém, a fúria do San Felipe foi inesquecível. Os ventos, ainda hoje os mais fortes registrados em toda a história da ilha, atingiram a velocidade de 250 km/h. As propriedades sofreram danos que alcançaram a cifra dos milhões, e oficialmente mais de 300 pessoas perderam suas vidas em conseqüência direta do furacão (na realidade, talvez este número tenha sido próximo de 1.500). O número de mortos, na verdade, foi baixo por conta das lições aprendidas e das precauções tomadas depois da passagem do furacão San Ciriaco de 1899, que matara mais de 3 mil moradores da ilha. As plantações de café da ilha foram quase totalmente perdidas, e, a partir daí, Porto Rico jamais retomou sua posição de exportador de café. A ilha fora devastada. Contudo, o grande furacão San Felipe não chegou ao fim em Porto Rico. Ele já havia iniciado o seu curso de morte em outros locais sem respeitar nenhuma fronteira cultural ou política, como é típico dos furacões. Antes de cruzar Porto Rico, havia assolado uma das ilhas britânicas das Índias Ocidentais, a ilha de Dominicana, e também a francesa de Guadalupe, para depois tomar o rumo nordeste lacerando as Ilhas Virgens e deixar devastação e morte em seu rastro. Depois de atravessar Porto Rico, encaminhou-se em direção ao norte, passando pelas Bahamas e chegando depois, com violência, a West Palm Beach, em 16 de setembro de 1928. A partir daí, encaminhou-se
1 “Furacão, furacão, lá vem o furacão)/ O que será de meu Borinquen quando chegar o furacão?”. Borinquen ou Boriquen é o nome dado à ilha pelos índios tainos e que ainda hoje é utilizado para se referir a Porto Rico. Por isso, os porto-riquenhos também são chamados de borinquenhos, borincanos ou borícuas. 2 A plena é um gênero de música nativa de Porto Rico, surgida no século XX.
 4 Bonham C. Richardson, Economy and Environment in the Caribbean, Gainesville, 1997, p. 213.
para o oeste e para o norte, contornando os campos e passando pelo Lago Okeechobee, onde milhares de imigrantes das Bahamas, trazidos para trabalhar nos novos campos, pereceram por causa do rompimento dos diques e da elevação das águas3. O furacão voltou-se então para o norte, em direção à Nova Inglaterra. O impacto do furacão, o tipo de “desastre natural” que ele foi, mostrou-se diferente de acordo com os arranjos sociais e políticos que o antecederam e os que a ele se seguiram. O furacão trouxera ou criara desafios e oportunidades. Contudo, estes variaram durante o seu curso. Os impérios, nações e povos da região do Caribe criaram realidades históricas e diferenças culturais que serviram como marcas basilares para o entendimento e interpretação da região. O San Felipe, porém, assim como outros de seu tipo, evidenciou uma unidade ambiental subjacente que também serve de fio condutor central ou meio para compreender o passado caribenho comumente visto em termos de sua insularidade. Os furacões demarcaram a importância da região em uma historiografia dos lugares4. O mesmo furacão produziu impactos diferentes nas diversas sociedades que atravessou e, dentro de cada uma delas, seus efeitos foram sentidos de maneiras diferentes pelos diferentes grupos e interesses. É somente ao contemplar comparativamente tanto as fronteiras nacionais e imperiais quanto, internamente, as fronteiras sociais e étnicas, que o impacto dos furacões é mais bem compreendido. Este ensaio sugere alguns dos temas e abordagens que uma história dos furacões pode fornecer para o estudo das sociedades da região caribenha e como eles próprios definiram a região. Outros temas, particularmente o imperialismo, a escravidão, as economias de plantation e a herança racial, foram também usados por diversas vezes como os leitmotiven da história caribenha, o que foi feito acertadamente. Não almejo sobrepujá-los, pois pretendo simplesmente sugerir que os grandes furacões podem fornecer um outro instrumento para a compreensão das sociedades da região, e que tal qual a escravidão ou o imperialismo, eles
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3 Ver, por exemplo, Laurent Farrugia, “1928-Le Cyclone,” in L’Historial Antillais, 5, Fortde-France and Pointe-à-Pitre, n.d. (ca. 1980), 155-66; Eliot Kleinberg, Black Cloud: The Great Florida Hurricane of 1928, New York, 2003.
têm sido uma força determinante dos padrões da história da região. Minha intenção é identificar os caminhos da investigação já traçados e sugerir outros que possam ser capazes de responder às questões históricas e temas de interesse do nosso século. É claro que o fenômeno dos furacões do Atlântico ultrapassa em muito os limites do Caribe. O próprio San Felipe, após atravessar a Flórida, por fim alcançou o Canadá, para depois sumir da memória em algum ponto do Atlântico Norte. Os furacões não estão circunscritos à região caribenha, é claro, mas são, por sua freqüência, elementos que de fato caracterizam essa região, além de terem dado forma às sociedades e suas histórias e mesmo as suas outras metanarrativas, de diversas maneiras. A maneira de contar a história dos furacões, o modo como ela tem sido contada, e com quais questões poderemos enquadrá-la no futuro é o que eu gostaria de trazer à atenção do leitor. No livro de história provavelmente mais importante do século XX, o acadêmico francês Fernand Braudel partiu do foco usual dos eventos políticos de uma história regional ou nacional para nos mostrar como podemos imaginar uma história mais ampla na qual as estruturas e os padrões de vida, não raro pouco perceptíveis, subjazem aos eventos que comumente preocuparam os historiadores. Braudel escolheu como cenário de seu trabalho o Mar Mediterrâneo, suas ilhas e as massas de terra que o definem; as penínsulas, as cadeias de montanhas e as costas que deram ao mar o seu formato e cujos portos deram a ele o seu significado. Ao desconsiderar a divisão do mar entre esferas muçulmanas e cristãs, ou entre áreas de fronteiras nacionais ou culturais, Braudel procurou primeiro encontrar os elementos-chave que definiam a área em sua totalidade e que resultavam em crenças, ações e comportamentos compartilhados que transcendiam a divisões nacionais, religiosas e outras relacionadas à cultura. Claramente o meio ambiente, ou como ele o denomina, o clima, estabeleceu os parâmetros para a ação cultural e política naquele mar antigo onde o pão, as azeitonas e o vinho haviam criado uma civilização
 compartilhada que atravessava divisões culturais de vários tipos5. Há poucos lugares mais bem apropriados para a abordagem clássica de Braudel do que a região caribenha, e um número ainda menor dos que poderiam se beneficiar mais com uma abordagem nova na qual as fronteiras clássicas lingüísticas e culturais que criaram povos e historiografias separados possam ser superadas. O fato de haver centenas de ilhas numa cadeia que se estende por mais de 4.000 quilômetros, regiões costeiras de dois continentes, territórios divididos lingüisticamente entre anglófonos, francófonos, hispânicos e outras sociedades, divididos geograficamente entre a história continental e a insular, é razão dentre muitas para um tratamento distinto. Contudo, os traços comuns que caracterizam a região são todos muito evidentes. A vegetação e a paisagem semelhantes, os ritmos de vida e os produtos similares fizeram das sociedades caribenhas irmãs na experiência comum e ao mesmo tempo rivais de sangue pela sobrevivência. De diferentes maneiras e em diferentes graus, todas passaram pela experiência da colonização européia, da destruição das populações indígenas, da escravidão dos africanos, dos regimes de plantation, das sociedades multirraciais, das ondas de imigração africana, asiática e européia, das heranças de raça, da batalha pela independência, das tentativas e da busca por soluções políticas e econômicas viáveis que às vezes resultaram, nesta era pós-moderna, nas soluções surreais dos bancos offshore e do turismo sexual. Por fim, toda a região tem se confrontado com os desafios comuns do meio ambiente6. Tais desafios incluíram todos os grandes tipos de perigos naturais. Grande parte da região é vulcânica e foi exposta em tempos históricos a erupções vulcânicas e terremotos de grandes proporções. Precisamos lembrar apenas da destruição sísmica de Port Royal, na Jamaica, em 1697 ou das erupções vulcânicas como a do Monte Pelée, que matou mais de 30 mil habitantes de Martinica em 1902, ou a do Monte Soufriere, em Saint Vincent, em 1979. As secas são também muito freqüentes na região caribe-
nha e, em grande parte de sua história, as doenças foram de longe a maior causa de morte, dizimando primeiro as populações indígenas, impondo um tributo mórbido aos trabalhadores forçados africanos e simplesmente matando, numa velocidade alucinante, os europeus que primeiro se aventuraram naquele ambiente (cerca de quatro vezes mais que os africanos). Porém, de todos os perigos que os humanos enfrentam na região, nenhum é mais característico que os grandes furacões, que têm definido a região e seus riscos. Os diferentes perigos não se encontram dissociados. Na verdade, já no século XVI, os observadores europeus, os administradores coloniais e os moradores locais começaram a relacionar os furacões e as secas a doenças deles resultantes, ou a ocorrência simultânea dos furacões e da atividade sísmica. Ou seja, os grandes furacões eram vistos não apenas como forças destrutivas, mas também como gatilhos de outras catástrofes. Obviamente, os observadores do século XVIII não tinham a compreensão de que as secas subseqüentes a um período de intensa atividade de furacões eram típicas do fenômeno La Niña, mas havia a percepção de que a destruição das plantações e dos abrigos poderia enfraquecer as populações e torná-las mais suscetíveis a outras ameaças. O governador Fitzwilliam escreveu, nas Bahamas, em 1733, que o furacão de julho destruíra todo “os cereais e as frutas de sua ilha, de maneira que todos os tipos de provisões se escassearam mais do que o normal[…]”. E completou: “[…] e esta escassez, creio, tem causado uma doença que tem trazido a morte a um grande número de habitantes”7. Os governadores da Jamaica, Antígua e Nevis não raro escreviam num tom semelhante, relacionando,em suas correspondências,o que,de acordo com o senso comum,já estava associado: a junção freqüente das desgraças dos furacões – a escassez, as secas e as doenças com a destruição e as perdas causadas pela guerra, um outro constante perigo e condição característica do Caribe em boa parte de sua história. Quando observamos os desastres naturais do nosso tempo, há alguns pontos
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5 Fernand Braudel, La Méditerranée et le Monde Méditeranéen a la Époque de Philippe II, 3 vols., Paris, 1990. 6 Ver, por exemplo, a respeito do impacto dos furacões em Yucatán: Herman W. Konrad, “Caribbean Tropical Storms. Ecological Implications for Pre-Hispanic and Contemporary Maya Subsistence on the Yucatan Peninsula”, in Revista de la Universidad Autónoma de Yucatán, 18, 224, 2003, pp. 99-126; Virginia García Acosta, “Huracanes y/o Desastres en Yucatán”, in Revista de la Universidad Autónoma de Yucatán, 17, 223, 2002, pp. 3-15. 7 “Public Record Office”, in Calendar of State Papers. America and the West Indies (London, 1860- ) (a partir daqui referido como CSP), C[olonial]S[series] #40 n. 423, Gov. Fitzwilliam to Duke of Newcastle, 4/Dec./1733, p. 247.
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 que precisam ser esclarecidos a princípio. O primeiro deles é o que se tornou hoje quase um grito de batalha: os furacões são fenômenos naturais, mas não são desastres naturais. Um furacão tropical que passa por uma ilha inabitada é um fenômeno natural, mas é somente quando ele encontra uma grande concentração de pessoas que se torna uma catástrofe. Recentemente, o furacão Katrina deixou isso bem claro. A localização das populações, a construção de
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hotéis e residências à beira-mar, a omissão ao não impor leis de construção adequadas ou ao ignorar as condições dos diques e das barragens foram fatores que contribuíram para aumentar a destrutividade dos furacões caribenhos. Nós enfrentamos uma anomalia semelhante. A despeito dos progressos científicos e tecnológicos para a previsão, tem havido de fato um aumento considerável nos efeitos destrutivos dos desastres naturais desde 1960. A mortalidade média
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 anual em decorrência dos desastres aumentou de 23.000 por ano para 143.000 entre a década de 1960 e a de 1970, mas os danos às propriedades aumentaram ainda mais. O tsunami do sudeste asiático de 2004 deu relevância ao fato de que, em termos humanos – talvez também em termos de valores de propriedades –, as maiores vítimas dos efeitos dos desastres “climáticos” têm sido, de longe, os pobres e as nações pobres. No mundo contemporâneo, os “desastres naturais” como os furacões têm sido seletivos socialmente falando, e eles devem ter agido da mesma maneira no passado. Que os efeitos de seu impacto possam ter afetado de modo diferente movimentos políticos ou grupos sociais é algo que ainda precisa ser estudado. Como os furacões e outros desastres naturais deram forma à política e às relações sociais, e como as estruturas sociais e políticas criaram os contextos para o impacto desses fenômenos? Como as explicações sobre os furacões e sua compreensão refletiram nas conceitualizações cambiantes de Deus, Natureza, Ciência e capacidades humanas? Também há ainda um outro nível de análise que aguarda estudo. Qual tem sido o efeito cumulativo de longa data dos desastres naturais reincidentes na região? Até que ponto os furacões têm contribuído para os problemas regionais de crescimento e desenvolvimento? Tais tópicos nunca foram calculados ou avaliados da maneira com que o economista Eric Jones procurou fazer na sua tentativa de explicar a vantagem econômica que a Europa possuía em relação à Ásia. Sejam quais possam ter sido os erros ou o eurocentrismo implícito de sua tentativa em The European Miracle (1981), ao menos ele procurou fazer das condições ambientais comparativas e seus efeitos cumulativos parte de uma história econômica mais ampla de desenvolvimento regional e de interação de atitudes culturais e da tecnologia. O Caribe pode se prestar particularmente bem a tal análise, embora a informação seja irregular e a fórmula para os cálculos extremamente complexa8. A escrita da história dos furacões, assim como a de muito da história ambiental, começa com um problema. Por causa de
seu poder e seu potencial destrutivo, a história dos furacões é, por conta de sua freqüência, quase que inerentemente entediante. Diferentemente dos vulcões e dos terremotos, os grandes furacões são praticamente infalíveis. Quase todo ano, uma ilha ou um litoral é inundado ou devastado. Enquanto para determinadas cidades ou ilhas ou faixas de litoral os furacões podem espaçar sua passagem em períodos que duram décadas, em se tratando da região caribenha, o fenômeno é contínuo e seus resultados são esperados. As cenas de destruição são todas muito comuns e bastante semelhantes: casas e vidas destroçadas, barcos arrastados e amontoados na praia ou carregados para longe dentro do continente, destruição para onde quer que se volte o olhar, cenas subseqüentes de assistência e alívio em meio a um pano de fundo de ruína. As histórias individuais podem ser pungentes; sua repetição, porém, é estupefaciente. Os relatos parecem variar apenas no que se refere ao nível de destruição, ao montante das perdas ou ao nível da força dos ventos. Se a história a ser contada é apenas a dos furacões propriamente ditos, então sua repetitividade é inerente. As variações entre um furacão e o subseqüente podem ser de interesse a partir de uma perspectiva meteorológica, mas têm menos importância sob um ponto de vista histórico. Além disso, sejam ações da natureza ou obra da mão de Deus, os furacões estão além do controle humano, estando, portanto, fora da história, o que ajuda a explicar por que eles têm sido ignorados como um tema por si só. Eles são o deus ex machina clássico que nós, na qualidade de historiadores e cientistas sociais, somos admoestados a evitar. Porém, ao mesmo tempo, por conta de sua ubiqüidade e regularidade, podemos também incorrer no outro erro extremo de vêlos como a explicação para tudo. Quase todo evento, batalha, revolta, revolução ou eleição foi precedida por um ou alguns furacões. Encontrar o equilíbrio entre uma explicação excessivamente extensa ou excessivamente reduzida na história dos furacões, ou em qualquer história ambiental, é, na melhor das hipóteses, um empreendimento difícil.
8 Eric Jones, The European Miracle , 3d ed., Cambridge, 2003. Um exemplo da historicização dos desastres é fornecido pelos ensaios em: Alessa Johns, Dreadful Visitations: Confronting Natural Catastrophe in the Age of the Enlightenment, New York, 1999.
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 OS FURACÕES NA HISTÓRIA
da chegada de furacões: sol vermelho, um odor forte vindo do mar e a mudança rápida de direção da brisa do leste para o oeste12. Ainda hoje, em todas as ilhas persiste a sabedoria popular ou o reconhecimento dos sinais que supostamente anunciam a chegada dos furacões. Seja uma colheita de abacates particularmente boa em Porto Rico ou a busca de abrigo pelas galinhas na ilha de Nevis, tais sinais ainda gozam de crédito entre os modernos previsores de leituras de barômetros, fotografias aéreas e simulações computadorizadas. Desde o primeiro contato com os europeus, os furacões deram forma à colonização e aos padrões de vida estabelecidos. Colombo teve uma sorte incrível ao cruzar, em 1492, as latitudes de intensa atividade de furacões no pico de sua estação, em setembro e em outubro, sem jamais se deparar com um. Tempos depois, ele chegou a conhecê-los bem. É provável que ele tenha tido sua primeira experiência com um furacão durante sua segunda viagem, em junho de 1494. Porém, em 1502, ele conseguiu se suster frente a um furacão na ilha de Hispaniola, quando mais de 20 navios espanhóis e 500 homens pereceram porque o seu rival, o governador real Francisco de Bobadilla, havia criticado mordazmente os seus alertas de que as nuvens, cirros e a formação de vagas no sudeste indicavam a chegada de um furacão. Este veio e arrasou a cidade de Santo Domingo. O padre Las Casas disse que fora “como se um exército de demônios tivesse escapado do inferno”13. O navio que carregava a fortuna pessoal de Colombo escapou milagrosamente, e houve os que na época o acusaram não por ter previsto o furacão mas de ter usado poderes mágicos para invocá-lo contra o governador. De maneira clara, pensava-se que ou Deus ou o demônio tinham muito envolvimento nesses acontecimentos. O cronista Gonzalo Fernández de Oviedo observou que, depois de Santo Domingo ter sido atingida por furacões em 1504, 1508 e 1509, o sacramento fora colocado nas igrejas e nos monastérios da cidade e que depois disso eles cessaram14. Por toda a região, as perdas e as mortes ocasionadas pelos fura-
14 Antonello Gerbi, Nature in the New World, Pittsburgh, 1985, p. 251.
Os habitantes indígenas do Caribe puderam atestar o poder dos grandes furacões e reconheciam os sinais de sua aproximação. Eles ofereciam mandioca aos seus deuses protetores, os zemis, para que eles os livrassem dos grandes perigos: o fogo, a doença, seus inimigos caraíbas e os furacões9. Curiosamente, o símbolo taino para os furacões, com seus braços estendidos e curvos, parece reconhecer a natureza da rotação dos ventos, fato que a ciência ocidental estabeleceu apenas com a publicação de The Law of Storms em 1838, de William Reid. Em 1550, um inquérito judicial típico da Espanha colonial, chamado de residencia, instaurado contra o governador de Porto Rico, revelou que ele solicitara um índio punido por feitiçaria por prever quando viriam os furacões10. “Os índios são tão hábeis que prevêem com dois ou três dias de antecedência a chegada do furacão”, escreveu John Taylor em seu “New and Strange News from St. Christopher, of a Tempestuous Spirit which is Called by the Indians a Hurricano” em 163811. Antes da invenção do barômetro no século XVII, e dos meios científicos subseqüentes para a previsão, a capacidade de ler os sinais da aproximação de um furacão se tornou um caso de vida ou morte. Os povos indígenas conheciam os sinais da chegada dos furacões, de maneira que, quando os europeus eliminaram as populações indígenas, eles paralelamente aumentaram a sua vulnerabilidade. Porém, a habilidade para ler os sinais poderia também se virar contra os povos nativos. Os poderes de observação e de previsão dos furacões dos caraíbas eram apontados como evidência de seu pacto com o Diabo e foi essa a razão de sua expulsão, o que teve às vezes tristes conseqüências. Em Saint Christopher, após os caraíbas serem retirados da ilha, os colonos tiveram que se dirigir à ilha vizinha de Dominicana para obter previsões do tempo. O padre Iñigo Abbad y Lasierra, em seu relato sobre Porto Rico, de 1788, observou que os índios haviam interpretado certos sinais como avisos
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9 Michael Craton, History of the Bahamas, Waterloo, Ont., 1986, p. 27. 10 Francisco Moscoso, Juicio al Gobernador. Episodios Coloniales de Puerto Rico, 1550, San Juan, 1998, p. 134. 11 Este trabalho é citado e discutido em: Hulme, Colonial Encounters, pp. 100-1. Ver também: Peter Hulme, “Hurricanes in the Caribbees: The Constitution of the Discourse of English Colonialism”, in Francis Barker, Jay Bernstein, et al. (eds.), 1642: Literature and Power in the Seventeenth Century, Colchester, Eng., 1981, pp. 55-83. 12 Iñigo Abbad y Lasierra, Historia Geográfica, Civil y Natural de la Isla de San Juan Bautista de Puerto Rico, notas de José Julián de Acosta y Calvo, ed. Gervasio García, San Juan, 2002, p. 530. 13 José Carlos Millás, Hurricanes of the Caribbean and Adjacent Regions, Miami, 1968.
 cões eram interpretadas como sendo a mão de Deus agindo nos negócios dos homens. Hugh Knox, um ministro presbiteriano em Saint Croix, escreveu, após a passagem do grande furacão de 1772, que o Senhor dos Exércitos, “que comanda e faz elevar o furacão, e que também o acalma; que é o Senhor soberano da natureza, que exerce domínio absoluto sobre todos os elementos deste mundo inferior; e que os emprega como instrumento de sua misericórdia ou julgamento, conforme lhe apraz”, estava conclamando os “habitantes desta e das ilhas vizinhas ao choro e ao luto, à mais rápida e efetiva mudança de caminhos”15. A mensagem de Deus, porém, nem sempre era clara. Em agosto de 1899, após a guerra hispano-americana, quando Porto Rico ainda estava sob a ocupação norte-americana, a ilha foi atingida pelo devastador furacão San Ciriaco. Na ocasião, mais de 3 mil pessoas pereceram. Os nacionalistas cubanos viram nisso um sinal da ira justa de Deus contra a presença contínua dos Estados Unidos na ilha vizinha. Contrário a eles, o deão da diocese de Porto Rico, Juan Perpiña y Pibernat, de postura pró-Espanha, acreditava que foram os pecados dos moradores das ilhas, tais como o secularismo e o abandono das tradições espanholas, que trouxeram essa punição. Era de consenso geral que o furacão era uma lição divina objetiva; porém, constituía objeto de disputa determinar os destinatários da lição. Mesmo quando as explicações científicas sobre o clima vieram a dominar as nossas interpretações, as explicações de natureza divina ou apocalíptica persistiram16. Os espanhóis chegaram a conhecer muito bem os furacões, seus perigos e seus ritmos. Um grande furacão atingiu a ilha Crooked nas Bahamas em 1500 e destruiu algumas embarcações espanholas, sendo ele provavelmente o primeiro furacão a ter atingido a Flórida de que se tem registro. Grandes furacões atingiram Santo Domingo em 1508, 1509 e 1526; Porto Rico em 1508, 1514, 1515 e 1526; e Cuba em 1503, 1519, 1525 e 1527. Sabemos que a Flórida foi atingida em 1528 perto da Baía Apalachee e depois novamente em 1545,
1551, 1553, 1554 e 1559 em várias partes da península. A maioria dos historiadores conhece a história trágica do furacão de 1565 que destruiu os esforços franceses de fortificação do posto avançado no Forte Caroline e que selou o destino da Flórida como uma colônia espanhola17. Por meio de tudo isso, os marinheiros e os homens de estado espanhóis estavam aprendendo a respeito das possibilidades e dos perigos da região. Os furacões se impunham no processo de colonização e se colocavam no caminho no qual os espanhóis conceberam a sua relação com Deus, a natureza, a terra e o mar. Não há evidência mais forte dos efeitos dos grandes furacões que o sistema comercial marítimo espanhol, a carrera de indias, cujos padrões, ritmo e forma decorriam todos da sazonalidade dos furacões. Primeiramente, os espanhóis haviam descoberto bem cedo que chegar ao Caribe era muito mais fácil do que retornar à Europa, e que, para se aproveitar dos ventos e das correntes que prevaleciam, era necessário partir em direção ao norte antes de cruzar o Atlântico. Dessa maneira, a chave para o sistema marítimo era o canal da Flórida, as 90 milhas entre Cuba e a Flórida, a melhor saída do Caribe. Esse fato influenciou muito a construção de Havana, no litoral norte de Cuba, local escolhido após povoamentos anteriores terem se mostrado muito vulneráveis aos furacões. Havana foi criada para funcionar como a pedra angular do sistema de frotas, um porto e um ponto de parada onde os navios se uniam para fazer a viagem de volta para a Europa. Quando o México e o Peru estavam produzindo prata e ouro, o sistema de frotas e comboios foi posto em operação. Uma frota partia de Sevilha e se encaminhava para Vera Cruz, enquanto uma segunda frota, os galeones, dirigia-se ao Panamá, onde comprava a prata peruana. O plano previa que as duas frotas se convergissem para Havana na primavera e que saíssem do Caribe em junho ou julho, indo em direção às ilhas Keys para pegar a corrente do golfo no sentido norte até as proximidades das Carolinas, onde se dirigiriam no sentido leste nos ventos do oeste das latitudes médias18.
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15 Hugh Knox, Discourse Delivered on the 6th of September, 1772 in the Dutch Church of St. Croix on Occasion of the Hurricane, St. Croix, 1772, pp. 16-8. 16 Ver Martí Gilabertó Vilagran, “Tempestades y Conjuros de las Fuerzas Naturals. Aspectos Magico-religiosos de la Cultura en la Alta Edad Moderna”, in Pedralbes. Revista d’Historia Moderna, 9, 1989, pp. 193-9. 17 Ver John T. McGrath, The French in Early Florida: In the Eye of the Hurricane, Gainesville, 2000. 18 Bob Sheets & Jack Williams, Hurricane Watch, New York, 2001, p. 9.
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 24 Relación Verdadera en que se dá Cuenta del Horrible Huracan que Sobrevino a la Isla y Puerto de Santo Domingo, Madrid, [1680]; M. Fowler, A General Account of the Calamities Occasioned by the Late Tremendous Hurricanes and Earthquakes in the West. Indian Islands, London, 1781; Robert S. Weddle, Spanish Sea. The Gulf of.Mexico in North American DiscoveryI, College Station, Texas, 1985, p. 315.
A não-observância desse cronograma colocava o carregamento espanhol sob a ameaça dos grandes furacões tropicais, ao passo que a pontualidade também tinha seus riscos, pois colocava os navios na mira do ataque de piratas, corsários e navios estrangeiros que sabiam exatamente por onde e aproximadamente quando as frotas navegariam. Os atrasos eram desastrosos, conforme os naufrágios nas Bahamas e nas ilhas Keys da Flórida demonstraram claramente. A estrutura do sistema como um todo e sua execução no tempo certo haviam sido designadas para que se evitasse a interrupção de sua continuidade pelos furacões, pois, quando o cronograma era desrespeitado, tanto marinheiros, passageiros quanto reis pagavam um preço elevado. As perdas dos navios de tesouro espanhóis ou de frotas de prata em 1623, 1624, 1631 e 1715, para citar apenas alguns dos grandes naufrágios, foram desastrosas para as ambições militares e políticas da Espanha. A perda de três galeões com um milhão e meio de pesos da frota da Nova Espanha em 1622, uma perda semelhante em 1624 e o naufrágio de quase toda a frota de prata durante o furacão de 1623 ocorreram em um momento crucial durante a batalha da Espanha contra os holandeses, aprofundando a crise financeira causada por uma crise econômica geral no Atlântico, ocorrida entre 1619 e 1621. Tais perdas quase sempre redundaram em incertezas políticas. Quando a nau-capitânia (Almiranta) da frota da Nova Espanha se atrasou em sair de Vera Cruz, e soçobrou com toda sua prata por causa de um furacão em Campeche, em 1631, o conde-duque de Olivares, o valido espanhol, reconheceu que não poderia pagar os projetos políticos que ele havia arquitetado19. Os rivais dos espanhóis no Caribe aprenderam a tirar proveito das tentativas espanholas de regularizar seu povoamento e seu comércio em face dos furacões, mas eles aprenderam também os sinais dos furacões que se aproximavam, as técnicas de construção que melhor resistiam a eles e os locais que ofereciam mais abrigo. O governador das ilhas Leeward relatou a reconstrução após o furacão de 1675, quando
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19 Dominguez Ortiz, Politica y Hacienda de Felipe IV, Madrid, 1960. 20 CSP, CS 9 West Indies, n. 1152, Gov. Stapleton, 22/ nov./1676, pp. 499, 501. 21 Gov. Stapleton to Sir Robert Southwill. Nevis, 20/ june/1676, CSP, CS 9, n. 955 , p. 410. 22 CSP, CS 33 Gov. Lawes to Council of Trade and Plantations, 10/Dec./1722, n. 382, p. 184. 23 Angel López Cantos, Los Puertorriqueños. Mentalidad y Actitudes, San Juan, 2001, p. 47.
as novas casas construídas não excediam a altura de um andar e meio: “Os furacões ensinaram as pessoas a levantar construções baixas”20. Porém, ele não pôde enviar o seu relatório para Londres com rapidez porque, como disse, “o tempo dos furacões retarda a correspondência das ilhas”21. Os furacões criaram uma divisão natural de estações e tempos e ajudaram a marcar a memória e o ritmo de vida. Nas ilhas espanholas, uma prece especial era recitada durante a temporada dos furacões. Em 1722, a Assembléia da Jamaica aprovou uma lei especial que estabelecia um jejum perpétuo de aniversário no dia 28 de agosto para lembrar o furacão daquele ano22. Por volta de 1765, o governador de Porto Rico Alexandre O’Riley, um reformador Bourbon, observou que os habitantes da ilha “marcavam as épocas pelos governadores, furacões, as visitas dos bispos e a chegada das frotas ou dos subsídios (situados)”23. Infelizmente, todos os governos coloniais aprenderam também que, na era anterior à previsão acertada, havia pouco a ser feito para evitar a força dos furacões ou seus efeitos no comércio e na guerra. Repetidas vezes, as campanhas militares e navais foram frustradas ou transtornadas pelos furacões, ou defesas e fortificações foram por eles enfraquecidas ou destruídas, ou foram criadas condições que tornaram as populações refratárias à autoridade ou vulneráveis ao ataque. Disso há muitos exemplos. Uma frota francesa foi abatida em 1680 em Santo Domingo, totalizando uma perda de 25 embarcações. Em 1640, 36 navios holandeses atacaram Matanzas, em Cuba, mas foram postos em debandada por um furacão que desbaratou seu ataque. O grande furacão de 1780 trouxe a ruína para as frotas inglesa e francesa quando os franceses perderam 40 navios com mais de 4 mil soldados próximo à Martinica, e o carregamento inglês e os homens de guerra em Santa Lúcia e em Barbados foram afundados ou encalhados com muitas vítimas fatais. O mesmo furacão surpreendeu a frota espanhola a caminho da reconquista de Pensacola e a dispersou, causando uma perda de 19 de suas 58 embarcações24. Os
 furacões introduziram o elemento do acaso e do acidente nas campanhas militares regionais, padronizando o modo pelo qual a guerra era conduzida e tornando os resultados sempre menos seguros do que eles poderiam ter sido. Em tempos de guerra e paz, os furacões criaram também uma comunidade pan-caribenha de risco e informações compartilhados. Mensagens e alertas eram enviados de ilha a ilha, às vezes mesmo quando as hostilidades imperiais se impunham contra esse tipo de cooperação. Nesse caso, as diferenças nacionais e culturais podiam interferir. Em 1900, a rivalidade burocrática trágica entre o Serviço de Meteorologia dos Estados Unidos e os seus colegas cubanos impediu a chegada de alertas via telégrafo enviados pelo negociado del tiempo, o Serviço de Meteorologia de Cuba, que havia sido criado pelo jesuíta espanhol Benito Viñes, provavelmente o maior conhecedor de furacões de seu tempo. Isso contribuiu diretamente para a enorme perda de vidas quando o furacão atingiu Galveston25. Tais erros, porém, não eram comuns. Informações, assistência e auxílio eram às vezes enviados de uma sociedade caribenha a outra, por vezes motivadas pelo altruísmo e por vezes pela esperança de se obter vantagens políticas ou econômicas. O governador, o Congresso e a Assembléia de Nevis relataram, em 1668, que a ilha havia recebido tantos refugiados de outras ilhas em decorrência das guerras que, quando Nevis foi atingida por um furacão, naquele ano, ficara sem provisões. O governo da ilha solicitava a permissão para negociar com estrangeiros. Esse pedido demonstrou dois temas recorrentes: o papel dos furacões e de outros “desastres naturais” na condução dos deslocamentos das populações caribenhas e o seu uso como justificativa pelas autoridades locais para burlar as restrições imperiais. Já em 1546, o Cabildo (conselho municipal) de Santo Domingo reclamava que os furacões ameaçavam despovoar a ilha completamente, uma vez que os mercadores, autoridades reais e mesmo os colonos que tinham casamentos estáveis estavam deixando a ilha26. Esse foi um tema que
seria repetido através de todas as fronteiras imperiais pelos próximos quatro séculos. Não raro eram os mais fracos e os menos afortunados que partiam. Aqueles que permaneciam tinham outros problemas a enfrentar. Para os agricultores e para os pequenos fazendeiros, a destruição das colheitas, a perda de cargas e de renda eram conseqüências imediatas e constantes. Entretanto, igualmente graves eram as taxas crescentes dos seguros ou os custos para a aquisição de crédito ou capital para reconstruir, renovar o contingente de escravos e replantar os campos. As implicações de tais interrupções de continuidade eram sentidas nos mercados de crédito de Londres e Amsterdã, onde não raro uma temporada ruim de furacões era seguida de falências e insolvências. Porém, um peso grande era também sentido em cada ilha em particular, onde pequenos agricultores e outros menos bem-relacionados se viam forçados a abandonar a agricultura e até mesmo a própria ilha. Dessa maneira, os furacões tinham um efeito de intensificação das desigualdades sociais e dos padrões de dominância social e econômica. Em alguns casos, os efeitos eram transformações duradouras. Louis Pérez, em seu Winds of Change, nos mostrou como os três furacões dos meados da década de 1840 em Cuba causaram uma mudança do capital e da mão-de-obra das fazendas de café duramente afetadas da região oeste de Cuba para o setor em expansão da cana-de-açúcar da ilha. Os cafezais e as árvores de sombra simplesmente demoravam muito para se recuperar, e os agricultores não podiam se dar ao luxo de manter seu padrão de vida até que suas fazendas voltassem a produzir novamente. Uma corrente de eventos semelhantes tirou o café de Porto Rico do mercado de exportação após o furacão San Felipe de 1928. Foi de uma certa forma irônico o papel dos furacões na destruição das economias cafeeiras, uma vez que supostamente em 1720, quando um furacão destruiu o plantio de cacau em Martinica, os franceses introduziram o café nas suas colônias do Caribe, de onde se espalhou para as ilhas espanholas. Os grandes furacões serviram para estruturar sociedades, e em grande parte da
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25 Erik Larson, Isaac’s Storm,pp. 102-4. A respeito de Viñes, ver: “Mercedes Valero González, El Observatorio del Colegio de Belen en el Siglo XIX”, in Anuario. Centro de Estudios de Historia y Organización de la Ciencia, Havana, 1988, pp. 204-47. 26 Genaro Rodríguez Morel (ed.), Cartas del Cabildo de la Ciudad de Santo Domingo en el Siglo XVII, Santo Domingo, 1999, pp. 172-3.
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 30 CSP, CS 10, Petition of merchants and planters of Barbados to the King, 11/May/1677, n. 231, p. 83; Memorandum, 16/May/1677, n. 250, p. 88.
história caribenha isso implicou um impacto nas principais instituições da escravidão e da agricultura da região, geralmente a agricultura de plantation. As inseguranças comuns das sociedades escravocratas podiam ser agravadas pela interrupção de continuidade e pela destruição causadas pelos furacões. O governador Russell escreveu de Barbados, após o furacão de 1694, que ele havia ordenado que as luzes das casas fossem apagadas e que os agentes policiais permanecessem em alerta “para que os negros não se aproveitassem da desordem que está para vir”27. A razão de mais insurreições não terem ocorrido pode ter sido a vigilância redobrada dos agricultores e das autoridades coloniais e o uso de milícias coloniais no período imediatamente subseqüente a um furacão. Porém, pode ter sido também em decorrência do fato de que principalmente os escravos sofriam durante os grandes furacões. Devido à precariedade de suas condições de vida e de seu status inferior, eles corriam o maior dos riscos. A escassez de comida e as doenças decorrentes dos furacões os afetavam de maneira desproporcional. Essa condição podia levar a uma conseqüência inesperada. Já foi sugerido que durante os debates sobre medidas para a melhora da situação da escravidão, no Parlamento nas décadas de 1780 e 1790, a comissão encarregada de investigar as condições dos escravos das Índias Ocidentais observou uma situação que refletia as condições abismais nas ilhas após os grandes furacões de 1780 e 1781. Dessa maneira, a comissão extraiu conclusões sobre a situação dos escravos que era, de fato, conjuntural e não estrutural, o que os levou a defender a melhora de condições para os escravos. É claro que, como em todas as circunstâncias, alguns conseguiam tirar proveito de uma situação ruim. Os furacões criaram oportunidades para os escravos. Por exemplo, em Porto Rico, após o furacão San Narciso de 1867, Juan Quiñones, um escravo que fora encarcerado em Guarabo, escapou da prisão. Em vez de fugir, ele se aliou no trabalho de resgate de vítimas. Mais tarde, em reconhecimento de seu sacrifício, a Sociedad de Amigos del País comprou sua liberdade28.
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27 CSP, CS #14 , n. 1446, 24/Oct/1694, p. 385. 28 Ramírez de Arellano, “Los Huracanes de Puerto Rico”, in Boletín de la Universidad de Puerto Riclo, 3d ser., 2, 1932. 29 Richard Sheridan, Sugar and Slavery, p. 400. Ver especialmente Matthew Mulcahy, “Weathering the Storms: Hurricanes and Plantation Agriculture in the British Greater Caribbean”, typescript, 2002.
Contudo, se os grandes furacões às vezes punham populações em movimento, alteravam ou reforçavam relações sociais, ou determinavam as conseqüências de rivalidades internacionais, eles eram igualmente importantes na estruturação das relações de autoridade e poder dentro das comunidades caribenhas. Os furacões e seus efeitos freqüentemente se tornaram motivos de reclamação e veículos pelos quais os interesses coloniais das autoridades coloniais ou locais podiam fazer com que a sua situação fosse conhecida pela metrópole ou pelo governo nacional, permitindo a eles direcionar pedidos de atenção e auxílio. Alguns exemplos das ilhas britânicas ilustrarão a questão. Após Barbados ter sofrido com os furacões de 1674 e 1675, o seu governador escreveu descrevendo a ruína das casas, igrejas, moinhos e plantações de cana-deaçúcar. Era um pedido de ajuda, embora ele afirmasse que nem mesmo 200.000 libras seriam suficientes para pagar por todos os danos29. Outras cartas se seguiram a essa. Nelas, os colonos pediram que o governo enviasse a eles piques, lanças longas de infantaria e armas de pequeno porte, pois o furacão deixara a ilha indefesa30. Um relatório de Saint Christopher naquele ano observava que o povo da ilha se sentira “sem ação” tanto por causa do furacão quanto pelos franceses e, se pudessem, todos se mudariam para a Jamaica. Num tom semelhante, o governador Parker escreveu em Antígua em 1707 que, após as perdas para os franceses e depois que um furacão
 levantada pelo Parlamento para tais fins. Porém, até o século XX, a assistência era vista essencialmente mais como um ato de caridade do que uma ação em função de uma lei ou de responsabilidade governamental. Nas ilhas espanholas, a conseqüência dessa regra foi o desenvolvimento da responsabilidade e da liderança na coordenação dos esforços eclesiásticos e seculares em âmbito municipal. A assistência por ocasião do desastre
pôs abaixo a maioria das casas nas Ilhas Windward, a população murmurava contra o acantonamento de soldados nas ilhas31. Em 1712, o governador lorde Hamilton escreveu na Jamaica para a Câmara de Comércio enumerando mais de 20 navios então recentemente perdidos e pedindo auxílio32. A Assembléia da Jamaica mais tarde escreveu ao duque de Newcastle, em 1734, que “esta ilha jamais esteve em tamanha desgraça ou tão necessitada de assistência da Nação Mãe do que no presente momento, o que fora causado por uma seqüência de perdas e infortúnios, não apenas por causa dos três terríveis furacões que aconteceram no espaço de 14 anos e que foram seguidos por longas e severas secas, mas pela desvalorização dos nossos produtos agrícolas na Grã-Bretanha, a perda de nosso mercado e os altos impostos”. A Assembléia rogava ao duque que apresentasse a sua situação de apuro ao rei33. Os governadores coloniais continuamente usavam a devastação causada pelos furacões como pretexto para pedidos de ajuda, usando a condição das ilhas e a opinião dos habitantes como justificativas para invocar o interesse dos governos, geralmente combinando argumentos a respeito do bem-estar dos colonos e da economia com a capacidade da colônia de resistir à incursão ou à apropriação estrangeiras. Os governos com freqüência respondiam com generosos subsídios. A quantia enviada para o Caribe após o grande furacão de 1780 nas Índias Ocidentais Britânicas foi a maior jamais
foi uma das atividades mais proveitosas dos alcaldes e dos cabildos e, durante o curso do século XIX, ela auxiliou na promoção da competência e de um certo sentimento de responsabilidade. A resposta aos furacões se tornou o campo de treinamento da ação política local e da auto-suficiência. Em um estudo provocativo sobre os efeitos do furacão Andrew, o historiador Raymond Arsenault argumentou que apenas recentemente as catástrofes naturais e as respostas a elas se tornaram temas de política pública, e que, antes do final do século XX, a assistência e a recuperação eram assuntos essencialmente privados34. Ele certamente tem razão a respeito da maneira pela qual a mídia transformou esses furacões em eventos públicos e como a precisão da medida dos furacões e das perdas causadas por eles tem aumentado recentemente e, dessa maneira, transformado as respostas dadas a eles. Eu argumentaria, entretanto, que desde o início da era moderna há evidências consideráveis de tentativas por parte dos governos coloniais do Caribe em assumir o encargo da
31 CSP, CS 23 , Gov. Parke to Council of Trade and Plantations, Antigua, 8/Oct./1707, n. 1321; Antigua, 6/March/1708, n. 1380, p. 689.
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32 CSP, CS 27, Gov. Hamilton to Council of Trade and Plantations, 10/Oct./1712, n. 94, pp. 61-2, 63-5. 33 CSP, CS 41, Council and Assembly of Jamaica to Duke of Newcastle, 21/August/1734, n. 285, p. 190. 34 Raymond Arsenault, “The Public Storm. Hurricanes and the State in Twentieth-Century America”, in Wendy Gamber, Michael Grossberg, and Hendrik Hartog (eds.), Public Life and the Historical Imagination, Notre Dame, 2003, pp. 262-92.
 seus superiores que havia na ilha um “mau sentimento” geral entre os milhares de desempregados que, sem salário por causa do furacão, estavam “propensos a perecer de fome ou a sucumbir aos apelos dos depredadores da ordem pública, ou a violar as leis que protegem os ricos e as propriedades privadas”. Apelos à caridade e ao patriotismo não foram suficientes, e o governo foi chamado a agir para manter sua reputação e a “preservação pacífica do regime”. O governo colonial falhara, disse Miguel de Campos, funcionário do Departamento de Serviços Públicos, porque “as pessoas em todas as nações estão relutando em pagar pelos serviços públicos a não ser que os benefícios sejam tangíveis e imediatos”. Campos observou que apenas cerca de três por cento do orçamento da ilha fora usado em serviços públicos na década anterior, de maneira que as conseqüências eram óbvias para todos. Todos os esforços que haviam sido feitos para melhorar a vida das colônias se mostraram “completamente nulos” em Porto Rico36. A insurreição famosa e malograda de Porto Rico, chamada de “Grito de Lares”, de setembro de 1868, obviamente teve muitas causas. Porém, as condições geradas na ilha pelo furacão San Narciso e a contínua incapacidade do governo colonial espanhol em preparar a ilha para tais perigos por meio do fornecimento de uma infra-estrutura adequada ou em reagir eficazmente após o desastre contribuíram para gerar sentimentos de frustração que pavimentou o caminho do movimento. Em Cuba, furacões que em 1882 destruíram Vuelta-Abajo e boa parte de Pinar del Río fizeram brotar pedidos de ajuda e promessas de socorro dentro do contexto de uma Cuba politicamente insegura em seus últimos momentos antes do movimento revolucionário final que culminaria em sua independência. Pouco depois do furacão, os líderes civis escreveram para as pessoas e para as instituições da Espanha, pedindo ajuda e lembrando a eles que
36 AHN, Ultramar leg. 379 exp. 10.
assistência após a passagem dos furacões, ou de instituições governamentais locais em se encarregar da responsabilidade de proteção e assistência. Na verdade, poderia se argumentar que esses esforços, em um padrão descontínuo e episódico, às vezes promoveram um senso de auto-suficiência local que poderia ter tido implicações políticas amplas. Além disso, as ações tomadas pelos governos coloniais, nacionais ou locais geralmente refletiam as visões sociais e políticas do que constituía uma sociedade apropriada, de maneira que o modo como uma cidade era reconstruída – quais bairros recebiam a atenção primeiro, que tipos de materiais de construção eram usados, que tipos de casas eram substituídas, e se agricultores ou camponeses, empresários ou trabalhadores deveriam se beneficiar mais das ações do governo – transformou os furacões em ferramentas de estruturação da sociedade e também em lentes pelas quais a sociedade e a organização política podiam ser observadas. Mas se os furacões ofereciam aos governadores coloniais e aos residentes criollos uma ocasião para buscar a atenção governamental, a inabilidade do governo metropolitano e, mais tarde, a do governo nacional em responder adequadamente aos furacões também produziu insatisfações com implicações políticas possivelmente sérias. Vou usar aqui o exemplo de Porto Rico e Cuba. Porto Rico sofrera com um grande furacão (San Narciso) em novembro de 1867, o qual foi seguido de um terremoto de certa intensidade35. Os povoados não tinham como pagar suas contribuições para o tesouro da ilha, e o governador, em face das despesas crescentes, tentou forçar o pagamento apesar das condições miseráveis da ilha. Havia, porém, autoridades espanholas na ilha naquela época que percebiam que os perigos reais gerados pelos desastres eram bem maiores que a inadimplência ou déficit fiscais. Na década de 1860, Porto Rico se encontrava em meio a uma turbulência política, e um comitê revolucionário já fora formado na ocasião em que o furacão atingiu a ilha. Autoridades como Miguel de Campos e Carlos de Rojas alertaram
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35 Vicente Fontan y Mera, La Memorable Noche de San Narciso y los Temblors de Tierra, San Juan, 1868.
“[…] a ilha é a Espanha, é sangue do mesmo sangue, ossos dos mesmos ossos, da maneira como os irmãos do outro lado do oceano
 já demonstraram tantas vezes. […] Agora é a nossa vez de pedir, nossa vez de apelar para os sentimentos da Espanha, de seus indivíduos e de suas corporações. Irmãos, caridade para Vuelta-Abajo. Sua nobreza é também nossa, sua caridade exige isto de vocês”. A Espanha respondeu. A rainha Isabel II enviou um telegrama no qual prometia se esforçar até onde seus poderes a permitissem para trazer o alívio para tais desastres37. O governo em Madri criou uma junta especial que incluía representantes cubanos nos corpos legislativos espanhóis e também homens experientes em assuntos coloniais para supervisionar a assistência às colônias de além-mar de Cuba e das Filipinas, as quais haviam sido atingidas por furacões em 1882. Entretanto, embora a família real, o governo e a opinião do povo espanhol tenham sido grandemente influenciados pelos desastres, a junta foi formada basicamente para angariar fundos por meio de contribuições voluntárias, uma vez que “era impossível que os recursos do Tesouro dessem uma resposta a tantas calamidades”38. O governo organizou um leilão de caridade em que os cidadãos mais ricos podiam contribuir com vários itens, os quais eram todos cuidadosamente noticiados na imprensa. Esse tipo de resposta tradicional claramente inadequada revelou as falhas do regime colonial. Não é de admirar que, depois da passagem do furacão San Ciriaco de 1899 em Porto Rico, o governo dos Estados Unidos se sentisse particularmente ansioso em demonstrar não apenas a benevolência americana como também a sua eficiência no trabalho de assistência como uma maneira de demonstrar aos porto-riquenhos os benefícios da ocupação feita por uma nação progressista. Em tempos mais recentes, os furacões têm às vezes oferecido oportunidades semelhantes aos governos. Trujillo usou seus esforços para reconstruir Santo Domingo após o furacão de San Zenón como prova de seu interesse pelo povo da República Dominicana, enquanto o regime castrista em Cuba envidou esforços nas décadas de 1960 e 1970 objetivando demonstrar a
flexibilidade gerencial do socialismo em suas respostas aos furacões39. Terminarei aqui retomando o caso do furacão San Felipe ou Okeechobee, com o qual eu comecei, porque ele nos conduz ao século XX e porque, nos impactos diferentes do furacão na Flórida e em Porto Rico, podemos ver como alguns dos temas tratados neste ensaio foram conduzidos. As lideranças em ambas as sociedades tinham uma visão de um futuro ideal e nos dois lugares os líderes intentaram usar o desastre como um instrumento para implementar essa visão. Por volta de 1928, a Cruz Vermelha americana já estava em funcionamento – uma história por si só – e seus relatórios e seus feitos tanto na Flórida quanto em Porto Rico fornecem uma quantidade considerável de informações sobre o impacto e a natureza da reconstrução. Em Porto Rico, embora a mortalidade imediata tenha sido relativamente baixa, o furacão San Felipe deixou sem teto cerca de um terço da população de um milhão e meio de habitantes. A maioria dos 40 milhões de dólares em perda de propriedades havia sido de propriedades particulares. Havia alguns da classe política da ilha que viram na reconstrução uma oportunidade de reestruturação da sociedade por meio da criação de um interior povoado por pequenos fazendeiros laboriosos morando em casas de campo bem-cuidadas, o que seria a realização do antigo mito rural do vigoroso e arrojado jíbaro40. Natalio Bayonet Díaz, ex-membro da Câmara dos Representantes, instou o governador a pedir que os porto-riquenhos arcassem com o fardo da reconstrução e que não dependessem da ajuda estrangeira. Ele alertou que a migração da zona rural para a urbana tinha de ser impedida a todo custo, e que apenas crianças e mulheres que cuidassem de famílias ou estivessem incapacitadas de trabalhar deveriam receber comida gratuita. Mais de 40.000 casas tiveram de ser reconstruídas para acomodar cerca de 250.000 pessoas desabrigadas provenientes da zona rural. Porém, essa tarefa também ofereceu oportunidades de reforma. Bayo-
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37 El Huracan de Vuelta-Abajo, Havana, 1883, pp. 13-4, 30. 38 Memoria en que se da Cuenta de los Trabajos de la Junta General de Socorros para Cuba y Filipinas, Madrid, 1884. 39 Lauren Derby, “A City of Miracles: Urban Space, Social Disease and the Hurricane of San Zenón”, typescript, 1994. 40 Francisco Scarano, “The Jíbaro Mascarade and the Subaltern Politics of Creole Identity Formation in Puerto Rico, 17451823”, in American Historical Review, 101:5, 1996, pp. 1.398-431. Deve ser observado que a idéia da criação de pequenos fazendeiros que trabalhariam junto com as grandes propriedades e cujo investimento na propriedade serviria como controle social sobre a desordem também caracterizou um relatório sobre as condições em Barbados e nas ilhas Windwards após os furacões de 1897 e 1898. Ver Richardson, Economy and Environment, pp. 211-36.
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 41 Bayonet to Gov. of Puerto Rico, 25/Sept./1928, AGPR, Obras publicas, leg. 166. Grande fonte de informação é fornecida também em Emilio del Toro, Final Report of the Insular Executive Committee of Supervision and Relief, San Juan, 1929. Ver também Report on Damage by Storm of September 13,1928. Island of Porto Rico, San Juan, 1928, que são relatórios dos avaliadores credenciados do Federal Land Bank of Baltimore, da filial de Porto Rico. 42 E s t e v e s t o G o v. , 1 5/ Oct./1928, AGPR, Obras publicas, leg. 166; leg. 207. 43 Esteves to Red Cross Constitutive Committee, AGPR, Obras publicas, leg. 160; AGPR, Obras publicas, leg. 166, 31/Oct./1928.
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net Díaz argumentava que a construção de residências novas e bem-cuidadas seria um melhoramento necessário “que solucionaria de uma vez por todas todos os problemas de habitações higiênicas para nossos trabalhadores, e que faria desaparecer do interior do país a visão miserável da cabana (bohio), que é um estigma para nossa civilização”41. Mas não se podia dar aos pobres e destituídos algo a troco de nada. A reconstituição deveria ser supervisionada por instituições de assistência e comitês municipais e executada pelo próprio povo, que era pago por seu trabalho, sendo 10% em dinheiro e 90% em alimentos42. Esse tipo de engenharia social estava presente também em um plano para assistência arquitetado por representantes dos plantadores de cana-de-açúcar e apoiado por Guillermo Esteves, o comissário para Porto Rico. O plano dividia a população afetada em três categorias: os pequenos proprietários, os trabalhadores pobres urbanos e os arrimados, que eram os que trabalhavam nas grandes plantações de café. Estes últimos podiam por sua vez ser subdivididos em dois grupos: os que viviam do cultivo de pequenos lotes e os que viviam em pequenos barracos na qualidade de empregados, sem possuir nenhuma terra. Esteves procurou convencer a Cruz Vermelha de que as divisões ou categorias sociais da população tinham de ser tratadas de maneira diferente e que “as boas qualidades do pequeno fazendeiro porto-riquenho que eram reconhecidas por todos” deveriam
ser estimuladas. Os pequenos proprietários tinham “bom caráter e boa moral” e podiam ser confiados a eles a reconstrução e o melhoramento de suas terras sem a necessidade de supervisão. Outros grupos tinham de ser tratados com mais precaução43. Acima de tudo, ele e o plano se opunham à transferência dos arrimados das fazendas de café para os pequenos povoados, e defendiam a construção de casas e a distribuição de pequenos lotes para os trabalhadores, mas apenas depois que as haciendas se recuperassem e o trabalho estivesse disponível. Se o trabalho fosse feito de maneira apressada, a Cruz Vermelha se veria forçada a carregar o fardo. Esteves afirmou que “estes arrimados amam a terra que cultivam e que eles são a semente da qual futuros fazendeiros brotarão”. Sua admiração, contudo, tinha limites. Uma vez que os recursos dos proprietários de terra tinham de ser usados no replantio de suas terras, os fundos deveriam ser repassados aos proprietários de terra que tivessem condições de fornecer abrigo e trabalho aos trabalhadores rurais. Foi um plano que correspondia às especificidades da sociedade da ilha; porém, uma vez mais, colocou a autoridade e os recursos nas mãos da classe predominante de agricultores, uma vez que somente eles tinham condições de prover o futuro da ilha. Também na Flórida houve um desejo de reconstruir para o futuro. O poder do furacão não fora compartilhado de forma igualitária. Os trabalhadores das Bahamas e das Índias Ocidentais em Belle Glade e outras pequenas comunidades próximas ao Lago Okeechobee sofreram todo o choque do furacão. No mundo racialmente dividido
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 da Flórida da década de 1920, era de esperar que no trabalho de assistência e de reconstrução as diferenças de cor também entrassem em cena. A atenção foi voltada para os que perderam propriedades em Delray Beach e Palm Beach, mas não para os corpos sem nome arrastados pelas águas ou queimados em piras comunitárias. A Cruz Vermelha chegou a criar o Comitê Consultivo para os Negros, que tinha entre as suas funções, a tarefa de refutar os “rumores” de que o auxílio não estava sendo repartido igualmente entre negros e brancos. Problemas ocorreram. Os pobres que perderam suas deixasse a Flórida, a Câmara do Comércio de West Palm Beach providenciou um vôo para que ele sobrevoasse a região. De acordo com o que foi relatado pela Cruz Vermelha, lá do alto ele viu que
casas possuíam hipotecas pesadas e corriam o risco de que elas fossem executadas. Argumentava-se que, se a Cruz Vermelha as reconstruísse, beneficiaria os credores, não os desabrigados. Por isso, tais casas não foram reconstruídas. Houve reclamações. A Cruz Vermelha assumiu uma postura defensiva em face das críticas dos negros. Em seu relatório final, argumentou: “O Comitê, sabedor de que seu povo está recebendo integralmente a sua assistência pro-rata, não pode se sentir constrangido quando reclamações infundadas são propaladas por reclamões crônicos”44. Tais desconfortos não pararam o progresso. O sul da Flórida estava comprometido com o crescimento ordenado e com o desenvolvimento urbano e da agricultura. Não podia se permitir que o furacão minasse a trajetória do progresso. Em março de 1929, antes que o diretor da Cruz Vermelha
“[...] as cidades, povoados e vilas haviam sido estruturados; nas ruas limpas e desobstruídas alinhavam-se espaços para estacionamento e árvores replantadas; as terras dedicadas à agricultura estavam drenadas e cobertas por uma vegetação luxuriante que parecia ter brotado da noite para o dia; os campos uma vez mais se encontravam separados por canais de drenagem e irrigação que do alto pareciam grandes listas; todo o interior estava pontilhado por casas reconstruídas e as novas construções de madeira ainda não pintada reluziam ao sol da manhã.” Não se permitira que o furacão desarranjasse o caminho do progresso. Tanto em Porto Rico quanto na Flórida, o furacão fora desastroso, e tal aconteceu por causa das ações e decisões que precederam em muito a chegada dos ventos. Nos dois lugares, as respostas aconteceram dentro de um contexto sócio-ideológico que os caracterizou. Nesse aspecto, o furacão Katrina, em 2005, não foi diferente. Certamente, com a chegada de todo mês de junho no novo milênio, as grandes tempestades ciclônicas continuarão a nos fornecer oportunidades para encontrarmos os traços comuns dessa história que atravessa as fronteiras culturais, ideológicas e nacionais da região.
44 The West Indies Hurricane Disaster, Washington, D.C., 1928.
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