Problemas e Possibilidades do Anarquismo

Daniel Augusto A. Alves e Felipe Corrêa

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Problemas e Possibilidades do Anarquismo

José Antonio Gutiérrez Danton José An

Author Luna Castel-Branco Wagner

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Daniel Augusto A. Alves e Felipe Corrêa

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Problemas e Possibilidades do Anarquismo

José Antonio Gutiérrez Danton José Antonio Gutiérrez Danton

Essa preocupação pode ser detectada em todos os textos aqui publicados. Cada um deles destaca uma questão específica, que sempre nos vem à tona quando estamos envolvidos pela turbulenta realidade das lutas cotidianas.

Creio que o movimento anarquista está em uma encruzilhada: ou dá o salto qualitativo e decide converter-se em uma contribuição para os movimentos populares, cumprindo dessa maneira seu objetivo como movimento revolucionário, ou, pelo contrário, se conforma com a posição de crítico eterno situado além do bem e do mal (ou seja, além da prática): umbiguista, isolado, preocupado somente em manter a pureza dos quatro dogmas. [...] Talvez não estejamos de acordo em tudo o que está dito aqui, mas talvez estejamos de acordo no mais importante, que é como fazer do anarquismo revolucionário algo relevante para esses milhões de pessoas que buscam uma sociedade diferente, mais justa e mais humana.

Problemas e Possibilidades do Anarquismo

Os artigos aqui reunidos são alguns dos muitos trabalhos que este estimado companheiro, que durante as relações tornou-se nosso amigo, tem se dedicado a produzir, no intuito de gerar um acúmulo do debate teórico, da análise de cenários conjunturais, da reflexão crítica de processos históricos em que nossa corrente teve ou deixou de ter participação e, sobretudo, da reflexão e da proposição para uma consistente e significativa intervenção no atual cenário, que não se encerre em declarações e contemplações abstratas de princípios, mas que seja capaz de forjar em meio ao povo um campo libertário, criando poder popular em meio à luta de classes.

José Antonio Gutiérrez Danton

A publicação da presente compilação de artigos do autor chileno José Antonio Gutiérrez Danton representa um considerável acúmulo e o amadurecimento no debate do anarquismo de orientação especifista latino-americano. Esses artigos foram publicados, originalmente, na revista chilena Hombre y Sociedad e no site Anarkismo.net, que vem cumprindo um papel fundamental, ao reunir diversos indivíduos e organizações anarquistas de todo o mundo, em torno de uma perspectiva de organização específica anarquista e de trabalho social com os movimentos populares, a partir das linhas plataformista e especifista. Publicados originalmente em castelhano, esses textos começaram a chegar a nossas mãos e a circular cada vez mais entre a militância anarquista brasileira, ganhando espaço na medida em que foram sendo traduzidos. Estivemos bastante envolvidos nesse processo de tradução e de difusão dos textos de José Antonio, e nos orgulha muito que este livro esteja agora sendo publicado.

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PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DO ANARQUISMO

(C) Copyleft É livre, e inclusive incentivada, a reprodução deste livro, para fins estritamente não comerciais, desde que a fonte seja citada e esta nota incluída.

Projeto de capa Tagori Mazzone Diagramação Felipe Corrêa Tradução Felipe Corrêa, Daniel A. A. Alves, F.A.G., Eliane Neves Revisão Victor Calejon

Faísca Publicações Libertárias Rua Espártaco, 456 - V. Romana 05045-000 São Paulo - SP Tel. 11-3864-3242 www.editorafaisca.net [email protected] [email protected]

2011

PROBLEMAS E POSSIBILIDADES DO ANARQUISMO

José Antonio Gutiérrez Danton

Tradução Felipe Corrêa, Daniel A. A. Alves, F.A.G., Eliane Neves

S UMÁRIO Apresentação Felipe Corrêa e Daniel Augusto de Almeida Alves 9 Algumas Palavras sobre a Razão de Ser deste Livro 25 A Organização Revolucionária Anarquista 33 América Latina Problemas e possibilidades para o anarquismo 57 Os Problemas Colocados pela Luta de Classes Concreta e pela Organização Popular Reflexões a partir de uma perspectiva anarco-comunista 67 Considerações sobre o Programa Anarquista 81 Sobre a Política de Alianças Problemas em torno da construção de um pólo libertário de luta 99 A Importância da Crítica para o Desenvolvimento do Movimento Revolucionário 123

Para Deirdre Marie e os pequenos Caoimhín Alberto e Sabina Sofía. Ainda que as crianças não entendam esses assuntos, tudo o que escrevi aqui tem muito mais sentido e urgência graças à sua chegada em minha vida.

APRESENTAÇÃO Daniel Augusto de Almeida Alves Felipe Corrêa

A publicação da presente compilação de artigos do autor chileno José Antonio Gutiérrez Danton representa um considerável acúmulo e o amadurecimento no debate do anarquismo de orientação especifista latino-americano.1 Esses artigos foram publicados, originalmente, na revista chilena Hombre y Sociedad2 e no site Anarkismo.net, que vem cumprindo um papel fundamental, ao reunir diversos indivíduos e organizações anarquistas de todo o mundo, em torno de uma perspectiva de organização específica anarquista e de trabalho social com os movimentos populares, a partir das linhas plataformista e especifista.3 Publicados originalmente em castelhano, esses textos começaram a chegar em nossas mãos e a circular cada vez mais entre a militância anarquista brasileira, ganhando espaço na medida em que foram sendo traduzidos. Estivemos bastante envolvidos nesse processo de tradução e

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de difusão dos textos de José Antonio, e nos orgulha muito que este livro seja agora publicado. Os artigos aqui reunidos são alguns dos muitos trabalhos que este estimado companheiro – que durante as relações, tornou-se nosso amigo – tem se dedicado a produzir, no intuito de gerar um acúmulo do debate teórico, da análise de cenários conjunturais, da reflexão crítica de processos históricos em que nossa corrente esteve ou deixou de estar presente e, sobretudo, da reflexão e da proposição de uma consistente e significativa intervenção no atual cenário, que não se encerre em declarações e contemplações abstratas de princípios, mas que seja capaz de forjar em meio ao povo um campo libertário, criando poder popular em meio à luta de classes. Essa preocupação pode ser detectada em todos os textos aqui publicados. Cada um deles destaca uma questão específica, que sempre nos vem à tona quando estamos envolvidos pela turbulenta realidade das lutas cotidianas. Entre as questões refletidas por José Antonio, podemos destacar a organização política específica anarquista, como um tema central. No entanto, sua preocupação supera as limitações de se discutir unicamente a necessidade desta organização, limitação que, infelizmente, ainda é parte de nossa corrente, por maiores que sejam nossos esforços e êxitos pontuais em superá-la. Suas reflexões abordam o caráter da organização anarquista, a necessidade de um acordo programático que não pode limitarse a reafirmar questões de princípios e a necessidade de uma sólida compreensão dos problemas postos pela rea-

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lidade da sociedade em que vivemos. Problemas como nossa conduta no dia-a-dia das lutas, nossa política de alianças e a necessidade da permanente autocrítica em nosso meio também são devidamente debatidos. E nestes últimos pontos buscamos focar uma atenção especial, haja vista que, de todos os problemas colocados, este é o que menos foi debatido, com a devida seriedade, no anarquismo contemporâneo. Podemos afirmar que, no Brasil, o anarquismo voltou a público, de maneira mais significativa – com o estabelecimento de espaços públicos, a realização de eventos e publicações – nos fins do período da ditadura militar, desenvolvendo-se durante os anos 1980 e 1990. Nos anos 1980, e até um pouco antes, com iniciativas que agregavam as pessoas em torno do anarquismo, com todas as suas diferenças; era uma época em que havia um interesse por tudo o que fosse “novo” em termos políticos, e que vinha sendo sufocado pela ditadura militar. Iniciativas como o jornal Inimigo do Rei na Bahia, a reativação do Centro de Cultura Social em São Paulo, a fundação do Círculo de Estudos Libertários no Rio de Janeiro e da editora Novos Tempos em Brasília contribuíram com este ressurgir do anarquismo que vinha, desde os anos 1930, e mais ainda durante a ditadura, bastante reduzido a algumas pessoas e pequenos grupos, que terminaram conseguindo apenas manter a chama do anarquismo acesa durante esses longos anos.4 Durante os anos 1990, diferentes proposições foram sendo aprofundadas e afirmando-se e, se em um período anterior era muito comum encontrarmos individualistas e socialistas libertários juntos, pessoas e grupos com dife-

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rentes concepções e projetos, isso foi se tornando cada vez mais difícil com o passar dos anos. Foi durante esta década que nossa corrente (res)surgiu no Brasil, principalmente pelos contatos com a Federação Anarquista Uruguaia (FAU), e também por apropriações das tentativas de trabalhos sociais anteriores, como o trabalho sindical em São Paulo e a atuação comunitária no Rio de Janeiro. Experiências significativas desenvolveram-se no Rio Grande do Sul, em São Paulo, no Rio de Janeiro e no Pará. Os anos 2000, conforme foram passando, permitiram que aprofundássemos as posições anteriores e que tivéssemos as experiências mais significativas em termos de trabalho e inserção social e podemos destacar o surgimento do Fórum do Anarquismo Organizado (FAO), em um encontro em Belém no ano de 2002. Surgiram também grupos e organizações em outras localidades como Alagoas, Amapá, Bahia, Fortaleza, Goiás, Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina. Algumas experiências continuaram, outras não, mas todas contribuíram, ou ainda contribuem, com o anarquismo especifista no Brasil. Chegamos, neste ano de 2010, a uma situação diferenciada, que se caracteriza por mais de uma década de especifismo no Brasil e, com isso, por uma série de acúmulos teóricos e práticos que nos permitem fazer um análise e identificar erros e acertos. Neste debate, acreditamos que os textos de José Antonio têm muito a contribuir. Não para discutir nossas diferenças com os individualistas, ou para argumentar que os anarquistas não são contra a organização. Isso foi necessário no passado e os companheiros que trabalharam neste sentido

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contribuíram significativamente com o nosso caminhar. Hoje, tanto os anarquistas de nossa corrente quanto outros, além de libertários e mesmo pessoas de outros campos da esquerda, já têm muito mais clareza sobre as nossas diferenças com os individualistas, e com a nossa concepção de defesa das lutas populares, da organização anarquista, de uma posição classista e combativa. Portanto, os artigos deste livro devem contribuir com o ganho qualitativo que o anarquismo especifista vem tendo desde os anos 1990, mas também, com o ganho que ainda é necessário ter e que pode, graças ao trabalho acumulado, nos permitir uma análise crítica. Se houve algo de produtivo desde os anos 1980 foi certamente o fato de estar cada vez mais evidente que se chamar anarquista já não significa muita coisa. Sob esse amplo “guarda-chuva” que é o anarquismo, encontram-se os mais diferentes projetos, as mais diferentes análises e concepções. Não entraremos aqui em uma discussão para definir o anarquismo e julgar essas diferenças. Nosso projeto tem suas bases fundamentadas e sabemos o que queremos, embora tenhamos consciência que ainda há muito por se desenvolver. Outro ponto positivo, indubitavelmente, foi o acúmulo de experiências teóricas e práticas que se desenvolveram neste último período. Por um lado, as publicações, os documentos, escritos e debates produzidos, traduzidos e difundidos, permitiram que elevássemos nosso nível teórico e que conseguíssemos produzir material de significativa qualidade e grande valor. Por outro lado, diversas experiências práticas, nas mais diferentes

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formas de lutas populares: sindicais, comunitárias, estudantis, dos sem-terra, dos sem-teto, dos catadores, etc. Em suma, experiências teóricas e práticas muito valiosas e que foram responsáveis por iniciar essa reinserção do anarquismo no cenário político e nas lutas de nosso país. É nessas experiências, e no contexto político futuro das lutas e dos movimentos populares, que encontramos as maiores possibilidades para o anarquismo. No entanto, dentro desse universo tão plural do anarquismo, em que o Brasil não possui muito de diferente dos outros países, pudemos apreender e ver com nossos próprios olhos muitos problemas. As posições individualistas, forjadas por stirnerianos e defensores de terapias alternativas retiraram do anarquismo seu caráter socialista e, assumindo elementos do pós-modernismo, abandonaram a posição classista do anarquismo e encerraram-se em seus pequenos grupos de privilegiados e acadêmicos. Por outro lado, houve um impulso de radicalismo, que se reproduziu única e exclusivamente no discurso, mas não na prática, de anarquistas julgando serem portadores de uma verdade revolucionária, acima de qualquer imperfeição, acusando todos aqueles que não concordavam com suas posições de traidores, atacando-os permanentemente. Como muitas seitas da esquerda, confundiram adversários com inimigos e se fecharam na contemplação abstrata de “verdades revolucionárias”, quase que de forma religiosa, dando mais ênfase ao ataque daqueles que não defendiam suas posições do que na organização das lutas e na denúncia deste sistema. Em diversos casos, essa “violência verbal” foi causada pelo afastamento das lutas

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populares, um fato que continua a proporcionar discursos radicais, porém sem conteúdo real, e afirmações principistas sem lastro com a realidade da luta de classes. O perfil do anarquista como alguém anti-social, com dificuldades de se relacionar com pessoas diferentes, dogmático e sectário ficou muitas vezes evidente, já que é somente na luta que podemos conhecer outras pessoas, valorizar outros aspectos para além da nossa ideologia e saber respeitar companheiros e companheiras que pensam diferente de nós. Outro problema foi o das posições em relação às lutas populares. O anarquismo não é mais do que uma expressão dessas lutas e o fato de ele ter se desligado delas durante muitos anos, colocou diversos anarquistas na posição de “agentes estranhos” a elas, o que fez muitos pensarem que uma reaproximação entre a ideologia e os movimentos populares poderia ser algo autoritário, um tipo de “entrismo”. Posições essas que conviveram com outras: de que o povo seria naturalmente libertário, ou que quando não era consciente ou não adotava a nossa forma de organização era alienado, não sabia o que estava fazendo etc. Todas essas posições só evidenciam, para nós, a falta de prática social e elas só poderão ser superadas com a reinserção do anarquismo nas lutas sociais. Essa autocrítica, para nós, é fundamental. A dificuldade de superar esses problemas foi sempre considerar que os outros estavam errados, mas nunca nós. Observando todos os acontecimentos históricos, e a própria prática anarquista, foi freqüente a avaliação de que por diversas vezes éramos vítimas, todas as nossas derrotas

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tinham exclusivamente por razão o mal-caráter de fascistas, capitalistas, comunistas etc. Não há dúvidas que há uma série de problemas e equívocos fora do anarquismo, tendo eles resultado em graves conseqüências, mas nos preocupa, neste momento, tomar a história e nossa experiência de luta para pensar em quais são as nossas limitações e, a partir disso, superá-las. Nisso, também, os artigos do companheiro contribuem bastante, ao demonstrar que o anarquismo teve imensa dificuldade em colocar-se como uma alternativa real à luta dos oprimidos. Nossa tarefa parece clara: olhar com autocrítica para o que passou e que vem se passando, procurar encontrar meios de superar os problemas, reproduzir o que vem acontecendo de melhor, caminhar para frente, rumo às possibilidades reais que o anarquismo nos oferece. A recusa de fazermos tabula rasa entre aqueles que se encontram em um campo ideológico diferente do nosso, e aqueles que nitidamente são nossos inimigos – o Capital e o Estado – não significa a blindagem de nossos adversários políticos de toda e qualquer crítica contundente a seus postulados programáticos e a suas práticas de atuação. A diferenciação entre adversários políticos, aqueles que têm programas distintos, mas que compartilham um mesmo posto na luta de classes, e os inimigos políticos, aqueles que se encontram em um lado oposto na luta de classes, é fundamental para uma devida intervenção anarquista nas lutas sociais. Mais do que nunca, é a hora de o anarquismo fazer justiça à sua história, reconvertendo-se em uma força

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política e social, capaz de mover a classe à qual historicamente ele esteve a serviço. Ser capaz de dialogar com essa classe, com todos aqueles que honestamente dedicam suas vidas à sua mobilização e empoderamento, concordando ou não conosco. Analisar com a devida seriedade os problemas de nossa atual sociedade, sem cair em simplismos e reducionismos que fazem transposições mecânicas de contribuições teóricas e experiências históricas do passado. Compreender historicamente tais contribuições, sempre dentro de seu contexto, e problematizálas a partir do atual. Estes são os nossos deveres mais do que urgentes. Longe de serem consideradas respostas finais aos problemas refletidos, os artigos aqui publicados devem ser entendidos como um marco inicial para aprofundarmos tais questões, tendo a clareza de que a esmagadora maioria, para não dizer todas estas questões, nunca terão uma resposta absoluta, seja de nossa parte ou de qualquer outro campo da esquerda, dada a turbulenta e volúvel realidade da nossa sociedade. Nossa tarefa, portanto, é estar sempre atentos aos problemas e às possibilidades que o anarquismo e a luta de classes nos trazem, buscando ao máximo uma coerência em torno da superação dos problemas e da exploração mais satisfatória das possibilidades. Reproduzimos aqui uma breve, mas extremamente valiosa, contribuição de Gerardo Gatti que, no artigo “Definições de um Companheiro”, de 1975, refletiu sobre alguns dos problemas e das possibilidades coloca-

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dos neste livro. A luta do anarquismo, dizia Gatti, é contra o capitalismo e o Estado: “O poder da burguesia sintetiza-se e funde-se no Estado. Não há possibilidade de transformar a sociedade sem destruir esse Estado burguês, e como lutamos por uma sociedade sem classes sociais, queremos que se elimine todo aparato burocrático do Estado, toda separação entre governantes e governados. [...] Nós acreditamos que, também no que se refere à administração política da sociedade, se deve acabar com a propriedade privada e terminar com esta ordem em que uns mandam e outros obedecem.” Seus meios de luta constituem-se a partir das organizações populares nos espaços de trabalho e de moradia, devendo criar poder popular no caminho das lutas na busca da revolução social. Essas organizações são conformadas a partir da lógica da necessidade, quando homens e mulheres buscam melhores condições de vida e tentam afastar-se das diferentes opressões. “Conselhos e federações de comitês operários, de vizinhos de bairro, comunas ou conselhos rurais de camponeses são distintas formas através das quais os trabalhadores vêm se organizando para defender os processos revolucionários contra a contra-revolução interna ou a agressão externa, e para administrar, ordenar e conduzir o conjunto

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da vida social. A partir destas bases, entendemos que devem estruturar-se os organismos sociais. Efetivo poder dos trabalhadores, maior gestão direta, menor representação indireta, nenhum tipo de diferenciação salarial, nenhum tipo de vantagem ou privilégio. Isso é o que entendemos por poder popular. Nada disso é algo novo. É por estes ideais que em várias partes do mundo os trabalhadores fizeram revoluções, celebraram vitórias e sofreram derrotas. […] Sem conhecer esta história, sem ter lido estes livros, ainda sem conhecer estas explicações, em todo o mundo, todos os dias, milhões e milhões de seres humanos que sofrem a prepotência, querem a igualdade; aqueles que têm fome desejam comer; os que passam frio e não têm teto querem ter uma casa e um abrigo; aqueles que sofrem a humilhação buscam fraternidade; aqueles que se reconhecem ignorantes aspiram a uma escola, pelo menos para seus filhos. De forma muitas vezes vaga, dando muitas vezes denominações distintas, a maioria das pessoas que conhece sofrimentos, ditaduras, infelicidades, despotismo, pobreza, aspira ao bem estar, à solidariedade e ao entendimento entre os humanos. A origem primeira e a razão de nossa luta não estão em qualquer razão de alta política de Estado, ou de governo, de partido ou de organização, de grupo ou de movimento. Essa origem está na dor e no desejo desta

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grande humanidade, da qual nosso povo é uma parte.” Nessa luta, o objetivo é o socialismo libertário, que torna possível um sistema de liberdade e igualdade, sem exploração e dominação. Socialização econômica e política, autogestão e federalismo. Enfim, um processo que harmonize socialismo e liberdade. “Porque sabemos que o homem é um ser social, queremos que desenvolva sua capacidade e a coloque a serviço da sociedade; porque queremos que todas as decisões que digam respeito à sociedade sejam assumidas e resolvidas de forma social; porque queremos que a riqueza não seja individual ou de alguns poucos, mas social, de todos, e por isso nos chamamos socialistas. Porque confiamos mais no acordo que na imposição, mais no conhecimento que na coerção, mais na liberdade que na autoridade. Por isto somos libertários. Mas já aprendemos que, às vezes, as denominações são enganosas.” Finalmente, Gatti afirma que não devemos nos ater à forma, mas ao conteúdo das propostas e das práticas. Neste sentido, alguns, cujas nomenclaturas e identificações parecem próximas das nossas, podem não ter absolutamente nada a ver conosco. Diferentemente, outros, que não utilizam as nossas nomenclaturas e identificações,

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podem ter propostas e sentimentos muito parecidos com os nossos. “Pode haver gente que, denominando-se de maneira parecida, não saiba bem o que quer, e há também quem, com outro nome, ou às vezes até sem saber dar um nome, busque o mesmo. A todos os que lutam por estes ideais, sem mesquinharias, à sua maneira e em sua medida, chamamos companheiros.”5 O anarquismo tem, ainda hoje, a possibilidade de impulsionar as organizações populares rumo a uma transformação social revolucionária, num processo que também pode oferecer conquistas de curto prazo. Buscar essas possibilidades, resolvendo nossos problemas; eis o desafio colocado. Militante da FAU desde sua fundação, na década de 1950, Gatti militou no movimento sindical uruguaio e participou da luta armada contra a ditadura. Hoje, é um dos valiosos militantes que integra a lista de “desaparecidos” políticos pelos regimes facínoras, promotores do terrorismo de Estado que se abateu em nosso continente. Sua trajetória esteve sempre ligada à busca pelo caminho do socialismo libertário. A ele, e a todos os companheiros desta organização, que tombaram para escrever nossa história, dedicamos este livro. Que o anarquismo no Brasil possa continuar crescendo, em quantidade e em qualidade, podendo cumprir

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seu papel histórico de impulsionar e fortalecer as lutas populares de nosso povo. Certamente o livro de José Antonio tem muito a contribuir neste sentido. Boa leitura!

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Notas: 1. “O especifismo é uma concepção de organização anarquista. O termo é utilizado e foi difundido pela Federação Anarquista Uruguaia (FAU), que com ele refere-se à corrente anarquista que historicamente defendeu a necessidade da organização específica anarquista. Assim, o especifismo acredita que a organização da luta deve se dar em dois níveis distintos: o da organização anarquista e o dos movimentos populares – que devem se formar com base na necessidade e não se resumir a uma determinada ideologia, como no caso do anarco-sindicalismo. Este modelo de organização possui suas bases no anarquismo clássico, tendo sido defendido por Mikhail Bakunin, Errico Malatesta, os russos exilados do Dielo Truda, entre outros. [...] Desde o século XIX, outras concepções vêm sendo incorporadas ao que hoje se entende como ‘espeficismo’, que é defendido por uma série de organizações anarquistas brasileiras: a compreensão do anarquismo como ideologia e, portanto, com um vínculo necessário com uma prática política com objetivo de transformação social; a organização como elemento imprescindível para a luta; a concepção da organização específica anarquista como uma organização de minoria ativa;

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a centralidade da luta de classes e a prioridade no trabalho social junto aos movimentos populares (movimentos sociais, sindicatos, etc.); a unidade teórica e ideológica; a unidade estratégica e tática; o processo decisório marcado pela tentativa de consenso e, não sendo possível, pela votação; e a ênfase no compromisso militante. Fora da América Latina, as organizações que defendem posições semelhantes ao especifismo definem-se como anarco-comunistas, de inspiração plataformista.” Felipe Corrêa. “Especifismo e Síntese/Sintetismo”. In: http://www.anarkismo.net/article/15043. 2. “Hombre y Sociedad” foi a primeira publicação abertamente anarquista que surgiu depois do golpe de Estado de Pinochet no Chile. Foi editada por veteranos anarquistas e anarco-sindicalistas de décadas passadas. Desde o 1º de maio de 1985 foram feiras algumas edições da revista, de documentos e declarações, até que, em 1988, a coordenação que sustentava a publicação deixou de existir. Durante este tempo, essa coordenação tinha um local que serviu de ponto de encontro para organizações de jovens, de mulheres e sindicais. Em 1997, a revista foi relançada por um novo grupo editorial, que incluía dois veteranos da primeira época. Desde então, ela vem sendo um espaço de discussão teórica e política de importância para o movimento no Chile, de onde se vem tentando contribuir não só com o campo libertário, mas com todo o conjunto do movimento popular. 3. Anarkismo.net (www.anarkismo.net). Esse site possui conteúdo em diversos idiomas e apresenta análises de conjuntura, informações sobre lutas populares e lutas anarquistas, documentos programáticos e textos clássicos – tudo o que pode ser útil para o debate entre anarquis-

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tas e também para informar o público geral, gerando interesse tanto pelo anarquismo como pelas lutas populares, e apresentando uma leitura da realidade a partir de nossos pressupostos teóricos e ideológicos. 4. Para um ótimo artigo sobre o anarquismo no Brasil até 1930, incluindo a questão do refluxo, ver: Alexandre Samis. “Pavilhão Negro sobre Pátria Oliva”. In: História do Movimento Operário Revolucionário. São Paulo: Imaginário, 2004. Para uma breve história do “ressurgir” do anarquismo na década de 1980 e um balanço do anarquismo nos anos 1990 e 2000, incluindo a influência da FAU, ver: Felipe Corrêa. “O Anarquismo, a Luta de Classes no Brasil e o Especifismo da FAU”. In: Juan Carlos Mechoso. A Estratégia do Especifismo. São Paulo: Faísca, no prelo. 5. Gerardo Gatti. “Definições de um Companheiro”. In: Anarkismo.net (http://www.anarkismo.net/article/13369).

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A RAZÃO DE SER DESTE LIVRO

Os artigos reunidos neste livro foram desenvolvidos a partir de discussões orgânicas das quais participei entre os anos de 2002 e 2007. Alguns deles foram elaborados a partir de documentos internos de discussão, dos quais eliminei referências pessoais ou aspectos internos que não são de relevância para uma discussão em círculos mais amplos, enquanto outros foram elaborados para encontros libertários ou simplesmente escritos para expressar certa insatisfação com limitações do movimento libertário. Todos os artigos foram elaborados como parte de uma discussão bastante aprofundada que estamos tendo nesse momento, em relação a como desenvolver o movimento anarco-comunista1, como transformá-lo de uma crítica radical em uma alternativa ao capitalismo. Ainda estamos longe de ter desenvolvido uma proposta revolucionária madura, e não creio que alguns documentos como estes tenham a última resposta para essa questão. Apesar disso, estes documentos serviram para esclarecer

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certas posições e certos pontos necessários do debate para começar a construir essa alternativa libertária. Por isso, a importância deles estarem sendo agora publicados juntos neste volume. Creio que a insatisfação que se evidencia nestes documentos diante de algumas de nossas limitações foi expressa, de maneira muito clara, já há várias décadas, pela militante anarquista Lucy Parsons, que escreveu a um amigo: “Os anarquistas são muito bons para apontar as insuficiências da organização dos outros. Mas, nos perguntamos: o que eles fizeram nos últimos 50 anos? Nada para construir um movimento; eles não são outra coisa senão fantasiosos sonhando. Conseqüentemente, o anarquismo não atrai o público. Este mundo intenso e prático não tem interesse pelas teorias rebuscadas – ele quer fatos e também exemplos práticos. Falam muito de cooperação. E você me disse que tentou reunir os quatro míseros periódicos que existem para cooperar impulsionando uma publicação que valha a pena, mas não conseguiu nada…”2 Creio que é o momento de dar um salto qualitativo como movimento, abandonar infantilismos, abandonar o utopismo vulgar como maneira de fugir das dificuldades objetivas da luta revolucionária, abandonar o idealismo como mera declaração de boas intenções sem mecanismos concretos para torná-las realidade. Isso vem sendo

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feito por um setor importante do movimento libertário graças à participação em diferentes lutas e experiências organizativas, as quais representam a melhor escola para os revolucionários. No entanto, é necessário acompanhar essa experiência viva de certas reflexões daquilo que temos aprendido. É importante dizer, sobre esses documentos, que todos têm um fio condutor: eles tratam de questões fundamentais, básicas, de política revolucionária, que poucas vezes são discutidas nos círculos libertários. Quando não possuímos uma linguagem comum, correremos atrás do próprio rabo em discussões intermináveis, e, na realidade, alguns conceitos básicos para o debate vêm sendo entendidos de maneira contraditória. Por isso, em certa medida, este livro é uma espécie de volta ao ABC da política revolucionária. O que espero com estes artigos não é dar a última palavra sobre todos esses conceitos, mas começar uma discussão a partir dos fundamentos, dos elementos mais básicos, e começar a colocar a necessidade de esclarecer alguns conceitos, um trabalho que não se pode considerar concluído com a publicação destes artigos. Por exemplo: como podemos discutir sobre unidade tática com gente que não sabe o significado preciso da palavra tática? Como podemos discutir sobre os meios de exercer nossa influência nas organizações sociais com gente que não entende o que é uma organização social, ou qual é sua diferença de um partido, uma rede, um grupo de afinidade, etc? Como discutir sobre a organização política quando não se entende o que é um partido ou o que não é um partido? Há muitos exemplos e pode-

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ríamos continuar a fazer essas perguntas indefinidamente. Esses exemplos servem simplesmente para dar uma idéia das dificuldades que certas confusões freqüentes em nossos meios colocam para a prática e para a consolidação de uma alternativa libertária. Afinal de contas, esse exercício de discussão dos elementos essenciais da política revolucionária – que não foram suficientemente elaborados no anarquismo – é fundamentalmente um passo para converter o anarquismo em um projeto social de transformação, em uma visão política que possa inspirar o conjunto do povo a lutar. Um anarquismo que volte a levar o movimento libertário ao coração das massas que dia após dia luta para melhorar sua condição social e criar um novo mundo. O que nos interessa é um anarquismo que seja capaz de falar uma língua de vitória. Neste sentido, acreditamos ser necessário discutir alguns elementos fundamentais para ter uma base sólida como movimento: elementos relativos à organização; com um pouco mais de detalhe, elementos relativos às organizações políticas revolucionárias; temas cruciais para qualquer movimento revolucionário como alianças e como converter nossas propostas em um programa revolucionário coerente. Também acreditei ser importante discutir a importância da crítica no movimento libertário, pois o sectarismo, o extremismo ideológico, o dogmatismo, a inflexibilidade para entender a complexidade do mundo no qual vivemos, o simplismo que acredita que com algumas fórmulas prontas é possível transformar o mundo, são todos grandes obstáculos que impedem,

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muitas vezes, que aconteçam discussões frutíferas em nossos círculos. E onde não há debate, não há desenvolvimento, nem do pensamento, nem da ação revolucionária. Creio que outro problema do anarquismo é ignorar as dificuldades objetivas dos processos de transformação revolucionária. Isso é bastante nocivo, não somente pelos efeitos negativos que eventualmente tem sobre nossa contribuição em algum processo revolucionário futuro, mas pela contribuição com soluções para os problemas atuais. Assim como nos finais do século XIX, quando a fé na inevitabilidade do comunismo anárquico levou muitos companheiros a entender o anarquismo como uma espécie de poção mágica que curaria instantaneamente todos os males da humanidade, hoje é freqüente encontrar como resposta mecânica de muitos anarquistas a qualquer situação, a trivial resposta: “a revolução anarquista se encarregará disso”. E dessa mesma maneira são analisadas as revoluções do passado ou os reformistas do presente: se se ajustam ou não aos ensinamentos eternos e dogmáticos do anarquismo. Preferimos um método inverso: aplicar o anarquismo como teoria para entender a realidade em função da transformação social. Por isso, acreditei ser necessário insistir, pelo menos em um dos artigos, que com a revolução podemos esperar incontáveis dificuldades e contratempos que colocarão à prova nossas idéias pré-concebidas, que farão impossível criar o comunismo anárquico da noite para o dia, que colocarão barreiras que teremos de superar com inteligência e flexibilidade, e não com consignas e rigidez doutrinária. Devemos ter essa

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perspicácia para enfrentar os problemas atuais e também para pensar as dificuldades que podem surgir a partir de uma situação revolucionária provável no médio prazo, de acordo com o acirramento das contradições sociais em todo o mundo. Creio que o movimento anarquista está em uma encruzilhada: ou dá o salto qualitativo e decide converter-se em uma contribuição para os movimentos populares, cumprindo dessa maneira seu objetivo como movimento revolucionário, ou, pelo contrário, se conforma com a posição de crítico eterno situado além do bem e do mal (ou seja, além da prática): umbiguista, isolado, preocupado somente em manter a pureza dos quatro dogmas. Assim, o anarquismo se reduziria a uma seita, a um fenômeno mais religioso do que político, para o qual a revolução seria equivalente ao paraíso da tradição judaicocristã. Nada daquilo realmente existente em nosso mundo seria suficientemente “anarquista” para que esses anarquistas sujassem as mãos: “Nosso reino é de outro mundo”. Lamentavelmente, o anarquismo se viu reduzido a esta caricatura em muitos casos. Sei que um livro como este não chegará a todos aqueles que se reivindicam anarquistas e que muitos estarão perfeitamente convencidos de que não devem fazer nada diferente, que não há necessidade de dar nenhum salto e que o que precisa ser feito é expurgar do movimento os elementos impuros e os hereges. Eles estão em seu pleno direito de pensar desta maneira e não é meu objetivo dirigir o livro a eles. Este livro é dirigido a este setor cada vez mais importante do anarquismo que, a partir de diver-

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sas perspectivas, busca converter-se em um movimento efetivamente revolucionário, nos fatos e não na retórica. Talvez não estejamos de acordo em tudo o que está dito aqui, mas talvez estejamos de acordo no mais importante, que é como fazer do anarquismo revolucionário algo relevante para esses milhões de pessoas que buscam uma sociedade diferente, mais justa e mais humana. Se este livro conseguir estimular algum debate nesse setor, e se o debate se traduzir em propostas e lutas, me darei por satisfeito.

3 de Julho de 2010

Notas: 1. O autor refere-se aos anarco-comunistas de inspiração plataformista que, junto com os especifistas da América Latina, vêm tentando construir um movimento internacional. Um dos projetos desse movimento é o site www.anarkismo.net, do qual o autor é membro. 2. Lucy Parsons. Carta de 27/02/1934. In: Gale Ahrens (org.) Lucy Parsons. Freedom, Equality & Solidarity. Chicago: Charles Kerr, 2004, p.161.

* Tradução: Felipe Corrêa.

A ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA ANARQUISTA

“O anarquismo é organização, organização e mais organização...” Errico Malatesta

Há um mito bastante difundido, tanto entre a população em geral, quanto entre muitas pessoas envolvidas nos movimentos populares. Segundo este mito, os anarquistas são inimigos da organização e preferem, em contrapartida, a ação puramente espontânea; da mesma maneira afirma-se que somos individualistas fanáticos. Estas duas afirmações são completamente falsas e surgem algumas vezes por ignorância e outras por uma clara má intenção política que existe em certos setores. O trágico é que, muitas vezes, são os próprios “anarquistas” que se encarregam de difundir este mito. Isto porque, com uma prática inorgânica, estimulam todo tipo de interpretações anti-organizativas, e porque, muitas vezes reconhecendo a

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necessidade da organização no discurso, na prática atuam contra ela. Certo é que pouco se escreveu sobre a organização anarquista, o que é surpreendente, já que o anarquismo constitui uma crítica aos fundamentos da sociedade de classes, que aponta tanto para seus aspectos de organização econômica, como para os aspectos de sua organização política. Neste sentido, nos surpreende que nos clássicos, muitas vezes, o tema da organização esteja simplesmente reduzido a umas tantas frases, explicando, constantemente de forma superficial, o caráter que deve adotar a organização anarquista: sua organização de baixo para cima, evitando a excessiva centralização e sem cair no atomismo (contentando-se muitas vezes com descrições que beiram a infantilidade, sobre mundos fantásticos, sem nenhuma restrição). Porém, a forma de organização que os anarquistas devem adotar para dar corpo ao papel revolucionário que hoje os cabe não aparece de forma clara em nenhum dos clássicos. Bakunin não se aprofunda muito no tema e, na prática, opta pelas sociedades secretas, em voga no século XIX, o que está longe de ser uma solução libertária para o problema da organização revolucionária. Em Kropotkin, chama atenção a ausência do tema, já que a revolução é considerada inevitável e aos anarquistas, não nos resta outro trabalho senão a propaganda. Malatesta faz algumas declarações a respeito da construção do anarquismo em um partido revolucionário, mas não dá maior fundamentação ao assunto.

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São os anarco-sindicalistas que primeiramente darão uma resposta ao tema da organização revolucionária: mas sua saída não aponta especificamente para os anarquistas, mas para o conjunto do proletariado enquanto classe. Eles dão resposta ao problema da organização por meio do sindicato revolucionário, nascido principalmente na França, no calor das Bolsas do Trabalho, que posteriormente darão origem, nos fins do século XIX, à Confédération Général du Travail (CGT). Logo seu exemplo será seguido pelos Industrial Workers of the World (IWW) dos EUA, que se espalharão pelo mundo, chegando inclusive ao Chile, e a inúmeras sociedades de resistência, que surgirão em todo mundo: a Federación Obrera Regional Argentina (FORA), a Federación Obrera Regional Uruguaya (FORU), o Freien Arbeiter Union Deutschland (FAUD) [Sindicato dos Trabalhadores Livres da Alemanha], a Confederación Nacional del Trabajo (CNT) espanhola, etc.. No Chile, as sociedades de resistência formarão primeiro o IWW, e logo virão a Federación Obrera Regional de Chile (FORCh) e a Confederación General de Trabajadores (CGT). No entanto, os anarcosindicalistas solucionam, em certa medida, o tema da organização revolucionária para o conjunto do proletariado como classe, mas não para o setor do proletariado que se reivindica anarquista. Para eles, em muitos casos, a organização anarquista não deveria ser mais que algumas pessoas unidas por afinidade, com o único fim de fazer propaganda; a organização revolucionária, de fato, ficaria nas mãos do sindicato.

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Mas o tema da organização anarquista permanecerá presente, e tentará ser resolvido por duas vertentes: a vertente da “síntese” (proposta fundamentalmente por Sébastien Faure), que, em certa medida, é herdeira desta concepção puramente propagandista do grupo anarquista de afinidades. Segundo esta corrente, os anarquistas das diversas tendências (ignorando que muitos “anarquistas” não possuem muito mais em comum do que uma simples identificação como anarquistas) deveriam organizarse em grupos de afinidade e federar-se sem a necessidade de que houvesse nada além do seu reconhecimento como anarquistas (afinal de contas, são todos inimigos da autoridade…). A outra vertente que dará resposta ao tema da organização anarquista é a corrente herdeira da “Plataforma”, desenvolvida pelo grupo de ucranianos Dielo Truda, logo após a experiência da Revolução Russa e ao fracassado intento libertário na Ucrânia, sanguinariamente reprimido pelos bolcheviques. Suas teses sobre a organização anarquista desenvolveram-se com base em uma profunda crítica da situação de organização do anarquismo e da debilidade teórica com a qual se contentava um movimento em que valia praticamente tudo, contanto que fosse chamado de “anarquista”, e que, muitas vezes, era vazio de qualquer conteúdo. Com base nesta crítica, propõem que a unidade dos anarquistas não poderia surgir de uma simples aglutinação de individualidades e grupos em torno de um denominador comum (“anarquis-

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ta”), mas de uma unidade ideológica e tática, fruto de profundas reflexões e discussões, feitas no calor da experiência prática, dos métodos e das idéias. A organização deveria ter coesão a partir de dois eixos principais: a responsabilidade coletiva e o federalismo. É este aporte que consideramos proporcionar uma resposta real ao tema da organização revolucionária anarquista. Acreditamos ser necessário destacar que, na América Latina, especificamente no Uruguai, constituiu-se, em 1956, a Federação Anarquista Uruguaia (FAU) que, levando em conta a necessidade de dotar os anarquistas de uma organização político-revolucionária, que fosse além da propaganda e que pudesse dar conta tanto da ação reivindicativa como da ação revolucionária, desenvolveu teses semelhantes às contidas na “Plataforma”. O que dá maior riqueza a essa experiência é o fato de ela ser proveniente, sobretudo, de uma análise (fundamentada na prática) da realidade latino-americana. Analisei as teses da “Plataforma”, de maneira mais detalhada, na revista Hombre y Sociedad nº 10. Por ora, tratarei propriamente da organização revolucionária anarquista; creio que só começando um debate e um esclarecimento de posições a respeito do tema, poderemos afirmar de maneira clara a posição dos anarquistas em relação à organização, afastando, assim, definitivamente, os fantasmas do espontaneísmo e da ação inorgânica.

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PROLETARIADO E MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO Existe somente um movimento revolucionário: o movimento do proletariado enquanto classe contra o sistema capitalista. É o proletariado que representa, por sua própria condição objetiva, a potencialidade revolucionária para negar o capitalismo. Nas palavras de Albert Meltzer: “só uma classe produtiva pode ser libertária por natureza, já que não necessita da exploração”.1 Entretanto, o proletariado está longe de constituir um bloco homogêneo e, para dizer a verdade, em termos subjetivos ele apresenta uma fragmentação “objetiva” inegável; isto, sem falar da penetração da ideologia burguesa em nossa classe. Desta forma, comprovamos que no seio do proletariado – explorados e oprimidos – existem distintas sensibilidades, distintos níveis de consciência e de profundidade na compreensão da questão social. Estas diferenças no plano subjetivo podem ter ligação com certas condições objetivas (diferenças entre trabalhadores mais intelectualizados e trabalhadores manuais) e também ideológicas. Mas o fundamental é compreender o fato de que ainda que o proletariado apresente, grosso modo, diversas características que objetivamente o constituem em classe (o trabalho assalariado, o fato de não serem proprietários dos meios de produção, etc.), subjetivamente há uma notável heterogeneidade, distintos níveis de consciência e distintas formas de se pensar dentro da sociedade.

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Este heterogeneidade subjetiva cristaliza-se nos programas históricos dos diversos setores da classe organizados politicamente.2 Não é necessário esclarecer que estes programas aglutinam ao seu redor distintos setores da classe, pelas razões já expostas; portanto, necessariamente, estes programas devem ser estabelecidos de forma organizativa. O anarquismo representa o programa que reúne em torno de si um setor, um movimento histórico dentro da própria classe, que se identifica com os aspectos fundamentais da prática e do pensamento libertários. É neste sentido que, assim como Malatesta, afirmamos que o anarquismo deve construir-se em partido revolucionário; ou seja, deve ser capaz de agrupar em uma organização determinada um segmento da classe, que se identifique com os pressupostos centrais do programa anarquista em seu sentido amplo (sociedade sem classes e sem Estado, autogestionária, federalista, etc.). Por partido revolucionário não queremos dizer nem uma organização hierárquica nem uma organização que participe do sistema democrático burguês pelo jogo eleitoral. O que pretendemos é criar uma organização que nos agrupe, não por nossa exclusiva afinidade em termos pessoais (como é o caso do coletivo ou do grupo de afinidade), nem por nossa posição de classe (como o sindicato) ou pelo pertencimento a algum grupo social determinado (clubes de mães, comitês de desempregados ou qualquer outra organização de massas do gênero). Referimos-nos a uma organização com sólidas bases classistas, mas que nos agrupe em função deste programa anarquista, ou seja, uma organização política revolucionária.

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Ainda que muitos dos clássicos tenham tratado do partido anarquista – e que muitos os tenham organizado, de fato – hoje esta palavra, por toda uma história política que não vale a pena resgatar, caiu em descrédito; sua utilização leva a equívocos, ao ser colocada para o público em geral, em função dos conceitos reduzidos de partido vulgarmente utilizados. No entanto, é necessário, para uma discussão política mais ampla, o rigor terminológico, e os anarquistas devem prestar atenção para não cair no “tabu das palavras proibidas” e atentar sempre para o conteúdo do que está em discussão.

A ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA E SEU CONTEÚDO CLASSISTA Devemos deixar claro que o enraizamento de uma determinada organização em uma dada classe social está dado pela sua própria origem e pelos objetivos que almeja, assim como pelo público a que dirige fundamentalmente seu discurso. Cabe assinalar que a relação entre classe e organização é determinada pela origem do programa, pelo meio em que se desenvolve e pelos objetivos que busca. A teoria anarquista – e, portanto, a organização revolucionária fundamentada em seu programa – não é uma teoria externa ao proletariado; esta se desenvolveu como uma força viva e orgânica nas primeiras associações de classe, em suas primeiras experiências de luta, caracterizando o anarquismo como uma prática real de combate,

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como uma interpretação dos desejos e aspirações da classe diante de um sistema de opressão, e ao mesmo tempo como uma crítica à institucionalidade burguesa e estatal. Estas origens do anarquismo, arraigadas na própria luta de classes, foram interpretadas e sistematizadas pelos clássicos do anarquismo, principalmente por Bakunin e Kropotkin. O anarquismo não nasceu como fruto de “profundos” estudos das ciências sociais; ainda que os clássicos tenham utilizado os progressos nas ciências sociais do século XIX, colocando-os a serviço deste movimento que se desenvolvia no segmento mais lúcido do proletariado. É por este trabalho que devemos tanto aos clássicos, que deram forma e coerência a essa teoria que crescia no calor das greves e das insurreições, que se expressava instintiva e radicalmente na imprensa operária da época. Nas palavras do próprio Kropotkin: “Como o socialismo em geral e como qualquer outro movimento social, o anarquismo nasceu do povo. E só conservará sua vitalidade e sua força criadora enquanto permanecer popular.”3 Podemos, então, dizer com propriedade que o anarquismo é fruto da experiência acumulada pelo proletariado na luta de classes. O anarquismo também desenvolve seu classismo na medida em que identifica, claramente, qual é o sujeito principal a quem dirige sua atenção e seu discurso: a classe proletária. Não poderia ser de outra forma, já que este público é determinado, em grande medida, pela origem do anarquismo, assim como pelos objetivos estabelecidos em seu programa. Ademais, como já expusemos, é pela clara compreensão de que as contradições sociais que

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tanto atacamos não existem por si só, mas se encontram concretamente expressas nas classes. Assim, a potencialidade revolucionária fundamenta-se na classe produtiva, na classe que não necessita explorar nem oprimir para existir enquanto tal. Na classe explorada e pisoteada. Por ela estar acorrentada, é a única que pode destruir estas correntes. Não se trata de ser mecanicista e supor que todo membro do proletariado é claramente consciente da necessidade da revolução; no geral, este setor não está isento da ideologização da burguesia e pode, de fato, possuir valores profundamente reacionários e conservadores. Tratase da existência de um potencial, que se vincula sensivelmente às condições objetivas de sua existência – que em determinadas circunstâncias impulsiona o despertar da consciência de classe4 – e ao fato de não ter privilégios a defender em relação à burguesia. Seus poucos privilégios nunca estão seguros e sempre podem ser perdidos em tempos de crise. Do mesmo modo, é necessário esclarecer que falamos do proletariado como classe, e não do trabalhador como sujeito. É óbvio que o sujeito trabalhador assalariado está contido na classe, mas a classe em si abarca um número muito maior de sujeitos, que são todos aqueles que, em maior ou menor medida, dependem do trabalho assalariado (seja o estudante que se locomove com os parcos recursos de seus pais, a dona de casa, o aposentado que recebe parte do que lhe roubaram em anos de trabalho, o desempregado que consegue algo por favor ou de algum parente, etc.), e que no final das contas também têm seu

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papel no aparato produtivo, seja desvalorizando a mão de obra, como no caso do desempregado, contribuindo com a reprodução da força de trabalho, como no caso da dona de casa, ou sendo a reserva do futuro investimento de mão de obra, como no caso do estudante. Ainda que a classe para a qual o anarquismo direciona seu discurso seja o proletariado, há, certamente, indivíduos provenientes de uma condição social mais abastada que abraçam esta doutrina. O genial pai do anarquismo, o russo Mikhail Bakunin, é claro ao referir-se à constituição do movimento revolucionário, situando de maneira correta o aporte destes setores. Referindo-se à progressiva aceitação das idéias socialistas e revolucionárias pela pequena-burguesia européia, que presenciava a piora na sua condição de vida dia após dia, em razão da concentração do capital nas mãos dos monopólios, ele afirmava: “Mas não devemos nos iludir: a iniciativa do novo desenvolvimento não pertencerá a ela [a pequena-burguesia], mas ao povo, ao Ocidente, aos operários das fábricas e das cidades; entre nós, na Rússia, na Polônia, e na maioria dos países eslavos, aos camponeses. A pequena-burguesia tornou-se muito medrosa, muito tímida, muito cética para tomar, ela mesma, uma iniciativa qualquer; ela se deixará arrastar, mas não arrastará ninguém, pois ao mesmo tempo que é pobre de idéias, falta-lhe a fé e a paixão. Esta paixão que quebra os obstáculos e que cria novos mundos encontra-se exclusiva-

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mente no povo. Desta forma, caberá ao povo, sem contestação nenhuma, a iniciativa do novo movimento.”5 Em outros de seus escritos podemos encontrar a mesma lucidez ao abordar as camadas médias, da pequenaburguesia e de indivíduos de classes mais abastadas no movimento revolucionário: “[...] concluo que se um homem nascido e criado no ambiente burguês deseja tornar-se sincera e profundamente amigo e irmão dos trabalhadores, ele deve renunciar a todas as condições de sua existência passada e superar todos os seus hábitos burgueses. Ele deve romper com as suas relações de sentimento com o mundo burguês, com a sua vaidade e sua ambição. Ele deve virar as costas a isso e tornar-se seu inimigo; proclamar-lhe guerra irreconciliável; e lançar-se sinceramente no mundo e na causa dos trabalhadores.”6 “[...] os socialistas revolucionários, inimigos de toda combinação e toda aliança equívocas, pensam, ao contrário, que eles só poderão alcançar esse objetivo [a libertação] pelo desenvolvimento e pela organização [...] das massas operárias tanto das cidades como do campo, inclusive todos os homens de boa vontade das classes superiores que, rompendo com todo o seu passado, desejarão francamente associar-se a eles e aceitar integralmente seu programa.”7

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Fica claro que estes indivíduos devem adotar o programa revolucionário anarquista e colocar suas posições de classe em favor da materialização político-revolucionária do movimento operário. Isto, em relação aos elementos provenientes da burguesia, fica claro por seu próprio antagonismo; em relação aos elementos provenientes das classes médias, isso se deve à falta de um projeto próprio de classe. Em virtude disto, a classe média ou se deixa arrastar pelo proletariado, ou pela burguesia (como afirma Bakunin em relação à pequena-burguesia). Não tem autonomia, precisamente por sua própria condição intermediária. É um erro, portanto, acreditar que seja possível ganhar as classes médias para nossa causa suavizando o discurso e a prática. Pelo contrário, é necessário demonstrar clareza e decisão, força com a qual conseguiremos este setor da população para nosso lado. Agora, é necessário esclarecer a relação do conteúdo classista do anarquismo e seu objetivo social, em outras palavras, do objetivo finalista de seu programa. Qualquer programa político tem seus fins condicionados à classe a qual se dirige e pela classe que lhe serve de ambiente de gestação. Portanto, é evidente que os programas elaborados pelos patrões jamais terão como objetivo a melhoria das condições da classe trabalhadora (se isto ocorrer relativamente – o que quase sempre acontece às custas de outros grupos de trabalhadores, como nas relações imperialistas – deve ser considerado um efeito colateral e, em nenhuma medida, como o objetivo final do programa), já que o objetivo que buscam é aumentar os lucros dos empresários. Um programa proletário deverá apontar,

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necessariamente, para a superação definitiva desta classe da condição de explorada e de oprimida. Qualquer programa que não tenha como finalidade a abolição das classes (e, com isso, não me refiro às fórmulas para uma “amenização” momentânea e instável delas, mas à supressão revolucionária das condições que as originam) não pode ser considerado um programa revolucionário do proletariado. Assim, temos os objetivos finalistas do programa anarquista: coletivização e autogestão dos meios de produção e distribuição, com a conseqüente abolição da propriedade privada destes; fim das vantagens relativas do trabalho intelectual sobre o manual, assim como, mediante a educação e o desenvolvimento dos conselhos técnicos de gestão, promover sua respectiva integração; buscar otimizar, sob controle operário, a produção e orientá-la em função das necessidades da população, para alcançar a abolição do trabalho assalariado e a satisfação plena dos indivíduos, em função de suas necessidades e interesses; reorganização do aparato político de baixo para cima, tendo por base a comuna livremente federada, que possibilite a plena participação de todos seus membros, o que equivale à abolição do Estado, como algo burocrático, vertical e que aliena o poder das massas. Os objetivos do programa anarquista têm por fim alcançar a libertação da classe proletária de seus grilhões, que impedem sua liberdade e sua igualdade; nesse sentido, ele se opõe aos programas da burguesia, cujo fim é a conservação de seus privilégios – seja em suas variantes mais radicais e neoliberais, ou em suas variantes de suposta ruptura, da social-democracia, as quais conservam as

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causas da exploração intactas, mas aplicam algumas reformas cosméticas aqui e ali, com um discurso de ajuda ao “honesto e sacrificado” pequeno empresário (que pode surgir graças à exploração impiedosa e sem nenhuma regulamentação dos seus sacrificados empregados, muitas vezes em posição mais desfavorável que seus companheiros de condição das empresas maiores). É necessário contestar a falácia semeada pela Democracia Cristã (DC) sobre ela ser um partido com um projeto das “classes médias”, falácia que é repetida hoje pela Concertação. As classes médias e a pequena-burguesia, como já vimos, não podem ter um projeto autônomo. Devido à instabilidade a que o capitalismo as submete, com a ameaça constante da proletarização, que as condena a uma espécie de purgatório, em que oscilam freqüentemente entre o céu e o inferno, entre a burguesia e o proletariado. À pequena-burguesia não resta mais que duas alternativas: ou se soma ao proletariado e luta com ele contra o sistema, ou se soma à defesa da propriedade individual e seu estímulo, ou seja, passa definitivamente para o lado da burguesia. No geral, os discursos falaciosos que dizem representar a classe média não fazem mais do que defender o grande capital. Mas o fato de não assumilo explicitamente lhe vale, na prática, uma contradição permanente em suas bases cada vez mais diminuídas. Recordemos que na crise do sistema nos anos 1970, a DC divide-se em Esquerda Cristã (setores que optam pela revolução e pelo socialismo) e o que resta da DC se converte em direita.

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É necessário sempre levar em conta a natureza e a raiz classista dos programas para não cair em alianças equívocas, já que em toda aliança poli-classista, a corda arrebenta sempre do lado mais fraco: as alianças com setores supostamente “progressistas” da burguesia significou, historicamente, postergar os objetivos do proletariado, e se traduziram em uma nova forma de subordinação. É necessário compreender que o proletariado não pode continuar somando-se às posições de Frentes Populares com a burguesia nacional; o proletariado deve alcançar a maturidade suficiente para conseguir independência programática e não fazer mais que frentes de classe, nas quais seus interesses de classe sejam hegemônicos.

A ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA NÃO É CORREIA DE TRANSMISSÃO Das afirmações que fazemos em relação ao conteúdo classista da organização revolucionária, pode-se extrair a conclusão, errônea e daninha, de que ela não é mais do que uma simples correia de transmissão para qualquer inquietude ou posição no interior da classe. Isto seria cair em um tipo de populismo, no qual consideramos que nossa organização existe a margem do mundo popular e de que não temos um papel ativo e dinâmico no interior dele. Do mesmo modo, supõe-se que na classe não existem influências burguesas; as conclusões, as inquietudes ou os pensamentos que nela podemos encontrar, podem ser muitas vezes errôneos em conseqüência da influência

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burguesa ou da inexperiência, por imediatismo ou por qualquer outra razão. Fontenis nos dirá que tal posição é cair em uma nova forma de misticismo, supondo que o trabalhador possui todas as virtudes e nenhum defeito.8 Nós não somos populistas. A organização revolucionária anarquista não tem por que repetir mecanicamente qualquer idéia presente no seio da classe, pois ela representa, em seu próprio direito, as opiniões de um setor desta classe. E temos o dever de expressar nossa opinião no interior da classe e de participar ativamente da organização popular para enfrentar o capitalismo e lutar pelo novo mundo de liberdade que tanto almejamos. Porque estamos convencidos de que a organização do setor libertário do proletariado, que não pretende inserir nada de forma artificial na classe, mas pretende desenvolver as tendências libertárias que já estão presentes nela, é uma necessidade para o êxito do povo em suas lutas. A classe sem a organização revolucionária que agrupe as tendências libertárias em torno do programa anarquista, estará condenada ao espontaneísmo, às suas conseqüências equivocadas e casuais, ou a suportar novas formas de autoritarismo. Do mesmo modo, a organização, sem uma retroalimentação com a classe, estará condenada à redução em uma seita e à prática política alienada. Vemos que é necessária a existência desta relação, a qual, considerada em seus justos termos, só pode enriquecer nossas experiências de luta e assegurar uma melhor posição para a vitória. É necessário insistir na posição de Fontenis9, de que o objetivo desta interação com o povo deve ser conseguir

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que estas tendências libertárias que representamos desenvolvam-se até que sejam predominantes, e conseguir que nossa influência adquira o caráter mais amplo possível até que o povo e sua organização anarquista confundam-se em um só corpo.

A ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA NÃO É COMPOSTA DE ILUMINADOS Nós não só representamos um setor da classe, como minoria ativa em direito próprio, mas também não podemos, sob qualquer circunstância, acreditar que estamos fora do mundo popular e que somos iluminados – o que às vezes acontece com alguns de nossos companheiros que acreditam estar alheios aos defeitos da classe. Nós, longe de todo elitismo, temos os defeitos de nossa classe, mas também suas virtudes. E devemos trabalhar duramente e em estreita relação com o povo para ir forjando uma superação moral de nossos defeitos, nesta sã e necessária interação. A organização anarquista deve potencializar, a partir de seus militantes e deles para o resto do povo, o desenvolvimento de uma autêntica moral revolucionária, que potencialize os aspectos positivos e as virtudes do povo (as práticas solidárias, por exemplo) e combata seus defeitos (os vícios, por exemplo). Não se trata, portanto, de deixar esse assunto somente aos militantes em nível individual; a organização deve ser capaz de produzir a superação de seus militantes em todos os sentidos. Do mesmo

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modo, não se trata simplesmente de aceitar os defeitos do mundo popular e deixá-los intocados (o machismo, por exemplo). Trata-se de compreender que o processo de superação do mundo popular, indissociável de seu crescimento na luta, é um processo muito dinâmico e rico que nos envolve de maneira direta, já que não somos alheios a estes problemas, e devemos estar dispostos a compreender que só por meio do trabalho no meio popular – ombro a ombro, e não como extraterrestres que chegam do espaço com a verdade – sem sectarismo e sem rechaços preconcebidos, conseguiremos êxitos no combate aos defeitos populares.

PARA QUE SERVE A ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA? Como já afirmei em ocasiões anteriores, a principal função da organização revolucionária anarquista é agrupar, em torno de um programa libertário, diversos setores da classe, setores mais conscientes e com ímpeto revolucionário, no intuito de desenvolver as tendências libertárias no seio do povo. Por outro lado, a organização revolucionária é encarregada de manter viva e atualizada a experiência que o proletariado vai adquirindo ao longo de suas lutas, e deve ser capaz de traduzi-la em um plano prático. Nada pode ficar na improvisação, já que nossa história foi feita às custas de inúmeros sacrifícios e dores. A organização revolucionária deve ser capaz de extrair os aspectos positivos

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de nossos êxitos, assim como de avaliar as derrotas e extrair delas as lições da história. Somente assim nossas derrotas de ontem serão nossos futuros triunfos. A organização revolucionária deve ser um órgão de preparação para a revolução, em todos os sentidos; é este o caráter fundamental que deve distingui-la do restante dos partidos e das organizações funcionais do sistema. Aqueles que, por vício espontaneísta ou por dogmatismo, deixam de lado a necessidade de aprender com as nossas experiências e o trabalho preparatório da organização, deixando um terreno fértil à improvisação, atuam de forma irresponsável, já que, podendo poupar sofrimentos do povo, não se “previnem” de repetir erros passados ou de cair em práticas que, sabe-se facilmente, conduzirão ao fracasso. Nossos inimigos, a burguesia e o Estado, encontram-se sempre preparados para combater qualquer sinal de sublevação; diante de tais inimigos, devemos estar igualmente preparados e atentos. Dessa forma, o papel da organização revolucionária, nesse sentido, assim como em seu combate à simples improvisação, é fundamental. Outra utilidade da organização revolucionária é que ela permite manter um trabalho regular em meio ao povo. É importante dizer que a organização, ainda que seja, de fato, afetada pelos vaivens da militância e da atividade popular, é mais regular e pode ter mais continuidade que muitas organizações sociais que são, no geral, bastante dependentes da conjuntura. Assim, é possível manter latentes as condições que facilitam o ressurgimento das organizações sociais depois dos períodos de refluxo (como o que hoje vivemos). Do mesmo modo, ela representa

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um referencial para aqueles que começam a questionar o atual estado de coisas. Além disso, a organização revolucionária permite conectar as distintas realidades da luta em uma perspectiva global e unificadora. Todos sabemos que as realidades dos movimentos sindical, estudantil, comunitário, assim como a de distintos grupos de militância que possam surgir, não possuem sempre o mesmo ritmo, e nem funcionam de maneira harmoniosa. Cada um destes movimentos, com seus distintos graus de desenvolvimento, representa uma visão particular, sobre um campo limitado, de uma realidade social que lhes é transversal e que os une enquanto classe. Se nos perdermos em um destes únicos segmentos de classe (entendendo que onde há sujeitos de diferentes classes, como nos setores comunitários e estudantis, nos interessam fundamentalmente os setores proletários), não teremos uma visão total, unificadora, que é a única que pode nos orientar por uma linha correta. Generalizar a partir de uma situação particular pode nos levar a conclusões errôneas e a uma prática equivocada. As práticas equivocadas, muitas vezes, são aproveitadas pela burguesia para fragmentar a classe e para explorar as contradições secundárias em nosso interior, que fragmentam nossa unidade contra o inimigo comum (trabalhadores peruanos contra trabalhadores chilenos, homens contra mulheres etc.). Desta forma, nos submetem a um atomismo, que se produz graças à exaltação de nossas diferenças que terminam por se sobrepor aos nossos pontos de unidade. A organização revolucionária, precisamente por nos agrupar enquanto classe e não como

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sujeitos (e em torno de claros eixos políticos), permite que haja esse espaço de convergência dos distintos setores da classe, das diferentes realidades particulares em função de um único projeto que abarque as demandas e as análises de todos. Ela conecta as distintas realidades dentro da classe, agrupando-as em uma corrente coerente, com a qual se torna possível a formulação de um programa estruturado que responda às necessidades da classe de forma global. Além disso, ela serve como uma escola, na qual aprendemos uns com os outros, a partir de nossas distintas experiências. Essa questão relaciona-se a outro ponto de grande importância para a organização revolucionária: é que ela permite superar o imediatismo das lutas. Faz com que superemos o “aqui e agora”. Isto significa que ela enriquece nossa prática e nossa compreensão dos fenômenos à luz das experiências históricas e das experiências desenvolvidas em outros locais, que estão além dos lugares em que temos presença. É essencial afirmar a importância desta questão para o desenvolvimento de uma linha política correta. A organização revolucionária é, por excelência (não sendo qualquer outro espaço da mesma maneira), o ponto de convergência entre a teoria e a prática. Por sua unidade e coesão teórica, e também por levar adiante tarefas de caráter reivindicativo, de organização, de ruptura e de luta, é ela que permite, melhor do que qualquer outra instância, a aplicação de nossos postulados na realidade. Desde modo, conseguimos, operacionalmente, que nosso anarquismo, que nossa teoria revolucionária, sirva

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de fato, com resultados concretos e palpáveis, para a transformação social, para a transformação de nossa realidade de opressão. Trabalhamos para que ela seja, realmente, uma ferramenta de libertação. Por sua vez, é o contraste com a realidade que permite que nossa doutrina revolucionária se supere, que melhore seus postulados, que refine suas imprecisões, que supere seus erros. É nesta relação mútua entre teoria e prática que superamos a contradição entre se “afirmar” e “ser” anarquista. Além disso, a compreensão da organização anarquista como uma escola vai além do simples contato com pessoas provenientes das diversas experiências populares, o que, certamente, é de fundamental importância e muito enriquecedor para o conjunto da organização e seu programa. Ela também passa pela formação doutrinária e moral dos militantes. A organização é o espaço em que se deve exaltar e desenvolver, em solidariedade e em verdadeiras relações de fraternidade e companheirismo, as faculdades intelectuais e morais dos companheiros. É um espaço para potencializar as virtudes dos militantes e para superar seus vícios e defeitos. A organização é um espaço em que o processo de aprendizado nunca pode ser dado como finalizado; nela, todos têm algo a contribuir, algo a ensinar, e por sua vez, todos têm algo a aprender. Escrito em outubro de 2002, publicado em maio de 2003

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Notas: 1. A. Meltzer, “Anarchism: arguments for and against”. 2. Compreendendo “política” em um sentido mais amplo, como a participação nas questões sociais de forma organizada. 3. P. Kropotkin, “La Ciencia Moderna y el Anarquismo”. 4. Ou seja, a clara consciência de sua condição social objetiva, de seus interesses (portanto, membro desta condição social, desta classe) e os passos necessários para superar tal situação. 5. M. Bakunin, “Federalismo, Socialismo e Antiteologismo”. 6. Idem, “El Imperio Knuto-Germánico y la Revolución Social (Primera Entrega, 1871).” 7. Idem, “A Comuna de Paris e a Noção de Estado”. 8. George Fontenis, “Manifiesto Comunista Libertario”. 9. Ibidem.

* Tradução: Daniel Augusto de Almeida Alves. * Revisão/edição: Felipe Corrêa.

AMÉRICA LATINA PROBLEMAS E POSSIBILIDADES PARA O ANARQUISMO

Antes de tudo, em nome do Workers Solidarity Movement (WSM) da Irlanda, gostaria de agradecer o convite que nos foi feito para esta conferência e de dizer que valorizamos enormemente os esforços realizados pela comissão organizadora. Certamente, espaços de encontro e reflexão como este, para nós, são extremamente necessários para compartilhar experiências e pensar que tipo de movimento necessitamos para enfrentar os desafios que a luta nos impõe. O significado de um encontro como este adquire luzes novas ao ser realizado em um lugar como o México – país que no contexto latino-americano teve um vibrante movimento libertário por mais de um século e que hoje vê renovados ares libertários em um movimento popular que desafia o sistema, demonstrando grande heroísmo por parte das massas anônimas. Houve um trabalho de construção do mundo popular que não deixa de des-

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pertar simpatias em todo o mundo, e por isso, um encontro desta natureza adquire uma urgência e uma importância muito maior. Internacionalmente, atravessamos um momento de reajustes e crises dentro do sistema capitalista que se abriu francamente há aproximadamente uma década. Esta crise e este esgotamento expressam-se no movimento popular que ressurgiu na América Latina, que se vê favorecido por uma série de condições circunstanciais, como a queda dos mal-chamados “socialismos reais” e, conseqüentemente, o desgaste da esquerda tradicional; o esgotamento das possibilidades de abertura neoliberal impulsionada desde o fim dos anos 70 pelas classes dominantes como resposta à crise iniciada nos anos 60 e, em grande medida, a desintegração dos sujeitos tradicionais de luta, o que supôs a recomposição de sua forma original. Contudo, ainda que as circunstâncias mencionadas tenham tido um impacto ao facilitar uma revitalização do movimento libertário, é responsabilidade dos próprios anarquistas transformar este potencial em uma possibilidade real de transformação. E é precisamente essa a grande falha do movimento ácrata na atualidade, que não soube aproveitar completamente a potencialidade do novo despertar de lutas nas terras americanas. Desde a queda do muro de Berlim, o movimento contentou-se com uma atitude muito pouco autocrítica, em que não nos deixamos de assinalar o “fracasso do modelo soviético” sem ser capazes de reconhecer que o século XX também significou o fracasso do anarquismo em todas as suas tentativas revolucionárias. Assumir esta situação não significa igno-

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rar a potencialidade que tem o movimento – essa é a razão pela qual nos encontramos hoje reunidos – mas utilizar a crítica como uma ferramenta de superação revolucionária. Se o movimento não é capaz de superar seus próprios erros e se seguimos obstinados para trabalhar da mesma maneira de sempre, como se espera poder superar de maneira revolucionária o capitalismo? O estudo, acompanhado da prática, assume então uma dimensão crítica nas tarefas de libertação. Jamais deixarei de insistir neste ponto, pois, muito freqüentemente, encontramos uma falsa dicotomia entre os “práticos” e os “teóricos”. Quando a verdade é bem outra: não há prática revolucionária sem teoria revolucionária e não há teoria revolucionária sem prática revolucionária. Permitam-me indicar alguns dos problemas fundamentais que o nosso movimento enfrenta na luta pela libertação na nossa América: 1. O ressurgir do movimento popular com características libertárias gerou, de uma maneira ou outra, uma situação de espontaneísmo no movimento libertário. Uma situação semelhante de otimismo foi vivida diante da Revolução Russa de 1905; confiamos no puro instinto do movimento popular e acreditamos que o povo é “naturalmente” libertário. Ainda que as respostas de caráter libertário por parte do povo diante de situações de crise do sistema ou diante das necessidades da luta sejam uma realidade – mesmo com a ausência de um movimento anarquista propriamente dito – elas são respostas quase “naturais”. Também não é menos certo que no seio do

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povo também coexistam tendências autoritárias nada desprezíveis. E ao desprezar sua importância, permitimos a reconstituição do setor autoritário no campo popular, ou a legitimação do Estado e do capitalismo. Um caso muito claro (existem outros em toda a América Latina durante a década) é a situação da Argentina, onde o “Que se vayan todos” [Que saiam todos] passou rapidamente a “Se quedaron todos” [Ficaram todos], e tanto o capitalismo como o abatido Estado puderam recompor-se da crise de maneira relativamente fácil, enquanto a esquerda libertária não foi capaz de criar uma alternativa estratégica. O nível de consenso social por parte do próprio povo que formou as assembléias espontaneamente em torno das figuras burguesas da recomposição, como Kirchner, é assustador – incluindo direitistas como Macri, que ganharam muitíssimo espaço. Não podemos confiar muito nos impulsos libertários espontâneos, considerando-os “suficientes”: é necessário um argumento político claro, programático, para além da conjuntura. Devemos compreender que o papel político dos anarquistas é insubstituível e se nós não estivermos presentes para impulsionar nossas tarefas, ninguém fará isso por nós. 2. Do anterior, do caráter insubstituível do movimento anarquista, conduz à necessidade da organização política revolucionária dos libertários, na qual é possível discutir uma análise coletiva da problemática da construção do poder popular. Tal organização necessita de premissas claras para cumprir seu papel – unidade teórica, unidade tática, disciplina, ação coletiva e democracia interna. Tais

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são as premissas que devem sustentar a organização, se se deseja que ela tenha a consistência mínima para lhe dar um sentido. O papel da organização anarquista está insuficientemente desenvolvido na grande maioria dos países latino-americanos, ainda que tenham havido esforços sérios de construção, principalmente na América do Sul. Não basta dizer que os anarquistas não são contra a organização: isto deve ser demonstrado na prática, e é na prática que está o nosso mais sério problema. Os meros coletivos ou grupos conjunturais não bastam: eles não servem para acumular experiência para além da experiência que pessoalmente podem acumular aqueles que fizeram parte deles, nem têm capacidade de organizar ou canalizar forças a nível nacional, nível em que se dá a maioria das grandes lutas contra o poder burguês. É necessário superar personalismos, localismos e uma visão provinciana do anarquismo para assumir as amplas tarefas de regeneração que são necessárias nestes momentos. 3. Assim como há uma organização revolucionária, deve haver espaços de convergência com outros setores, pois estamos convencidos que os anarquistas não farão a revolução sozinhos. Há organizações sociais e populares nas quais também temos de realizar nosso trabalho e nas quais necessitaremos, com critério, convergir com setores da outra esquerda, assim como com pessoas distantes do anarquismo ou inclusive da política. A pergunta importante aqui é: como conquistar o máximo de influência? Pois ainda que muita gente nestas organizações talvez nunca se converta ao anarquismo, queremos que os métodos,

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os princípios e as políticas libertárias influenciem o desenvolvimento destes movimentos. Aí entra em jogo a questão da organização política revolucionária como o instrumento para chegar nestas instâncias com políticas coerentes e coletivamente discutidas. Às vezes, entre a organização política e a organização social, haverá espaços intermediários de organização, os chamados espaços político-sociais, que podem ser correntes ou frentes. Por exemplo: pode haver uma, duas ou três organizações políticas anarquistas, que diferem em certas políticas gerais sobre a sociedade. Mas podem ter uma linha sindical coletiva: então, formarão uma frente sindical. E a linha coletiva dessa frente será aplicada em diversas federações sindicais. Este modelo de organização e de inserção social nos proporciona ótimos níveis de unidade na ação. A unidade, que sempre deve ser produzida pela base e na luta, deve ser buscada sempre que for possível e proveitosa. Com uma política clara e discutida de organização para os três níveis diferentes em que ela atua, podemos voltar a desenvolver um anarquismo do povo para o povo, e romper com as lógicas do grupo alienado que faz política para si mesmo de maneira completamente egocêntrica e sem reparar no que ocorre ao redor. 4. Muitas vezes o anarquismo foi reduzido a uma espécie de “receita” de organização. Pensa-se freqüentemente que a única contribuição que os anarquistas devem ter no movimento popular é em termos de organização: assembléias, delegados revogáveis, democracia direta, autonomia do Estado e de partidos, etc. Mas o anarquismo não

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é somente uma proposta orgânica, de democratização a partir da base, mas é também conteúdo. O anarquismo tem uma grande contribuição em termos de um programa revolucionário, de propostas concretas sobre o quê buscamos e não somente sobre como iremos buscar. Este programa deve ser debatido, discutido e impulsionado por todos os anarquistas organizados em seus distintos espaços de base. Não basta organizar assembléias populares se elas carecem de um projeto social que vá mais além. Precisamos ser mais do que tática e nos converter em estratégia. O anarquismo requer um programa, um projeto de sociedade, não somente para o glorioso dia da revolução, mas também para o aqui e agora. Precisamos desenvolver uma alternativa que se transforme em um pólo de atração para aqueles que queiram ver uma transformação em sua vida, não para daqui a um século, mas para agora. Devemos entender a transformação que podemos realizar em curto, médio e longo prazo como uma unidade programática. Falta dizer que este processo de discussão e elaboração requer, necessariamente, uma organização sólida, permanente no tempo e ativa na luta. 5. Tal programa revolucionário, tal projeto social, não pode ser uma cópia de outros programas revolucionários. Este deve responder às necessidades locais, ao conhecimento dos problemas nacionais e regionais, às tradições de luta locais. Nosso anarquismo deve ser isso: o encontro original de uma tradição de luta internacional, universal, válida onde quer que esteja, com um espaço local e concreto onde ele seja levado à prática. Somente assim pode-

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mos desenvolver um internacionalismo real, autêntico, de todas as raças, que se nutra da experiência de luta em todas as partes e que por isso mesmo, seja uma ferramenta de transformação mais eficaz. Podemos nos inspirar e extrair linhas e teses centrais da teoria clássica, das experiências estrangeiras ou históricas; mas elas não substituem o imperativo da reflexão própria. 6. É necessário, além disso, conhecer as profundas dificuldades que enfrentará um processo revolucionário de qualquer tipo na América Latina. Muitas vezes, as maiores dificuldades da revolução acontecem quando a burguesia foi derrotada. O anarquismo, então, deve assumir todas as complexidades de uma alternativa construtiva. Terá que estudar as dificuldades enfrentadas por outros processos revolucionários no passado, seja na Nicarágua, na Bolívia, nos movimentos revolucionários desde o Rio Bravo até a Terra do Fogo. Não bastam as teses de Kropotkin de recorrer à abundância, já que, para ele, o comunismo seria aplicável imediatamente após a revolução. Como vamos enfrentar o isolamento inicial? O embargo? Como vamos reconstruir uma economia em ruínas? Supondo que não herdamos um país em ruínas, como faremos funcionar a sociedade de maneira coletiva? Como nos relacionaremos com o mundo exterior? Nada disto pode ser deixado para o improviso, pois quando improvisamos, é quando o peso do costume se faz sentir. Sem um programa construtivo alternativo, as pessoas tenderão a recorrer, muitas vezes, à única maneira (capitalista) que conhece de fazer as coisas.

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O anarquismo possui ferramentas de análise e propostas que devemos discutir e debater de antemão, a fim de evitar as improvisações e todos os riscos que isto implica. Devemos estar conscientes de que, como a realidade nem sempre é previsível, certos níveis de improvisação são necessários. Isto requer, portanto, um programa com flexibilidade. Pois ainda que da teoria geral possamos extrair algumas respostas certas, estou convencido de que a revolução social na Irlanda será diferente da do Chile, e esta será diferente da do Japão, ainda que as teses fundamentais e o espírito sejam idênticos. Portanto devemos entender a teoria como um guia para a resolução prática das realidades específicas a enfrentar. Poucas vezes colocamos suficiente ênfase nestes problemas construtivos e como dissemos é esta fase, precisamente, que apresenta o maior desafio para o movimento revolucionário. Esses são alguns dos problemas. Sem dúvida, alguns companheiros identificarão outros que não apontei ou encontrarão outros novos no caminho da luta. A troca de informação e a prática da organização são os mecanismos para começar a elucidar muitas destas questões. Cabe indicar que não há respostas fáceis para nenhuma destas questões, mas é necessário começarmos a pensar seriamente em todas estas questões visando a transformação. A questão da organização assume, portanto, uma prioridade fundamental, não por meras considerações teóricas ou por uma obsessão fetichista com ela, mas porque é este o espaço em que se compartilham diretamente e se armazenam estas experiências. E é essa experiência acumu-

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lada que garante, da melhor maneira, a superação prática das concepções e práticas errôneas. É certo que o fato de existir a organização política revolucionária não garante que nos transformemos em uma alternativa; mas também é certo que sem a organização, a alternativa jamais terá a possibilidade de concretizar-se. Depende de nós o papel que o pensamento e as práticas libertárias terão nos eventos de transformação que começam a sacudir a América Latina. Agradeço a atenção dada pelos camaradas e saúdo novamente a Comissão Organizadora desejando-lhes êxito nos objetivos que foram colocados para este encontro.

* Este documento foi elaborado por ocasião do Encontro Anarquista da Cidade do México e foi apresentado em 7 de julho de 2007. Ele tenta sintetizar alguns dos problemas que enfrenta o desenvolvimento de uma alternativa libertária para as lutas populares na América Latina, sobretudo aspectos em que estamos debilitados e que devem ser aprofundados.

* Tradução: Eliane Neves. * Revisão: Felipe Corrêa.

PROBLEMAS COLOCADOS PELA LUTA DE CLASSES CONCRETA E PELA ORGANIZAÇÃO POPULAR REFLEXÕES A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA ANARCO-COMUNISTA

Nos momentos em que os anarquistas começam a discutir as perspectivas da atividade anarquista de médio prazo, evidencia-se melhor a conexão que existe entre tática e estratégia, ou seja, entre aquilo que consideramos nosso objetivo, a sociedade libertária, e os meios pelos quais buscamos alcançá-la. Levando em conta que o anarquismo tradicional tendeu a rechaçar de maneira contundente a distinção artificial entre “fins” e “meios”, é surpreendente a enorme desvinculação entre uns e outros que freqüentemente se apresenta na prática anarquista. Isso se deve, em grande medida, à falta de planejamento estratégico, que deveria criar a ponte para unir aquele “distante futuro” e as questões que surgem no dia-a-dia.

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Na realidade, é verdade que, muitas vezes, não há grandes diferenças em relação ao que devemos fazer no diaa-dia e aquilo que queremos para esse “futuro distante” (ainda que se encontre de tudo na “selva anarquista”), a não ser, claramente, as perspectivas de médio prazo, em que surge a maior parte dos desacordos. Isso acontece, porque é nesse ponto que se começa a tratar do problema de qual é a via revolucionária que temos de seguir para conseguir a derrubada da velha sociedade e o nascimento da nova. É somente quando tomamos posição em relação a certas perspectivas de médio prazo que as lutas tornamse uma realidade “revolucionária”. É assim que essas lutas começam a contribuir com um objetivo claro, que podemos tomar uma iniciativa política e que aquele distante futuro deixa de ser um sonho utópico para converter-se em um programa revolucionário. Sabemos que com as nossas lutas particulares precisamos conseguir mais do que um espaço nos noticiários ou alguns novos militantes. Sabemos, além disso, que precisamos criar certos mecanismos para verificar que, efetivamente, estamos indo para algum lugar. Isso supõe a criação de vínculos orgânicos de caráter permanente que, de uma maneira ou de outra, sobrevivam aos ciclos passageiros de revoltas, dando um sentido de continuidade a essas revoltas. Ao mesmo tempo, precisamos ter uma série de objetivos que nos direcionem, já que eles servirão de guia para nossas atividades e como mecanismo de avaliação para mensurar nossa efetividade. Em relação aos vínculos orgânicos entre as distintas lutas e os diferentes “capítulos” no desenvolvimento his-

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tórico da luta de classes, devemos, primeiro, analisar a natureza dos atores que lutam para saber como tratar, a partir de uma perspectiva libertária, o problema das diferentes organizações que existem na sociedade.

OS SUJEITOS POPULARES Antes de qualquer coisa – e claramente não há a necessidade de argumentar isso em detalhes para os anarquistas de tradição classista e revolucionária – a base da luta revolucionária é a contradição entre duas classes fundamentais: a classe trabalhadora e a burguesia. Como colocou o camarada Mac Giollamóir, na edição nº 86 de Workers Solidarity: “a classe trabalhadora é um dos pólos de uma relação social que define o capitalismo. Essa relação é a relação do empregador com o empregado. É a relação entre o capitalista, que compra a habilidade do trabalhador, que vive livremente, para o trabalho, e o trabalhador que deve entregar-lhe essa habilidade, a fim de, simplesmente, poder viver.” A classe trabalhadora é parte de uma relação dinâmica, dialética, e não um conjunto de personagens imutáveis. Suas principais características são: sua dependência do sistema salarial; sua condição subordinada na organização hierárquica do trabalho (na qual todos terminamos sem-

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pre tendo alguém sobre nós); sua condição de geradora de mais-valia, que é apropriada pelos capitalistas; e por conseguinte, o fato de ser explorada. Essa é a realidade que está por trás da sociedade (capitalista) moderna, e que lhe dá forma. É uma realidade, mas refere-se a uma relação – é a descrição de um processo – com um modelo teórico útil para compreender uma realidade que é muito mais complexa do que a visão esquemática desses dois pólos antagônicos. Se fosse assim, a revolução não nos traria qualquer problema. Se fosse somente uma questão de número, a classe dominante já teria sido expulsa do poder há muito tempo. Entre estes dois pólos existe uma ampla gama de intermediários e, além disso, o conflito de classes assume expressões concretas em sujeitos concretos. Quem são estes sujeitos? Essa é uma pergunta da maior importância para qualquer revolucionário, porque é a definição desses atores em luta que determinará, em grande medida, as táticas escolhidas. Podemos classificar estes sujeitos da luta segundo vários indicadores: 1. Seus problemas e interesses imediatos; 2. Sua tradição de luta e organização, que surge desse conjunto de problemas e interesses; 3. Um lugar ou atividade comum na sociedade. Ainda que esses sujeitos estejam passivos, seu potencial para converter-se em um gatilho da luta de classes pode existir, ainda que esteja hibernando.

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Além do mais, é necessário mencionar que esses sujeitos populares não necessariamente representam uma classe em si mesmos; tomemos, por exemplo, os sujeitos tradicionais: estudantes, trabalhadores urbanos, moradores de comunidades e camponeses. Somente os trabalhadores podem ser considerados como uma classe “pura”, enquanto em todos os outros sujeitos, há membros de diferentes classes e de todo tipo de escalas (pequena-burguesia, burguesia, a nebulosa classe média, elementos marginais e classe trabalhadora). A natureza classista dos sujeitos populares, em geral, demanda uma tendência classista, de raízes proletárias, que se expresse como força política, com capacidade de ganhar outros segmentos da sociedade para a causa revolucionária e para seu programa. Estes sujeitos, por sua vez, são categorias que não existem isoladas umas das outras. Os filhos do operário são estudantes, e todos moram em uma determinada comunidade. Mas sua identificação fundamental com um determinado sujeito popular intensifica-se na presença da luta e articula-se em função de uma tradição organizativa específica. Para citar um exemplo, no Chile, em 1983, surgiram manifestações massivas contra a ditadura de Pinochet; e, ainda que os chamados para a luta tenham vindo originalmente dos sindicatos mineiros, a debilidade relativa dos sindicatos em um contexto de semi-clandestinidade1 fez com que o principal foco de protesto fosse as comunidades populares – onde viviam os trabalhadores, mas onde também viviam outros setores sociais, como os pequenos lojistas, que freqüentemente se uniram aos protestos junto com os trabalhadores, com as

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contradições de classe que isso às vezes implicava.2 Mas a identidade dessas lutas constituiu-se em torno de certas organizações e de lutas localizadas em um espaço concreto – as comunidades, nesse caso. Quem lutava, fazia isso por meio de movimento comunitário. Mas muitos deles eram as mesmas pessoas que, dez anos antes, haviam articulado sua identidade em torno dos Cordões Industriais, durante o período da Unidade Popular (1970-1973). Isto reflete a natureza dinâmica dos sujeitos populares, assim como de sua identidade. A criação de tal identidade, ancorada em problemáticas, experiências, assim como em demandas comuns, é o solo onde a luta germina. Ela não germina em declarações teóricas vagas e abstratas sobre o conflito social, ou sobre demandas utópicas de transformação social. Uma vez definidos os sujeitos populares em dados momentos e espaços, podemos começar a pensar em demandas concretas de luta de médio prazo, no marco de um programa revolucionário de longa duração. É esse passo que nos permite recuperar a iniciativa política. Mas também podemos começar a pensar as formas de organizar esses setores de acordo com nossas próprias convicções que sustentam movimentos guiados pela base, antiautoritários e fundamentados na democracia direta. Ao menos, podemos ver como influenciar essas próprias organizações de maneira saudável e libertária. Mas neste ponto devemos ter muito cuidado para não confundir os diferentes espaços e tipos de organizações, se o que queremos gerar é unidade e não discórdia. O melhor exemplo de como não fazer as coisas, é o estilo tipicamente trots-

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kista que confunde os domínios do partido com os do movimento popular. Esta miopia política leva à retração e ao divisionismo no seio do movimento popular – o que é uma constante em todas as iniciativas que eles conseguem dominar – que se reduz e se divide até que seja impossível distinguir essa “frente de massas” da respectiva fração política que a tutela. O sectarismo é a única conseqüência lógica que decorre dessa prática, e isso debilita as forças populares. Os anarquistas não têm estado imunes a tendências semelhantes, particularmente no anarco-sindicalismo (ao menos, em suas versões contemporâneas mais sectárias). Ele vem, tradicionalmente, confundindo o que é uma “organização política” (ou partido) com o que é um “sindicato”. O resultado é que poucas vezes atuam como uma força propriamente política, sem nem mesmo atuar como uma força propriamente sindical. Isto tem feito com que, salvo algumas exceções, essa corrente tenha tido um breve auge, mas que, rapidamente, tenha declinado em quase todas as partes. Devemos então explicar a que nos referimos quando falamos de organizar o povo para a luta, já que existe uma infinidade de tipos de organização, e devemos, como libertários, ter políticas específicas para cada um dos diferentes âmbitos de organização do povo.

TRÊS ÂMBITOS DE ORGANIZAÇÃO Levando em consideração aquilo que já foi mencionado (isto é, a natureza da classe trabalhadora e dos

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sujeitos populares como expressão concreta da luta de classes), podemos então entrar no assunto dos três âmbitos em que se organiza o povo e a maneira de construir um movimento de natureza libertária e revolucionária. Deve ser dito que não existem fórmulas mágicas para nenhum desses problemas, e que a descrição que faremos dos três âmbitos da organização do povo é, talvez, tão genérica e teórica como a definição abstrata e descontextualizada do proletariado. Existe um modelo teórico geral, mas ele se expressa de maneiras concretas e específicas também. Os âmbitos de organização estão determinados pelo cruzamento de um programa de ação e da natureza dos sujeitos populares, com aqueles que realizamos a luta. Antes de prosseguir, permitam-nos, primeiramente, esclarecer um dilema fundamental de qualquer movimento revolucionário: o reconhecimento de que só a unidade da classe trabalhadora pode derrotar a classe capitalista, mas que, ao mesmo tempo, a classe trabalhadora não é um bloco homogêneo – ela apresenta diferentes níveis de consciência de classe e política, diferentes opiniões, idéias e tendências, algumas mais inclinadas para o pólo libertário, e outras mais inclinadas para o pólo autoritário. Portanto, a unidade é necessária, mas uma unidade completa é impossível. Para isso, precisamos determinar os níveis de unidade que devemos alcançar nos diferentes âmbitos de organização.3 Não é possível dividir esta questão sobre a natureza de cada âmbito de organização e sobre sua definição em termos suficientemente precisos. Os diferentes âmbitos são:

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1. O âmbito das organizações sociais, populares e de massas – o âmbito social Este âmbito compõe-se daquelas organizações que agrupam um único sujeito popular de luta, independente de suas posições políticas (sindicatos, conselhos estudantis, organizações comunitárias, etc.). Nelas, a unidade deve ser tão ampla quanto possível, e devemos lutar contra todo sectarismo. A maneira de conseguir influenciar nelas é por meio da agitação em torno de demandas concretas, por meio de nossas práticas e da denúncia constante, em seu seio, das contradições sociais. É nesse tipo de organização que a unidade do mais amplo conjunto do povo é possível, e é esse o objetivo que essas organizações devem buscar. E ainda que não tenham uma natureza “política” (entendido não no sentido mais amplo do termo “política”, mas no sentido de que não se constituem a partir de um marco doutrinário e um dado programa social, reunindo gente de espectros diversos), essas organizações podem politizar-se no curso da luta e no natural curso da luta de classes. Sem importar o quão politizadas estão essas organizações, elas não podem jamais confundir-se com um grupo político ou com uma tendência. E devemos deixar sempre claro que nosso objetivo é que nossas idéias influenciem amplamente, mas que devemos evitar impor etiquetas ideológicas sobre essas organizações, e evitar os expurgos ideológicos – particularmente dos setores minoritários.

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2. O âmbito das tendências, redes, correntes ou frentes – o âmbito político-social Este âmbito representa um nível intermediário em que se aglutinam elementos de um sujeito popular específico, mas que têm em comum certas linhas políticas. Este último ponto marca a diferença mais sensível em relação ao âmbito social. Esta inclinação política não pode ser, em todo caso, tão definida como àquela requerida para o pertencimento a um partido ou grupo político. Certos militantes ou ativistas que compartilham uma mesma visão e que compartilham políticas em relação ao ponto específico que lhes une (seja a atividade sindical, estudantil ou comunitária), organizam-se para formar uma certa tendência no seio de um movimento ou organização maior. Um bom exemplo poderia ser a formação de uma tendência em uma organização sindical: seus integrantes podem estar em desacordo sobre várias questões políticas, podem ter diferentes perspectivas doutrinárias, mas estão de acordo, por exemplo, em desenvolver um sindicalismo classista e combativo, que se oponha ao pacto social. Não é necessário estar de acordo em tudo; seria um erro confundir esta confluência com um “casamento”, e isso colocaria em risco a realização das tarefas mais urgentes. Estas organizações seriam mais específicas, falando em termos políticos, do que o sindicato em questão; mas não se corresponderiam com uma força política homogênea. Outro bom exemplo são as experiências de construção de “frentes libertárias” na América do Sul – que agrupam estudantes, membros de comunidades e

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trabalhadores que compartilham uma posição libertária da política, naquilo que diz respeito às questões organizativas e aos métodos de luta, e que compartilham um conjunto específico de propostas referentes a seus problemas específicos no lugar de trabalho, de residência ou de estudo. Mas aqueles que compõem essas frentes podem estar em desacordo sobre muitas outras questões que não afetam a luta específica nem o trabalho cotidiano da organização da qual são membros e que, por isso, são irrelevantes para o nível de unidade requerido nestes espaços. 3. O âmbito da organização ou partido revolucionário – o âmbito político-revolucionário Este âmbito é o mais específico de todos, e compõese de pessoas provenientes de diversos setores populares (estudantes, trabalhadores, etc.), que compartilham uma orientação política e um programa (que em nosso caso é libertário e revolucionário). Por serem provenientes de diversos espaços sociais, é evidente que esse âmbito poderá referir-se, primordialmente, à transformação de toda a sociedade. A unidade, neste âmbito, é muito mais restrita, envolvendo níveis superiores de unidade tática e ideológica. A unidade não teria maior sentido diante da incapacidade de ter acordo em relação a um programa coletivo de intervenção na sociedade, pela própria heterogeneidade de seus componentes, o que impossibilitaria o trabalho em reivindicações mais cotidianas. Estes componentes heterogêneos somente se unem por questões

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transversais. Aqui se refletem mais claramente as posições sobre a luta de classes e sobre as diversas opções classistas assumidas pelas diferentes forças políticas, pois é o espaço transversal em que se evidencia a natureza policlassista dos sujeitos em função de um dado projeto. É necessário esclarecer que, da forma como concebemos este modelo, todos os âmbitos são autônomos em relação aos outros, na medida em que as decisões devem ser tomadas pelas bases de cada um desses âmbitos. Em nossa concepção libertária, não basta saber que organização faz o que, ou qual é sua natureza e seu alcance, mas também é necessário ressaltar que, a fim de que cada tipo de organização realize plenamente seu potencial e o potencial de seus membros, a democracia direta e a participação de base são requisitos fundamentais. Rechaçamos radicalmente o velho modelo leninista segundo o qual as organizações sociais são o “quintal” das organizações políticas, assim como também rechaçamos o extremo oposto, que converte as organizações políticas em meras correias de transmissão das organizações populares. Dito isto, é legítima a interação entre os diferentes âmbitos organizativos: assim como é legítimo que a organização política revolucionária agite seu programa e seus postulados no seio de todas as organizações populares em que tenha membros, com o objetivo de popularizar suas idéias e tratar de ganhar respaldo e influenciar de maneira saudável as massas. É também perfeitamente legítimo que a organização política revolucionária mostre-se permeável aos aportes realizados pelo movimento popular e por suas expressões sociais e político-sociais.

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Esta é uma breve passagem pelo problema dos sujeitos populares em luta, das classes e das organizações. O artigo não pretende ser mais do que um esqueleto para começar a discussão sobre nossas perspectivas de médio prazo, e sobre como solucionar os problemas que teremos adiante quando tratamos de definir uma rota revolucionária para nossa respectiva região no século XXI.

15 de Julho de 2005

Notas: 1. Os sindicatos eram permitidos, mas sua atividade estava fortemente restringida. 2. Recordo das assembléias comunitárias argentinas, em que eram particularmente evidentes as tensões e contradições expressas nas diversas aproximações políticas dos diversos participantes. Enquanto os setores de trabalhadores mostravam uma disposição mais radical, os pequenos lojistas locais, técnicos ou profissionais, mostravam, como tendência geral, muito mais cautela. 3. É mérito de Bakunin e da “Plataforma Organizativa para uma União Geral de Anarquistas”, oferecer alguns elementos bastante interessantes sobre estas questões.

* Tradução: Federação Anarquista Gaúcha. * Revisão/edição: Felipe Corrêa.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROGRAMA ANARQUISTA

Durante os últimos setenta anos, o anarquismo viuse reduzido em quase todo o mundo a uma expressão mínima, salvo notáveis exceções em que ainda conservou um certo peso, até o início da década de 1970 (o Uruguai é o caso mais notável na América do Sul), em que houve, com altos e baixos, uma certa continuidade, como no caso espanhol. Muitos fatores contribuíram com seu declínio e não vem ao caso, neste artigo, realizar uma avaliação dos fatores que contribuíram para isso. O certo é que, durante esta época, a maioria das expressões libertárias, muito minoritárias, viu-se limitada em seu raio de ação para a propaganda. De tal maneira, as grandes organizações de caráter libertário foram reduzindo-se até terminarem convertidas em grupos de afinidade ou coletivos, que mantinham, de uma ou outra maneira, a chama acesa, por meio de uma publicação ou alguma outra forma de divulgação.

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Foi nas últimas duas décadas que houve um novo despertar do interesse no anarquismo e que, novamente, os ensinamentos de Bakunin e as lições deixadas pelos antigos sindicalistas revolucionários encontraram um novo eco no movimento popular. O anarquismo, mais uma vez, encontrou-se com as massas. Os primeiros indícios deste renascer libertário deram-se nas jornadas do Maio de 68 na França, e durante toda a década de 1990. Depois da queda do Muro de Berlim e do colapso dos chamados “socialismos reais”, o campo foi novamente aberto para o movimento anarquista, que, por um lado, opunha-se enfaticamente à (velha) “Nova Ordem”, e por outro, proporcionava, principalmente à juventude, novas formas de organização, de luta e de canalização de sua rebeldia, formas estas que se distanciavam radicalmente das fórmulas do marxismo-leninismo clássico. Os novos movimentos populares desta década (particularmente desde a emergência do movimento zapatista em 1994) retomavam, em seu discurso e em suas práticas, muitos elementos que marcavam um claro rompimento com a esquerda que se desmoronava com o muro em Berlim, enquanto, algumas vezes, retomavam certos elementos da tradição libertária. A prática do próprio povo reivindicava o velho Bakunin. No ritmo destas transformações sociais e destas novas resistências, agrupamentos anarquistas floresceram por todo mundo, às vezes surgindo de alguma publicação, outras de um movimento mais amplo (como o zapatismo) e às vezes com a intenção definida de reconstruir o

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movimento anarquista. Contudo, os problemas que todos estes grupos enfrentaram foram notáveis: a falta de referências organizacionais foi um dos mais graves, já que as únicas referências conhecidas eram de caráter histórico e só podiam ser conhecidas nos livros de história ou pelos relatos de um ou outro militante da velha guarda que sobreviveu às transformações da segunda metade do século XX. Que o anarquismo é organização, como diziam todos os panfletos, ninguém discutia, porém, surgiam outras questões. Como se organizar? Que aspectos teria uma organização libertária? Como chegar a acordos sem cair nos modelos tradicionais dos agrupamentos de esquerda? Todas estas perguntas rodearam vários de nós, que tratamos então de levantar alternativas libertárias. Com a falta de referências fomos encontrando as respostas de maneira muito empírica, em parte pegando elementos daquilo que conhecíamos, em parte pegando elementos de alguns dos novos movimentos populares, em parte imaginando como as velhas organizações ácratas haviam chegado a acordos e, em grande parte, improvisando. Desta forma fomos crescendo, atraindo novo sangue para a causa libertária. Porém, as limitações começaram a aparecer de maneira clara, conformes as coisas começaram a andar. Notávamos que a maioria das organizações continuava reproduzindo o modelo dos grupos de propaganda. Estes grupos de propaganda tiveram um trabalho importante quando o anarquismo era um movimento minoritário, e é graças a eles que as idéias libertárias sobreviveram até nossos dias. Mas diante das exigências do

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presente e diante de um movimento que já havia crescido bastante para ainda conformar-se com as tarefas de propaganda, esta lógica de organização mostrava-se insuficiente. Muitos de nós tínhamos cada vez mais consciência da necessidade de dar o salto qualitativo dos grupos de propaganda para organizações de caráter político-revolucionário. Como dar este salto? Por muito tempo, acreditamos que iríamos encontrar a resposta para esta pergunta em certos formalismos: a organização como mera estrutura, o número de militantes ou a quantidade de áreas em que nossos militantes estavam inseridos. Na realidade, nada disso era o fundamental e, além disso, podíamos aspirar ser grupos de propaganda maiores ou menores, com secretariado nacional ou não, ou com áreas de propaganda mais ou menos diversificadas. No entanto, no fim das contas, continuávamos sendo grupos de propaganda. E com a limitação que isso representa para o desenvolvimento do movimento. Era necessário, então, ir para além dos formalismos: o salto dos grupos de propaganda para a sólida organização política revolucionária requer uma transformação política de fundo, que permita um crescimento em termos políticos e que permita a transformação do movimento libertário em um movimento de massas. Esta transformação é a tradução da prática e do pensamento libertário em um programa revolucionário concreto de ação. E é esta a fase atual em que muitos movimentos libertários a nível global encontram-se hoje, tratando de definir um projeto libertário para o presente e o futuro imediato.

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NOSSA POSIÇÃO NA TRADIÇÃO ANARQUISTA E A NECESSIDADE DO SALTO POLÍTICO Para abordar a questão do programa revolucionário, o que realizaremos com mais profundidade neste artigo, é necessário partir de preceitos políticos muito básicos, já que ainda que todas as expressões do movimento libertário tenham de dar este salto ao plano programático, isso é particularmente sensível para a tradição anarco-comunista da qual somos parte. O lugar exato que ocupamos na tradição anarquista é algo que devemos ter presente a todo momento. Ser parte da tradição anarco-comunista (que se desenvolve a partir da Plataforma) não é algo que deveríamos fazer sem pensar e nem algo que devemos transformar em um mero artigo de fé. Tal opção não é uma decisão simplesmente de capricho, nem foi escolhida por excessivo zelo ideológico. Tal opção expressa, sensivelmente, a vontade de construir um certo tipo de organização, a fim de contar com um certo tipo de ferramenta para transformar nossa realidade opressiva e exploradora em uma sociedade livre e justa. Com este propósito em mente, consideramos que o marco revolucionário e a aproximação organizacional colocados na Plataforma possuem elementos centrais de muito valor. Sem ser uma receita para seguir de maneira cega, seus elementos fundamentais são concretos e úteis, a julgar pela própria experiência que construímos internacionalmente, pelo estudo dos movimentos revolucionários que nos precederam e das causas de seu fracasso.

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O essencial da Plataforma é como construir uma organização que reúna os anarquistas de idéias afins em função de propostas e táticas concretas – ou seja, uma “organização política” em oposição àquilo que é um grupo puramente ideológico. Estando nesta tradição, é perfeitamente justo que nos perguntemos quantas de nossas organizações, deixando de lado qualquer tipo de pretensões, conseguiram realmente alcançar um nível de desenvolvimento próprio de uma organização política. No presente, a maioria destas agrupações são somente grupos de propaganda. A principal diferença entre uma organização política e um grupo de propaganda não é seu número de militantes e nem sequer o nível de militância, ou de inserção política de seus membros. A principal diferença é a simples resposta à pergunta: o que podemos oferecer ao povo? Enquanto os grupos de propaganda não podem mais do que oferecer uma visão política e ideológica e, no melhor dos casos, algumas palavras de ordem, a organização política revolucionária pode oferecer uma linha de ação, um programa, uma linha tática, uma estratégia, objetivos de curto, médio e longo prazo. A partir deste ponto de vista, deveríamos superar a limitação básica do anarco-sindicalismo ortodoxo em relação à organização anarquista, uma limitação que os seguidores da Plataforma combateram, mas da qual, hoje, freqüentemente não temos como escapar. Esta limitação é a crença de que o grupo anarquista é uma entidade puramente ideológica, alheia às pequenas lutas diárias, e imaculada em relação à luta por reformas. As reformas,

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em sua opinião, são tarefa dos sindicatos, das frentes políticas e sociais ou das organizações sociais. A partir da nossa concepção, rechaçamos completamente esta maneira de entender o papel das agrupações anarquistas, e é isso o que nos faz ser, antes de tudo, anarco-comunistas. O que significa defender a necessidade que os anarquistas que possuem afinidades em termos políticos unam-se, mas também que se organizem como tais para enfrentar as lutas cotidianas. Que desenvolvam suas propostas sociais, não somente em vista da pouco provável eventualidade de uma revolução que ninguém sabe quando será, mas para o presente. Depois de tudo, as revoluções não acontecem magicamente, mas são impulsionadas. Se não começarmos a transformar o presente, nunca chegaremos a conclusões satisfatórias no futuro. Na teoria todos estão de acordo com isso, mas o que ocorre na prática?

FAZENDO O ANARQUISMO RELEVANTE PARA TODOS A questão, então, nos é colocada de frente, sem possibilidade de evitá-la: podemos estar sinceramente satisfeitos com a propaganda? A propaganda, já admitimos, foi necessária para construir um movimento como o que temos hoje em dia. Mas não pode continuar sendo o foco exclusivo de nossos esforços atuais – a propaganda não pode determinar as necessidades da organização; são as

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necessidades da organização que devem determinar a propaganda. Podemos estar satisfeitos, com toda honestidade, indo de luta em luta divulgando nossos princípios? Nesta altura, deveríamos estabelecer algo mais para nós, deveríamos buscar uma linha de ação e de pensamento estratégico, que dê coerência à nossa participação (ou não participação) em uma ou outra luta. É hora de assumir responsavelmente a importância que nosso movimento conseguiu e deveríamos começar a nos comportar de acordo com esta circunstância. Hoje em dia, simplesmente não é suficiente fazer declarações sobre a sociedade que queremos nos próximos 500 anos ou depois da revolução. Entre as lutas que travamos hoje e a sociedade ideal do futuro que aspiramos existe um enorme abismo. Somos utópicos no pior sentido da palavra. Ou reformistas, na medida em que a luta pelas reformas não se liga (para além de nossos desejos) a uma estratégia revolucionária. Entre nosso utopismo e nosso reformismo é onde devemos encontrar o caminho para a política revolucionária, que unifique nossa participação nas lutas por reformas e transformações no presente, com aquelas grandes aspirações que nos inspiram. É hora de pensar que tipo de sociedade, de país, queremos nos próximos, digamos, cinco anos. Ou em qualquer espaço de tempo concreto. Esta é a grande pergunta que devemos nos fazer no momento, cuja resposta será de grande proveito para nosso movimento e para fazer nosso anarquismo relevante para o povo hoje. Não em

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teoria, mas na prática. O economista libertário Michael Albert, em uma fala em Dublin, fez um comentário certeiro afirmando que o povo em sua imensa maioria está de acordo conosco em nossa crítica aos vícios do capitalismo. Muitos, inclusive, estarão de acordo com aquilo que é almejado em uma sociedade anarquista, quando isso é explicado corretamente. Mas enquanto não formos uma alternativa prática, com propostas muito concretas e factíveis para o presente, que demonstrem que o projeto libertário é viável, não há muitas oportunidades para nosso movimento aumentar seu círculo de influência.

PARA QUE SERVE MILITAR EM UMA ORGANIZAÇÃO ANARQUISTA? Então, deveríamos nos perguntar o que nos impede de crescer como organização. Às vezes, pessoas próximas a nossos grupos colocam como razão para não se somarem à militância em nossas estruturas orgânicas, o fato de não verem motivo para estar em uma organização anarquista se podem participar de organizações sociais e fazer o mesmo – ou mais – nelas. Alguns outros dizem que os anarquistas, assim como boa parte da esquerda, passam todo o tempo correndo atrás do próprio rabo. É que sem um programa e uma estratégia, é fácil sermos levados à deriva pelos eventos, e ao terminar uma luta virarmos a página e começarmos de novo outro novo círculo. Precisamos deixar de dar voltas em círculos e começar a acumu-

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lar seriamente em nossas lutas, para um projeto concreto que tenha continuidade no tempo. Freqüentemente nos deparamos com companheiros excelentes, próximos, que militam conosco em espaços de luta ou organizações populares. Por que estes companheiros deveriam ser militantes anarquistas? Por que participar de um grupo que não lhes dá mais do que perspectivas que a luta nos espaços em que, de todo modo, já estão participando? O que um companheiro ganha, em termos políticos, ao unir-se a uma organização libertária? A organização anarquista tem de ser mais que um somatório de espaços ou frentes de luta se ela deseja ter algum sentido. A principal razão de ser de uma organização política libertária é a capacidade de desenvolver uma linha política que dê direção à ação coletiva, que lhe dê uma orientação para um conjunto maior do que um determinado setor social (por exemplo estudantes, trabalhadores, etc.) ou para o povo em uma determinada localidade. A organização é um espaço de convergência em que se acumula para um projeto de sociedade. Ser membros de uma organização anarco-comunista deveria representar uma diferença qualitativa para nossa atividade política em termos não somente de presença organizativa, mas também de direção política. Esta direção constitui-se nas bases de uma linha de intervenção concreta e explícita nos conflitos sociais. A pura fé no anarquismo, ainda que necessária, não basta: é necessário desenvolver um projeto político concreto. Não se pode, diante de cada uma das lutas, voltar a

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debater do zero, voltar a inventar a roda; é necessário ter políticas claras, fruto de um acúmulo de experiências, com uma linha de ação igualmente clara, que facilite a avaliação e a intervenção nos processos sociais à medida que se desenvolvam, tendo a capacidade de enfrentar a história. Esta linha de ação clara é de maior importância, já que o problema real não é se triunfamos ou fracassamos diante de uma luta específica, mas o que faremos para a continuidade da luta, independente de ganharmos ou perdermos. O problema é como esta ou aquela luta pode ser útil no processo de acúmulo de experiências, de ganho de confiança e de aumento de poder que pode ser utilizado nas lutas vindouras e na elaboração de um projeto social. A capacidade de ter esta linha de ação e um programa nascido desta experiência acumulada, que uniformize nossas propostas para enfrentar o presente com nossos objetivos de longo prazo, é o que faz a diferença em uma organização política revolucionária. Ninguém tem motivo para unir-se a uma organização anarquista para, por exemplo, fazer sindicalismo. Para isso basta unir-se a um sindicato. Da mesma forma, as idéias sobre o futuro podem ser muito interessantes, mas são insuficientes para a maioria das pessoas como um argumento para unir-se a uma iniciativa política. É necessária uma visão prática da possibilidade de transformação do conjunto da sociedade em médio prazo. Se sou uma esposa maltratada, se sou um imigrante, se sou um trabalhador mas estou desempregado, se detesto meu trabalho e todos os trabalhos que

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eu poderia conseguir, que diferença faz na minha vida ser um anarquista? Esta é a pergunta que deveríamos nos fazer para entender nosso anarquismo como uma força viva na sociedade e como projeto de transformação, ou seja, como programa revolucionário.

POR QUE UM PROGRAMA REVOLUCIONÁRIO? Já falamos muito da necessidade de uma visão estratégica, de concretizar nosso anarquismo, do programa revolucionário. Mas o que queremos dizer exatamente com tudo isso? Devemos especificar bem o que queremos dizer para não confundir o que nós, anarco-comunistas, entendemos por programa revolucionário, com o que entendem as correntes dogmáticas. Seu programa não é mais do que algo sem validade, escrito há cinco décadas e em nada modificado (como se o mundo não tivesse mudado desde então). Também não podemos confundir o programa com uma panacéia que magicamente vai superar todos os equívocos de nossa prática política. Um programa revolucionário é, em breves palavras, um conjunto de propostas muito precisas e concretas para avançar até transformações sociais profundas. Não é a teoria revolucionária, mas sim a aplicação desta teoria para compreender e transformar a sociedade concreta. Ele parte de uma análise da sociedade atual, estuda as condições atuais do terreno para a luta de classes, identifica os problemas mais urgentes e as condições para desenvolver um movimento; estuda potenciais aliados e

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inimigos; e propõe uma série de transformações, assim como um caminho para alcançá-las por meio da luta. Em todos estes momentos da elaboração do programa, a teoria serve de guia. A teoria, não entendida como dogma, mas como uma ferramenta para compreender melhor o mundo. Este programa nos orienta na ação e nos entrega propostas claras com as quais podemos converter o anarquismo de uma “linda idéia que é impraticável” em uma alternativa clara para o presente de opressão e exploração. Os programas revolucionários não devem ser considerados “tábuas de Moisés”, mas devem ser reavaliados, atualizados ou modificados constantemente. O programa deve conservar, a todo momento, sua relevância, sua atualidade, e sobretudo, deve ter um vínculo concreto por meio de uma prática coletiva e definida. Certamente, esta aproximação programática requer passar das palavras de ordem para as propostas; e requer passar da crítica da realidade ao estudo crítico da realidade. Se o anarquismo quer alcançar a maioridade como movimento político, não podemos nos contentar com fórmulas fáceis nem com a ausência de propostas que reina em nossos círculos. Em um artigo esclarecedor, o pensador libertário Camilo Berneri assinalava neste sentido o seguinte: “O inimigo está aí: é o Estado. Mas o Estado não é somente um organismo político, um instrumento de conservação das desigualdades sociais; é também um organismo administrativo. Como

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estrutura administrativa, o Estado não pode ser abolido. Ou seja, é possível desmontá-lo e remontá-lo, mas não negá-lo, porque isso paralisaria o ritmo de vida da nação, que pulsa nas artérias ferroviárias, nas veias telefônicas, etc. Federalismo! É uma palavra. É uma fórmula sem conteúdo positivo. O que nos oferecem os mestres? A premissa do federalismo: a concepção antiestatal, a concepção política e não a fundamentação técnica, o medo da centralização e não os projetos de descentralização. Aqui está, ao contrário, um tema de estudo: o Estado em seu funcionamento administrativo. Aqui está um tema de propaganda: a crítica sistemática do Estado como órgão administrativo centralizado e, portanto, incompetente e irresponsável. Cada dia a notícia de sucessos nos oferece assuntos para esta crítica: milhões desperdiçados em más especulações, em lentidões burocráticas; poeira nos ares por negligência dos gabinetes ‘competentes’; latrocínios em pequena e grande escalas, etc. Uma campanha sistemática deste tipo poderia atrair sobre nós a atenção de muitos que não se comoveriam, em absoluto, lendo Deus e o Estado. Onde encontrar os homens que podem alimentar regularmente esta campanha? Os homens existem. É necessário que eles dêem sinais de vida. É necessária uma mobilização! Profissionais, empregados, professores, estudantes, trabalhadores,

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todos vivem em contato com o Estado ou ao menos com as grandes empresas. Quase todos podem observar os danos da má administração: os desperdícios dos incompetentes, ou roubos dos preguiçosos, os empecilhos dos organismos mastodontes. [...] Devemos voltar ao federalismo! Não para deitar no divã da palavra dos mestres, mas para criar o federalismo renovado e fortalecido pelo esforço de todos os bons, de todos os capacitados.” Pagine Libertarie, Milão, 20 de novembro de 1922. Em suas palavras está clara a necessidade de superar o anarquismo discursivo, autocomplacente e começar a pensar com toda a seriedade nos problemas sociais em toda sua complexidade, sem simplificações e nem apriorismo teórico. Esta necessidade, transversal a todas as expressões do movimento libertário, explica porque é necessário dar o salto para o estabelecimento de programas revolucionários. Porém, o pensamento programático não serve somente como uma maneira de enfrentar com propostas construtivas os problemas sociais e para ampliar o círculo anarquista, mas, além disso, permite-nos acabar com duas características do movimento libertário: primeiro, com a política de satélite em torno do resto da esquerda, que nos converte em meros contraditores ou seguidores de outras alternativas, sem um desafio próprio e sem ser, por conseguinte, uma alternativa em direito próprio. Por outro lado, ele também

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nos ajuda a superar os desvios sectários, já que muitas vezes o sectarismo e a incapacidade de assumir corretamente uma política de alianças deve-se à falta de clareza dos próprios libertários em todos de seus próprios objetivos imediatos. O desenvolvimento de programas concretos, em conclusão, fortalece nossa presença nas lutas populares, com força própria à nossa bandeira.

POR ONDE COMEÇAR A DISCUSSÃO DO PROGRAMA? Voltamos, então, a repetir a pergunta: o que eu ganho ao unir-me a uma organização libertária? Não deveríamos responder esta pergunta de maneira assistencialista. Não há obras de caridade que possamos ou queiramos fazer. Certamente, unir-se a um grupo libertário não lhe permitirá ascensão e não há, muito menos, a remota possibilidade de tornar-se um político profissional. A resposta deveria surgir do quanto podemos transformar e mobilizar a sociedade em seu conjunto. Enquanto a direita e o centro apóiam-se, para atrair base de apoio, nos benefícios imediatos mas inconsistentes (a prática do clientelismo), nossa posição é que, para haver melhorias, é necessário lutar. Por este motivo, os benefícios imediatos são difíceis (com exceção da satisfação própria do apoio mútuo entre companheiros, da solidariedade e do sentimento de ganho de poder que vêm junto com a luta), mas as melhorias que conquistarmos, serão definitivamente mais consistentes.

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Portanto, somos organizações de luta. Mas se somos organizações de luta, a estratégia e a tática devem ser aplicadas. Devemos conhecer bem nossos objetivos de longo prazo e fazer com que nossas posições avancem, a fim de enfraquecer nosso inimigo de classe, fortalecendo assim nossa base de apoio (na classe trabalhadora) e dando os passos táticos concretos que nos aproximem de uma posição de rompimento com a (atual) velha ordem. Para começar uma batalha é necessário saber, exatamente e com precisão, a natureza e as características do campo de batalha. Devemos desenvolver análises políticas, econômicas e sociais, tanto em nível nacional como internacional. Descrever e identificar as principais tendências no desenvolvimento global do capitalismo. Esta análise deve ser atualizada regularmente. Uma vez conhecido o terreno em que se pisa, a tarefa seguinte é identificar os aliados em potencial; não tanto em nível teórico (algo que já deve estar definido), mas em termos muito concretos. Como está estruturada a classe trabalhadora hoje em dia? Que tipo de contradições internas ela apresenta? Onde está o potencial para a luta? Que conflitos se apresentam? Quem são os outros atores em luta? Uma vez que sabemos com quem podemos contar, devemos saber como atraí-los. Devemos começar, portanto, a discutir os assuntos mais urgentes do momento: saúde, moradia, educação, recursos naturais, relações trabalhistas, etc... Não de maneira abstrata, mas concreta. Em nosso país, hoje, ou no futuro imediato. Essas necessidades mais urgentes requerem uma visão de conjunto, a

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fim de dar respostas coerentes a problemas particulares, em relação aos quais tenhamos algo mais a oferecer do que palavras de ordem. Temos que discutir sobre o transporte, a distribuição, as estruturas democráticas de base, a troca, etc. Desta maneira, devemos traduzir o anarquismo, de uma “ideologia” para um sistema de propostas sociais, de alternativas de luta. Com esta aproximação, nos afastamos daquela visão milenar de revolução, como se ela fosse uma espécie de momento apocalíptico no qual podemos, então, e somente então, estabelecer magicamente nosso programa construtivo. A história nos ensina que as revoluções são resultado de um processo prolongado no tempo; não acontecem da noite para o dia, pois a ruptura crítica das classes em conflito pode ocorrer depois de um período relativamente grande de concessões, conquistas, tensões e disputas em torno de demandas sociais colocadas. Algo que pode parecer uma reforma irrelevante hoje tem como se converter na faísca que acenderá o fogo revolucionário. O dever dos revolucionários é impulsionar nosso programa na resistência e na construção, desde o presente, e não esperar aquele distante dia da revolução, em um distante amanhecer. Ao trabalhar desta maneira estamos, na realidade, fundamentando as bases práticas da sociedade em que queremos viver. Outubro-Novembro de 2006

* Tradução: Felipe Corrêa

SOBRE A POLÍTICA DE ALIANÇAS PROBLEMAS EM TORNO DA CONSTRUÇÃO DE UM PÓLO LIBERTÁRIO DE LUTA

Este artigo surge da necessidade de retomar certas discussões que ficaram esquecidas nos finais dos anos 90, em nosso esforço de construir uma alternativa anarcocomunista. Creio que, neste processo, deixamos muitas discussões pela metade, deixamos muitos argumentos não estabelecidos, o que hoje significa que, provavelmente, muitas das questões que acreditamos estarem superadas e absolutamente claras, talvez não estejam. Creio ser necessário, portanto, retomar algumas destas discussões que, por mais básicas que possam parecer, não são menos importantes. Na realidade, este mesmo artigo encontrou sua estrutura original na resposta a um de nossos “próximos”, em um debate a respeito da atitude que os libertários devem ter em relação à esquerda “autoritária”.

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Retomamos estas discussões, não com os mesmos argumentos que provavelmente utilizaríamos há uma década atrás, ainda que o espírito continue sendo o mesmo. Nestes dez anos, tivemos alguns avanços, talvez não tantos como gostaríamos, mas eles estão aí. Armados com nossos acertos e, sobretudo, com nossos equívocos e erros, retomamos estas discussões. Contudo, aprendemos e ganhamos experiência. Creio que o assunto das alianças em raras vezes recebe a devida atenção nos meios libertários. Como muitos outros aspectos ainda insuficientes em nosso movimento, as alianças são algo que ocorrem ou não ocorrem, deixando em raras vezes o registro do porquê foram tomadas certas decisões e não outras. Acontece que as gerações militantes mais novas se vêem forçadas a deixarem-se guiar por suas próprias intuições quando se trata desta questão. Isso aconteceu conosco, e com base nestas experiências, que foram boas e más, podemos tirar algumas conclusões. Por isso, considerei necessário escrever um pequeno documento sobre este tema. Porém, no decorrer da escrita, me dei conta que era impossível tratar da questão das alianças sem ao menos tratar três outros assuntos que interagem intimamente com ele: o problema do fortalecimento interno do movimento e seu programa revolucionário; o problema da hegemonia política no movimento popular em seu sentido mais amplo; e o problema da crítica e da autocrítica. Este breve documento, portanto, deve ser entendido como uma contribuição para a questão das táticas e estratégias do movimento, com ênfase no problema das alianças.

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AS ALIANÇAS E O PROGRAMA ANARQUISTA Um dos aspectos mais fracos do anarquismo, em geral, é quando se trata da questão das alianças políticas. Tendo a acreditar que uma política de alianças correta requer, primordialmente, uma visão programática sólida por parte do movimento anarquista. Um programa revolucionário não é somente uma acertada e incisiva crítica ao capitalismo e ao Estado; é, além disso, como esta crítica se aplica a uma situação histórica concreta e como ela se traduz em um conjunto construtivo de propostas para superar as contradições existentes que infestam uma determinada sociedade. A carência de tal programa e análise deixa o anarquismo como um ator frágil diante do curso dos eventos (como uma boa idéia, mas impossível de ser aplicada), uma vez que impede de nos convertermos em uma alternativa para conquistar o coração do povo em luta. Esta incapacidade de nos converter em uma alternativa em direito próprio, refletida na ausência do programa revolucionário, significa que terminamos definindo nossa política em função de “terceiros” – freqüentemente, os partidos mais numerosos da esquerda –, seja por proximidade ou rechaço.1 E esta debilidade é o que se encontra subjacente à nossa inepta política de alianças que, com freqüência, consiste em duas posturas maniqueístas: ou rechaçamos toda possibilidade de trabalho com outros grupos da esquerda ou nos convertemos em seus incondicionais seguidores.

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Sabemos que os anarquistas não farão a revolução sozinhos. E sabemos também que nossa teoria política nos distingue do resto do movimento revolucionário: não podemos esperar que outras correntes de esquerda, que com toda segurança estarão nas lutas e nos processos de transformação, pensem e atuem como anarquistas; afirmar isso faz com que a organização dos anarquistas, e a própria definição do anarquismo, sejam redundantes. Como já disse anteriormente2, o papel dos anarquistas no movimento revolucionário é insubstituível e se não impulsionarmos nosso programa, ninguém mais o fará – ainda que haja em determinadas ocasiões setores do movimento popular que se aproximem espontaneamente de nossas posições, ou que desenvolvam linhas políticas similares, o anarquismo tem uma responsabilidade como portador específico de uma série de experiências, conteúdos e reflexões que deve ser traduzida em um programa de ação concreto.

SECTARISMO Freqüentemente, os anarquistas estarão em meio a um movimento popular, revolucionário ou de luta, que em sua imensa maioria não almejará a destruição do Estado e que, ao contrário, almejará sua conquista. Freqüentemente estamos em meio a uma classe trabalhadora que muitas vezes não aspira mais que a mudança de governo como última solução à sua situação. Podemos, então, adotar duas posturas frente a esta questão: a primeira é

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assumir uma posição elitista e rechaçar todo contato com estes trabalhadores e com estes setores do movimento popular para não manchar nosso imaculado movimento. Isto, na realidade, não é uma posição política, senão algo de caráter quase religioso, que em lugar de favorecer a ação, no melhor dos casos, a paralisa em favor do resguardo da fé. E, no pior dos casos, transforma-se em um nocivo sectarismo. O sectarismo é a incapacidade de tolerar posições teóricas ou práticas diferentes das suas. O sectarismo caracteriza-se pela ignorância, tanto das idéias alheias, como de suas próprias 3, assim como pela nula intenção de se transformar a sociedade. Os sectários entendem a política como uma questão de identidade, de um grupelho, como uma torcida de um time de futebol e não como uma atividade transformadora da realidade. O sectarismo caracteriza-se pelo “estrabismo político”, ou seja, por sua incapacidade de reconhecer o inimigo político ou de classe. O sectarismo também se caracteriza pela “miopia política” que o impede de distinguir as diferenças que são essenciais daquelas que não são. Nos casos patológicos mais extremos, o sectarismo alimenta-se de um complexo de inferioridade, da obsessão e da fixação com o que os demais fazem ou dizem4, de uma arrogância complexada e da vaidade, e de uma atitude de plena amargura frente à existência. O sectário é incapaz de reconhecer os méritos alheios e carece de inteligência ou de critério para discernir, em uma discussão, com o que está de acordo ou do que diverge: sua atitude é de aceitação ou rechaço absolutos.

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O sectário carece de honestidade e sentido crítico para debater, e limita-se a denunciar e a cair em diálogos de surdos. No geral, a visão de mundo do sectário é tão rígida, tão inflexível, tão fanática, tão amarga, tão indesejável e pouco atrativa que acaba mais por espantar o povo do que por atraí-lo à causa revolucionária. Em certos círculos anarquistas, estupidamente, exalta-se o sectarismo como uma virtude, quase o convertendo em um “princípio fundamental” do anarquismo. Porém, o sectarismo é de espírito autoritário e nada tem de libertário. A respeito do sectarismo em relação a outros movimentos, nos diz Luigi Fabbri: “Aqueles partidos, que aspiram chegar ao poder, quando o conseguem, indubitavelmente, serão inimigos dos anarquistas, mas como isto está um tanto longe, como sua intenção pode ser boa e muitos dos males que pretendem eliminar nós também pretendemos, e como temos muitos inimigos comuns e, em comum, teremos, sem dúvidas, de nos livrar de mais de uma batalha, é inútil, quando não prejudicial, tratá-los violentamente, já que neste momento o que nos divide é uma diferença de opinião, e tratar violentamente alguém porque não pensa ou não trabalha como nós é uma prepotência, é um ato anti-social. (...) Certamente, muitas de suas doutrinas são errôneas, mas para demonstrar seus erros não são necessários insultos; alguns de seus métodos são nocivos à causa revolucionária, mas se trabalhar-

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mos diferentemente e se realizarmos a propaganda pelo exemplo e pela demonstração adequada, os ensinaremos que nossos métodos são melhores.”5 O sectarismo é daninho e prejudicial. Exemplos históricos nos são abundantes: no Chile, depois do golpe de Pinochet, a primeira reação do PC foi jogar a culpa do golpe nos “ultra-esquerdistas” (o MIR) a quem chegou a definir como “cavalos de Tróia do imperialismo”; certos maoístas apoiaram o golpe a Chávez em 2002 e hoje festejam entusiasmados as mobilizações da direita em Sucre e em toda a Bolívia, chegando a defini-las como mobilizações de massas e de esquerda; no Chile, vergonhosamente, alguns anarquistas, muito minoritários, aplaudiram o golpe de Pinochet que derrotou o “regime marxista”, enquanto seus companheiros mais conseqüentes eram perseguidos ou participavam da frágil resistência; outros anarquistas na Argentina apoiaram o golpe militar que derrubou Perón; e, mais recentemente, recordamos o 1º de Maio de 2003 no Chile, em que anarquistas e comunistas terminaram confrontando-se em um vergonhoso incidente, enquanto a polícia, com a confusão, aproveitava-se da situação. O movimento anarquista alemão, dividido entre as correntes de Joseph Peukert e Johann Most, durante o século XIX, viveu um dos episódios mais tristes da história de seu sectarismo, quando Peukert delatou Johann Neve à polícia, militante alemão que estava na clandestinidade e pertencia ao Freiheit, o grupo de Most, morrendo mais tarde nos cárceres prussianos.6 O sectarismo está repleto de histórias de delação

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em meio a sua cegueira fanática. É necessário recordar essa história de injúrias para se ter sempre presente a que leva o sectarismo. A segunda posição é assumir as diferenças e, apesar delas, decidir trabalhar com esses setores para a transformação social. Quem assume essa segunda posição deve, necessariamente, suscitar o problema do que é uma política de alianças correta. Pois, também, não podemos nos converter em aliados incondicionais de uma esquerda que se distancia muito de nosso pensamento, nem nos converter em fiéis seguidores das “massas”. Devemos ser capazes de confluir, onde se deve, com o conjunto do movimento revolucionário, mas como anarquistas. Sempre como anarquistas, sempre difundindo nosso programa e agitando nossas bandeiras, sempre conservando o direito a uma crítica madura e construtiva diante do desacordo. E também sempre tendo em mente que, como anarquistas, representamos um setor específico do povo, tanto como outros setores políticos também representam um setor e tendências no seio do povo. Sustentar que os anarquistas são o único setor legitimamente representante do povo é sinônimo de elitismo, e uma opinião que não deixa nada a desejar à teoria leninista do partido único. 7

HEGEMONIA NO SEIO DO POVO Outro problema, nesse caso, que está ligado ao problema das alianças, é, como conseguir gerar uma certa hegemonia libertária no movimento popular; como con-

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seguir que nosso pólo antiautoritário pese mais e determine majoritariamente o desenrolar dos eventos em relação ao pólo autoritário. Pois devemos recordar que o povo não é “libertário” e nem “autoritário” por natureza. Ambas as tendências existem igualmente no seio da classe trabalhadora, e têm encontrado sua expressão política mais ou menos difundida na esquerda jacobina e na esquerda libertária. Trabalhar o tema das alianças, portanto, sem prestar suficiente atenção ao problema da hegemonia no seio do povo, é realizar um trabalho incompleto, é iniciar bem uma tarefa sem saber como concluí-la.

NECESSIDADE DO PROGRAMA Como já dissemos anteriormente, toda essa questão vincula-se ao problema do programa, pois para poder estabelecer alianças nas quais sejamos um ator em direito próprio, devemos ser um ator fortalecido, com visão, com propostas, com tática e estratégia claras. Devemos articular muito bem nosso pensamento com os problemas atuais e com a saída que queremos. Isso é a alma de um programa revolucionário. Além disso, se queremos ser um fator de peso no movimento popular, para além do espectro de nossas alianças, também devemos aparecer bem armados de análises, de propostas e de um método e um estilo de trabalho social corretos. Para tudo isso, também, é necessário um programa e não somente palavras de ordem vagas ou teoria abstrata.

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É, então, a questão do programa que devemos ter resolvido, ao menos em termos amplos e gerais, antes de pensar nas alianças. Pois para saber com quem e como nos unir, transitória ou permanentemente, devemos saber para que queremos fazê-lo, e isso só é possível se soubermos, com toda certeza, o que queremos concretamente – disso também depende a influência que conseguiremos alcançar no movimento de massas: de nossa clareza política e do quão acertada é nossa política.

MENOS AUTOCOMPLACÊNCIA E MAIS AUTOCRÍTICA As debilidades internas do anarquismo são o principal “calcanhar de Aquiles” que deveríamos buscar superar se quisermos ser um ator de peso nas lutas sociais e assim desenvolver um programa político que possa aglutinar importantes setores do povo e dar golpes de alguma importância no sistema dominante. Exigimos menos autocomplacência e mais autocrítica. Isso foi expressado, eloqüentemente, pelos companheiros do Dielo Trouda, exveteranos da insurgência makhnovista na Ucrânia que, analisando o fracasso do anarquismo na Revolução Russa e o surgimento da ditadura leninista afirmaram: “Adquirimos o hábito de culpar a repressão estatal do Partido Bolchevique pelo fracasso do movimento anarquista na Rússia entre 1917 e 1919. Isso é um grave erro. A repressão bolche-

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vique dificultou a expansão do movimento anarquista durante a revolução, mas foi somente um dos obstáculos. Antes disso, foi a incapacidade interna do próprio movimento anarquista uma das principais causas deste fracasso, uma incapacidade emanada da imprecisão e da indecisão que caracterizaram suas principais afirmações políticas em relação à organização e às táticas. (Esperamos demonstrar e desenvolver esta afirmação em um estudo especial, comprovando com fatos e documentos). O anarquismo não tinha uma opinião firme e concreta sobre os principais problemas da revolução social, opiniões que eram necessárias para satisfazer as massas que faziam a revolução. Os anarquistas enalteciam a tomada das fábricas, mas não possuíam uma concepção precisa e homogênea sobre a nova produção e sua estrutura. Os anarquistas defendiam o princípio comunista: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, mas nunca se preocuparam em aplicar este princípio na realidade. Foi assim que permitiram que elementos suspeitos transformassem este grande princípio em uma caricatura do anarquismo (somente recordando como muitos escroques aproveitaram-se deste princípio para açambarcar bens coletivos em proveito próprio durante a revolução). Os anarquistas falavam muito da atividade revolucionária dos próprios trabalhadores, mas foram incapazes

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de indicar às massas, nem mesmo aproximadamente, as formas que tal atividade deveria assumir; demonstraram-se incapazes de regular as relações recíprocas entre as massas e seu centro ideológico. Incitavam as massas a livrar-se do jugo da autoridade, mas não indicavam como consolidar e defender os ganhos da revolução. Careciam de opiniões claras e de programas de ação precisos em relação a tantos outros problemas. Isso os afastou da atividade das massas e os condenou à impotência social e histórica. Nisso devemos ver a principal causa de seu fracasso na Revolução Russa. Nós, anarquistas russos que vivemos a prova da revolução em 1905 e 1917, não temos a menor dúvida a respeito disso. A obviedade da incapacidade interna do anarquismo nos obrigou a buscar meios para alcançar o triunfo. Em mais de vinte anos de experiência, de atividade revolucionária, vinte anos de esforços nas fileiras anarquistas e de esforços que nada conseguiram, senão fracassos do anarquismo enquanto movimento organizador: tudo isto nos convenceu da necessidade de um novo partido-organização anarquista baseado em uma teoria, uma política e uma tática homogêneas.”8 Porém, essa opinião não era somente compartilhada pelos redatores da Plataforma, do grupo Dielo Trouda. Os anarco-sindicalistas russos não se expressavam em termos muito diferentes:

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Nós, anarquistas e sindicalistas – de fato, todos aqueles que crêem que a libertação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores – estávamos muito pouco organizados e éramos muito fracos para manter a revolução rumo ao socialismo. Não é necessário dizer que o socialismo não cairá do céu, e que uma única concepção de socialismo não é suficiente. (...) Havia uma necessidade urgente de organização sistemática e de coordenação de atividades. A revolução as buscou, mas pouquíssimos elementos estavam conscientes da necessidade e da possibilidade da organização federalista. E a revolução, não a encontrando, lançou-se nos braços do velho tirano, do poder centralizado, que agora sufoca seu respiro vital. Nós estávamos muito desorganizados, éramos muito frágeis, e por isso, permitimos que isto ocorresse.”9 Este artigo foi escrito por M. Sergven no periódico anarco-sindicalista russo Vol’nyi Golos Trouda, de setembro de 1918. Este, segundo o historiador Paul Avrich, não seria nem mais nem menos que um pseudônimo de Grigori P. Maximov, alguém que estava certamente muito distante das teses dos plataformistas. É muito significativo que tanto os plataformistas como Maximov, a partir do anarco-sindicalismo, tenham compartilhado uma análise similar sobre as causas da fraqueza do anarquismo russo, assim como as de sua derrota, independentemente de terem optado por soluções distintas para essa fraqueza.

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Esta autocrítica está muito distante da autocomplacência que nas décadas posteriores viraria regra em nossos círculos libertários.10

CRÍTICA E AUTOCRÍTICA Ainda hoje, estamos acostumados a culpar os autoritários, os burocratas e os reformistas por nossas derrotas, e, assim, lavamos nossas mãos das responsabilidades que nos cabem por não termos sido capazes de imprimir uma orientação diferente aos movimentos. Devemos, antes de ser críticos, ser autocríticos. Pois se não somos capazes de reconhecer a porção de responsabilidade que nos cabe, primeiramente, isso significa que não seremos capazes de aprender as lições que nos dizem respeito para poder avançar. Mas também significa que assumimos nossa impotência e nossa irrelevância nas lutas populares. Pois, se a culpa sempre é dos outros, estamos assumindo que nossa presença, como anarquistas, não faz nenhuma diferença, não tem nenhum efeito. Então, a autocrítica deve sempre preceder a crítica na hora de avaliar os fracassos e derrotas. E podemos ir jogando a autocomplacência pela janela: sempre há algo que poderíamos (ou que podemos) fazer melhor. Negar isso não tem nada de revolucionário, mas sim de conservador e de reacionário. O fato de que a esquerda autoritária tenha, no geral, estado melhor organizada que a libertária e que tenha contado com um programa político claro, com uma melhor compreensão dos problemas imediatos das massas

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oprimidas, significa que eles se converteram na força hegemônica na maioria das experiências revolucionárias (com as notáveis exceções da Ucrânia e da Espanha – e ainda, em último caso, souberam impor-se política e não militarmente). Mas tal coisa não foi um fato inevitável nem fatal.

PROGRAMA, PROPOSTAS E ESTRUTURA Disso deduz-se que, se queremos nos assegurar que nos movimentos revolucionários vindouros, a ala libertária do povo tenha mais importância que a ala autoritária, devemos começar por tornar claro, primeiro, nosso próprio programa, nossas propostas construtivas e nossa estrutura organizativa. Questões para as quais não existem receitas mágicas, ainda que possamos nos inspirar e buscar guias na experiência e na reflexão teórica do passado. Mas nestas experiências ou reflexões não está, nem de perto, a resposta às necessidades que a própria história em movimento nos vai colocando.

APONTAMENTOS PARA UMA POLÍTICA DE ALIANÇAS Voltemos então ao problema das alianças. Temos de ser muito claros que não existem respostas fáceis para questões como esta. Cada situação é única e deve ser analisada e estudada como tal pelos companheiros que quei-

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ram vivê-las. É impossível ter uma fórmula universal e atemporal sobre as alianças, que se aplique de maneira idêntica em todos os locais e momentos. A política não se escreve nem com um papel carbono nas mãos, nem com um molde na cabeça. Mas, repetindo, acreditamos ser possível encontrar certos apontamentos gerais possíveis de serem adaptados e que podem ser úteis a outros companheiros no momento de ponderar a questão das alianças em seu respectivo trabalho de base, ou em sua própria luta. Em nossa própria experiência de uma década de trabalho, lutas e reflexões em torno destas questões, no Chile pós-ditadura, pudemos extrair algumas conclusões sobre a questão das alianças que podem ser úteis para companheiros em outras localidades ou em outros momentos. Insistimos: estas são somente algumas conclusões, algumas reflexões fundamentais que podem ser úteis para o movimento em geral. Não acreditamos que estes apontamentos, muito gerais, possam, e nem devam, ser convertidos em “tábuas de Moisés”. No entanto, queremos compartilhá-las com o intuito de trocar experiências com o restante do movimento, um hábito que, talvez, devêssemos ter com maior freqüência para aprendermos uns com os outros. Assim, com o intercâmbio e o diálogo construtivo, podemos ir gerando um movimento com maturidade e com dinamismo que se alimente de suas experiências (no lugar de simplesmente vivê-las) e que avance das “intuições compartilhadas” para as “reflexões compartilhadas”.

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O desenvolvimento de uma política correta de alianças depende, em nossa opinião e baseados em nossa experiência, de uma série de fatores, a saber: 1. Que o primeiro passo para uma política de alianças correta é o fortalecimento do anarquismo; sem um programa revolucionário, não há possibilidade de nos convertermos em um ator forte em meio a qualquer movimento popular. Somente um programa próprio nos converte em alternativa, retirando-nos do eterno ciclo de condenar ou aclamar terceiros. 2. Que a unidade com outros setores do movimento popular, ainda que muito necessária e de primordial importância – já que não derrotaremos sozinhos o capitalismo –, não deve ser buscada a qualquer custo; somente entraremos em discussões com outras forças políticas na medida em que isso seja relevante para avançar em nosso próprio programa e em nossas próprias iniciativas. Programa e iniciativas que, além disso, longe de serem herméticos, se retro-alimentam constantemente de nossa experiência e do intercâmbio com outros atores do mundo popular. Conseqüentemente, as alianças se convertem na conclusão de nosso próprio desenvolvimento político e não em seu ponto de partida. 3. Que a unidade de ação e a coordenação de iniciativas não signifiquem postergar ou submeter a nosso próprio programa revolucionário.

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4. Que a necessária unidade dos setores revolucionários não signifique um “matrimônio” por toda a vida, mas que tenha sentido em função de objetivos precisos, os quais podem ser de curto, médio ou longo prazo. A unidade com outros setores revolucionários deve ser entendida, antes de tudo, como uma unidade de ação, ainda que não descartemos compartilhar certas análises ou discussões quando isso for pertinente. 5. Que tal unidade dos setores revolucionários, imprescindível para avançar contra o bloco dominante, deve acontecer “de baixo para cima e na ação”. De baixo para cima, pois somente coordenaremos espaços concretos onde, efetivamente, nossos respectivos militantes confluam (organizações sindicais, por exemplo) e, sempre e quando compartilharmos certos objetivos mínimos. E na ação, pois acreditamos que é a prática concreta que serve para deixar claros os objetivos e as posições corretas, em vez do debate político abstrato; ademais, como já dissemos, não nos interessam os matrimônios; buscamos a unidade pelas necessidades concretas da luta e para a obtenção de certas vitórias para o campo popular. 6. Que, ainda que no marco das alianças, sejamos capazes, em todo momento, de buscar ampliar nosso marco de influência, de conseguir influenciar a política e os programas de outros setores o quanto for possível, buscando converter o movimento libertário em um pólo hegemônico do movimento popular. Isto é extremamente importante, pois devemos compreender que, ainda que cheguemos a ser uma força política de peso, com bons

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argumentos e capacidade de mobilização, nunca estaremos sós e sempre haverá outras forças lutando para impulsionar idéias diferentes e até opostas às nossas (para nós, como libertários, a supressão de outras correntes políticas não é sequer uma opção a se levar em consideração). O que não significa a renúncia em defender um movimento popular e um projeto social de baixo para cima, com democracia de base, o mais libertário possível, que seja capaz de abolir o Estado de maneira revolucionária.

FORTALECER A ALTERNATIVA REVOLUCIONÁRIA Diante disso, os anarquistas não podem perder de vista o panorama geral. Devemos ter claro que qualquer política de alianças deve buscar, antes de tudo, o fortalecimento e o crescimento de uma alternativa revolucionária. Nem o isolamento, nem as más companhias nos servem. Uma aliança que nos cria mais problemas do que outra coisa, não tem nenhuma razão de ser, ainda que nossos aliados reivindiquem-se “revolucionários”, “anarquistas” ou o que quer que seja. E devemos também ter claro que tal política de alianças deve ser refletida a cada instante, para assegurar que ela seja coerente com nossas posições políticas e que assim seja proveitosa. Estas coisas não podem ser deixadas ao acaso, pois ainda que possamos estar improvisando, podemos estar certos de que o restante da esquerda e a burguesia não estarão.

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CONCLUSÃO Estas são algumas idéias básicas e alguns apontamentos muito gerais sobre a política de alianças. Não temos maiores pretensões em torno delas, salvo que sejam de utilidade para outros companheiros. E de nenhuma maneira representam algum tipo de substituição para o processo original de reflexão que diz respeito a cada organização e em cada situação específica. Cada contexto é particular e único. Mas, ainda diante da singularidade de cada contexto, felizmente, não queremos fazer o papel dos marinheiros sem bússola; a história e a teoria nos fornecem apoio e orientação. Contudo, não devemos esquecer que o leme está em nossas mãos e que depende de nós não ir à deriva. Antes de tudo, somos nós os últimos responsáveis pelas nossas ações. 11 de dezembro de 2007

Notas: 1. Isto é o que chamamos anteriormente de “política de satélite”, na qual os grupos anarquistas aparecem como satélites, orbitando ao redor de outros partidos ou movimentos políticos. 2. Ver “América Latina: problemas e possibilidades para o anarquismo”, publicado neste livro.

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3. Ou o que é igual, pela falta de inteligência para compreendê-las. 4. Quando não, na fixação obsessiva por pessoas destacadas de outros movimentos ou partidos. 5. Luigi Fabbri, Influencias burguesas en el anarquismo, ed. Solidaridad Obrera, Paris, 1959, pp. 56-57. 6. Não é de se surpreender, portanto, que quando Emma Goldman se une ao grupo de Peukert nos EUA, com pleno conhecimento do caso de Neve, Most não tenha lhe voltado a dirigir a palavra. 7. Ainda há muitos anarquistas iluminados que quando a classe trabalhadora faz algo que não se alinha à sua própria visão ou quando apóia tal ou qual partido da esquerda, sustentam que ela não passa de marionete, que é manipulada, que é ignorante. Ou quando o povo realiza qualquer luta que não tenha por objetivo “a revolução social universal”, então é composto de cordeiros, resignados. Em seu elitismo, acreditam que somente o anarquismo (em sua versão mais purista e dogmática) realmente representa os trabalhadores. Esta visão demonstra a incapacidade de compreender dois fatores de grande relevância para qualquer política revolucionária correta. Primeiro, que a classe trabalhadora, que o povo, é muito complexo e é um emaranhado de diversas visões e interesses que nem sempre se harmonizam com uma linha “ideológica” pura. Segundo, que a criatividade das massas, aquele fator tão caro a uma política revolucionária e libertária, manifesta-se ainda quando os trabalhadores expressam idéias com as quais não concordamos. Devemos tratar de entender em que medida essas idéias e ações

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expressam um comodismo ou uma resposta à sua condição. E mesmo que estejamos em desacordo, devemos tratar de compreender o papel ativo que as massas cumprem nos processos sociais, em vez de crer, teimosamente, que só estão corretas ou que atuam independentemente somente quando estão de acordo conosco. 8. “Respuesta a los Confusionistas del Anarquismo”, Grupo Dielo Trouda, agosto de 1927. Artigo reproduzido em Facing the Enemy, Alexander Skirda, ed. AK Press, 2002, pp. 224-225. * (N.E.) Este trecho foi revisado a partir da tradução original do russo para o francês apresentada por Skirda em Autonomie Individuelle et Force Collective. 9. “Los Caminos de la Revolución”, M. Sergven, Vol’nyi Golos Trouda, Moscou, 16 de setembro de 1918. Artigo reproduzido em The Anarchists in the Russian Revolution, editado por Paul Avrich, ed. Thames & Hudson, Londres, 1973, pp. 124-125. 10. Hoje em dia encontramos, freqüentemente, anarquistas que enchem a boca falando sem parar do fracasso da esquerda latino-americana, do marxismo, etc. Qualquer um que escutasse isso pensaria, ingenuamente, que a história do anarquismo é, ao contrário, a história de uma série incrível de vitórias que fazem tremer os governantes e os capitalistas de todo o mundo. Mas até o anarquista mais alucinado se envergonharia de dizer tal absurdo. A insistência no fracasso dos “outros”, sem analisar primeiro nosso próprio fracasso, é como “o sujo falando do mal-lavado” e não nos ajuda, em absoluto, a sair dos círculos marginais dentro dos quais se confinou o anarquismo em muitos países por décadas. Se é verdade que

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com os erros e fracassos alheios também se aprende, isso é totalmente inútil se primeiro não se aprendeu com os próprios erros e fracassos.

* Tradução: Daniel Augusto de Almeida Alves. * Revisão/edição: Felipe Corrêa.

A IMPORTÂNCIA DA CRÍTICA PARA O DESENVOLVIMENTO DO MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO

Este artigo foi escrito no intuito de dar conta de um velho mal-estar que sinto no movimento libertário. Este mal-estar é a falta de discussão nos meios anarquistas, somado ao fato que o pouco que há é freqüentemente marcado por insultos e por um ânimo mais competitivo do que construtivo. Este equívoco, que se converteu em algo crônico, tem remédio e pode ser superado com vontade e maturidade. As idéias aqui articuladas começaram a desenvolver-se a partir de um documento de discussão para a revista chilena Hombre y Sociedad em 2006, já que nesta publicação temos tentado superar esta situação, ainda que reconheçamos as limitações e a modéstia de nosso esforço.

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Espero que as idéias aqui defendidas sirvam para ir deixando de lado os vícios do movimento e possamos construir um edifício de bases sólidas e com ar fresco a partir do qual possamos trabalhar pela futura revolução.

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A QUESTÃO DO DOGMATISMO Não raramente escutamos, quando se fala das diferenças entre o anarquismo e as demais correntes da esquerda, que o anarquismo é uma corrente “livre de dogmas”, “que não é fechada em si mesma” e “que é aberta ao desenvolvimento por meio da livre crítica”. Isto tem sido repetido exaustivamente, incansavelmente, e de maneira habitual assume-se tal fato como uma virtude suprema do anarquismo. No entanto, o menor contato dos círculos anarquistas com a realidade nos mostra uma realidade bem diferente destas declarações autocomplacentes. Ainda que muito se fale sobre a falta de “dogmatismo” no anarquismo, o que encontramos freqüentemente é uma falta de reflexão sistemática, misturada com o mais recalcitrante dos dogmatismos, em que a análise serena da realidade é substituída por uma série de categorias apriorísticas e incompatíveis com a realidade. Longe de encontrar um ambiente favorável ao desenvolvimento da crítica, encontramos um movimento paranóico, que tende a entender a crítica como um ataque, o que é muito aca-

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nhado para discutir em termos efetivos as diferenças reais em seu seio. E encontramos um movimento que, longe de aceitar as diferenças, discutindo-as com maturidade, está sempre prestes a excomungar. Isto não é um defeito de uma ou outra publicação, de um ou outro personagem no movimento (ainda que claramente haja quem leve esta tendência a níveis patológicos), mas é um defeito profundamente engendrado no movimento libertário que permeia praticamente todos seus setores e correntes. Na verdade, o anarquismo ainda possui muitas debilidades. Como um movimento, sofremos de diversas delas, somos ainda um movimento em gestação, apesar de nossa longa história. Pois uma das carências que mais sentimos é a ausência de uma tradição autêntica de debate. Pois onde não há discussão, há dogmatismo, e onde há dogmatismo há ignorância. Onde a discussão não se dá livremente, o que impera é a falta de dinamismo nas idéias e a defasagem em relação à realidade. Em um ambiente deste tipo não é possível o desenvolvimento de um movimento sadio, com ambições de transformar este mundo.

DISCUSSÃO E DEBATE CONSTRUTIVOS Carecemos de uma tradição de discussão. Estamos muito acostumados a “denunciar” em vez de discutir. Há muitos em nosso movimento mais próximos do espírito de Torquemada do que do espírito de Bakunin. Há muitos que preferem desperdiçar seu tempo “vigiando” os

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passos de outros anarquistas e denunciando aquilo que consideram um desvio, ao invés de contribuir com a construção concreta de um movimento. O anarquismo aparece assim, mais do que uma ferramenta de transformação do mundo, como um conjunto de dogmas elementares, de rudimentos políticos mal digeridos, de palavras de ordem vagas e gerais que substituem a reflexão política séria. O simplismo não deixa espaço para um pensamento articulado. Temos muitos autoproclamados defensores da fé e muito poucos anarquistas dispostos a desafiar o presente para explorar novos caminhos para o anarquismo diante de um mundo que não deixa de girar. Em vez de aceitar as diferenças de opinião como tais e proceder a debater respeitosamente, energicamente, mas sempre com espírito construtivo, denunciamos e desqualificamos. Não sabemos debater; freqüentemente nossas discussões entravam-se em questões de princípios e todas as divergências táticas são elevadas à categoria de discussões de princípios eternos do anarquismo. Pierre Monatte, o velho anarquista sindicalista francês, queixava-se no Congresso de Amsterdã (em 1907!) que “existem camaradas que, por tudo, inclusive pelas questões mais fúteis, sentem a necessidade de levantar questões de princípio”1. Com isso, parece que a cada diferença estamos julgando a razão de ser anarquista e as posições divergentes são caricaturadas como “autoritárias”, “totalitárias”, “marxistas”, “reformistas”, etc. Rótulos bastante úteis para evitar abordar as discussões de maneira política e não-histérica. Em nosso movimento, lamentavelmente, tende-se a adornar qualquer argumentação com inúmeros adjetivos qualificativos

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que nada aportam, absolutamente nada, ao esclarecimento do assunto em debate. Assim, cada debate em torno do anarquismo termina em uma polêmica para ver quem é o “mais” anarquista, quem é o que conserva a linha sagrada... e não quem tem razão à luz da realidade. Parece que neste ambiente de “denúncias” e de ausência de debates, a própria realidade não é senão um aspecto secundário, que pouco ou nada contribui com qualquer assunto que está em discussão.

QUANDO UM ATACA O OUTRO E ESQUECE DA LUTA Estes sectarismo e dogmatismo também se vêem refletidos em nossa propaganda. Inclusive chegamos ao extremo de publicações inteiras do anarquismo gastarem uma quantidade enorme de tinta e papel para atacar outros anarquistas, em vez de discutir de maneira saudável ou atacar àqueles que realmente “fodem” a vida de milhões de pessoas neste mundo.2 Quem trabalha desta maneira causa um enorme prejuízo ao movimento: não somente alimenta as tendências centrípetas no anarquismo, mas persuade os leitores não familiarizados com nossas idéias de que o anarquismo é um movimento de espírito mesquinho, estreito e pequeno, deslumbrado por suas próprias vaidades e insensível aos verdadeiros problemas do nosso tempo. Para quê unir-se a um movimento que está muito ocupado com tarefas inquisitoriais ao invés de ocupar-se da problemática cotidiana do conjunto dos

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oprimidos, dos pobres, dos explorados e dos marginalizados?3 Esta virulência nos ataques a quem pensa ou trabalha de forma distinta e este sectarismo têm atingido o paroxismo com as possibilidades abertas pela internet e pela comunicação virtual. Qualquer um pode, hoje em dia, insultar gratuitamente e covardemente, da comodidade de sua casa e com a proteção oferecida pelo anonimato, organizações ou referentes do movimento libertário que atuam abertamente nas lutas. Qualquer um pode dar vazão a seus ânimos destrutivos e a seu espírito miserável para depreciar os esforços realizados, muitas vezes com enormes sacrifícios, por companheiros que estão suando a camisa para desenvolver uma alternativa libertária. Com todas as possibilidades abertas pela internet para trocar experiências e discutir, é desolador que a maioria dos fóruns seja tão pobre e que onde há mais comentários, eles são somente para insultar ou para desqualificar. Isto é uma realidade extremamente triste e dolorosa para qualquer um que seja honesto em sua luta. Isto é próprio de movimentos distantes da realidade e, na verdade, ainda nas fileiras do anarquismo, há muitos que carecem de contato – em um sentido orgânico, obviamente – com o mundo popular, ou carecem de qualquer esforço para realizar um trabalho construtivo em meio aos explorados. Não basta conhecer a luta pelos livros de história; ela deve ser promovida realmente em nosso diaa-dia. Com gente desligada das lutas e das organizações populares, acreditamos que é difícil um debate efetivamente construtivo, pois, com a falta de experiência prá-

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tica, estas pessoas são incapazes de manter a discussão no plano da realidade e são facilmente arrastadas para o pântano das abstrações principistas. E disto vêm as denúncias de “traição ao anarquismo”. Esse é seu verdadeiro terreno, e por isso, diante das diferenças, sua reação natural é refugiar-se na segurança de seu próprio grupelho, um punhado de guardiões da fé.

CONSCIÊNCIA DE PARTIDO Estes problemas a que faço referência não são um assunto novo. Há 85 anos já eram assinalados por Camilo Berneri em um artigo cujo tom, a qualquer um que já está há um tempo militando no movimento anarquista, soará tristemente atual e familiar: “Somos imaturos. Isso é demonstrado pelo que foi discutido na União Anarquista fazendo sutilezas sobre as palavras partido, movimento, sem entender que a questão não é de forma, mas de substância, e que o que nos falta não é a exterioridade do partido mas a consciência de partido. O que entendo por consciência de partido? Entendo algo mais que o fermento passional de uma idéia, que a genérica exaltação de ideais. Entendo o conteúdo específico de um programa partidário. Estamos desprovidos de consciência política, no sentido de que não temos consciência dos problemas atuais e continuamos difundindo soluções adquiridas em nossa literatura de pro-

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paganda. Somos utópicos e basta. O fato de haver editores nossos que continuam reeditando os escritos dos mestres sem nunca incluir uma nota crítica, demonstra que nossa cultura e nossa propaganda estão nas mãos de gente que pretende manter em pé o próprio palanque, em vez de impulsionar o movimento a sair do que já foi pensado e esforçar-se na crítica, do que ainda está por se pensar. O fato de haver polemistas, que tentam engarrafar o adversário em vez de buscar a verdade, demonstra que entre nós há maçons em sentido intelectual. Agregamos os grafômanos, para quem o artigo é um desafogo ou uma vaidade, e teremos um conjunto de elementos que perturbam o trabalho de renovação iniciado por um punhado de independentes que prometem. O anarquismo deve ser amplo em suas concepções, audaz, insaciável. Se quer viver e cumprir sua missão de vanguarda deve diferenciar-se e conservar alta sua bandeira, ainda que isso possa isolá-lo e restringi-lo ao seu próprio círculo. Mas esta especificidade de seu caráter e de sua missão não exclui um maior enraizamento de sua ação nas fraturas da sociedade que morre, e não nas construções apriorísticas dos arquitetos do futuro. Semelhante às investigações científicas, a hipótese pode iluminar o caminho da indagação, mas esta luz se apaga quando resulta falsa. O anarquismo deve conservar aquele conjunto de princípios gerais que constituem a base de seu pensamento e o

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alimento passional de sua ação, mas deve saber afrontar o complicado mecanismo da sociedade atual sem óculos doutrinais e sem excessivos apegos à integridade de sua fé. [...] Chegou a hora de acabar com os farmacêuticos das formulinhas complicadas que não enxergam além de seu nariz; chegou a hora de acabar com os charlatões que embriagam o público com belas frases altissonantes; chegou a hora de acabar com os simplórios que têm três ou quatro idéias cravadas na cabeça e exercem como senhores do fogo sagrado do ideal, distribuindo excomunhões. [...] O que tenha um pingo de inteligência e de boa vontade que se esforce com seu próprio pensamento, que trate de ler na realidade algo além do que lê nos livros e periódicos. Estudar os problemas de hoje significa erradicar as idéias não pensadas, significa ampliar a esfera da própria influência como propagandista, significa dar um passo adiante, inclusive um bom salto de longitude a nosso movimento. É preciso buscar as soluções enfrentando os problemas. É preciso que adotemos novos hábitos mentais. Da mesma forma que o naturalismo superou a escolástica medieval lendo o grande livro da natureza em vez dos textos aristotélicos, o anarquismo superará o pedante socialismo científico, o comunismo doutrinário fechado em suas casinhas apriorísticas e a todas as demais ideologias cristalizadas.

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Entendo por anarquismo crítico um anarquismo que, sem ser cético, não se contente com as verdades adquiridas, com as fórmulas simplistas; um anarquismo idealista e ao mesmo tempo realista; um anarquismo, em definitivo, que enxerte novas verdades no tronco de suas verdades fundamentais, que saiba podar os ramos velhos. Não um trabalho de simples demolição, de niilismo hipercrítico, mas de uma renovação que enriqueça o patrimônio original e lhe agregue forças e belezas novas. Temos de realizar este trabalho agora, porque amanhã deveremos reemprender a luta, que não se encaixa bem com o pensamento, especialmente para nós que nunca podemos nos retirar das trincheiras quando recrudesce a batalha.” Camillo Berneri Pagine Libertarie, Milão, 20 de novembro de 19224 As palavras de Berneri ferem-nos por serem cortantes, mas, antes de tudo, por serem dolorosamente atuais. Ainda prima, na discussão, a vontade de derrotar o adversário mais do que a de avançar e aprender. Ainda prima o espírito de seita sobre o espírito de partido. Isto faz com que, com a menor diferença, os grupos se dividam. Não é que sejamos partidários da unidade a todo custo; a unidade somente tem sentido quando há práticas e idéias fundamentais que são convergentes (não idênticas, já que as diferenças são fundamentais para o desenvolvimento de uma linha política). Mas somos inflamados adversários do sectarismo e da divisão por questões insignificantes.

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O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO CRÍTICO O artigo citado de Berneri é importantíssimo, não somente pela crítica que faz ao movimento, mas por dar a devida importância ao desenvolvimento do pensamento crítico em nosso movimento. Acredito que nosso movimento ainda não se dá conta da importância do desenvolvimento da crítica e da discussão em seu seio. Há uma relação direta entre o nível de discussão em um movimento político e seu dinamismo. E somente um movimento dinâmico toma a iniciativa política e sabe incidir sobre a realidade. Este fator, o dinamismo, deixa bastante a desejar nos meios anarquistas. Estamos muito acostumados a tratar a divergência de opiniões de duas maneiras aparentemente opostas: ou nos insultamos, acusando aqueles que pensam diferente de não serem verdadeiros anarquistas, ou ignoramos as diferenças dizendo que no anarquismo vale tudo (até a idéia mais absurda). O resultado destes dois mecanismos para enfrentar o dissenso é idêntico e, todavia, no final das contas não há discussão. Ou nos fechamos em guetos diferentes, ou armamos um único grande circo onde todos coexistem, mas onde ninguém toca nos temas divergentes para não ferir as “sensibilidades”. Ainda que superficialmente pareçam extremos diametralmente opostos, o “vale tudo” no anarquismo e o sectarismo dogmático são idênticos pelo fato de que ambos impedem a discussão e o avanço das idéias.

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OS DEBATES COM OUTROS SETORES DA ESQUERDA E COM O POVO Acredito que, se não soubermos discutir entre nós, sequer conseguiremos então discutir com outros setores do mundo popular e, como resultado, trocaremos a luta política (a troca e o questionamento de idéias e práticas) por uma incansável e insuportável pregação entre os convencidos. É muito sintomático que a grande maioria das publicações de “divulgação” anarquista pareça estar dirigida mais a outros anarquistas do que àqueles aos quais deveríamos divulgar nossas idéias: a essa ampla massa de pessoas que não pensam nem atuam como anarquistas. 5 Da mesma forma que, entre nós, as diferenças de opinião ou de prática são sinônimo de anátema, para o restante do movimento revolucionário e da esquerda, ou inclusive do povo, mostramos o mesmo rechaço. “Reformistas”, “fascistas vermelhos”, “autoritários” são termos utilizados em abundância que significam pouco ou nada a essa altura, precisamente por estarem tão desgastados. Termos que, em vez de nos ajudar a esclarecer as divergências e fazer pontes na discussão, nos isolam sem nos ajudar a persuadir nem a esclarecer os pontos reais em discussão. Todos os problemas de métodos e concepções, com o resto da esquerda, são reduzidos à simples fórmula: “vocês querem o poder e nós não”. Sempre pensei no absurdo desta afirmação: qualquer um que esteja cego pela obsessão de ter poder, faria isso muito melhor aliando-se aos partidos do governo ou da burguesia, em vez de militar em um partido comunista ou de inspiração socia-

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lista, o que indubitavelmente pode trazer-lhe mais problemas do que benefícios materiais, em termos imediatos. Outra coisa é o que acontece quando estes partidos chegam a ter algum poder em suas mãos, ou quando conseguem desenvolver uma burocracia com alguns membros dentro de algum movimento influente. Mas insisto, isto é um problema de métodos, mais que de intenções originais sinistras. Isto não exclui que na esquerda, como em qualquer parte, não haja gente desonesta, gente oportunista, gente com espírito pequeno e incapaz de entender a realidade para além de suas limitadas lentes ideológicas, ou, pior ainda, gente que coloca os interesses de sua seita à frente dos interesses do conjunto do povo. Porém, há uma enorme diferença entre aceitar isso e supor que somos o único setor revolucionário bem intencionado, puro ou abnegado.

INFLUÊNCIAS BURGUESAS NO ANARQUISMO Luigi Fabbri, em seu fundamental artigo “Influências Burguesas no Anarquismo”, já em 1918 queixava-se do problema da linguagem utilizada entre os anarquistas para discutir, mas também dos anarquistas para com outros setores populares ou da esquerda. Sua queixa é particularmente relevante em tudo o que tratei de expor. Nos diz Fabbri:

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“O objetivo da propaganda e da polêmica é convencer e persuadir. No entanto, não se convence e não se persuade com violência na linguagem, com insultos e ataques, mas com cortesia e educação.”6 E continua: “[...] Mas a violência da linguagem na polêmica e na propaganda, a violência verbal e escrita, que algumas vezes resultou tristemente em atos de violência material contra as pessoas, a violência que, sobretudo, deploro, é a que se emprega contra outros partidos progressistas, mais ou menos revolucionários – já que isto pouco importa – que são compostos de oprimidos e explorados como nós, de gente que como nós está animada pelo desejo de transformar a situação política e social atual em algo melhor. Aqueles partidos que aspiram chegar ao poder, quando chegarem, sem sombra de dúvidas serão inimigos dos anarquistas, mas como isto está um tanto distante, como sua intenção pode ser boa e muitos males que eles pretendem eliminar nós também queremos, e como temos muitos inimigos em comum e juntos teremos, sem dúvida, de lutar em mais de uma batalha, é inútil, quando não prejudicial, tratá-los violentamente, visto que agora o que nos divide é uma diferença de opinião, e tratar violentamente

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alguém porque não pensa ou trabalha como nós é uma prepotência, é um ato anti-social. A propaganda e a polêmica que fazemos entre os elementos dos demais partidos deveriam, para atraí-los, persuadi-los do mérito de nosso raciocínio. O que já dissemos em linhas gerais, ou seja, que se persuade mal a quem se trata mal, é bem aplicável a elementos assimiláveis: operários, jovens, mentes já despertas, homens que já estão no caminho da verdade. A violência os detém em vez de impulsioná-los neste caminho. Alguns de seus líderes podem trabalhar com má-fé, mas diga-me: estamos seguros de que entre nós não há também pessoas que trabalham da mesma maneira? Devemos atacar a todos eles, generalizando, quando o que queremos é atacar aqueles que realmente possuem má-fé, e não todos no partido? Certamente, muitas de suas doutrinas são errôneas, mas para demonstrar seu erro não são necessários os insultos; alguns de seus métodos são nocivos à causa revolucionária, mas trabalhando diferentemente, de nossa própria maneira, e utilizando o exemplo e a demonstração razoada, demonstraremos que nossos métodos são melhores. Todas as considerações deste trabalho foramme sugeridas pela constatação de um fenômeno que observei em nosso campo. Acostumamo-nos tanto a sempre gritar que fomos perdendo gradualmente o valor das palavras e de sua relatividade.

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Os mesmos adjetivos depreciativos nos servem, da mesma maneira, para atacar diretamente o padre, o monarquista, o republicano, o socialista e até o anarquista que não pensa como nós. E isso é um defeito primordial. Se surge alguma diferença, isso acontece em benefício de nossos piores inimigos. Pode-se dizer que os anarquistas e os socialistas nunca insultaram os padres e os monarquistas como os republicanos, e que os anarquistas nunca insultaram os burgueses como o fizeram com os socialistas. Mas, todavia, direi: especialmente nos últimos tempos, houve anarquistas que trataram outros anarquistas que não pensavam exatamente como eles como jamais trataram os clericais, os exploradores e os policiais juntos. [...] Eu acredito que seria melhor que procurássemos nos conhecer e, sobretudo, trabalhar sem nunca perder de vista que temos o inimigo em frente de nós, o verdadeiro inimigo que observa o momento de nossa fraqueza para nos atacar. Nunca – em meio aos partidos para os quais a ação é a única razão de existência – se poderia dizer com mais razão que o ócio é o pior dos vícios e o primeiro destes é a discórdia.”7 Não se pode ser mais perfeito e certeiro do que esta opinião. E, novamente, isso nos demonstra que em 90 anos aprendemos extraordinariamente pouco e que ainda nos falta muito para avançar na construção de um espaço saudável de debates, em que possamos aprender e avançar.

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A RELEVÂNCIA DA PRÁTICA Para nós, a crítica e o debate devem ser ferramentas para a construção, antes de tudo. Não nos interessa debater para demonstrar “quem tem razão”, nem debater “por esporte”, senão para tratar de buscar o melhor caminho para enfrentar os problemas que afligem nosso movimento e dentro de um espírito verdadeiramente construtivo. Certamente, tal forma de discussão deve ter por ponto de partida a prática, pois acreditamos que a discussão deve estar firmemente ancorada na realidade para evitar assim as distorções próprias do desconhecimento prático ou do conseguinte idealismo. Além disso, somente a discussão que se fundamenta em experiências equivalentes pode gerar uma linguagem comum e produtiva. Pois se criticamos uma organização por sua maneira de fazer as coisas, certamente devemos ser capazes de mostrar que há outra maneira de realizá-las ou que ao menos podemos sugerir alternativas. Ainda que seja necessário ter em mente, a todo momento, que em raras vezes uma posição é completamente acertada e que, afinal de contas, é a própria prática, o desenvolvimento da realidade, que se dedica a separar as posições mais corretas das menos corretas. Então, outro ponto importante é que se a crítica revolucionária não estiver acompanhada de uma prática, ela torna-se irrelevante. Pois, que sentido tem uma crítica que se entende revolucionária se ela não está disposta a converter-se em realidade, na ação imprescindível para que haja um efetivo movimento revolucionário e não um

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puro diletantismo intelectual? O revolucionário, diferente do politiqueiro, não fala da platéia, da condição de espectador: o revolucionário deve falar sempre a partir da ação e do esforço, por humilde que isso possa parecer, de converter-se em uma alternativa para o presente. Tendo a ser bem mais cético com os hipercríticos e com os ultrarevolucionários que nunca são vistos em uma experiência concreta e que nunca sujaram as mãos. Esta é uma visão construtiva da crítica: uma que seja forjada no calor da construção concreta e não do mero ânimo de destruir o esforço alheio. A discussão deve, além disso, ser posta a serviço da prática, pois o dinamismo que ela gera deve servir para enriquecer nossas experiências. E vice-versa, a prática logo entrega novos elementos para poder avançar na teoria, e como dizia Berneri, para um anarquismo que saiba podar os ramos velhos, que saiba inserir novas verdades em suas verdades fundamentais e que saiba renovar-se, pois o imobilismo intelectual é o principal fator de nossa incapacidade de compreender a complexidade dos fenômenos de um mundo que esta em permanente transformação. Porém, a crítica não tem somente a função de nos ajudar a compreender melhor nossa realidade e a desenvolver conceitos, ensinamentos e propostas mais acertadas às necessidades de nossa época. A discussão também é importante para avançarmos e nos desfazermos das idéias errôneas, mal-formuladas ou insuficientes. Como me disse uma vez um companheiro: “com nossa discussão, você não conseguiu me convencer, mas pelo menos ela serviu para eu descobrir minhas próprias fraquezas e refor-

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çar minhas idéias”. Isso não é cair em um diálogo de surdos, na medida em que respondemos e escutamos os argumentos do outro. Mas é uma ajuda crucial para avançar, pois dá solidez às idéias que aparecem melhor argumentadas, mas convincentes e mais acabadas. A cada vez que nos desfazemos das idéias errôneas ou disparatadas. Para finalizar, a crítica e o debate são importantíssimos para fazer pontes com outras correntes. Com seu desenvolvimento podemos nos aproximar daqueles que se atraíram por outras correntes, podemos ganhar para as nossas posições outras organizações ou podemos aprender com elas e nos dar conta que, em algum aspecto determinado de nossa política, estamos equivocados. Somente onde se estabelece esta ponte de discussão saudável, podese acontecer uma prática livre de sectarismo que, respeitando as diferenças, seja capaz de envidar esforços onde houver unidade de critérios.

EM CONCLUSÃO Estas palavras não foram escritas com o objetivo de denunciar ou acusar tal ou qual companheiro de sectário. Nem acredito que haja corrente livre de vícios, que se converteram em costumes, em nossos círculos. Muitas vezes é tão culpado quem provoca como quem se deixa provocar e segue a corrente. Todos sabemos que há “maçons em sentido intelectual” no movimento; todos sabemos que há devotos do “Santo Ofício”; mas não nos importa o que eles pensam. Não lhes damos bola, como

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se diz, pois sabemos que nada do que é fundamental para se chegar a uma sociedade livre se consegue desta maneira. Mas o que é de se preocupar, é que eles consigam arrastar outros companheiros ou organizações que são valiosos para o nosso campo. E o que é pior: que a cultura de debate tenha seu referente comum traçado por este espírito mesquinho. Finalmente, o que é ainda pior: que os companheiros que, a partir de distintas vertentes ou perspectivas, estejam presentes na luta e na construção não tenham ainda aprendido a ter estas dinâmicas de intercâmbio saudável. Isto é o que verdadeiramente preocupa. A esquerda tradicional tem sido sectária, dogmática e tem freqüentemente ignorado a realidade ao seu redor. Não acredito que os anarquistas, no geral, tenham sido muito melhores. É hora de dar o exemplo. Devemos apontar para a construção de espaços de discussão e mudar os hábitos maléficos em nosso movimento, que não contribuem com o debate e que mais entorpecem o desenvolvimento do necessário espírito crítico que o movimento revolucionário tanto necessita para fazer frente às difíceis tarefas de regeneração social que temos adiante. 12 de Novembro de 2007

Notas: 1. Em “‘Anarchisme & Syndicalisme’ Le Congrès Anarchiste International d’Amsterdam (1907)”, ed. NautilusMonde Libertaire, 1997, p. 161.

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2. Esta debilidade pela denúncia tem atingido, lamentavelmente, extremos mórbidos nos meios argentinos e espanhóis. 3. Luigi Fabbri, o famoso anarquista italiano, disse que a primeira vez que leu os periódicos anarquistas, estes não o persuadiram e que, se fosse pela propaganda escrita dos anarquistas, ele jamais haveria se aproximado do movimento. Lamentavelmente, muito de nossa imprensa hoje, em sua virulência contra o restante do anarquismo e da esquerda, cumpre um papel mais de contrapropaganda do que de propaganda propriamente dita. 4. Em “Camillo Berneri: Humanismo y Anarquismo”, ed. por Ernest Cañada, ed. Los libros de la Catarata, 1998, pp. 43-46. 5. Obviamente, há artigos (como este próprio que eu escrevo) ou publicações que estão dirigidas principalmente ao público libertário, sendo esta sua verdadeira audiência. Certamente não me refiro neste artigo a este tipo de publicações, mas àquelas que explicitamente dizem ser de “propaganda”, de “difusão” e de “divulgação”. 6. Luigi Fabbri, “Influencias Burgesas en el Anarquismo”, ed. Solidaridad Obrera (Paris), 1959, p. 53. 7. Ibid. pp. 56-59.

* Tradução: Daniel Augusto de Almeida Alves. * Revisão/edição: Felipe Corrêa.

Daniel Augusto A. Alves e Felipe Corrêa

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Problemas e Possibilidades do Anarquismo

José Antonio Gutiérrez Danton José Antonio Gutiérrez Danton

Essa preocupação pode ser detectada em todos os textos aqui publicados. Cada um deles destaca uma questão específica, que sempre nos vem à tona quando estamos envolvidos pela turbulenta realidade das lutas cotidianas.

Creio que o movimento anarquista está em uma encruzilhada: ou dá o salto qualitativo e decide converter-se em uma contribuição para os movimentos populares, cumprindo dessa maneira seu objetivo como movimento revolucionário, ou, pelo contrário, se conforma com a posição de crítico eterno situado além do bem e do mal (ou seja, além da prática): umbiguista, isolado, preocupado somente em manter a pureza dos quatro dogmas. [...] Talvez não estejamos de acordo em tudo o que está dito aqui, mas talvez estejamos de acordo no mais importante, que é como fazer do anarquismo revolucionário algo relevante para esses milhões de pessoas que buscam uma sociedade diferente, mais justa e mais humana.

Problemas e Possibilidades do Anarquismo

Os artigos aqui reunidos são alguns dos muitos trabalhos que este estimado companheiro, que durante as relações tornou-se nosso amigo, tem se dedicado a produzir, no intuito de gerar um acúmulo do debate teórico, da análise de cenários conjunturais, da reflexão crítica de processos históricos em que nossa corrente teve ou deixou de ter participação e, sobretudo, da reflexão e da proposição para uma consistente e significativa intervenção no atual cenário, que não se encerre em declarações e contemplações abstratas de princípios, mas que seja capaz de forjar em meio ao povo um campo libertário, criando poder popular em meio à luta de classes.

José Antonio Gutiérrez Danton

A publicação da presente compilação de artigos do autor chileno José Antonio Gutiérrez Danton representa um considerável acúmulo e o amadurecimento no debate do anarquismo de orientação especifista latino-americano. Esses artigos foram publicados, originalmente, na revista chilena Hombre y Sociedad e no site Anarkismo.net, que vem cumprindo um papel fundamental, ao reunir diversos indivíduos e organizações anarquistas de todo o mundo, em torno de uma perspectiva de organização específica anarquista e de trabalho social com os movimentos populares, a partir das linhas plataformista e especifista. Publicados originalmente em castelhano, esses textos começaram a chegar a nossas mãos e a circular cada vez mais entre a militância anarquista brasileira, ganhando espaço na medida em que foram sendo traduzidos. Estivemos bastante envolvidos nesse processo de tradução e de difusão dos textos de José Antonio, e nos orgulha muito que este livro esteja agora sendo publicado.

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