Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017
REVISTA DIÁLOGOS MEDITERRÂNICOS EQUIPE EDITORIAL EDITOR GERENTE Prof. Dr. André Luiz Leme, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
EDITOR ADJUNTO Profa. Dra. Marcella Lopes Guimarães, Universidade Federal do Paraná, Brasil
CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Dennison de Oliveira, Universidade Federal do Paraná, Brasil Profa. Dra. Marcella Lopes Guimarães, Universidade Federal do Paraná, Brasil Profa. Dra. Fátima Regina Fernandes, Universidade Federal do Paraná, Brasil Prof. Dr. Renan Frighetto, Universidade Federal do Paraná, Brasil
CONSELHO CONSULTIVO Prof. Dr. Hans-Werner Goetz, Universität Hamburg, Alemanha Profa. Dra. Ana Belén Zaera García, Universidad de Salamanca, Espanha Prof. Dr. Saul António Gomes, Universidade de Coimbra, Portugal Profa. Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Profa. Dra. Aline Dias da Silveira, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Prof. Dr. Stéphane Boissellier, Université de Poitiers, França Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves, Universidade Federal de Goiás, Brasil Profa. Dra. Renata Cristina Nascimento, Universidade Federal de Goiás, Brasil Prof. Dr. Marcus Silva da Cruz, Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Prof. Dr. Gerardo Fabián Rodríguez, Universidad Nacional de Mar del Plata, Argentina Profa. Dra. Ana Paula Magalhães, Universidade de São Paulo, Brasil Profa. Dra. Maria Filomena Pinto Da Costa Coelho, Universidade de Brasília, Brasil Profa. Dra. Maria Cecilia Barreto Amorim Pilla, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil Prof. Dr. José Carlos Gimenez, Universidade Estadual de Maringá, Brasil Prof. Dr. Cássio da Silva Fernandes, Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil Profa. Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Prof. Dr. Leandro Duarte Rust, Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Prof. Dr. Marcos Luis Ehrhardt, Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva, Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Profa. Dra. Armênia Maria de Souza, Universidade Federal de Goiás, Brasil
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FOCO E ESCOPO DA REVISTA
A
Revista
Diálogos
Mediterrânicos,
vinculada
ao
Núcleo
de
Estudos
Mediterrânicos da Universidade Federal do Paraná, tem como principal missão à difusão do conhecimento historiográfico relativo a realidade do mundo mediterrânico na diacronia histórica, desde a Antiguidade até a contemporaneidade. Tal iniciativa é amparada por objetivos definidos, como o de incentivar a produção acadêmica – científica qualificada e, conseqüentemente, incrementar o debate e o intercâmbio entre especialistas nas áreas das Ciências Humanas que tenham como motor de suas investigações a História do mundo mediterrânico. Trata-se duma publicação vocacionada ao espaço científico, sendo destinada à divulgação de artigos e resenhas de mestrandos, mestres, doutorandos e doutores que devem ter como tema central a História na realidade mediterrânica. Todos
os
trabalhos
deverão
ser
encaminhados
pela
página
web
http://www.dialogosmediterranicos.com.br, através do sistema Open Journal Systems que favorece a ocorrência duma avaliação criteriosa e séria por parte dos pareceristas e dos autores de artigos e resenhas. Para tanto é essencial que cada autor realize seu cadastro no sistema, seguindo os passos informados. Os trabalhos serão enviados para sessões específicas – Dossiê; Artigos Isolados; Resenhas; Entrevistas – e sua publicação será realizada conforme a avaliação dos pareceristas.
CONTATO PRINCIPAL Núcleo de Estudos Mediterrânicos Universidade Federal do Paraná Endereço: Rua Gal. Carneiro, 460. Prédio D. Pedro I, 7º andar, sala 715. Centro - Curitiba - Paraná – Brasil CEP 80060-150 Telefone: 55 (41) 3360-5416 / 3360-5417 E-mail:
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SUMÁRIO EDITORIAL Editorial da Revista Diálogos Mediterrânicos 12
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André Luiz Leme
DOSSIÊ “CULTURAS LETRADAS LUSO-BRASILEIRAS (SÉCULOS XVI-XIX)”
Apresentação ao Dossiê “Culturas letradas luso-brasileiras (séculos XVI-XIX)”
9
Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, Andréa Doré
O bom rei deste mundo se partia. Um discurso vicentino às exéquias de D. Manuel
13
Ricardo Hiroyuki Shibata
O lugar da História na livraria de D. Teodósio I, duque de Bragança
29
Ana Isabel Buescu
A Ásia no Papel Forte do Padre Antônio Vieira
51
Andréa Doré
O Receituário de Francisco Borges Henriques: Culinária, Cosmética e Botica em Portugal no século XVIII
67
Isabel M. R. Mendes Drumond Braga
A Livraria do Convento de Nossa Senhora do Cardal (Século XVIII)
89
Ricardo Pessa de Oliveira
Livros e exames de Retórica no tempo de Pombal: a emergência de uma disciplina de conhecimento
103
Maria Renata da Cruz Duran, Junior César Pereira
O perfil dos redatores do periódico O Auxiliador da Indústria Nacional (1833-1896)
132
Cesar Agenor Fernandes da Silva, David Francisco de Moura Penteado
Expressões culturais na Lisboa revolucionária. Carlos Malheiro Dias, um cronista da cidade (1904-1913)
154
Teresa Sousa Nunes
A educação no discurso parlamentar feminino português (Estado Novo, 1935-1974)
167
Paulo Drumond Braga Revista Diálogos Mediterrânicos
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A biografia de Eliseu Visconti pela escrita de Frederico Barata
186
Ana Heloisa Molina
ARTIGOS Moçárabes e o Saber Médico em Al-Andalus entre os séculos VIII e X António Rei
Los garantes de la ortodoxia. La estructura de la inquisición en el reino de Mallorca en el siglo XVII
205 217
Antoni Picazo Muntaner
RESENHAS VEYNE, Paul. Sêneca e o estoicismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015, 279p.
233
Cesar Luiz Jerce da Costa Junior
RODRÍGUEZ, Gerardo Fabián. Frontera, Cautiverio y Devoción Mariana (Península Ibérica, fines del s. XIV - principios del XVII). Sevilla: Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 2012, 305p.
238
André Rocha Cordeiro
NORMAS DE PUBLICAÇÃO
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244 ISSN 2237-6585
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EDITORIAL
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Editorial da Revista Diálogos Mediterrânicos 12 André Luiz Leme1 Universidade Estadual do Oeste do Paraná
A revista Diálogos Mediterrânicos chega à edição de número 12 trazendo aos seus leitores o dossiê intitulado “Culturas letradas luso-brasileiras (séculos XVI-XIX)”, organizado pelas professoras doutoras Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, da Universidade de Lisboa, e Andréa Doré, da Universidade Federal do Paraná. Com um total de dez artigos, o dossiê apresenta trabalhos de pesquisadores do Brasil e de Portugal, dialogando temas que envolvem, especialmente, o universo político e das letras nos períodos moderno e contemporâneo em Portugal. Na seção de artigos livres apresentamos “Moçárabes e o Saber Médico em Al-Andalus entre os séculos VIII e X”, trabalho escrito pelo historiador António Rei. Retomando a importância de nosso conhecimento e problematização a respeito da produção cultural e científica produzida em Al-Andaluz, o autor ressalta a importância do resgate à tradição grega e romana no desenvolvimento do saber médico pelos muçulmanos na península. Imediatamente após, temos o trabalho “Los garantes de la ortodoxia. La estructura de la inquisición en el reino de Mallorca en el siglo XVII”, do historiador Antoni Picazo Muntaner. Contemplando uma análise a respeito da Inquisição no reino de Mallorca, o autor apresenta em detalhes os aspectos da estrutura administrativa e dos cargos que orientaram o trabalho de controle social e ideológico por parte dessa instituição no período moderno. Nesta edição contamos também com as resenhas escritas por Cesar Luiz Jerce da Costa Junior, mestrando em História pela Universidade Federal do Paraná, e André Rocha Cordeiro, mestrando em História pela Universidade Estadual de Maringá. Especialmente, agradeço às organizadoras do dossiê, professoras Isabel Braga e Andréa Doré, e a valiosa contribuição de todos os autores participantes desta edição. Com votos de boa leitura a todos!
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Professor Adjunto de História Antiga e Medieval na Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Membro do Núcleo de Estudos Mediterrânicos, da Universidade Federal do Paraná. Membro do grupo de pesquisa Estudos em História Intelectual, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Email:
[email protected]
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DOSSIÊ CULTURAS LETRADAS LUSO-BRASILEIRAS (SÉCULOS XVI-XIX)
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Apresentação ao Dossiê “Culturas letradas luso-brasileiras (séculos XVI-XIX)” Isabel M. R. Mendes Drumond Braga * Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras e CIDEHUS
Andréa Doré ** Universidade Federal do Paraná
O dossiê “Culturas letradas luso-brasileiras (séculos XVI-XIX)” é fruto da colaboração de pesquisadoras que, no Brasil e em Portugal, se dedicam ao estudo das dinâmicas políticas e religiosas do período moderno vinculadas à cultura letrada. Junto com a professora Maria Renata Duran, da Universidade Estadual de Londrina, estabelecemos, inicialmente, um produtivo diálogo em torno da produção sermonística que teve como primeiro resultado a organização do Simpósio Temático “A parenética ao serviço da Coroa do Brasil Colônia ao Brasil Imperial”, no I Congresso Lusófono de Ciência das Religiões e Espiritualidades, Culturas e Identidades, promovido pela Universidade Lusófona, em Lisboa, em maio de 2015. Um segundo momento dessa colaboração foi o Seminário Luso-Brasileiro Igreja, Cultura e Estado Moderno, realizado na UEL em agosto de 2015, com o apoio da CAPES.
*
**
Isabel Drumond Braga é doutora em História, especialidade em História Económica e Social (séculos XVXVIII), pela Universidade Nova de Lisboa (1996) e agregada pela Universidade de Lisboa (2006). Leciona na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa desde 1990. Foi professora visitante na Universidade Federal Fluminense (Brasil), em 2009, na Università di Catania (Itália), em 2011 e na Universidade Federal da Uberlândia (Brasil), em 2013. Colaborou com a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, no ano letivo de 2012-2013, lecionando o seminário de mestrado “História Económica dos Cuidados de Saúde em Portugal”. Tem participado em congressos científicos nacionais e internacionais em diversos países: Alemanha, Áustria, Brasil, Espanha, França, Israel, Itália, Marrocos, México, Portugal, Reino Unido, Suíça e Tunísia; e em diversos projetos de investigação em Portugal, em Espanha e no Brasil. A produção científica desenvolvida tem versado, em especial, temas como: Inquisição, minorias étnico-religiosas, religiosidade popular, relações diplomáticas, parenética, assistência e vida quotidiana, com destaque para a história da alimentação. Curriculum e parte da produção científica disponíveis em: https://ulisboa.academia.edu/IsabelDrumondBraga Possui Mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (1996) e Diplôme d'Etudes Approfondies pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (1995). Realizou Doutorado em História Social na Universidade Federal Fluminense (2002) e pós-doutorado na Harvard University (2013). Também em 2013 foi bolsista na John Carter Brown Library, na Brown University, nos Estados Unidos. É professora do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná desde 2003, nas áreas de Teoria da História e História Moderna, com pesquisas e orientações na graduação e pós-graduação voltadas para o estudo da primeira modernidade com ênfase no Império Português, notadamente no Oceano Índico e no Brasil; experiências de cativeiro; Renascimento e Humanismo na Europa; história da cartografia e história do Brasil no período moderno.
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Este dossiê, lançado pela Diálogos Mediterrânicos, é um desdobramento dessa parceira e agrega pesquisadores envolvidos com as diferentes abordagens da história cultural, nas suas vertentes material e intelectual. A motivação que reúne esses autores é dar a conhecer algumas das pesquisas de historiadores dos dois lados do Atlântico. Sendo um campo historiográfico amplo e metodologicamente consagrado, cujos fundamentos foram sendo criados em especial ao longo de todo o século XX e, em particular, no período após II Guerra Mundial, mais relevante do que fazer a história da história da cultura nos dois países, foi proceder a estudos de caso. Do resultado desta opção, temos temas ligados a um arco temporal alargado, isto é, do século XVI ao XX, que percorrem diferentes manifestações da cultura letrada no Brasil e em Portugal, da poesia à constituição de bibliotecas particulares e de instituições, de receituários a periódicos, de pareceres a discursos. O primeiro artigo, de autoria de Ricardo Shibata, " ‘O bom rei deste mundo se partia’. Um discurso vicentino às exéquias de D. Manuel”, trata de uma consolação fúnebre em verso escrita por Gil Vicente por ocasião da morte do rei D. Manuel. No interior das práticas letradas do século XVI na Península Ibérica, a matriz discursiva do autor é estudada como um exemplar da poesia palaciana. Do mundo das práticas letradas palacianas também trata o artigo de Andréa Doré, “A Ásia no Papel Forte de Antônio Vieira”. Desta vez é um rei, D. João IV, que encomenda um parecer, objetivo e circunstanciado a um de seus conselheiros, o Padre Antônio Vieira. Na análise do texto que daí resulta, o chamado Papel Forte, destaca-se o uso que Vieira faz das informações sobre a Ásia para convencer o rei da necessidade de entregar Pernambuco aos holandeses e especulam-se suas possíveis fontes. Isabel Drumond Braga, em “O Receituário de Francisco Borges Henriques: Culinária, Cosmética e Botica em Portugal no século XVIII” se dedica ao estudo de um manuscrito inédito no qual se encontram receitas de culinária a par de outras dedicadas a questões de higiene e beleza e mezinhas utilizadas na época, numa mistura comum neste tipo de documentos, em que se entrelaçam permanências e rupturas. Se no que se refere aos preparados com vista a obter saúde e beleza estamos perante um receituário bastante tradicional em que se cruzam superstição, magia e pretensa medicina já no que se refere ao receituário de culinária estamos perante um cozinheiro criativo que apresenta várias novidades, em especial no que se refere à utilização de novos produtos. Se outros predicados não se pudessem atribuir a um receituário manuscrito leigo e inédito de setecentos, bastaria que tivéssemos noção da raridade deste tipo de fontes para o Portugal Moderno para avaliarmos a importância do mesmo. A obra é relevante por apresentar receitas de culinária a par de outras dedicadas a matérias de higiene Revista Diálogos Mediterrânicos
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e beleza e mezinhas, numa mistura comum neste tipo de documentos, em que se entrelaçaram permanências e rupturas. O conteúdo de duas bibliotecas são analisadas em dois artigos. Ana Isabel Buescu, em “O lugar da História na livraria de D. Teodósio I, duque de Bragança”, dedicou-se ao estudo da livraria do 5º duque de Bragança, D. Teodósio (†1563), a maior livraria nobiliárquica portuguesa do Renascimento, e uma das maiores da Europa do tempo. Depois de uma visão geral, na qual a autora caracteriza os conteúdos da livraria no seu conjunto, centra-se nos livros de História, que assumiram, com a Teologia e o Direito, uma expressão cimeira na livraria ducal. A livraria conventual interessou a Ricardo Pessa de Oliveira. Em “A Livraria do Convento de Nossa Senhora do Cardal (Século XVIII)”, analisa os espécimes que formavam a livraria daquela casa pertencente aos religiosos franciscanos da Província de Santo António, situado na vila de Pombal, a partir de um catálogo do século XVIII, o que lhe permitiu identificar as temáticas que compunham a biblioteca, a par das datas, dos locais de edição e dos idiomas em que as obras foram dadas à estampa, numa abordagem comparativa com as livrarias de outras casas religiosas da época. Novamente uma biblioteca e a produção letrada para fins pedagógicos estão presentes no artigo “Livros e exames de Retórica no tempo de Pombal: a emergência de uma disciplina de conhecimento”, de Maria Renata da Cruz Duran e Junior César Pereira. Com base em alguns dos primeiros exames de Retórica em Portugal e o índice da biblioteca de Manoel Inacio da Silva Alveranga, primeiro mestre licenciado da disciplina na América Portuguesa, os autores recuperam a genealogia dos estudos dessa matéria no ambiente luso-brasileiro. Dois artigos abordam a produção periodística. Cesar da Silva e David Francisco Penteado, em “O perfil dos redatores do periódico O Auxiliador da Indústria Nacional (18331896)” analisam, por meio da prosopografia, o perfil dos redatores de um jornal de vulgarização do saber científico no Brasil do século XIX, O Auxiliador da Indústria Nacional, um caso raro de longevidade do periodismo brasileiro do período. Teresa Nunes, em “Expressões culturais na Lisboa revolucionária. Carlos Malheiro Dias, um cronista da cidade (1904-1913)”, deteve-se na figura de Carlos Malheiro Dias (1875-1941), literato, historiador e colaborador da imprensa, que dividiu a sua vida entre Portugal e o Brasil. Observador atento e crítico da realidade lisboeta pré e pós revolucionária da capital, Malheiro Dias escreveu para o jornal Comércio do Porto crónicas intituladas "Cartas de Lisboa", as quais constituíram um repositório relevante para a reconstituição dos ambientes culturais de então, dados a conhecer pela pena de um monárquico. Revista Diálogos Mediterrânicos
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Também sobre a produção letrada no século XX trata o artigo de Paulo Drumond Braga, “A educação no discurso parlamentar feminino português (Estado Novo, 1935-1974)”, dedicado à participação feminina na Assembleia Nacional, a câmara legislativa do Estado Novo português, que, entre 1935 e 1974 albergou 22 mulheres. Destacam-se os temas educacionais justificados pelo fato de onze delas serem professoras de diferentes graus de ensino. Foram objeto de atenção matérias como o papel da universidade, as reformas dos ensinos primário e liceal, o lugar da mãe como educadora, a condição social dos professores e a ação de instituições como a Mocidade Portuguesa, a Mocidade Portuguesa Feminina, a Obras das Mães pela Educação Nacional, sem esquecer as especificidades de Angola e Moçambique. Artes plásticas e biografia dialogam no artigo de Ana Heloisa Molina, “A biografia de Eliseu Visconti pela escrita de Frederico Barata”. Eliseu d’Angelo Visconti (1866-1944), pintor italiano naturalizado brasileiro foi objeto de uma biografia do crítico de arte Frederico Barata, Eliseu Visconti e seu tempo, publicada em 1944. A obra é analisada considerando a interface entre biografia e crítica de arte, de um lado, e as reflexões da micro-história como instrumento de análise das relações com o contexto, de outro. Eis um pequeno mas variado leque de autores e temas de história da cultura letrada nas perspectiva brasileira e portuguesa, revelador de linhas de investigação todas já consagradas através de metodologias experimentadas. Independentemente da formação e da experiência dos autores envolvidos, todas as colaborações resultaram de investigações mais vastas e aprofundadas levadas a efeito num passado muito recente e cujos resultados se podem ver igualmente em outros trabalhos acadêmicos. Desta colaboração entre docentes de várias instituições brasileiras e portuguesas pretende-se um maior conhecimento das práticas historiográficas dos dois países e um estreitamento dos laços pessoais e institucionais, a concretizar através da circulação de docentes e discentes.
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O bom rei deste mundo se partia. Um discurso vicentino às exéquias de D. Manuel A good king passed away. A Gil Vicente’s discourse to the decease of D. Manuel Ricardo Hiroyuki Shibata * Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná
Resumo
Abstract
Gil Vicente (c.1465-c.1536), muito conhecido por sua obra teatral, é também autor de uma importante consolação fúnebre em verso, “À Morte do Muito Alto e Esclarecido Rei D. Manuel, o Primeiro do Nome”. Esta obra guarda particular interesse, pois, até agora, pouca atenção recebeu da historiografia e da crítica literária, conquanto se constitua em testemunho representativo da passagem institucional do trono régio. Além desse caráter contextual, há outro de igual importância – aquele do exame da consolação como forma discursiva, decorosamente regrada, de intervenção política.
Gil Vicente (c.1465-c.1536) is very well-known by his theatrical plays in Portuguese XVIth century, but he is also the author of an important verse consolation, “À Morte do Muito Alto e Esclarecido Rei D. Manuel, o Primeiro do Nome”. This work is particular relevant for its historical and literary elements, specially, in the moment of the passage of the royal throne. Besides that institutional context, it is important to examine the consolation as a discourse form for political intervention.
Palavras-chave: Humanismo; Renascimento; século XVI
Keywords: Humanism; Renaissance; XVIth century
● Enviado em: 14/11/2016 ● Aprovado em: 27/06/2017
*
Professor do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná.
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Há um aspecto da obra de Gil Vicente que recebeu até agora (salvo engano) muito pouca atenção da crítica e da historiografia tanto literária quanto histórica. Refiro-me, em particular, a um interessante romance em verso, “À Morte do Muito Alto e Esclarecido Rei D. Manuel, o Primeiro do Nome”, presente em suas “Obras Miúdas”, cujo teor trata de um lamento em forma elegíaca ao passamento do monarca soberano de Portugal. Esta obra, produzida concomitantemente a “Outro romance de Gil Vicente que fez quando foi levantado por rei D. João, o terceiro, de gloriosa memória”, constitui uma das faces – ambas, de fato, complementares – de um ritual estratégico da realeza: aquela da morte do antigo rei e a imediata ascensão de seu sucessor. Para o âmbito específico deste estudo, vou limitar-me ao primeiro, verdadeiro resumo de uma circunstância particularmente delicada da história institucional portuguesa, qual seja, o momento da vacância momentânea do trono real. É importante ressaltar, desde logo, que essa consolação fúnebre só pode ser reconstituída e interpretada, de modo historicamente verossímil, a partir de sua inserção estratégica no interior de um quadro formal retórico-poético, assentado nas práticas letradas do século XVI na Península Ibérica. Equivale a dizer, então, que a matriz discursiva de Gil Vicente seria sobretudo aquela divulgada pelo arsenal de topoi da poesia palaciana, cujo caráter sapiencial e votivo testemunhava as regras de elocução em que se dava a presença da figura régia. Isso significa afirmar igualmente que um dos momentos mais decisivos da história política portuguesa serve de esquadro para a inventio do discurso vicentino, mesmo porque as exéquias da realeza não se realizam sem decoros e formalidades especificados numa teorização institucional que doutrina os espetáculos do Estado e a expressão de magnificência amplamente compartilhada por toda a comunidade. Ambas as tradições – o aspecto propriamente literário e o viés institucional – são repostas, aqui, para constituí-las como mapa dos sentidos possíveis, sem o qual implicaria certo desvio, com grande perda epistemológica, ao labirinto anacrônico dos testemunhos vividos pelo próprio autor, da tradução objetiva do momento histórico de interregno do poder monárquico ou das manifestações subjetivas de pranto. Bem ao contrário, os conteúdos mobilizados por Gil Vicente só podem ser corretamente desvelados se levarmos em conta as condições históricas particulares em que se produziram e o interesse persuasivo a que se destinam, devendo, prioritariamente, ajustar-se a uma forte estruturação formal em que se assenta e à lógica, algo particular, da dinâmica política da monarquia portuguesa. O discurso consolatório de caráter fúnebre, escrito em verso, possui uma longa tradição formal. Seu percurso histórico pode ser mapeado inicialmente nas composições de Revista Diálogos Mediterrânicos
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Estácio1 e, depois, nas obras poéticas de Catulo2, Virgílio3, Horácio4, Propércio5 e Ovídio6. Para o estudo da preceptiva do gênero, as consolações poéticas latinas não apresentam qualquer precedente na literatura grega anterior, pois sua “indeterminação” ou sua “não fixação” genérica pode ser esboçada ao compará-la com os traços característicos de outros tipos de composição como a elegia e o epigrama. Se esses três gêneros literários compartilham, de fato, certas características como o conjunto de topoi e o estilo, a consolação se diferencia por sua estrutura muito peculiar. É que os poemas consolatórios latinos estão compostos por uma introdução geral amplificada em forma de expositio, que se destaca como proposição especulativa, e por mais três partes claramente diferenciadas e ordenadas sempre na mesma disposição retórica: no exórdio, uma parte encomiástica em forma de laudatio, que engloba a captação da benevolência, isto é, a parte do exórdio em que o orador pede aquiescência do público para o que se vai dizer; segue-se uma narração, em que se suscita o lamento geral pelo luto, em forma de comploratio, o que incorpora também as funções da petição discursiva (de qualquer forma, é uma “prótese argumentativa” e não apenas uma simples exposição ou “narração” de fatos); e na peroração, uma consolação propriamente dita – uma consolatio. Através dessas quatro partes constitutivas e individualizadoras do gênero, a consolação poética entrava em estreito contato com outros gêneros correlatos: a partir da seção encomiástica, com todas as formas de louvor e suas respectivas variações, e, pela seção dedicada à comploratio, com a elegia e o epigrama sepulcrais. A rigor, a elegia e o epigrama, de gêneros inicialmente aptos à toda manifestação de tristeza e pesar, tendem a converter-se em discursos abertos em termos de variedade temática e de expressão de todos os aspectos da vida humana, a despeito de muitas vezes tratar e amplificar um aparato consolatório comum de tópicas e subtópicas: mais vale uma vida intensa do que longeva e entediante; as coisas do mundo são passageiras, apenas a morte é certa; os mortos estão apenas provisoriamente ausentes; a vida é um empréstimo que devemos devolver ao morrer etc.7A consolação poética, por sua vez, se mantém fechada em termos formais, sobretudo por conta de sua estrutura menos flexível e seus limites de conteúdo, cujo objetivo é chorar os mortos e confortar os vivos. 1 2 3 4 5 6
7
ESTACE. Silves. Paris: Les Belles Lettres, 1944, t. I, II.1; II.6; III.3; V.1; V.3; V.5. CATULLE. Poésis. Paris: Les Belles Lettres, 1984, carmen V e CI. VIRGILE. Bucoliques. Paris: Les Belles Lettres, 1963, écloga 5. HORACE. Odes et Epodes. Paris: Les Belles Lettres, 1954, tomo I, Odes I.4, I.24, I.28, II.9 e II.14. BUTLER, H.E..SextiProperti Opera Omnia. London: Archibald Constable, 1905, V.11. Amores III.9, Pont. I.9, Cf. KENNEY, E.J. (Ed.). P. OvidiNasonis. Amores. Oxford: Claredon Press, 1995, p.94ss; e OVIDE. Les Pontiques. Paris: Garnier, 1937, pp.256-259. SULLIVAN, J.P..Martial: the unexpected classic. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
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Quanto à elocução, conforme dizia Quintiliano8, o poema consolatório, conquanto compartilhe com a elegia e o epigrama certos procedimentos estilísticos, como o uso de segunda pessoa, vocativos e apóstrofes, apresenta um estilo próximo à epopeia e à tragédia que se vincula à gravidade do pensamento pela solenidade do fraseado e pela expressão majestática do caráter.9 Ora, no que se refere ao poema consolatório cristão, são mantidas as partes já estruturadas pela tradição clássica, porém o elogio das virtudes pagãs é substituído pelo pietismo e pelas virtudes sacrificiais. Ou seja, aquelas disposições de espírito que são resultado da fé, porque se propõe elogiar a imortalidade por meio das ações humanas e, não, os feitos terrenos em si. A diferença fundamental, então, reside, como diz S. Jerônimo (Ep. 60, 14.2), no fato de o pagão viver esperando a morte e o cristão morrer esperando a vida (morivicturum). Para sossegar as causas de aflição pelo luto, os autores cristãos investem na tópica da morte igualar a todos os homens, acrescendo novas tópicas como o acatamento à vontade de Deus ou a partida desta vida para uma vida melhor. Durante a Idade Média, com Boécio, esses topoi se assentam e recebem a contribuição dos argumentos acerca da vaidade dos bens (a cobiça por riquezas, o luxo das roupas, a multidão de criados) e do poder temporal (a paixão pela fama e glória que se busca pelos bons serviços prestados ao Estado), a inconstância da Fortuna (ao modificar o rumo das coisas e a girar a roda da sorte) e do sofrimento como destino comum de todos os homens.10 Aqui, a nota estoica lida em chave cristã por Boécio, considerando as duas Fortunas, a mais benéfica aos seres temporais é aquela que é desfavorável, pois admoesta a alma da confiança na precariedade da existência. A outra, a favorável, pelo contrário, seduz e atrai ao movediço da falsa aparência de felicidade e constância de seus dons.11 É justamente a esta Fortuna contrária, da qual se queixava John de Salisbury, ao ter de se retirar da corte inglesa, num dos tratados de filosofia-política que mais influência exerceu na Alta Idade Média. No Polycraticus, ele adverte que não há salvação possível (obviamente) para aqueles que cultivam os vícios mundanos, o que necessariamente constrange a corrigi-los através da autoridade da razão e dos testemunhos incontestes das Sagradas Escrituras.12 A partir desse ponto doutrinal, o discurso fúnebre de Gil Vicente pela morte de D. Manuel quadra perfeitamente com o resgate cuidadoso e consciente dos recursos dessa
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QUINTILIANO, Marco Fabio. L’InstituzioneOratoria. Torino: UTET, 1979, v. II: X, I. 39. QUINTILIANO, Inst. Orat., X, I. 97. MURPHY, James. Rhetoric in the Middle Ages. Los Angeles: UCLA Press, 1997, p.68. BOÉCIO. Consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp.25-52. SALISBURY, John of. Policraticus. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
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tradição de temas consolatórios, tanto em seu arsenal de topoi, como em sua estrutura. O que equivale a dizer que o discurso vicentino responde a um rigoroso processo de construção, fundado em dois aspectos complementares: por um lado, a submissão às leis do gênero da consolação poética; e, por outro, a atualização dessa estrutura formal às circunstâncias particulares de enunciação e ao seu enquadramento persuasivo de base. Com efeito, como se viu, o gênero exigia que as composições contivessem uma expositio geral do tema a ser tratado, seguida por um esquema tripartite (laudatio, comploratio e consolatio). E é exatamente isto que encontramos no discurso “À Morte do Muito Alto e Esclarecido Rei D. Manuel, o Primeiro do Nome”, de Gil Vicente: 1) exposição geral acerca da vida e da morte com ênfase na transitoriedade da vida e da vaidade dos bens terrenos; 2) panegírico de D. Manuel, em que se exaltam as suas virtudes, sobretudo aquelas referentes a seu pietismo cristão; 3) as expressões mais patéticas de lamento da família real pelo pesar sofrido; e 4) o consolo dos grandes do Reino de Portugal que procura assegurar que com a morte se abra o caminho para a vida eterna. Quer dizer, a solução formal esposada por Gil Vicente propõe que a existência terrena é oportunidade para angariar dividendos salvíficose uma transição estratégica para a glória celestial; assim, em oposição à emulação de práticas literárias pagãs, em que a vida terrena é dedicada à glória mundana e à busca de renome e fama. São justamente essas duas soluções, com suas devidas variações, que se encontram já firmemente assentadas nas compilações de poesia cortesã presentes no Cancioneiro de Baena (1445-50), de Juan Alfonso de Baena, em Espanha, e no Cancioneiro Geral (1516), de Garcia de Resende, em Portugal. O tema da morte e seus correlatos nas “elegias funerais”, como se refere Puértolas, demonstra a presença ostensiva de uma tradição acumulada que se manifesta de dois modos particulares. Primeiro, os “poemas de morte”, em que o lamento se dirige ao genérico da situação e que se expressa em tópicos como a brevidade da vida, o poder igualatório da morte e aos despojos aos quais destina o homem. E, segundo, as “defunciones” ou “poemas de mortos”, em que o lamento se traduz em dados concretos, voltados à construção de um ethos particular, portanto aplicável somente a um determinado indivíduo.13 Em sua apropriação pós-petrarquista, aqui, menos do que lamentações para chorar o passamento, essas composições são discursos de índole panegírica, ou seja, elogiam a vida pregressa e as virtudes prudenciais que a compuseram.14
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GUIZADO, Eduardo Camacho. La Elegía Funeral en la Poesía Española.Madrid: Gredos, 1969, pp.66-67; e também ARIÈS, Philippe. L’Hommedevantlamort. Paris: Seuil, 1975. GUIZADO, Eduardo Camacho, op. cit., pp.77-78.
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Reposta, então, a tradição formal do gênero consolatório em verso e sua organização discursiva, o que cabe fazer é examiná-la à luz da dinâmica histórica em que se dá o romance de Gil Vicente em homenagem à morte de D. Manuel. A rigor, penso que é preciso referi-lo estrategicamente a essa situação de anomia suscitada pelo interregno do poder nos alvores do século XVI, em Portugal.15 Historicamente, a continuidade ritual entre as expressões mais patéticas pela morte de um rei e os sentimentos de júbilo pela aclamação de seu sucessor pode muito bem ser resumida na seguinte fórmula: “Fizeram seu dó, e depois alegrias como é costume”, segundo disse o cronista Fernão Lopes quando do levantamento de D. João I, Mestre de Avis. Mesmo porque a fratura no tecido social, decorrente da acefalia do Reino, devia ser provisória e rapidamente reconstituída. As expressões concomitantes de pesar e regozijo eram articuladas pelo sentimento de anomia devido à vacância do poder com a sucessão de dois rituais com profundas diferenças sentimentais. Assim, a dor pela morte do corpo físico do rei, sujeito a todas as vicissitudes do tempo, rivalizava com a permanência do seu corpo simbólico, a função de “cabeça” do corpo político e do Estado. De fato, trata-se de um momento único em que o ofício da realeza se atualiza através do corpo material do novo rei. Parece evidente que, de modo estrito, nunca há vacância de poder, apenas a expectativa do alçamento que viria a coroar, num ritual específico, quem de direito seria o novo titular do trono. A solução de continuidade dava-se pela recomposição da ordem instituída, assumindo a persona do rei – rexnumquammoritur – com todos os caracteres e funções daquele que havia falecido. Por esse mesmo viés, de âmbito extensivo, o princípio fundamental, que ordena organicamente as práticas institucionais da monarquia portuguesa,reside justamente na encarnação concreta da teoria política que as fundamenta, estabiliza e subordina, vale dizer, elas são partes integrantes da imagem da realeza como modelo de práticas de excelência e regras de honra para todo o corpo político.16Então, as práticas cerimoniais de índole institucional – sobretudo aquelas ligadas à morte do rei, que me interessam, em particular, nesse estudo – são ocasiões estratégicas para se revisar o próprio estatuto da monarquia. E aí,
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KANTOROWICZ, Ernst. The King’s Two Bodies: a study in Mediaeval Political Theory. Princeton: Princeton University Press, 1957; e, mais especificamente: GIESEY, Ralph. Royal Funeral Ceremony in Renaissance France. Geneva: Droz, 1960; e _____. Royal ceremonial and the advent of absolutism. In: BETHENCOURT, Francisco & CURTO, Diogo Ramada. A Memória da Nação. Lisboa: Sá da Costa, 1991, pp.169-186. Para o contexto português, ver: BRAGA, Paulo D.& BRAGA, Isabel M.R. Mendes D. As duas mortes de D.Manuel: o rei e o homem. Penélope, 14 (1994), pp.11-22. NIETO SORIA, José Manuel. Ceremonias de la Realeza. Madrid: Nerea, 1993.
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ou levá-la a dissensões internas com lances de tensão e potencial conflito, ou confirmá-la, estabelecendo a paz política e ratificando a hierarquia. Nesse sentido, as fórmulas do aparato retórico da tradição literária devem combinar-se com as finalidades propostas pela tradição de rituais de base política. Isto leva a entender que os esforços da argumentação de Gil Vicente não se constituem em mera arbitrariedade de construção ou narração descompromissada de fatos (ficcionais ou não), porém inserção precisa numa tradição cerimonial que articula, dinamiza e demanda uma linguagem específica com seu arsenal de lugares-comuns vinculada a um gênero poético determinado. Conforme a hermenêutica que estabelecemos aqui, Gil Vicente começa por enunciar a tópica do desengano, com forte acento estoico, propondo estrategicamente que “Quem longa vida deseja, / deseja ver-se enganar”, pois é exatamente no “triste acabar” que “se começa o engano”, mesmo porque aquilo que “vejo chamar / vida, não que vida seja”, mas tão-somente “modo de falar”; melhor convém, a partir da ponderação acerca da morte, que “não dure a vida de engano”.17 Assim, o tempo presente da existência humana nada é senão exortação a uma longa meditação acerca do fim a que se destina inexoravelmente.18 Nada vale, então, para seguir nos passos do aviso público do memento e amplificar a proposição inicial postulados por Gil Vicente, “riqueza ou grande poder, / ou mui alta senhoria, / ou bonança ou alegria”, que não resistem a passagem do tempo, pois “logo deixa de ser / quando era”. Pois, são apenas, enfim, “vida vã e vazia, / ocupada em presunção”. Ou, mais especificamente, para referir-se de vez a D. Manuel, “quem viu as alegrias / daquelas naves tão belas, / belas e poderosas velas, / agora há tão poucos dias / era ir a Infante nelas!”,o que se subsume ao patético do desengano da falsa esperança e do cogito mori sofrido pelo corpo mortal que preenchia o cargo de rei (“Rei que o mundo mandou”), cujos feitos do varão ilustre digno de memória encontram o “que tal se tornou; / e verei como te velas da vida que o enganou”.19 Aqui, a argumentação de Vicente aperta o cerco para provar, assim como a tradição do gênero, que a morte também bate à porta do palácio dos reis, restando a mortalha por Reino e a terra por Corte; nada lembrando a grandiosidade das ações veneráveis do Venturoso. E, para fechar o memento, dá o tom em chave pastoral: “Vela-te, vida, na vida, / não sejas morte na morte”, ou seja, “guia-te per este norte / de tão súbita partida / de um Rei tão são e tão forte”, que é modelo, não de feitos e ações dignos de memória listados no elenco 17
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Todas as citações de Gil Vicente são feitas a partir da edição da Compilaçam de toda las obras de Gil Vicente, pela INCM (Lisboa, 1983, v.II). A presente citação encontra-se à página p.626. SÊNECA.De Brevitate Vitae. São Paulo: Nova Alexandria, 1995, VII.3-4. VICENTE, Gil, op. cit., pp.626-627.
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quase interminável das crônicas régias de matriz classicizante, entretanto, do que resta do percurso humano pela existência terrena ou, de modo contundente, definitivamente, da brevidade da vida.20Assim, a busca de imortalidade pelo triunfo dos feitos sobre a morte e o esquecimento21 cede lugar à advertência do quia pulvis es, et in pulverem reverteris (“porque tu és pó, e em pó irás se converter”, Gn. 3.19). Qualquer esperança de glória a partir da conquista de bens terrenos é apenas imensa vaidade, de onde vicejam todos os enganos – “vaidade das vaidades”, como se refere o Eclesiastes.Nessa linha de pensamento, S. Jerônimo esclarece, como afirmavam as epístolas senequistas22, que o luto pela ausência tanto é mais suportável, quanto mais se constitui a certeza do destino daqueles que ficam.23 Para S. Jerônimo, ainda, esse aspecto do elogio das virtudes, contrariamente ao hábito retórico dos elogios fúnebres antigos em que se narravam os feitos e as glórias mundanos, fazendo-os mais ilustres que os antepassados, adquire outra conotação. Pesam na balança apenas os atos dignos de exemplaridade e decorosos em relação às práticas cristãs e ao aumento da fé. De nada serve, então, uma vida terrena que finda na morte, pois preferível é a morte que termina em vida eterna ou morrer diariamente para a glória (ad gloriam).24 Conquanto os bens terrenos possam fornecer “prazer” (laetitia), eles não conseguiriam angariar aquilo que verdadeiramente merece ser recolhido com exultação – a “alegria” (gaudium) e, por meio das bênçãos do Espírito Santo,a “paz” (pax), definida justamente como “a tranquilidade da alma que nenhuma paixão pode perturbar”.25 Fica particularmente claro, então, que a amplificação das virtudes, esposada pela tradição estoica, seria mais efetiva ao se referir àqueles feitos dignos de memória que, acompanhando o decoro da historiografia clássica e dos panegíricos fúnebres, pode consolar, de modo satisfatório, da ausência, ao mesmo tempo em que ativa o memento e suscita o bene vivere com vistas a felicitas. Entretanto, para a ortodoxia católica, não basta qualquer felicidade em si, mas a vita beata, ou seja, o bonorum omnium finis26; aquela a qual se devem “dirigir todas as ações, sem que haja mais nada além dele que procurar”.27
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Idem, Ibidem, p.627. VOVELLE, Michel. La Mort et L’Occident de 1300 à nos jours. Paris: Gallimard, 1983, p.221. SENEQUE. Ad Polybium De Consolatione. In: _____. Dialogues. Paris: Les Belles Lettres, 1942, t.III: “Consolations”. “A Heliodoro: Epitáfio de Nepociano”, In: Cartas de San Jerónimo. Madrid: Editorial Católica/Biblioteca de Autores Cristianos, 1962, p.533. Idem, Ibidem, p.537. COLISH, Marcia L. The Stoic Tradition from Antiquity to the Early Middle Ages. NY: E.J. Brill, 1990, v.II, p.77. AGOSTINHO, S., Epístola 118, 3, 13.17 Idem, A Cidade de Deus. Contra os pagãos. Petrópolis: Vozes, 2001, v. I, livro XII, cap.VIII, p.129.
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Enfim, as riquezas, as mais altas dignidades e outros bens semelhantes que fazem os mortais se julgarem felizes, nada valem se comparados com a “verdadeira vida”, que é o reino dos céus. O que, de fato, é necessário é incorporar, nas práticas da vida cotidiana, a desolação frente à felicidade terrena, pois é ela que afasta da “paz superior” e da vida bem-aventurada. A existência assumiria essa forma circular, pois, conquanto possa mudar em aparência, sua natureza é sempre igual, que tende ao pó e as cinzas. Não é por acaso que, nessa mesma perspectiva do pietismo, flagrada perfeitamente no discurso vicentino, Íñigo Lopez de Mendoza (1398-1458), o Marquês de Santillana, em seus célebres Provérbios,28 observa, no capítulo XVI (“De la Muerte”), que a tão alardeada crença humana numa glória terrena, escapando das vicissitudes do tempo, é absolutamente irracional. É, assim, que afirma a primeira parte do entimema: “grand locura / es que piense la criatura / ser nasçida / para siempre en esta vida”, pois, para a segunda parte do entimema, o que vale, de fato, é a glória celeste obtida além-túmulo: “el alegría / que s’espera (...) la gloria verdadera / del Señor / duradera”. E, em conclusão, para apaziguar do peso imenso que o medo da morte causa: “passándola, seremos / en reposo / en el templo glorioso / que atendemos”.29 Admitindo, então, a morte como liberação para aqueles que não sentem apego à vida, oferece ao crente a ocasião mais propícia para que o espírito se desate das exigências do corpo terreno e se conduza ao desengano e à união perfeita e definitiva com Deus.30 “Não há genuína virtude quando a virtude está subordinada à glória humana”, vaticinava S. Agostinho31. Mesmo o amor à pátria era um ato terreno por demais comezinho, pois decorrência de uma vontade, no limite, voltada para o aplauso público e nunca dileção pela eternidade.32 É justamente nesse mesmo sentido agostiniano que Tomás de Aquino, em seu Do governo dos príncipes, examinando os principais deveres dos governantes como cabeça do corpo político do Estados temporal, afirma ser grave engano considerar “honra e glória terrenas” como “recompensa suficiente para aqueles que exercem o ofício régio”, mesmo 28 29
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LAPESA, Rafael. De la Edad Media a nuestros días. Madrid: Gredos, 1982, p.60ss. El Marqués de Santillana. Poesía. México: Porrúa, 1994, “XVI. De la Muerte”, estr. 98, 99 e 100, respectivamente, p.17. “De Dioguobrandam ha morte delrrey dom Joam o segundo”, Cf. Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1913, t.3, p.1, 2, 3 e 8, respectivamente; “Lamentaçãaa morte dellrrey dom Joham que santa groria aja feyta per Luysanrriquez”, Cf. Idem, Ibidem, p. 69; “De dom Joãmanuelha morte do prinçepedõ Affonso”, Cf. Idem, Ibidem, t.2, p.1 e 4, respectivamente; “Do jfante dom Pedro fylhodelrrey dom Joã da groriosa memoria sobre o men’preço das cousas do mundo em lingoajem castelhana, as quem tem grosa”, Cf. Idem, Ibidem, t.2, p.249. AGOSTINHO, S..A Cidade de Deus..., v.I, livro V, cap.20, p.221. Idem, Ibidem, livro V, cap. XVI, p.214.
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porque o bom governante não é aquele que se volta para a “honra efêmera desse mundo” por um ardor da vã glória, porém é aquele que “deve cumprir seus deveres (...) por amor à eterna bem-aventurança”.33 O que de fato acontece é que a noção essencial que perpassa cada uma dessas assunções é estrategicamente a noção de “ordem”, cujo correspondente, no plano da comunidade política, é análogo, no plano metafísico, à “justa ordem natural” e, no plano ético, à caridade (amor de Deus e do próximo)34, condicionando a paz do corpo pela satisfação dos apetites e a tranquilidade da alma pelo acordo entre o conhecimento e a ação. Isto acresce à tradição estoica que a resignação imperturbável pela ausência de paixões e o arcabouço de benesses mundanas não são suficientes para o verdadeiro cristão: a primeira, porque deve vir sustentada pela submissão à Deus na fé sob a lei eterna35; motivo de tumulto e competição desenfreada entre os cidadãos, porque fonte de todos os vícios, a segunda. Pois bem, essa primeira parte da oração de Gil Vicente, em que são postos em movimento as tópicas da tradição cristã, refere-se estrategicamente ao rito de entronização régia, cuja liturgia objetiva renovar os laços espirituais, sociais e comunitários pela junção numa forma estatal particularmente coesiva, a despeito da imensa variedade de ordens, corporações e distinções entre os súditos do Reino, estabelecendo um fundo comum de crenças e valores.36 Dessa forma, a expositio vicentina ressalta essa matriz que subjaz à existência de todos os seres independentemente do lugar em que ocupam na hierarquia – e na descrição dos feitos do rei falecido (lugar mais alto do Estado e exemplo para os demais membros da Cidade), é patente a máxima que a morte em algum momento chega para todos. Daí, o desempenho da tópica do desengano ser crucial, pois exerce o papel de “desmontar” os vários estamentos que compõem o Estado, escalonados em caracteres distintivos de honra e ordenados pelo código de precedência, em função de um princípio maior, o do cultivo das virtudes. Articulado estrategicamente a esse primeiro movimento, há um segundo: a da laudatio, aquele em que Gil Vicente vitupera aqueles que se esforçam na busca desenfreada por bens terrenos e glórias cívicas. Para ele, o fogo caudaloso da cobiça e as conquistas humanas, conforme reza a tradição, estão destinadas às cinzas e ao pó a que todos os seres terão de 33
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Do Governo dos Príncipes ao rei de Cipro. São Paulo: Anchieta, 1946. Ver também: SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Cia das Letras, 1996, p.121; e AQUINO, S. Tomás. SummaTheologica, Secunda Secundae, Quaestio CXXXII, Art.I e Art.III. RAMOS, Francisco Manfredo Tomás. AIdéia de Estado na Doutrina Ético-Política de Santo Agostinho. São Paulo: Loyola, 1984, p.231. Cf. ARQUILLIÈRE, H.-X. L’Augustinisme Politique. Paris: Vrin, 1972, pp.60-63. STROCCHIA, Sharon. Death and Ritual in Renaissance Florence. Baltimore/London: Johns Hopkins University Press, 1992, pp.23-24.
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voltar um dia certamente. Assim, os termos genéricos de índole especulativa propostos pela expositio ganham contornos mais nítidos se comparados ao diapasão fortemente pietista e pastoral fornecido pela laudatio. Esse caráter de nivelamento social assume a função não só de elemento coesivo entre os membros da comunidade política, mas também ratifica a necessidade de harmonia social, paz e amizade entre eles num momento particularmente agônico para a manutenção do Estado.A proposição vicentina, com vistas à mudança de comportamento por parte do público – de caráter coletivo, portanto –, torna-se oportunidade para reflexão acerca de si mesmo e da própria vida. Equivale a afirmar que a obtenção da paz interior conseguiria assumir satisfatoriamente caráter público, mesmo porque, nesta lógica de decorrências imediatas, a paz consigo mesmo é pré-condição para o estabelecimento de laços de amizade com outros e, portanto, para a concórdia de todos os membros da comunidade política. Quanto à segunda parte da oração de Gil Vicente às exéquias de D. Manuel, o caráter genérico das proposições é ambientado no interior de práticas rituais concretas, que percorrem do momento particular da morte até os últimos lances do cortejo de sepultamento. A ênfase no aspecto processional, em que desfilam os diversos níveis hierárquicos da sociedade, procura singularizar cada membro conforme sua dignidade política em relação ao Estado. Se, num primeiro movimento, as fronteiras entre os estamentos, cuja ordenação hierárquica foi “desmontada” em nome do desengano de uma vida com limites temporais e do cultivo da virtude, trata-se agora paulatinamente de recompô-las numa disposição argumentativa em que os elementos da descrição são eles mesmos apresentados emulando a hierarquia temporal.37 O esforço é destacar os liames de poder entre grupos determinados e legitimar distinções de status social conforme códigos de precedência. A ordem processional em que são apresentados e descritos os personagens – a parte dedicada à descrição dos “grandes” do Estado ordenada pela dispositio retórica em Gil Vicente – exerce papel relevante na narrativa, pois aqueles que possuem maior dignidade política devem ser apresentados primeiro numa ordem que segue necessariamente o ordenamento temporal. É, dessa forma, que a segunda parte da oração de Gil Vicente amplifica a “questão infinita” proposta, logo de início, em “questão finita” com menção às condicionantes particulares da situação discursiva. Daí, a referência ao “Pranto fazem em Lisboa, / dia de Santa Luzia, / por el-Rei D. Manuel, / que se finou nesse dia” e aos sentimentos de pesar dos
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Idem, ibidem, p.30.
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grandes senhores (“Choram Duques, Mestres, Condes, / cada um quem mais podia; / os fidalgos e donzelas / muitos tristes em perfia”).38 Entretanto, o acento patético das lacerações de pesar pela morte de tão ilustre figura na hierarquia do Reino português cabe obviamente aos membros da família real: os Infantes D. Luís e D. Fernando aos gritos; a descriptio puellae somada ao aspecto doloroso das lágrimas da Infanta – “seus cabelos, fios d’ouro, / arrancava e destruía; / seus olhos maravilhosos / fontes d’água parecia” – e as lástimas dignas de memória proferidas em discurso direto: Paço tão desemparado, derribado merecia, pois a sua fortaleza se tornou em terra fria. Oh, minha senhora madre, Rainha Dona Maria, quem a vós levou primeiro mui grande vos livrou da pena que passámos neste dia.39 Ou as “lágrimas prudentes”, decorosamente adequadas à ocasião (“como a grão senhor cumpria”), do Príncipe, futuro D. João III, aquele que iria assumir as funções da monarquia depois da morte do pai e cuidaria também de fazer cumprir o testamento e as exéquias. 40 Ou, ainda, a rainha, no mesmo registro patético desempenhado pela Infanta, com voz rouca de desamparo entre berros e soluços: Oh, Reina desamparada!, Qué haré sin compañía, pues en la esta triste vida sola una vida tenía !.41 E, salientando os laços matrimoniais com o rei falecido, testemunho inconteste de aliança política bem sucedida: Oh, sin ventura casada tres años, no más havía, quién tan presto fue beúda, triste, pera qué nascia?
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VICENTE, Gil, op. cit., p.627. Idem, Ibidem, p.628. SOUZA, Frei Luís de. Anais de D. João III. Lisboa: Sá de Costa, 1938, cap.V, p.29. VICENTE, Gil, op. cit., p.628.
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Por fim, queixando-se da dor da ausência e da orfandade não só dela, mas de todo o Reino português: “Niña sola en tierra agena, / huérfana sin alegría!”. E, para apertar ainda mais o nó dramático, acrescenta Gil Vicente: “assim pedia a Deus a morte / como quem pede alegria”.42 De fato, as expressões mais patéticas de dor e pesar nos rituais aristocráticos de morte cabiam primeiramente às mulheres aprender, desempenhar e transmitir, em forma de técnicas modelares de luto, o que incluía uma vasta gama de gestos físicos, surdos lamentos e flagelações auto-infligidas. Para certa tradição petrarquista, o luto vedava qualquer demonstração pública de sofrimento, enfatizando o autocontrole, a disciplina externa e a internalização da dor. As explosões emocionais eram consideradas indecorosas e inaceitáveis para aqueles que se dedicavam à vida ativa, pois o controle absoluto de si e a tranquilidade da alma deviam ser o exemplo mais acabado para instruir o corpo político. A imagem de autoridades públicas que representam o Estado devia ser preservada para transmitir adequadamente os ideais de cidadania.43 Em Gil Vicente, nada mais estranho do que essa impassibilidade. Para ele, a dramaticidade e as expressões patéticas deviam ser proporcionais à importância do momento. As “lástimas”, as “mágoas” da Infanta e “a rouca voz dolorosa” da rainha – “Lléven me luego, / que esta tierra ya no es mía: / por la mar por donde fuere / algún peligro venía, / que me matasse a mí sola / salvando a compañía”44 –, aos quais se refere Gil Vicente, tinham por objetivo não apenas demonstrar a perda pessoal causada à mulher (a filha do rei ou a esposa), mas também legitimar o luto coletivo da família e de toda a comunidade política.45 Ao enfatizar essa presença estratégica das figuras mais representativas da linhagem real portuguesa em momento tão decisivo, Gil Vicente configura o que Duby chamou de “lugar de memória”46, quer dizer, a instância genealógica estaria a serviço da coesão e da preeminência sociais. Os laços de consanguinidade seriam a fonte das virtudes aristocráticas e das prerrogativas sobre os demais membros da ordem social. Para Georges Duby, a morte 42 43
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Idem, Ibidem, p.629. PETRARCA, Francesco. Triumphus Mortis. In: _____. Trionfi. Torino: UTET, 1960, vv.118-123, pp.559-560. Ver também o estudo de Strocchia, op. cit., p.117ss e BARON, Hans.En Busca del HumanismoCívico Florentino. México: FCE, 1993, p.126ss. VICENTE, Gil, op. cit., p.629. Sobre o decoro dos lamentos a ser incorporado pelos “grandes do Reino”, normatizado em Ordenações, ver a Primeyra Partida, de Alfonso X, título VI, lei XL (“que peã deve a auerssegundo manda a Santa Igreia aos que fazem doospólos mortos”) e lei XLI (“que peã merecem os que sse rascam e carpem os rrostros e descobrem as carnes dos mortos”). As manifestações de luto pela morte de príncipes são especialmente marcadas pela força do pathos, sobre este tema, em particular, ver: ALVES, Ana Maria. Iconologia do poder Real no Período Manuelino. Lisboa: INCM, 1985, pp.74-75; e HUIZINGA, Johan. O Crepúsculo da Idade Média. Lisboa: Ulisséia, 1980. Apud LE GOFF, Jacques. São Luís. São Paulo: Cia das Letras, 1999, p.245ss.
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ritual não poderia ser saída furtiva do palco da vida, mas uma “aproximação lenta, regulada, governada, e prelúdio, passagem solene de um estado para um outro estado superior” 47; uma transição tão pública quanto o eram as núpcias entre reis e rainhas, tão majestosa como a entrada régia em cidades e as cerimônias de alçamento. Assim, Gil Vicente, ao narrar a presença da família régia nos momentos finais de D. Manuel, descreve exatamente esse momento delicado, mas também estratégico, da passagem do cargo de monarca, do poder temporal e demais dignidades de um rei para seu sucessor. E é exatamente, no que tange às virtudes mais expressivas do monarca, que desfalece em seus últimos momentos, recebendo os derradeiros sacramentos, ao expirar, sem as intervenções dramáticas do patético das cenas da Infanta e da Rainha, que melhor se matiza a serenidade de D. Manuel perante à morte. Eis o que afirma lapidarmente Gil Vicente: O bom Rei em seu acordo deste mundo se partia: sua morte conhecendo, com muita sabedoria, per palavras piedosas os Sacramentos pedia; falando com todos, deu sua alma a quem devia.48 Revela-se aí a figura do rei piedoso, aquele que conversa com os seus e “com muita sabedoria” (sabedoria que se opõe à ignorância daqueles que desdenham os conselhos do memento) “per palavras piedosas / os Sacramentos recebia”. Aqui, o modelo da morte em paz, em seus momentos finais, guarda valor exemplar na orquestração dos rituais das práticas social e política. O que possibilita, em Gil Vicente, a passagem da pastoral ao leito de morte propriamente dito, que se complementam, como do julgamento coletivo decorre a diatribe individual.49A partir disso, o romance de Gil Vicente atua como prova dos argumentos enunciados pelo exórdio, onde os feitos grandiosos e os bens terrenos são fortemente vituperados em proveito da vida além-túmulo, marcando o caráter religioso e ritualístico do cerimonial. O que está em xeque na descrição vicentina da “voz” atribuída à totalidade hierárquica do funeral é, no limite, o estatuto ambíguo do corpo, e, em particular, o corpo do rei, suposto na tradição cristã. Vale dizer, conforme ressalta Le Goff, a partir da assunção paulina (Ep.Felip. 3.20-21), o corpo material e perecível está prometido à ressurreição e à 47 48 49
DUBY, Georges. Guilherme, o Marechal. Lisboa: Gradiva, 1986, p.7. VICENTE, Gil, op. cit., p.629. VOVELLE, Michel. Mourir Autrefois. Paris: Gallimard/Julliard, 1974,p.61.
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glória eterna.50 Assim, o processo de sacralização do corpo real se mostra na perenidade do ofício régio que se convoca para a eternidade na monarquia. Em verdade, o que se afirma não é só o rei ou a família real, mas toda a dinastia régia numa ficção de continuidade do cargo majestático. A miséria corpórea é agora santificada pelo corpo glorioso, não a do santo, entretanto, como ele, eterno e sagrado.51 Esta estrutura marcadamente hierárquica é o que se vai encontrar, em Gil Vicente, na parte dedicada à consolatio, última subdivisão do gênero consolatório em verso, fornecendo, a rigor, continuidade a mesma estrutura escalonada em decoros de distância em relação à cabeça do corpo político contida na elocução fortemente patética da família real na comploratio.Esta última parte utiliza como procedimento sistemático as orações em louvor à Virgem e os pedidos insistentes de sua intermediação para a bom recebimento, guarda e bemaventurança da alma do rei falecido. É, assim, portanto, que, nas “Orações dos Grandes de Portugal a Nossa Senhora, depois d’enterrado el-Rei”, as diversas enunciações se sucedem numa ordem decrescente de dignidade. Ao rei falecido, no modo de entender de Gil Vicente, segue-se o decoro da enunciação das preces do Duque de Bragança (“este vosso rei encomendado / Rei, que tanto vos queria, / que lhe dês tanta alegria”), do Mestre de Santiago (“que este Rei que era nosso / haja de vós dos favores, / como um dos servidores / que foi vosso”), do Marquês de Vila Real (“ponde sua alma na glória / per vossa mão laureada / de vitória”), do Marquês de Torres (“vós queirais emparar / este Rei que aqui leixamos em tão escuro lugar”), do Conde de Marialva (“dai-lhe lá vida mudada, / porque a vida aqui lograda / não é vida”), do Bispo de Évora (“em vosso santo louvor / o achei sempre ocupado. / (...) Senhora, tende cuidado dele lá”), do Conde de Tentugal (“que a esta alma real / deis o bem que descobristes / eternal”), do Conde da Feira (“Oh, Virgem toda paraíso, / dá-lhe glória desejada, / pois sois isso!”), do Conde de Penela (“dai a el-Rei Dom Manuel / a glória que nos foi havida / por Gabriel”), do Conde de Alcoutim (“Lá queirais ser piedosa / ao Rei que ora enterramos”) e, por fim, para explicitar o caráter consolatório, do Conde de Portoalegre (“consolai os choros tristes / que Lisboa agora tem. / (...) Oh, Rainha Imperial, / amerceai-vos de quem / deveis mais que a ninguém / em Portugal!”).52 Essas enunciações procuram ressaltar, sem grandes variações muito particulares, as virtudes pias de D. Manuel angariadas durante sua existência. Contudo, se o quadro básico dos 50 51
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LE GOFF, Jacques, op. cit., p.245. BUESCU, Ana Isabel. Morte e Memória de D. Manuel (1551). In: _____. Memória e Poder. Lisboa: Cosmos, 2000, pp.90-91. VICENTE, Gil, op. cit., pp.630-634.
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topoi que sustém esta parte do discurso de Gil Vicente emprega fórmulas repetidas, em especial, aquelas que destinam ao louvor da capacidade interventora da Virgem, ao pedido de glória celeste ao rei e ao consolo daqueles que ficam, é porque essas fórmulas atendem prioritariamente a ratificação de um forte fundamento religioso. De qualquer modo, o que cabe perceber, neste ponto, é que o traço epidítico, presente em todas essas orações,quadram perfeitamente com a captatio benevolentiae (ao pedido de benevolência) da peroratio retórica, ou seja, o momento derradeiro do discurso em que se resumem as razões probatórias para que o interlocutor aceite mais prontamente o que se disse e, em nosso caso, da busca de disposição favorável a receber a alma do rei falecido. Aqui, está presente também, de modo ostensivo, a cena do julgamento da alma, com a Virgem, posando as mãos num dos pratos da balança e fazendo-o pender para a misericórdia divina e para a consolação das dores do mundo. Uma operação judiciária, que se faz para conquistar um “estado de causa” favorável pelos testemunhos incontestes dos mais altos personagens do Reino. Este favorecimento ao monarca que se despede, enfim, não só ratifica (mais uma vez) a necessidade de manter a hierarquia social instituída, conforme a disposição discursiva das enunciações, porém igualmente um justo governo, no sentido cristão, realizado a bom termo, vale dizer, consequência imediata de uma vida dedicada às práticas piedosas e que atribuíram a D. Manuel, rei dos lusitanos, o epíteto de “Venturoso”.
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O lugar da História na livraria de D. Teodósio I, duque de Bragança The place of History in the library of D. Teodósio I, duke of Braganza Ana Isabel Buescu * Universidade Nova de Lisboa
Resumo
Abstract
A livraria do 5º duque de Bragança, D. Teodósio (†1563) foi a maior livraria nobiliárquica portuguesa do Renascimento, e uma das maiores da Europa do tempo. O inventário da livraria integra o inventário de todo o património da Casa do duque, elaborado após a sua morte, em 1563. Apresentaremos, em visão panorâmica, os conteúdos da livraria no seu conjunto, para nos centrarmos nos livros de História, desde sempre matéria presente nas livrarias régias e senhoriais desde a Idade Média, e que assumem, com a Teologia e o Direito, uma expressão cimeira na livraria ducal.
The library of D. Teodósio I ((†1563), 5th duke of Bragança, was the largest aristocratic library in Portugal in the Renaissance, and one of the larger in Europe in its time. The inventory of the books is part of the inventory of the household of D. Teodósio, made after his death, in 1563. After a brief overview on the library as a whole, we will center our attention on the History books. Since the Middle Ages, History had its own and relevant place in aristocratic libraries, as it happens, along with Theology and Law, in this Portuguese Renaissance library.
Palavras-chave: D. Teodósio I; inventário de bens; livraria; História; Renascimento.
Keywords: D. Teodósio I; inventory of household; library; History; Renaissance.
● Enviado em: 23/11/2016 ● Aprovado em: 27/06/2017
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Ana Isabel Buescu, doutora em História, é professora na FCSH-UNL e Investigadora Integrada do Centro de História de Aquém e de Além-Mar (CHAM/UNL-UAç). Principais domínios científicos: História de Portugal Moderno, educação de príncipes, cultura de corte, livrarias régias e aristocráticas, cerimónias régias e história biográfica. http://www.cham.fcsh.unl.pt/files/file_000992.pdf.
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No quadro das dinâmicas culturais no século XVI, era na corte régia e nos círculos da aristocracia que a inovação cultural e as ligações, nomeadamente ao mundo do humanismo italiano e à Flandres nas suas diferentes manifestações culturais e artísticas, ocorriam em Portugal de forma mais nítida1. Foi Luís de Matos quem, em 1955, chamou a atenção para esse outro centro polarizador e dinamizador de cultura que foi a corte de Bragança, a segunda casa mais poderosa após a real. No estudo intitulado A Corte literária dos duques de Bragança no Renascimento, Luís de Matos realçava o papel da Casa de Bragança, e em particular da corte alentejana de Vila Viçosa, no panorama cultural do reino português no século XVI. Percorrendo nomes e figuras, acções de mecenato, protecção de artistas e recrutamento de eruditos, Luís de Matos traçava um eloquente retrato da acção e da irradiação cultural promovida pelos duques de Bragança durante o Renascimento2. No século XVI a função social dominante da nobreza era, ainda, a guerra, com todo o prestígio simbólico que lhe era associado, mas com as armas concorriam agora as letras, num topos cuja fortuna, como há muito foi constatado por Curtius, foi essencialmente latina e ibérica3. A distinção da cultura através do livro fazia o seu caminho nos círculos aristocráticos, para lá do livro iluminado, rico e singular, bem conhecido, estimado e produzido à sombra do mecenato da nobreza desde a Idade Média4. Longínquo se ia tornando o monopólio clerical sobre a cultura escrita, que encontrara também na corte um lugar cada vez mais destacado e, também ele, associado ao poder e à magnificência do príncipe. Como a actual historiografia tem sublinhado, as bibliotecas, além da sua função específica como instrumento e veículo de leitura, eram objecto de representação, de distinção e até de emulação5. A ligação entre entre as grandes colecções aristocráticas de livros e os poderes nobiliárquicos no quadro, para o caso espanhol, da projecção do poder imperial, tem sido amplamente destacado6.
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Portugal e Flandres. Visões da Europa (1550-1680), Lisboa, Instituto Português do Património Cultural e Mosteiro dos Jerónimos, 1992; LOWE , K. J. P. (ed.), Cultural Links between Portugal and Italy in the Renaissance, edited by, Oxford, Oxford University Press, 2000. MATOS, Luís de. A Corte literária dos duques de Bragança no Renascimento, Lisboa, Fundação da Casa de Bragança, 1956. CURTIUS, Ernst Robert. La littérature européenne et le Moyen Age latin, 2 vols., Paris, PUF, 1986. ROBIN, Françoise. “Le luxe des collections aux XIVe et XVe siècles”, in Histoire des bibliothèques françaises, I – Les bibliothèques médiévales. Du Ve siècle à 1530, dir. André Vernet, Paris, Promodis,1989, pp. 93-213. PEÑA DIAZ, Manuel. “El espejo de los libros: Lecturas e lectores en la España del Siglo de oro”, in La cultura del libro en la Edad Moderna. Andalucía y America, coord. Manuel Peña Díaz, Pedro Ruíz Pérez, J. Solana Pujalte, Córdoba, Universidad de Córdoba, 2001, pp. 148-149. LÓPEZ-VIDRIERO, María Luisa. “Encomio y gloria: brillo imperial del Milanesado en los libros italianos de las colecciones de Fryas y Gondomar”, in Mecenazgo y humanidades en tempos de Lastanosa. Homenage a Domingo Ynduráin, Aurora Egido y José Enrique Laplana (eds.), Zaragoza, Instituto de Estudios Altoaragoneses, Institución “Fernando el Católico”, 2008, pp. 303-448.
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Sendo que não cabe aqui pormenorizar outros aspectos igualmente importantes evocados por Luís de Matos, centremo-nos na livraria do duque de Bragança, ao tempo do seu 5º representante, D. Teodósio, filho do duque D. Jaime († 1532) e de D. Leonor de Mendoza (Medina Sidonia) (†1512). A composição da livraria do duque, apesar de desaparecida, não era desconhecida, e foi objecto de estudos panorâmicos de Aires Augusto Nascimento7, que deram conta da sua magnitude e importância. Mas é no âmbito do actual Projecto dirigido por Jessica Hallett, e no quadro do estudo sistemático de todo o património da Casa de Bragança no século XVI, que a livraria brigantina tem sido estudada e os seus conteúdos tanto quanto possível identificados8. Antes de focarmos a nossa atenção no objecto central deste texto, será necessário avaliar a dimensão da livraria ducal em perspectiva comparada, a sua posição relativa perante os restantes bens inventariados por morte do duque, e finalmente apresentar, em visão panorâmica, os conteúdos da livraria no seu conjunto.
A dimensão da livraria de D. Teodósio I. Breve perspectiva comparada
Esse processo de identificação de uma livraria de que, como sublinhou Luís de Matos, nada resta, a não ser, de forma esparsa, alguns dos seus livros em bibliotecas nacionais, é feita a partir do traslado seiscentista do inventário do património brigantino realizado após a morte de D. Teodósio em 1653, que inclui c. de 6000 itens, dos quais c. 1600 são livros. “Sem dúvida a maior biblioteca portuguesa no século XVI, depois da biblioteca 'romana' de Aquiles Estaço”9. O estudo de uma livraria, quer na Idade Média quer na Época Moderna, para além dos números absolutos das obras que a integram, tem de atender, numa primeira análise, à sua dimensão, numa perspectiva comparada, no caso vertente com outras livrarias nobiliárquicas e régias suas contemporâneas. Tal perspectiva não tem a pretensão de ser 7
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NASCIMENTO, Aires A. «A livraria de D. Teodósio I, Duque de Bragança», Congresso de História no IV Centenário do Seminário de Évora. Actas, Évora, Instituto Superior de Teologia — Seminário Maior de Évora, 1994, vols. I-II, pp. 209-220; IDEM, “Erudição e livros em Portugal, ao tempo de Arias Montano: a biblioteca do Duque de Bragança”, in José Maria Maestre Maestre, Eustaquio Sánchez Salor, Manuel Antonio Diáz Gito, Luis Charlo Brea, Pedro Juan Galán Sánchez (eds.), Benito Arias Montano y los humanistas de su tiempo, Mérida, 2006, pp. 723-749. Arquivo Histórico da Casa de Bragança, BDMII Res Ms 18 – Inventário dos Bens do 5º Duque de Bragança, D. Teodósio I [1564-1567; cópia de Lisboa, 15 de Dezembro de 1665; 657 fls.]; transcrição de Joana Torres, revisão de Hugo Crespo, no âmbito do projecto PTDC/EAT-HAH/098461/2008, cijos resultados globais aguardam publicação. PEREIRA, Belmiro Fernandes. “Duas bibliotecas humanísticas: alguns livros doados à Cartuxa de Évora por Diogo Mendes de Vasconcelos e por D. Teotónio de Bragança”, Humanitas, 1995, vol. XLVII, p. 846. Aquiles Estaço († 1581), prestigiado humanista e latinista português, viveu mais de 20 anos em Roma e a sua livraria constituiu o núcleo inicial da célebre biblioteca Vallicelliana de Roma. CARDOSO, Arnaldo Pinto. Presença Portuguesa em Roma, Lisboa, Quetzal, 2001, p. 74 e p. 80.
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exaustiva, mas visa, através de exemplos concretos, ajudar a inserir a livraria de D. Teodósio no seu tempo, possibilitando conclusões sobre a sua real dimensão em contexto histórico. Vejamos, pois, este aspecto de forma breve. No que respeita aos reis de Portugal, na transição para o século XV, sabemos que D. João I (†1433), o fundador da dinastia de Avis, possuía cerca de vinte livros. A livraria do seu filho e sucessor D. Duarte (†1438)10 ultrapassava em pouco os oitenta títulos, o que faz dela, em termos comparativos e mesmo tendo em conta possíveis ausências, uma biblioteca do seu tempo. A livraria do infante D. Fernando (†1443), irmão de D. Duarte, continha quarenta e quatro códices11, o inventário dos livros do condestável D. Pedro (†1466), filho do infante D. Pedro, e que governou Aragão entre 1464 e 1466, inclui noventa e seis títulos12. Por seu turno, D. Manuel (†1521) tinha c. de 100 livros na sua guarda-roupa, embora fosse certo que possuía uma livraria de maior escala13. Sendo embora a única lista de livros do monarca que chegou até nós, o próprio Sousa Viterbo adverte para o facto de o inventário da guarda-roupa do rei não reflectir de forma fiel o seu conteúdo, uma vez que em 1517, por ocasião da morte da sua segunda mulher, a rainha D. Maria, o rei havia feito partilhas entre os seus numerosos filhos, onde entraram muitos bens móveis, entre os quais, também livros 14. Quando morreu, no final de 1521, D. Manuel era tido como “homem que muito folgou com livros e em sua guarda-roupa per sua morte ficaram livros tantos que todos seus filhos ficaram cheios deles”15. Os conteúdos da livraria régia, que só conhecemos parcelarmente, não permitem aferir de forma global da produção de livros na época de D. Manuel. No presente enviado ao Negus da Abissínia em 1514 pelo monarca português, incluíam-se, entre muitas 10
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Inventário publicado sucessivamente por BRAGA, Teófilo. Historia da Universidade de Coimbra nas suas relações com a Instrucção Publica Portugueza, I – 1289-1555, Lisboa: Typ. Academia Real das Sciencias, 1892, pp. 209-228; PIEL, Joseph. Ed. crítica do Leal Conselheiro de D. Duarte, 1942, pp. 414-416, com base na cópia seiscentista da BNP (cod. 3390); DIAS, João J. Alves. D. Duarte, Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa), ed. diplomática com transcrição de João J. Alves Dias, Introdução de A. H. de Oliveira Marques e João J. Alves Dias, Lisboa, Estampa, 1982, pp. 206-208. Rol publicado em As Gavetas da Torre do Tombo, Lisboa, 1968, VI, gav. XVI, 2-13, pp. 186-202. DANTAS, Júlio. “A livraria do Infante Santo”, Anais das Bibliotecas e Arquivos, Abril-Junho 1921, 2, nº 6, pp. 101109; RICARD, Robert. “Les lectures spirituelles de l’infant Ferdinand de Portugal (1437)”, in Études sur l’Histoire Morale et Religieuse du Portugal, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, 1970, pp. 53-61. BRAGA, Teófilo.Op.cit., pp. 232-234; VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de. “Apêndices” da ed. de D. Pedro, Tragedia de la Insigne Reina Doña Isabel, 2ª ed., Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922, pp. 121-144. “Inventario da Guarda-Roupa de D. Manuel”, publ. por FREIRE, Anselmo Braamcamp in Archivo Historico Portuguez 1904, II, pp. 381-417. Embora seja certo que a sua livraria era mais ampla, este é o único inventário em que encontramos referência aos livros de D. Manuel. A parte relativa aos livros fora já publicada por VITERBO, Francisco de Sousa. “A livraria real especialmente no reinado de D. Manuel”, Historia e Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1902, IX, Parte I, pp. 1-73. VITERBO, Francisco de Sousa. Op. cit., p. 10. CORREIA, Gaspar. Crónicas de D. Manuel e de D. João III (até 1533), Leitura, Introdução, Notas e Índice por José Pereira da Costa, Lisboa, Academia das Ciências 1992, p. 174.
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outras obras, “mil cartinhas” para aprender a ler, “doze cathaçismos” – provavelmente o Catecismo Pequeno do bispo de Ceuta D. Diogo Ortiz impresso em Lisboa em 1504 - “vimte flos samtorum”, “trimta liuros da vida dos martires [...]”16. No caso das Ordenações, o número de exemplares da edição de 1512-13, composta por cinco volumes, foi de mil exemplares17. É portanto forçoso concluir que a produção de livros atingia então, embora em casos precisos e restritos, uma dimensão considerável, e se articulava, de forma dominante, quer com a difusão dos poderes régios, como é o caso das Ordenações, quer com a alfabetização e a evangelização no quadro do processo expansionista, o que explica, no exemplo citado, o predomínio absoluto de livros religiosos e de aprendizagem da língua portuguesa 18. Outros exemplos, para Portugal, quer no caso de bibliotecas monásticas quer individuais, de altos dignitários eclesiásticos, ou de letrados confirmam, com algumas relativas excepções, a exiguidade das colecções. A biblioteca de Alcobaça, a maior do país, continha 500 códices, a de Santa Cruz de Coimbra algumas centenas19. Em Coimbra, antes da transferência definitiva da Universidade em 1537, existia uma biblioteca ligada aos estudos universitários – a Livraria do Estudo - bastante modesta, não chegando à centena de títulos, a maioria manuscritos. Um inventário realizado por ocasião de um diferendo ocorrido em 1513 faz a descrição sumária de 70 livros, a que acresciam 58 volumes legados em 1508 por Diogo Lopes, lente de cânones. Na década de 1530, esse conjunto de livros não ultrapassava os 12020. Com o aparecimento da tipografia, as livrarias privadas foram crescendo, mas ao longo do século XVI, mesmo dentro das elites, a sua dimensão permanece, em geral, relativamente modesta21.
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BARRETO, J. A. da Graça. “Presentes de D. Manuel ao Preste João e seu Embaixador”, in Boletim de Bibliographia Portugueza e Revista dos Archivos Nacionaes, 1879, 2, nºs 1 e 2, pp. 17-23 e pp. 49-59. DIAS, João José Alves. “Introdução” às Ordenações Manuelinas. Livros I a V. Reprodução em fac-símile da edição de Valentim Fernandes (Lisboa, 1512-1513), Lisboa, Centro de Estudos Históricos da UNL, 2002, pp. XXIII-XXIV. Arquivo Nacional da Torre do Tombo (=ANTT), Corpo Cronológico (CC), P.1, mç.16, doc. 320 de 3/10/1514-09/10/1514. Alvará de D. Manuel I autorizando que a Casa da Índia entregue a Valentim Fernandes especiarias no valor de 300 mil réis, resto de 700 mil réis, da impressão dos 5 mil livros dos cinco livros das Ordenações. BUESCU, Ana Isabel. “Livros e livrarias de reis e de príncipes entre os séculos XV e XVI. Algumas notas”, in Na Corte dos Reis de Portugal. Saberes, ritos e memórias, 2ª ed., Lisboa, Colibri, 2011, pp. 72-73. Por carta de 8/6/1517, o rei do Congo pedia a D. Manuel o envio, entre outros objectos, de cruzes, uma custódia, retábulos e breviários, para a sua capela real. ANTT, CC, P. I, mç. 22, doc. 5. CARVALHO, Joaquim Teixeira de. A livraria do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra: estudo dos seus catálogos, livros de música e coro, incunábulos, Coimbra, Imprensa de Universidade, 1921. BARBOSA, José de Abreu. “A Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra”, in ICALP. Revista do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Junho-Setembro 1989, nºs 16-17, p. 162. V. os exemplos arrolados por OLIVEIRA MARQUES, A.H. de. Nova História de Portugal, dir. A.H. de Oliveira Marques e Joel Serrão, IV - Portugal na Crise dos séculos XIV e XV, dir. A. H. de Oliveira Marques, Lisboa, Presença, 1986, pp. 420-421. V. ainda NASCIMENTO, Aires Augusto. “Circulação do livro manuscrito”, in Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, org. e coord. Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani, Lisboa, Editorial Caminho, 1993, pp. 155-159.
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Num horizonte europeu, e ainda para os séculos XV e XVI, evoquemos o exemplo de um dos maiores coleccionadores e amantes de livros da transição do século, o duque de Berry (†1416), cuja biblioteca, que integrava alguns dos mais extraordinários manuscritos da iluminura europeia, não ultrapassava, entre livros profanos e livros religiosos e de devoção, cerca de cento e cinquenta volumes22. Excepcional em termos europeus para a segunda metade do século XV era a biblioteca do rei Afonso V de Aragão, Sicília e Nápoles (†1458),o Magnânimo, mecenas do humanismo e das artes, que incluía mais de 1000 volumes 23, e foi sendo enriquecida pelos seus sucessores. Por seu turno, apesar de se ter iniciado na latinidade e no mundo da cultura já em idade madura, pois não nascera para ser rainha, Isabel A Católica († 1504), tocada pela renovação cultural que chegava a Castela proveniente de Itália e da Flandres, no contexto da afirmação da arte tipográfica no reino e abrindo a sua corte a humanistas como Lucio Marineo Sículo e o milanês Pietro Martir d’Anghiera (†1526), reuniu uma biblioteca de 400-500 volumes24. Situando-nos agora num outro espaço geográfico, uma referência particular é devida a Matias Corvino (†1490), rei da Hungria, em virtude da biblioteca que possuiu, a famosa Bibliotheca Corviniana, uma das maiores colecções europeias da segunda metade do século XV, que terá alcançado c. de 2 500 obras (das quais sobreviveram pouco mais de 200), incluindo livros iluminados de teor religioso, mas também grande profusão de crónicas, biografias de homens ilustres, obras de geografia, medicina e cosmologia, bem como, evidenciando o seu interesse pela cultura do Renascimento italiano, traduções de clássicos gregos e romanos. Um caso excepcional, portanto. O panorama relativo à aristocracia era, à sua escala, também eloquente sobre a dimensão das livrarias, em que é visível uma natural oscilação. Respiguemos alguns exemplos para o caso espanhol, mais ou menos coevos do período que nos interessa, e que particularmente nos interessa dados os estreitos vínculos familiares da casa de Bragança com a alta aristocracia espanhola, embora sem um propósito de exaustividade: Alonzo Pimentel († 22
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LONGNON, Jean e CAZELLES, Raymond. «Introduction» a Les Très Riches Heures du Duc de Berry. Avantpropos de Charles Samaran, Introduction et légendes de Jean Longnon e Raymond Cazelles, 4ª ed., Chantilly, Musée Condé e Paris, Draeger-Vilo, 1981, pp. 5-23. GOMES, Saul António. D. Afonso V, o Africano, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006, p. 152. Sobre a livraria régia, pp. 151-158. Sobre Nápoles no Renascimento, BENTLEY, J. H. Politics and Culture in Renaissance Naples, Princeton, Princeton University Press, 1987, pp. 3-46. COLE, Alison. “Piété et propagande: Naples sous Alfonso de Aragon”, in La Renaissance dans les cours italiennes, Paris, Flammarion, 2008, pp. 45-65. LOPEZ-RIOS, Santiago. “A new inventory of the royal Aragonese Library of Naples”, Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, 2002, LXV, pp. 201-242. GIL FERNÁNDEZ, Luis. “El humanismo en Castilla en tempos de Isabel la Católica”, in Arte y cultura en la época de Isabel la Católica, ed. Julio Valdéon Baruque, Valladolid, Ámbito Editiones, 2003, pp.15-75; LÓPEZ-VIDRIERO, María Luisa. “La imprenta y los libros”, in ibidem, pp. 111-133; VAL VALDIVIESO, Maria Isabel del. “Isabel la Catolica en el contexto cultural de su tiempo”, in ibidem, pp. 369-389.
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1461), 3º conde de Benavente, senhor de uma das mais destacadas casas aristocráticas castelhanas, deixou uma livraria com 126 volumes, considerada, a par da de Iñigo López de Mendoza, marquês de Santillana (†1458), personagem-chave da literatura castelhana prérenascentista, como a mais emblemática das livrarias nobiliárquicas da segunda metade do século XV25. Fernando Álvarez de Toledo, 1º conde de Oropesa, falecido no mesmo ano da rainha Isabel, possuía 43 volumes, e o seu sucessor, Francisco Álvarez de Toledo (†1542), 6726. A biblioteca de D. Fradique Enríquez de Ribera,1º marquês de Tarifa (†1539), grande amante das letras e muito próximo dos círculos humanistas e letrados, reunia c. 260 obras, de acordo com inventário realizado em 1532,”número bastante elevado para la época y categoria social de su propietario27. Para um período exactamente coevo de D. Teodósio, o inventário do património do seu tio Juan Alonzo de Guzmán (†1558), 6º duque de Medina Sidonia28 incluía uma livraria de cerca de 250 obras29. Por seu turno, Diego Hurtado de Mendoza (†1560), conde de Saldaña, ainda aparentado com o marquês de Santillana, primogénito e herdeiro da Casa do Infantado e de Ceñete, embora não viesse a herdar o ducado, constituiu ao longo de uma vida com evidentes interesses intelectuais, uma biblioteca pessoal de 120 livros 30. Voltando à realeza, a “librería rica”, constituída pelos livros particulares e pessoais de Filipe II (†1598), uma das mais importantes livrarias régias da época de um monarca bibliófilo, continha cerca de 1500 volumes. A sua quase totalidade foi cedida pelo soberano ao mosteiro do Escorial, e esteve na base da constituição da biblioteca escurialense 31, sempre acrescida dos livros, manuscritos e impressos, que os agentes de Filipe II obtinham um pouco por toda a Europa, e também em Portugal. No que respeita à França, durante toda a Idade Média os reis possuíram livros, mas o primeiro que teve uma verdadeira livraria, S. Luís, decidiu reparti-la por vários conventos quando morreu em 1270. Seria necessário esperar por Carlos V (†1380), que organizou uma 25
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Inventários publicados por BECEIRO PITA, Isabel. Libros, lectores y bibliotecas en la España medieval, Murcia, Nausícaä, 2007, pp. 401-436. Ibidem, p. 437, e inventário, pp. 462-468; idem, “La Biblioteca del conde de Benavente a mediados del siglo XV y su relación com las mentalidades y usos nobiliários de la época”, in En la España medieval. II Estudios en memoria del professor D. Salvador de Moxó, Madrid, Univ. Complutense, 1982, pp. 136-145. ALVAREZ MARQUEZ, M. Carmen. “La biblioteca de Don Fradique Enríquez de Ribera, I Marqués de Tarifa”, in Historia, Instituciones, Documentos, 13, Sevilla, 1986, p. 3. O 6º duque de Medina Sidonia era meio-irmão de D. Leonor (ambos filhos do 3º duque, Juan Alonzo de Guzmán, de dois casamentos diferentes), mãe de D. Teodósio, e portanto tio do 5º duque de Bragança. SERRÃO, Vitor. Frescos maneiristas do Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança (1536-1640), Lisboa, Fundação da Casa de Bragança, 2008, p. 81. GONZÁLEZ RAMOS, Roberto. “Imágenes, libros y armas. Tipología y significado de los bienes de Diego Hurtado de Mendoza, conde de Saldaña y marqués del Cenete (1520-1560)”, in Anuario del Dep. de Historia y Teoria de Arte, 2009, vol. 21, p.33. SÁNCHEZ-MOLERO, José Luis Gonzalo. La “Librería rica” de Felipe II. Estudio histórico y catalogación, Madrid, Ediciones Escurialenses, 1998.
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biblioteca enriquecida com 1000 manuscritos, que legou ao seu sucessor: foi a primeira vez, em França, que uma livraria régia era concebida como um bem inalienável e transmissível aos seus descendentes, não sendo dividida com o desaparecimento do monarca, embora depois várias vicissitudes políticas tenham levado à sua dispersão32. Assim, é bem mais tarde o rei Luís XII († 1515) que é geralmente considerado como o verdadeiro fundador da biblioteca régia francesa, conferindo-lhe uma existência institucional ao ordenar, provavelmente em 1501, a reunião num mesmo espaço – o palácio de Blois – das colecções herdadas da sua família e do monarca que o antecedeu, Carlos VIII (†1498)33. De acordo com um inventário de 1518, reinando já Francisco I (†1547), que orientaria a sua predilecção para o palácio de Fontainebleau, onde mais tarde mandou instalar a biblioteca régia numa belíssima galeria do palácio, a biblioteca de Blois incluía 1890 espécies34, progressivamente enriquecida por novas aquisições ordenadas pelo rei a humanistas e embaixadores, nomeadamente em Itália35. Em Inglaterra, a primeira biblioteca régia data provavelmente do reinado de Eduardo IV (†1483), e foi sendo acrescentada pelos monarcas seguintes. A livraria de Henrique VII (†1509), primeiro rei da dinastia Tudor, incluía cerca de 170 obras, das quais 70 pertenceram ao monarca. No século XVI, existiam colecções dispersas de livros nos vários palácios reais de Westminster, Richmond, Greenwich, Hampton Court, Windsor e Whitehall. Pelo contrário, a biblioteca régia francesa no reinado de Francisco I consolidara-se e centralizara-se em Fontainebleau, e era em 1540 de maior dimensão do que a inglesa, apesar de no quadro do movimento reformista as colecções reais inglesas terem registado um substancial crescimento após 1527, com a incorporação de obras provenientes dos mosteiros extintos 36. Para o reinado de Isabel I (†1603), o respectivo catálogo do ano de 1760 inclui mais de 1 600 livros, mas apenas 300 pertenceram à rainha. De uma forma geral, as colecções privadas não excediam então os 200 títulos, e as próprias livrarias institucionais de colégios como Oxford e Cambridge eram pouco representativas: em 1530, a livraria da Universidade de Cambridge
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BALAYÉ, Simone. “La naissance de la Bibliothèque du Roi 1490-1664”, in Histoire des Bibliothèques françaises, II – Les Bibliothèques sous l’Ancien Régime: 1530-1789, dir. Claude Jolly, Paris, Promodis, 1988, p.77. BLOCH, Denise. “La formation de la bibliothèque du roi”, in Histoire des bibliothèques françaises, I, cit., p.311. LAFFITE, Marie-Pierre e LE BARS, Fabienne. Reliures Royales de la Renaissance. La Librairie de Fontainebleau, 1544-1570, Paris, Bibliothèque Nationale de France, 1999, p. 11. Sobre a biblioteca régia de Blois, v. Des livres et des rois. La bibliothèque royale de Blois, ed. J. Baurmeister e M.P. Lafitte, Paris, Bibliothèque Nationale / Quai Voltaire Edima, 1992. GADOFFRE, Gilbert. La révolution culturelle dans la France des humanistes. Guillaume Budé et François Ier, Genebra, Droz, 1999, p. 235. BALAYÉ, Simone. Op.cit., p.79. Henry VIII. Man and Monarch, cat. ed. Susan Doran, Exhibition guest curated by David Starkey, BA curator Andrea Clarke, Londres, British Library, 2009, pp. 275-276.
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integrava entre 500 e 600 volumes37. Fora de qualquer escala ou latitude, temos de referir a célebre Colombina, biblioteca “universal” de Fernando Colón († 1539), filho do descobridor da América, com cerca de 15 000 volumes. O caso da livraria de D. Teodósio é, pois, para o caso português, um caso único. Também em contexto quer peninsular quer europeu coevo é, como acabámos de sugerir, com a absoluta excepção da biblioteca colombina, uma grande livraria, sem dúvida a mais importante do Portugal de Quinhentos.
A livraria no contexto geral do inventário dos bens de D. Teodósio I
O estudo da livraria de D. Teodósio I não pode ignorar que ela se integra no conjunto mais vasto dos bens da casa de Bragança. Assim, é necessário também avaliá-la ainda numa perspectiva comparada, mas agora no interior do próprio inventário, para entender a posição relativa dos livros perante todos os outros items e categorias de objectos. No contexto geral de um inventário que integra c. de 6000 items, os livros são o objecto mais abundante, com um total de 1656 entradas, contando-se aqui com um conjunto de 82 livros que, de acordo com o inventário geral dos bens, se encontravam fora da livraria. Em termos percentuais, os livros alcançam mais de 25% do total dos objectos inventariados, seguindo-se os têxteis, que ocupam uma posição de destaque, ao alcançarem um número pouco inferior ao dos livros. Se o critério for, pelo contrário, o de verificar quais as categorias de objectos a que é atribuído maior valor monetário, a situação inverte-se: aos 1574+82 livros é atribuído o valor de 410 245 reis, ou seja, 0,8% do total; se, por outro lado, somarmos o valor das jóias (13 617 925 reis – 28,2%), prata (9 890 665 reis – 20,5%) e têxteis (7 844 899 reis – 16,2%), concluiremos que apenas estas três categorias sumptuárias representam juntas 64,9% do total da avaliação dos itens inventariados.
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BIRRELL, T. A. English Monarchs and their Books: from Henry VII to Charles II, Londres, British Library, 1987, p. 59.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 Avaliação da Livraria no contexto geral do Inventário (em reais) Distribuição geral % 50000000 45000000 40000000 35000000 30000000 25000000 20000000 15000000 10000000 5000000 0
Em suma, a quantidade dos livros no inventário é inversamente proporcional ao seu valor. Na realidade, o valor monetário que lhes é atribuído é um dos menores de todas as categorias constantes do inventário. O valor cultural, mas também patrimonial, que D. Teodósio conferia à sua livraria, contrastava com os critérios de elaboração de um inventário post-mortem que atendia ao valor material dos objectos e não ao valor intrínseco e imaterial de que o livro – não sendo um livro-jóia - era portador.
Organização das matérias e ordenação dos livros segundo o inventário
Estabelecida a dimensão da livraria numa perspectiva comparada e a sua inserção no contexto geral dos bens de D. Teodósio, daremos conta de seguida da sua estrutura e organização interna no que diz respeito às matérias e secções que integra. As grandes áreas da livraria são a Teologia, Medicina, Cânones, Leis, Filosofia, Livros de debuxos, Geometria e Arquitectura, livros Gregos e Hebraicos, de Oratória e Gramática, Historiadores em latim, Panos, Poesia, Astrologia e Matemática, livros Italianos, em Francês e Alemão, livros de música, “Liurinhos que estam em tres caixoins pequeninos dourados”, teologia e contemplação em linguagem, livros profanos em romance e historiadores em linguagem.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 Número total de livros de cada secção 450 400 350 300 250 200 150 100 50 0
A livraria de D. Teodósio I em contexto: apreciação de conjunto e linhas-de-força
Como vimos anteriormente trata-se, em termos de dimensão, da maior livraria portuguesa do tempo e, à escala europeia, de uma grande livraria do Renascimento. No que diz respeito aos conteúdos, constitui uma livraria tendencialmente “universal”, que contempla os principais ramos do saber, tal como então eram concebidos e valorizados: da teologia aos cânones e às leis, da literatura religiosa e espiritual à profana, da arquitectura à poesia e à música, da filosofia à geografia e à história, da matemática à astrologia/astronomia e à arte militar e da guerra, unindo num todo coerente e estruturado muitos dos autores e obras maiores do Cristianismo e da Igreja, da cultura greco-latina e da sua própria época nas suas dominantes culturais, artísticas políticas e religiosas, mas também em algumas das suas tensões, como a da polémica religiosa, além de um número restrito mas significativo de obras em língua hebraica e de autores árabes, estes em particular entre as obras de medina, astrologia e matemática. A noção que fica é que, na generalidade das secções, entre autores antigos e modernos, virtualmente todos os grande nomes e as obras fundamentais de cada saber – e portanto, também, muitos dos grandes lugares de edição e os grandes editores da época - se encontravam representados na actualizadíssima livraria da Casa de Bragança na primeira metade do século XVI. Revista Diálogos Mediterrânicos
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Procurando sintetizar algumas das linhas-de-força que emanam da análise deste inventário, é indiscutível que se trata de uma livraria por um lado solidamente assente e inscrita numa tradição e num legado anterior, quer de cariz religioso e jurídico-normativo (teologia, cânones, leis) quer de uma memória cristalizada pela história (cronística), que se pretende conhecer não só para a Europa como para outros espaços geográficos. Por outro lado, é uma livraria muito actualizada e aberta aos vários rumos da cultura europeia, ao mundo e aos modelos do humanismo e do Renascimento nas suas mais diversas manifestações culturais e artísticas - literatura, arquitectura, discurso político - das correntes da espiritualidade, da polémica religiosa e da ciência. Na verdade, nela encontramos uma elevada percentagem de autores contemporâneos; edições, em grande quantidade, de autores clássicos, recentes ou muito recentes (década de cinquenta do século XVI); inclui, de forma substancial, obras que revelam quer a Europa na sua dimensão de continente quer os novos mundos que se abrem, que se relatam, que se descrevem; é uma livraria inscrita numa dinâmica ibérica e europeia no que respeita à aquisição e circulação do livro. Finalmente, no seu conjunto, surge também como uma livraria aristocrática, onde modelos e práticas próprias do grupo social da nobreza se mostram em múltiplas das suas facetas: uma cultura escrita dos poderes e dos modelos do perfeito príncipe, a memória da linhagem, a arte militar e a guerra, a caça, a fruição e o prazer da literatura e da leitura. Mas sendo uma biblioteca em que as várias correntes da espiritualidade dos séculos XV e XVI estão presentes, ela mostra-se também uma livraria de transição em termos ideológicos, reflectindo as tensões e inquietudes contemporâneas, como acontece com as várias e recentíssimas obras de polémica religiosa que nela se encontram. Dir-se-ia que, num contexto de inflexão ideológica e religiosa como a que se vivia, as obras de grandes figuras da teologia católica eram as armas - ou algumas delas - do combate ideológico e da fundamentação teológica imprescindíveis ao mundo católico, também em Portugal, apesar da residual expressão do luteranismo entre nós, num momento em que deixara de existir a Cristandade após a ruptura luterana.
O lugar da história na livraria de D. Teodósio
A segunda maior secção de toda a livraria, logo depois da Teologia é a dos “Historiadores em latim”, com 130 entradas (8,25%); se adicionarmos as 74 entradas relativas aos “Estoriadores em lingoagem”, as obras de história ascendem a 204, correspondendo a Revista Diálogos Mediterrânicos
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12,96% do total. E existem ainda crónicas em vulgar noutras secções, o que fará subir um pouco esta dimensão quantitativa. O gráfico seguinte, agrupando todos os livros de Teologia (Teologia e Teologia e Contemplação), jurídicos (Leis e Cânones) e História (em latim e linguagem), mostra que, em termos absolutos, a História é a terceira matéria mais representada na livraria ducal.
Total das entradas das secções de Teologia, Leis+Cânones [=Direito] e História (latim e linguagem) no contexto da livraria (em %)
35% 30%
25% 20% 15% 10% 5% 0%
O lugar da história na livraria ducal está, sob o ponto de vista ideológico, em consonância com um dos traços mais permanentes da cultura nobiliárquica desde a Idade Média: uma declarada predilecção pela memória e pelo exemplo verdadeiro veiculado pelas crónicas, que deveria ser privilegiado pelos príncipes e grandes senhores. A superioridade intrínseca das crónicas residia no facto de se considerar que estas veiculavam factos realmente acontecidos, merecedores de memória e polarizadores do exemplo, enquanto os livros de cavalaria constituíam “patrañas fingidas” (Gracián) e traziam a decepção, a ilusão e o engano38. O que não quer dizer, bem pelo contrário, que os livros de cavalaria e as suas ficções
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É emblemática a posição de Diego GRACIÁN, tradutor dos Moralia, que estabelece o confronto entre "[...] estos libros fingidos de cauallerias y patrañas fingidas[...]", e o exemplo não só verosímil, mas verdadeiro, das histórias veiculadas por Plutarco. No fim de uma longa diatribe (fols. 8-9), conclui, dirigindo-se ao imperador Carlos V, a quem dedica a obra: "Assi que en lugar de Tristanes / Reynaldos florisandos / primaleones Palmerines y Duardos y otros cien mil tales que hinchen los papeles de mentiras donde muchas personas muy amenudo gastan sus buenas horas por medio desta traslacion tomaran vn passatiempo no menos prouechoso que deleytable y honesto los que quisieren gozarlo en conoscer quiê fueron Emperadores
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heróicas não fossem muito apreciadas, nomeadamente na corte e no mundo aristocrático, sobretudo após a revivescência dos modelos cavaleirescos de raiz medieval com a publicação do Amadis de Gaula, em 1508. E bem como os relatos, descrições e “peregrinações” por mundos extra-europeus, avidamente procurados e lidos desde a Idade Média, também os testemunhos da Expansão marítima na Europa moderna, desvelando aos olhos europeus novas terras, gentes e culturas, vinham, no que diz respeito à escrita da história, apesar do seu pressuposto essencialmente – embora não sempre - eurocêntrico, reconfirmar a concepção de uma intrínseca superioridade da “vera história” sobre a ficção. Na confluência do valor exemplar da história e, em simultâneo, da revivescência da cultura clássica no Renascimento, a secção dos historiadores em latim inclui um grande número de historiadores da Antiguidade greco-latina, cuja difusão europeia foi potenciada pela tipografia humanista. César, Tito Lívio, Salústio, Quinto Cúrcio e Suetónio contam-se entre os historiadores então mais difundidos, com um grande número de edições, entre meados do século XV e finais do século XVII - para o período considerado, Peter Burke contabiliza 155 edições de Suetónio, 160 de Tito Lívio, 179 de Quinto-Cúrcio ou 282 do Catilina de Salústio39.
Edicões de historiadores antigos 1450-1700 segundo Peter Burke
300 250 200 150 100 50 0
Salústio (Catilina)
Quinto Cúrsio
Tito Lívio
Suetónio
A livraria do duque D. Teodósio traduzia, pois, esta importância central da história antiga e este “fervilhar” da sua circulação editorial a uma escala cada vez mais vasta. Na
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/ Reyes / Principes / y efforçados capitanes y otros varones y mugeres illustres dignos de memoria [...]". Morales de Plutarco traduzidos de lengua griega en castellana, Alcalá de Henares, 1548, Prologo, fol.9. BURKE, Peter. “Da popularidade dos historiadores antigos”, in O mundo como teatro. Estudos de antropologia histórica, Lisboa, Difel, 1992, pp. 171-193.
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livraria ducal encontravam-se ainda muitos outros autores centrais da cultura histórica antiga, como Plutarco, Xenofonte, Tito Lívio, Salústio, Suetónio, Júlio César, Quinto-Cúrsio, muitos deles presentes ainda noutras secções deste inventário, mas também autores menos conhecidos,
como
Hegésipo40,
Eliano41
ou
Arriano42,
compondo
um
conjunto
extraordinariamente relevante. Além da historiografia/geografia greco-latina, a livraria de D. Teodósio mostra-se muito actualizada no que respeita aos autores contemporâneos. Apesar do processo, em curso no século XVI, de valorização das línguas vulgares, o latim era, ainda, a língua veicular por excelência na circulação europeia da alta cultura; por isso encontramos nesta secção muitos autores dos séculos XV e XVI cujas obras, com o intuito de alcançarem maior divulgação, foram escritas e publicadas em latim. Alguns exemplos ajudam a compreender como o horizonte geográfico e cultural da própria Europa se ia alargando, incorporando regiões que haviam permanecido, durante séculos, numa relativa obscuridade civilizacional. Para além das novas terras para lá dos oceanos, matéria para muitos historiadores, nomeadamente portugueses e castelhanos, a livraria de D. Teodósio exprime esse interesse por uma Europa que se descobre e que se quer conhecer: crónicas latinas da Dinamarca, da Escandinávia, da Polónia, da Hungria, da Albânia e até uma descrição contemporânea da Grécia, acompanhada de precioso mapa, mas também crónicas de Inglaterra, Alemanha, Borgonha, França, além de várias cidades italianas, integram a secção da historiografia em língua latina. Num outro plano, notemos que a secção dos historiadores em latim deixa também bem patente como, no Renascimento, os laços entre geografia e história eram muito estreitos, como sucede com vários autores e obras, como o geógrafo e historiador grego Estrabão (†c.24) e o seu De Situ Orbis (nºs 4270 e 4390),Solino e Pompónio Mela43, Plínio o Velho (†79) e a Naturalis Historia44, a Geografia de Cláudio Ptolomeu, (†c. 168)45 ou, de autores
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HEGÉSIPO (séc. II) foi autor da obra Historiographi Fidelissimi Ac Disertissimi et inter Christianos Antiquissimi Historia De Bello Iudaico. Seeptri Sublatione. Iudaeorum Dispersione […]. Claudius AELIANUS (†c. 235), autor e professor de retórica, profundo conhecedor da língua grega. A Varia Historia (Ποικίλη Ἱστορία) é uma miscelânea de anedotas e pequenas biografias de autores, heróis e atletas famosos da Antiguidade. Ed. princeps 1545, só latina 1548. Lucius Flavius ARRIANUS (†160), ou Arriano de Nicomédia, historiador romano de origem grega, Anabasis Alexandri [=De Rebus Gestis Alexandri Magni]. É a sua principal obra, considerada uma das mais importantes fontes das campanhas de Alexandre. Caius Julius SOLINO (séc. III) e Pompónio MELA (†43-50), Caii Iulii Solini Polyhistor, Rerum toto Orbe memorabilium Thesaurus locupletissimus. Huic ob argumenti similitudinem Pomponii Melae De Situ Orbis Libros Tres, […]. O De Situ Orbis de Mela foi das principais fontes dos conhecimentos de geografia durante séculos. É talvez esta a edição junta com Caius Solinus. Gaius Plinius Secundus, conhecido também como Plínio, o Velho, naturalista romano. Trata-se da sua obra enciclopédica, escrita c. 77-79 dC, em que Plínio coligiu muito do saber do seu tempo, e que se tornou o modelo do género. Outro exemplar na secção de filosofia.
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contemporâneos, além das crónicas europeias citadas, a Cosmographia de Sebastião Münster (†1552), presente nesta secção. Passemos agora a uma breve referência à secção contígua dos“estoriadores em lingoagem”. A secção é composta por 74 entradas, mas o universo cronístico em vulgar é, no seu conjunto, mais substancial, porque aparecem crónicas noutras secções, como por exemplo na dos livros em francês ou italiano mas, acima de tudo, na secção de “profanos em romance”, onde surgem em português e castelhano. Trata-se, em todo o caso, apesar do título, de uma secção com alguma heterogeneidade temática, onde encontramos obras que hoje não classificaríamos desta forma. Nela coexistem obras de historiadores clássicos, tardomedievais e contemporâneos em vernáculo, com muitas traduções de autores latinos e gregos para língua vulgar - de forma esmagadora para castelhano - com destaque para Plutarco, Cícero, Apiano Alexandrino (90-†?), Xenofonte, Tito Lívio, Quinto Cúrcio, Flávio Josefo (†c. 100), Júlio César. Da cronística medieval e moderna em vernáculo surgem nomes como Marco Polo (†1324), Alonso de Madrigal, el Tostado (†1455), Fernão Lopes (†1460), Gomes Eanes de Zurara (†1474), Diego de Valera (†1488), Tomé Pires (†c. 1540) Florián del Campo (†1555?) com várias entradas, Fernão Lopes de Castanheda (†1559), João de Barros (†1570), entre outros, e até inesperadamente o rei D. Dinis (†1325)46. Destaque ainda para a obra manuscrita e “com algûmas fortalezas debuxadas de colores” de D. João de Castro (†1548). Em termos percentuais, os historiadores medievais e modernos constituem 81% do total desta secção, e as traduções de autores latinos 19% - todas elas para castelhano. Assinale-se ainda o apreciável acervo de crónicas em “letra de pena” ou “letra de mão”, facto que evidencia como a transmissão manuscrita permanecia um sinal de “distinção”, mormente nas classes aristocráticas. Os 66 livros que integram a secção de “profanos em romance” constituem, como a própria designação deixa entrever, um conjunto muito heterogéneo de obras cujo traço de união é o de surgirem em “romance”, ou seja, em português e castelhano. Em primeiro lugar, destacam-se as obras literárias e de ficção, que remetem, no quadro de um quotidiano aristocrático, para o ler e o ouvir ler – prática ainda tão enraizada mesmo dentro das elites numa perspectiva de fruição, entretenimento e prazer: aqui encontramos, entre outras obras, o célebre e muito difundido Laberinto de Fortuna, ou Las Trezientas, poema alegórico 45
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A edição princeps, sem os mapas, é de 1475, sendo natural que na livraria de D. Teodósio figurasse uma edição posterior e completa, a que é atribuído o elevado valor de 500 rs. Descrito como “ Obras del Rej Dom Dinis feitas de Mão de pergaminho de Marqua grande em taboas foi aualiado Em outenta Reis”.
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inspirado em Dante, obra maior de Juan de Mena (†1456), os não menos conhecidos Proverbios do marquês de Santillana47, nomes grandes da poesia castelhana da época como Garcilaso de la Vega (†1536) e Juan Boscán (†1542)48, dois cancioneiros castelhanos, um deles certamente o Cancionero General de Hernán del Castillo49, e o Cancionero de Juan del Enzina50, várias obras de Fr. Antonio de Guevara, um dos autores castelhanos mais lidos e editados no século XVI, novelas como a Historia de Aurelio y Isabella de Juan de Flores († ?)51. Mas também a Miscelânea de Garcia de Resende, as obras de Gil Vicente52, bem como traduções castelhanas de Dante53 e de Petrarca54, evidenciando, uma vez mais, a presença da cultura literária renascentista italiana no mundo ibérico no século XVI, e a sua “refracção” em Portugal tantas vezes através das edições em língua castelhana. Outro núcleo relevante nesta secção são crónicas e relações de acontecimentos e realidades geográficas europeias e extra-europeias, aqui presentes de uma forma relativamente aleatória, e não em grande número; na verdade, a esmagadora maioria das crónicas em vulgar encontram-se na secção dos “historiadores em lingoagem”. Em todo o caso, merecem destaque a obra Los claros varones de Castilla de Hernando del Pulgar (†1492), cronista dos Reis Católicos, em cópia manuscrita55, também em manuscrito a incompleta Historia de las Indias de Gonzalo Fernández de Oviedo (†1557)56, a Relación de Álvar Núñez Cabeza de Vaca, pelo menos uma das não menos famosas Cartas de Relacion do conquistador Hernán Cortez (†1547), o Libro de Grandezas y cosas memorables de España de Pedro de Medina (†1567?), cosmógrafo-mor de Espanha, o raríssimo Livro da origem dos Turcos he de seus Emperadores de Frei Diogo de Castilho, publicado em Lovaina em 1538, ou a Chorographia de Gaspar Barreiros(†1574), publicada em Coimbra em 156157. 47
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Iñigo LÓPEZ DE MENDOZA (†1458), 1º marquês de Santillana, homem político e prestigiado poeta de influência italianizante. Os Proverbios foram escritos em 1437, para a formação do jovem príncipe Henrique, filho do rei Juan II de Castela. Ed. princeps 1494. Trata-se decerto da edição conjunta com o título Las Obras de Boscán y algunas de Garcilaso, Lisboa, Luís Rodrigues, 1543. A ed. princeps castelhana é do mesmo ano. Com ed. princeps 1511 e modelo de muitas outras compilações do género, como o Cancioneiro Geral de Garcia de RESENDE, publicado em 1516. Juan del ENCINA (†1529), dramaturgo, humanista, músico e cantor. Ed. princeps, Sevilha, 1496 . Juan de FLORES, escritor do pré-Renascimento espanhol, Historia de Aurelio y Isabella hija del Rey de Escocia: mejor corregida que antes, puesta en español y francês. É a Copilaçam…, Coimbra e Lisboa, João Álvares, 1562. Pensamos tratar-se da seguinte tradução, sem nome da obra mas é a Commedia, não sabemos se nesta edição ou outra: La traducion del Dante de lengua toscana en verso castellano por el reverendo D. Pedro Fernandez de Villehas […] allende otros glosadores […], Burgos, Fradique Aleman, 1515. A 1ª tradução castelhana completa de Los Triunfos é de 1512, por Antonio de Obregon y Cerecedo, com belas gravuras e miniaturas, reeditada em 1526, 1531, 1532 e mais edições. A respectiva edição princeps é de Toledo, 1486. Em edições posteriores Castilla passa a España. A 1ª parte da obra deste historiador espanhol foi editada em 1535, e a 2ª interrompida com a morte do autor, e só completada a edição no século XIX. Antiquário e geógrafo, sobrinho de João de Barros.
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Não podemos deixar de assinalar a presença de duas obras capitais da arte de navegar e da guerra: a célebre Arte de Navegar, com grande difusão em toda a Europa, do já citado Pedro de Medina, publicada em 154558, a Arte da guerra do mar, de Fernão de Oliveira († c. 1581), impressa em Coimbra, por João Álvares, em 1555, e ainda um “Caderno de arte militar”, impresso, cuja identificação é impossível. Relacionada com estes saberes intrínsecos à ideologia aristocrática, a táctica e a estratégia militares estão ainda presentes através de uma outra importantíssima obra, L'Arbre des batailles, tratado medieval sobre a guerra e as suas leis, de Honoré de Bonet ou Bouvet (†c.1410), que surge em cópia manuscrita na livraria ducal59. Mas também noutras secções, como a de “Liuros Italianos de Diuersas Materias” com 58 entradas encontramos a história, antiga e recente, de que, entre muitos, damos apenas três exemplos relevantes: Tito Lívio (†17 dC), Le Deche di Tito Liuio trad. de Ab Urbe Condita, com edição princeps em 1493, e grande número de edições latinas e italianas; há também "hûa parte de Titu Liuio de Letra de mão"; cópia manuscrita parcial de uma tradução italiana. Obra de grande interesse é a de Giovanni Leone dell'Africa/Al-Hasan inb Muhammad al-Wassal al Fasi (†1554) Della Descrittione dell'Africa et delle cose notabili cheiui sono. O 1º tomo é sobre África e o 2º sobre as navegações para as Índias Orientais e Ocidentais. De Andrea Cambini (†1527), historiador florentino, o Libro d'Andrea Cambini Florentino della origine dei Turchi et imperio delle Ottomanni, com 4 edições publicadas entre 1529 e 1538. Entre os “Liuros em françes”a cronística e a história, além do humanismo, estão também presentes, sendo que um número apreciável de entradas, porventura por incompreensão da língua francesa de quem redigiu o inventário não são identificáveis, seja porque o nome do autor é omisso, ou demasiado vago ou adulterado para se chegar a uma identificação positiva. A obra descrita como “Cronica de Frocaldo” suscita-nos dúvidas, inclinando-nos para a hipótese de se tratar do cronista Jean Froissart (†1404), mas sem que possamos confirmá-lo60. Ao contrário, a presença do cronista Enguerrand de Monstrelet
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Arte de Navegar, en que se contienen todas las reglas, declaraciones secretos y avisos a que la buena navegacio son necesarios, y se deve saber. A ed. princeps é de 1545, e alcançaria larga difusão europeia, em castelhano mas também em tradução para várias línguas. Descrito como “Aruore de Batalhas escrito de maõ […] aualiado em seiscemtos reis – 600”. A obra de Bouvet teve grande difusão: conhecem-se 86 manuscritos franceses, 11 traduções para várias línguas; 9 edições impressas entre 1477 e 1515. Existiu uma Arvore das Batalhas na livraria do rei D. Duarte. As crónicas de Froissard são crónicas da história medieval inglesa escritas em francês, cobrindo os anos de 1322 a 1400 e descrevem os acontecimentos da 1ª parte da Guerra dos Cem Anos. Existem mais de 100 manuscritos destas crónicas. Uma das primeiras edições impressas foi publicada com o título de Croniques de France, d’Angleterre, d’Escoce, d’Espaigne, de Bretaigne, de Gascongne, de Flandres et lieux circunvoisins", 4 tomes, Paris, Antoine Verard, [ca. 1498].
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(†1453), continuador de Froissart, é inequívoca61. Outra zona com revelo são os livros relativos à arte da guerra, com 3 entradas, duas das quais da mesma obra, talvez as Instructions sur le fait de la guerre, obra atribuída a Guillaume du Bellay (†1543), historiador e diplomata francês mas sobre cuja identificação persistem dúvidas, sendo hoje a respectiva autoria atribuída a Raymond Fourquevaux (†1574), barão de Rouers62, e um “Offiçio de Capitam de guerra”. São ainda de destacar quatro obras traduzidas para francês. São elas a Aethiopica - L'Histoire aethiopique em tradução francesa - de Heliodoro (séc. III), escritor grego, bispo cristão de Thessaly (?), a mais longa novela grega da Antiguidade, traduzida do grego para francês pelo humanista Jacques Amyot63, presente ainda em versão latina e em castelhano. Sendo a mais importante obra de Heliodoro, não é uma obra histórica, mas de ficção com apontamentos históricos, e foi lida como um romance de cavalaria na Idade Média e no Renascimento; de Júlio César (†44aC) Le Livre des commentaires de Cesar sur le fait des batailles de Gaule, tradução de Robert Gaguin (†1501) da obra De Bello Gallico64. Outros cronistas franceses, na secção de historiadores em latim, estão também representados nesta livraria, como Paul Émile, Arnould de Ferron, Guillaume Paradin, Robert Gaguin (2 entradas da mesma obra), bem como historiadores alemães, também entre os historiadores em latim, Sebastian Münster, Albert Krantz, Johannes Vergennhans (Nauclerus), Bernhard von Breydenbach, Johan Bhöeme (duas entradas). Situação semelhante se passa com os autores ingleses, que surgem disseminados pelas secções do inventário e apenas através de obras em língua latina. Embora não fosse inglês, Polidoro Vergílio Castellenus (†1555), historiador italiano, esteve ao serviço de Henrique VIII (†1547), a cujo pedido expresso escreveu a Anglica Historia. Na também heterogénea secção dos “Liurinhos que estam em tres caixoiñs pequeninos dourados” encontra-se a muito difundida Dell'arte militare de Antonio Cornezzano (†1484)65; Dell'arte della guerra66 e os Discorsi sopra le prime deca di
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A sua Chronique cobre o período de 1400 a 1444, mas foi continuada por outra mão, até 1516. A tradução das Instructions sur le faict de la guerre para italiano, de Mambrino Roseo, existe entre os livros italianos com o título (omisso) de Tre libri della disciplina militare tradotti nella lingua italiana, Veneza, Michele Tramezzino,1550. L'Histoire aethiopique de Heliodorus contenant dix livres […], traduit du grec en françois par Jacques Amyot, Paris, 1547. Aethiopica é a mais famosa obra de Heliodoro. Havia outros 2 exemplares na livraria. Obra dedicada ao rei Carlos VIII. Edição princeps em 1485, teria grande número de edições. A respectiva edição princeps é de 1494, a que se seguiram muitas outras no século XVI. Descrito como “Niculao Machaueli [sic] de arte da guerra”, escrita em 1519-20. Edição princeps 1521, com grande número de edições no século XVI, pelo que se torna impossível, como em tantos outros casos, identificar a edição presente na livraria.
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Tito Livio67 de Nicolau Maquiavel (†1527); Paolo Giovio (†1552/3) e o Commentario de le cose de' Turchi, publicado em Roma em 1531. Para finalizar, as tabelas seguintes, relativas aos historiadores antigos e modernos, em latim e em linguagem, presentes na livraria de D. Teodósio, mostram o lugar privilegiado da história nesta livraria aristocrática do Portugal de Quinhentos.
HISTORIADORES EM LATIM IDENTIFICADOS Nome Aeneas Silvio Piccolomini Albertus Crantius Ammianus Marcellinus Antonio de Nebrija Arnould Le Ferron Bartholomeo Sacchi Platina Bernhard von Breydenbach Caio Plínio Segundo Carlo Sigonio Claudius Aelianus Cornelius Nepos Diógenes Laércio Diogo de Teive Dionísio de Halicarnasso Estrabão Eusébio de Cesareia Eutrópio Flavio Biondo Flavio Filostrato Flavio Josefo Giacomo Filippo Foresti Guillelmo Paradino Giovanni Battista Egnazio Giovanni Boccaccio ? e Giovanni Boccaccio ? e Giovanni Boccaccio Giovanni Pontano Hegésipo Heliodoro Heródoto,Tucídides, Diodoro Sículo Johan Huttich e Simon Grynaus Johannes Bohëme Johannes Nauclerus Johannes Pierii Valeriani Johannes de Thurocz Johannes Vaseus Júlio César e Plutarco Lilio Gregorio Giraldi Lorenzo Russio Lucius Florus e Políbio Lucius Flavius Arrianus Marcantonio Sabelico Marco Juniano Justino Marin Barleti Martin Cromer Nicolaus Mameranus Nikolaos Sophianus Olaus Magnus Paolo Giovio Paul Émile Pietro Martire d’Anghiera
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Nº de entradas 2 2 1 1 1 3 1 1 1 1 1 1 1 1 2 1 2 2 1 2 1 2 1 2 1 1 1 1 1 1 1 2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 3 3 1 2 1 1 1 2 1 1
Descrito como “Discursos de Machavelo [sic]”, escrito em 1517 e com edição princeps em Florença, Bernardo di Giunta, 1531, a que se seguiram muitas outras, qualquer delas passível de figurar na livraria.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 Plutarco Poliodoro Pompónio Mella Ptolomeu Quinto Cúrsio Robert Gaguin Roberto Valturio Salústio Salústio e Suetónio Saxo? Saxo Grammaticus Sebastian Münster Solino e Pompónio Mela Suetónio Tácito Tito Lívio Tito Lívio e Justino Vegécio Xenofonte
1 1 3 1 2 2 1 1 1 1 1 1 1 3 2 3 1 2 3
HISTORIADORES EM LINGUAGEM IDENTIFICADOS Nome Afonso X
Nº de entradas 1
Alonso de Madrigal
1
Alonso Fernández de
1
Madrid Frei Antonio de
1
Guevara Apiano Alexandrino
2
D. Dinis
1
Diogo López de
1
Cordegana(atrib.) Fernán Sánchez de
2
Valladolid Fernão Lopes
1
Fernão Lopes de
2
Castanheda Flávio Josefo
2
Florián del Campo
3
Francisco de
1
Mendanha Giovanni Leone dell’Africa/Al- Hasan ibn Muhammad alWassai al Fasi Gomes Eanes de
1
1
Zurara Hernán del Pulgar
2
Huan Señedo
1
[Santo Isidoro de
1
Sevilha] Jacomo Fontano e?
1
Jeronimo Sempera
1
João de Barros
2
D. João de Castro
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Juan de Ortega
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Júlio César
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Marco Túlio Cícero
1
Matteo Maria Bocardo
1
Paolo Giovio
1
Pedro de Alcocer (pseud. de Juan de Vergara) Pedro de Valdès
1
Pedro Díaz del Corral
1
Pedro López de Ayala
1
Pere Antoni Beuler
1
Plauto
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Plínio
1
Plutarco
1
Polidoro Vergílio
1
Quinto Cúrsio
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Sexto Julio Frontino
1
Tito Lívio
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Tomé Pires
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Valério Máximo
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Xenofonte
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A Ásia no Papel Forte do Padre Antônio Vieira Asia in Priest Antonio Vieira's Papel Forte Andréa Doré * Universidade Federal do Paraná
Resumo No início de 1649, o Padre Antônio Vieira respondeu a uma solicitação do rei D. João IV, apresentando uma proposta de solução para a situação de Pernambuco. O Parecer a favor da entrega de Pernambuco aos Holandeses ficou conhecido como Papel Forte e contém a argumentação de Vieira sobre a necessidade de se evitar a guerra contra os holandeses por meio da entrega do nordeste do Brasil a fim de se manter a soberania portuguesa e privilegiar a defesa das possessões portuguesas na Índia. Este artigo se propõe a discutir as escolhas feitas por Vieira ao oferecer as informações ao rei sobre seus domínios na Ásia e as possíveis fontes dessas informações. Palavras-chave: Padre Antônio Vieira; Papel Forte; Portugueses na Ásia.
Resumé Au début de 1649, le Père Antônio Vieira a répondu à une demande du roi Jean IV, présentant une solution à la situation de Pernambuco. Le document intitulé Parecer a favor da entrega de Pernambuco aos Holandeses, est connu sous le nom de Papel forte et contient l'argument de Vieira au sujet de la nécessité d'éviter la guerre contre les Pays-Bas par la livraison du nord-ste du Brésil afin de maintenir la monarchie portugaise et se concentrer sur la défense des possessions portugaises en Inde. Cet article vise à discuter les choix des informations sur l’Asie fait par Vieira et suggérer leur possible sources.
Mots-clé: Père Antônio Vieira; Papel Forte; Portugais en Asie.
● Enviado em: 08/05/2017 ● Aprovado em: 27/06/2017
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Possui Mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (1996) e Diplôme d'Etudes Approfondies pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (1995). Realizou Doutorado em História Social na Universidade Federal Fluminense (2002) e pós-doutorado na Harvard University (2013). Também em 2013 foi bolsista na John Carter Brown Library, na Brown University, nos Estados Unidos. É professora do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná desde 2003, nas áreas de Teoria da História e História Moderna, com pesquisas e orientações na graduação e pós-graduação voltadas para o estudo da primeira modernidade com ênfase no Império Português, notadamente no Oceano Índico e no Brasil; experiências de cativeiro; Renascimento e Humanismo na Europa; história da cartografia e história do Brasil no período moderno.
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Antônio Vieira nasceu em Lisboa em 1608 e seguiu para o Brasil com a família em 1614 quando seu pai foi nomeado escrivão em Salvador. Estudou no Colégio da Companhia de Jesus e entrou para a ordem em 1623. Após a restauração de D. João IV, o Padre Vieira voltou para o Reino no início de 1641, exerceu função de pregador, conselheiro e diplomata extraoficial nas negociações entre Portugal e Holanda, foi perseguido pela Inquisição e depois pelos colonos do Maranhão. Morreu em Salvador em 1697. Esse resumo da vida de Vieira localiza sua trajetória no tempo mas simplifica um percurso bastante complexo e controverso que não cessa de atrair a atenção de estudiosos de diferentes áreas e abordagens buscando elucidar os mais variados aspectos de sua obra e das batalhas nas quais se envolveu. Este artigo tem como objeto um documento resultante de uma dessas batalhas, a que lhe valeu, a ele e ao embaixador português em Haia, Francisco de Souza Coutinho, o apelido de “Judas do Brasil”1. Trata-se do texto conhecido como Papel Forte, em que defendia a entrega de Pernambuco como parte do acordo de paz com as Províncias Unidas dos Países Baixos. Mais especificamente, este artigo se dedica a analisar as informações sobre os domínios asiáticos de Portugal inseridas por Vieira em seu texto e como foram usadas pelo pregador e conselheiro do rei para dar solidez aos seus argumentos. No início de 1649, em resposta a uma ordem do rei D. João IV, o Padre Antônio Vieira apresentou uma proposta de solução para a situação em que se encontrava o império. Na Península Ibérica os portugueses estavam em guerra contra os espanhóis pela restauração da dinastia portuguesa e fora da Europa enfrentavam os holandeses em portos da África, da Ásia e da América. Em Pernambuco, no nordeste do Estado do Brasil, a dominação holandesa vinha desde 1630. O Parecer a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses foi batizado pelo próprio rei com o nome de Papel Forte e continha conselhos de Vieira para enfrentar as diferentes ameaças, apontando como necessária a entrega do nordeste do Brasil a fim de evitar a qualquer custo a guerra contra os holandeses. Vieira havia assistido e comemorado no púlpito o rechaço à segunda tentativa holandesa de ocupar Salvador em 1638. No Sermão da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, pregado na Misericórdia da Bahia, atribuiu a vitória portuguesa não ao “numeroso dos seus presídios, nem o valoroso dos seus soldados”, mas às orações: “Nos conventos religiosos, nas igrejas públicas, nas casas e famílias particulares, todos oravam (...). Esta
1
MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil. Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. 3º ed. Rio de Janeiro, Topbooks, 2003, p. 141. Para uma biografia de Vieira, ver VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira. Jesuíta do rei. São Paulo, Companhia das Letras, 2011.
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bataria das mãos desarmadas, mas levantadas ao céu, foi mais verdadeiramente a que nos deu a vitória.”2 Em mais de um sermão, apelou ou agradeceu a intervenção divina para o resultado dos combates. No Papel Forte, porém, não há menção a orações. Vieira queria convencer o rei de que na ânsia de preservar todos os seus domínios na África, na América e na Ásia, enfrentando os holandeses no campo de batalha, arriscava-se perder tudo, inclusive a soberania portuguesa. Só a diplomacia e a renúncia de parte desses domínios poderiam garantir que todo o Império não ruísse. A parte a ser entregue aos holandeses era justamente o nordeste do Brasil, aquela que, segundo Vieira, já lhe pertencia, uma vez que havia sido conquistada pelas armas. Vieira havia participado das negociações diplomáticas com os Estados Gerais e considerava que as cláusulas do acordo que chegava às mãos de D. João IV eram as mais vantajosas para Portugal. As oposições aos termos do acordo de paz eram fortes e vinham de todos os lados. Partiam da aristocracia, da Igreja, da burocracia régia e dos comerciantes de Lisboa.3 Vieira organizou seu texto refutando os argumentos apresentados pelos “valentões”, como eram chamados os que defendiam a guerra contra os holandeses. Dividiu sua explanação em quatro pontos respondendo à argumentação elaborada pelo procurador da Fazenda, Pedro Fernandes Monteiro, cujo parecer o rei havia encaminhado a Vieira. No primeiro ponto, refutava os inconvenientes da capitulação apontados pelos que queriam a solução pela guerra. Vieira negava que a entrega de Pernambuco significaria o abandono dos católicos às mãos da Igreja reformada, porque os católicos poderiam deixar os territórios, havia garantia de liberdade de culto prevista no tratado, não haveria novas conversões a promover devido à ausência de gentios e a cristandade seria muita mais numerosa na Ásia, como se verá mais à frente. Vieira também escreveu que o rei não tinha obrigação de sustentar os portugueses de Pernambuco na guerra, uma vez que tinham se sublevado contra os holandeses por vontade própria e sem a promessa de socorro por parte da Coroa. Outros “inconvenientes” apontados pelo parecer, num total de oito, foram refutados por Vieira, como a defesa da
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Sermões. Obras completas do Padre Antônio Vieira. Vol. XIV. Porto, Lello & Irmãos Editores, 1959, parte IV. Ver MELLO. O negócio do Brasil, p. 144. Para análises do texto de Vieira, ver VAINFAS, Ronaldo. “Judas do Papel Forte”. In Antônio Vieira. Jesuíta do rei, pp. 153-167; VAINFAS, Ronaldo. “Guerra declarada e paz fingida na Restauração Portuguesa”. In Tempo, vol. 27, 2009, pp. 82-100; NEVES, Luiz Felipe Baêta. “Deus, Holandeses e o destino de Portugal na imaginação social do padre Vieira. Dois Ensaios”. In Terrena cidade celeste. Imaginação social jesuítica e Inquisição. Rio de Janeiro, Atlântica, 2003, pp. 143162; DOMINGUES, Beatriz Helena. “Antônio Vieira entre o púlpito e a tribuna: algumas reflexões sobre o Sermão do Bom Ladrão e o Papel Forte”. In RIHGB, Rio de Janeiro, a. 17, 443, abr./jun. 2009, pp. 131153.
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reputação de Portugal e a situação precária de Pernambuco, minimizando os prejuízos da entrega de um território que ele apresentava arruinado e sem grande valor econômico.4 O segundo ponto defendido pelos “valentões” e refutado por Vieira era a proposta de se fazer a paz com os holandeses sem a entrega de Pernambuco. Os opositores de Vieira afirmavam que se não houvesse apoio da Coroa portuguesa para essa decisão, os moradores de Pernambuco poderiam pedir auxílio a outro príncipe. Vieira destacou a impossibilidade da estratégia, uma vez que não haveria naquele momento na Europa outro soberano capaz de se envolver numa guerra contra os holandeses. Era também inviável comprar Pernambuco aos holandeses, visto que a proposta já havia sido sucessivamente recusada. O embaixador Souza Coutinho, de quem Vieira havia sido assessor, já tinha oferecido 3.000.000 de cruzados pela região, em fevereiro de 1647, sem sucesso.5 O terceiro ponto refutava os que defendiam que se assumisse o estado de guerra contra os holandeses a fim de recuperar Pernambuco. Vieira só previa fracasso dessa decisão. Enumerou as condições econômicas e de defesa de cada uma das partes e concluiu: “finalmente, os holandeses tem a sua indústria, o seu cuidado, a sua cobiça, o seu amor entre si, e ao bem comum; nós temos a nossa desunião, a nossa inveja, a nossa presunção, o nosso descuido, e a nossa perpétua atenção ao particular”.6 O quarto ponto, finalmente, respondia à argumentação de que haveria dois meios para Portugal sustentar a guerra. O primeiro seria a criação de companhias mercantis, medida considerada acertada e necessária, mas de resultado a longo prazo e insuficiente para atender à urgência da situação. O segundo meio seria substituir as caravelas e realizar o transporte do açúcar por navios de força escoltados por esquadras. Vieira também entendia que a introdução de navios de força era acertada e “conveniente para todo o tempo e sucesso”,7 mas afirmava que a medida era incapaz de resolver os problemas de defesa de Portugal, no mar ou em terra. Depois de confrontar seus argumentos com o dos “valentões”, o autor, na segunda parte
do documento, descreve as condições das praças portuguesas. Começa pelos
domínios na América, sintetizando dados sobre a costa do Brasil. Descreve em seguida as praças na África, desde a região do Mediterrâneo, percorre a costa Atlântica e, contornando
4
5 6 7
“Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses”. In PÉCORA, Alcir (org.). Escritos históricos e políticos do Padre Antônio Vieira. São Paulo, Martins Fontes, 1995, pp. 310-334. MELLO. O negócio do Brasil, p. 103. “Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses”, p. 343. Idem, p. 348.
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o Cabo da Boa Esperança, cita as fortificações na costa oriental africana. Vieira finaliza o texto com informações sobre as praças asiáticas. Não é possível afirmar com segurança em que medida os vários levantamentos elaborados ao longo de um período que já contava mais de cento e cinquenta anos de presença portuguesa na Índia serviram de fonte para Vieira montar o seu próprio quadro das condições das praças. Não há nenhuma menção a um autor, fosse religioso, cronista ou cartógrafo. As informações poderiam ter sua origem nas cartas dos jesuítas, nas Cartas Ânuas, mas também não há referência nesse sentido e o conteúdo dessas cartas, em geral, não se dedica a questões de defesa militar, com exceção dos momentos de batalha ou de cerco que afetavam toda a comunidade cristã. Suas informações poderiam ainda se basear na vasta correspondência entre Lisboa e Goa a que teria tido acesso, ou ao trabalho de informantes que circulavam pela corte. Sem que o próprio autor nos indique suas fontes pode-se, porém, cotejar os dados que ele insere com aqueles disponíveis em outros relatórios, enviados ao rei, no mesmo contexto. São documentos produzidos com vários anos de intervalo, por isso a ênfase não recai sobre a exatidão dos dados, mas sobre a forma como são apresentados. A relação que Vieira apresenta das possessões na Ásia corresponde à conformação fragmentária do Estado da Índia portuguesa. Tratava-se de um império em forma de rede, fixado em pontos estratégicos, em portos e ilhas às margens do Índico, baseado no comércio e no transporte de especiarias, sem bases territoriais relevantes.8 A descontinuidade desse império se refletiu, igualmente, na forma como se organizaram os relatórios sobre o estado das possessões portuguesas no Oriente, fossem textos descritivos ou conjuntos de mapas. Apesar do período da união das coroas ibéricas concentrar um volume importante de levantamentos sobre as praças portuguesas, se comparado com outros momentos, há relatórios com vistas de fortalezas produzidos ainda antes de 1580. O primeiro deles devese aos diários-roteiros escritos por D. João de Castro entre 1538 e 1541, pouco antes de ocupar o cargo de vice-rei, de 1545 a 1548. Alguns anos depois, Gaspar Correia escreveu
8
Para sínteses da conformação da presença portuguesa na Ásia, ver SUBRAHMANYAM, Sanjay. Império asiático português 1500-1700. Uma história política e económica. Lisboa, Difel, 1995; THOMAZ, Luís Filipe. “Estrutura política e administrativa do Estado da Índia no século XVI”. In De Ceuta a Timor. Lisboa, Difel, 1994. O caráter permanentemente cercado dessa presença é a tese que desenvolvo em Sitiados. Os cercos às fortalezas portuguesas na Índia, 1498-1622. São Paulo: Alameda, 2010.
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suas Lendas da Índia e incluiu representações de fortalezas e povoações portuguesas e muçulmanas.9 Já no período filipino, data de 1582 o Livro das cidades e fortalezas que a Coroa de Portugal tem nas partes da Índia, e das capitaneas, e mais cargos, que nelas ha, e da importância delles, editado somente em 1952 por Francisco Mendes da Luz, uma panorâmica sem plantas do Estado da Índia.10 Os reis espanhóis expediram mais de uma vez ordens para o envio de informações sobre os domínios na Ásia. Não se pode afirmar se foi esta foi uma das respostas enviadas ao rei, mas em 1610, o mestiço malaio-português, Manuel Godinho de Erédia, preparou um atlas com vinte Plantas de praças das conquistas de Portugal, feito por ordem do vice-rei Rui Lourenço de Távora. 11 O documento anônimo e sem data intitulado Relação das Plantas & Dezcripsões de todas as Fortalezas, Cidades, e Povoações que os Portuguezes tem no Estado da Índia Oriental também não contém mapas ou vistas das fortalezas. Os mapas devem ter se perdido, porque o autor faz menção a eles em seu texto. Pode ser datado entre 1616 e 1622, uma vez que descreve a Fortaleza de São Gerônimo, em frente a Damão, construída pelo vice-rei D. Gerônimo de Azevedo, em 1616, e ainda descreve a Fortaleza de Ormuz como pertencente aos portugueses. Esta que seria perdida a uma aliança anglo-persa em 1622.12 Após uma ordem de Filipe IV ao vice-rei do Estado da Índia, o Conde de Linhares, foi elaborado nos anos 1634-35 o Livro das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações da Índia Oriental. Coube a Antônio Bocarro, cronista e guarda-mor dos Arquivos de Goa, reunir dados de todas as praças e foram incluídas 48 vistas de cidades, atribuídas a Pedro Barreto de Resende.13 Outros documentos, de pouco conteúdo original, foram feitos em 9
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Roteiros de D. João de Castro [Roteiro de Goa a Diu (1538-1539): Álbum das Tavoas]. Portugal, Agéncia Geral das Colônias, 1940 e CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Porto, Lello & Irmãos Editores, 1975. 4 vols. (Obra finalizada em 1563; 1ª ed. 1858-1866.) LUZ, Francisco Paulo Mendes da. Livro das cidades e fortalezas que a coroa de Portugal tem nas partes da Índia, e das capitanias, e mais cargos que nelas há, e da importância deles. 2º ed. Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1960. Sobre essas encomendas, ver CORTESÃO, Armando e MOTA, A. Teixeira da. Portugaliae Monumenta Cartographica. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987, vol. 5, pp. 60-65. O álbum é preservado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Sobre a trajetória e a obra cartográfica de Erédia, ver DORÉ, A. “Manuel Godinho de Erédia e a cartografia sobre o Estado da Índia no período filipino”. In VAINFAS, Ronaldo; SANTOS, Georgina Silva dos e NEVES, Guilherme Pereira das (orgs.). Retratos do Império. Trajetórias individuais no mundo português nos séculos XVI a XIX. Niterói, Eduff, 2006, pp. 375388. VEIGA, Augusto Botelho da Costa (ed.). Relação das Plantas & Dezcripsões de todas as Fortalezas, Cidades, e Povoações que os Portuguezes tem no Estado da Índia Oriental. Lisboa, Biblioteca Nacional, 1936. Sobre as datas de construção das fortalezas da Índia, ver GARCIA, José Manuel. “Breve roteiro das fortificações portuguesas no Estado da Índia”. In Revista Oceanos. Fortalezas da Expansão Portuguesa. nº 28, Lisboa, out./nov. 1996, pp. 121-126. BOCARRO, António [1635]. O livro das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 3 vols, 1992. Sobre a autoria das plantas,
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seguida: um códice anônimo, localizado no Paço Ducal de Vila Viçosa e intitulado Livro das Plantas das Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental, editado por Luís Silveira, e datado entre 1633 e 1641; e, às vésperas da Restauração, uma nova coleção, a Descripçam da Fortaleza de Sofala, e das mais da India com uma Rellaçam das Religiões todas, q há no mesmo Estado, de autoria do cosmógrafo-mor do reino Antonio de Mariz Carneiro, de 1639, num total de 48 imagens das praças portuguesas, de Sofala a Macau. 14
A cristandade na Ásia
As informações sobre o estado dos domínios portugueses na Ásia surgem em dois momentos no Papel Forte. No início do texto, Vieira se debruça sobre a questão religiosa. O argumento dos “valentões” era de que a entrega de Pernambuco colocaria a perder as almas católicas desta região do Brasil. Vieira afirma, porém, que não havia cristandade importante em Pernambuco e que esta seria muito mais numerosa na Ásia. Apresenta um quadro bastante otimista:
Em Moçambique e rios de Cuama, quinze mil cristãos. Na ilha de Salsete de Goa, cem mil. Na ilha de Salsete do Norte, duzentas e cinquenta mil. No Samorim e Taner dois mil. Na Cristandade da Serra, duzentas mil. No reino de Muterte, cinco mil. No Maduré e reinos vizinhos, sete mil. Em Manar, doze mil. Em Genefatão, sessenta mil. Na costa de Travancor, quarenta mil. Na costa da Pescaria, oitenta mil. No Ceilão, quarenta mil. Em Malaca, vinte mil. Em Bengala, quatro mil. Na China, sessenta mil. Na Cochinchina, vinte mil. Em Amboino, vinte mil. Em Pegu, dez mil. Em outras ilhas dos malucos, em que assistem portugueses, vinte mil. Em Tunquim, duzentos mil. Em Aynam, cinco mil. No Japão, duzentos mil.15
14
15
ver ALEGRIA, Maria Fernanda et alii. “Portuguese cartography in the Renaissance”. In WOODWARD, David (ed.). The History of Cartography. Volume 3. Cartography in the European Renaissance. Part 1. Chicago, The Chicago University Press, 2007, pp. 1024-1025. Sobre seu autor, ver BOXER, Charles. “Antonio Bocarro and the ‘Livro do Estado da Índia Oriental’ ”. Separata de Garcia da Orta. Revista da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar. Número especial, 1956, pp. 203-219 e CID, Isabel. 1991. “Uma visão sobre as fortalezas do Estado da Índia”. In Actas do II Colóquio Panorama e Perspectivas actuais da história militar em Portugal. Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar, pp. 249-258. Para uma análise em paralelo da obra de Bocarro e do Livro que dá razão do Estado do Brasil, ver DORÉ, A. “O deslocamento de interesses da Índia para o Brasil durante a União Ibérica: mapas e relatos”. Colonial Latin American Review, Vol. 23, Issue 02, 2014, pp. 172-197. SILVEIRA, Luís (ed.). Livro das plantas das fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental com as descrições do marítimo dos reinos e províncias onde estão situadas. Lisboa, Centro de Documentação e Informação do IICT, 1988; CARNEIRO, Antônio de Mariz. Descrição da Fortaleza de Sofala e das mais da Índia. Reprodução do cód. Iluminado 149 da Biblioteca Nacional de Portugal. Nota introdutória e legendas de Pedro Dias. Lisboa, Fundação Oriente, 1990. “Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses”, p. 312.
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O número de cristãos chegaria, assim, a 1 milhão e 190 mil almas, considerando apenas os que eram doutrinados pelos padres da Companhia de Jesus, como afirma o autor. Esses números levam Vieira a indicar ao rei que, sendo “a glória de Deus e o aumento da fé católica” a sua primeira obrigação, era nas regiões da Índia que se deveriam concentrar os esforços, e não colocar tudo isto em perigo, “para conservar uma parte tão duvidosa que nos resta de Pernambuco, aonde não há conversões sem cristandades”.16 Ronaldo Vainfas já apontou o equívoco de Vieira quando este afirma que não havia gentios a serem evangelizados em Pernambuco.17 Se Vieira argumenta, baseado em uma inverdade, que deveria ser menor o interesse no nordeste do Brasil por não haverem almas a catequisar, há também exagero ou desinformação na defesa da manutenção das praças da Índia como promissora área de conversão. Nos lugares citados no trecho acima a presença portuguesa teve impactos muito diferentes e mesmo os estatutos dessa presença não eram comparáveis, como o Império da “China” e “Manar”, uma ilha no Ceilão onde os portugueses tinham uma pequena fortaleza. Bocarro a descreve, cerca de quinze anos antes de Vieira, como já decadente e inexpressiva:
É feita em quadro, como de planta se vê. Os lanços de muro que correm de baluarte a baluarte, em os três que tem, é cousa de pouca consideração, baixo e duas braças de altura (...). Mas como esta fortaleza foi mui opulenta e de grande rendimento pela pescaria do aljofre que em seu distrito se fazia e esta esteja acabada, também ela o está, não lhe ficando mais em tudo o referido que umas semelhanças do muito que antigamente foi.18
O Ceilão é também citado e Genefatão (Jafanapatão), outra fortaleza localizada na ilha. Vieira inclui Tunquim (Tonkin), no atual Vietnã, e Aynam, próxima ao porto de Hien, ambas com importantes conexões com Macau. Mas Vieira também cita números da cristandade na China, sem que se possa saber a que região se refere exatamente. “Samorim e Taner” pode se referir à região de Calicute, local da Índia em que aportou Vasco da Gama e que nunca pôde ser conquistada pelos portugueses. Houve ali uma fortaleza, construída em 1513, mas que não perdurou. O Samorim de Calicute era o soberano hindu da cidade. A região de Travancore, no extremo sul da costa ocidental da Índia, aparece com mais frequência quando é referida a fortaleza de Coulão que, assim como 16 17 18
Idem, p. 313. VAINFAS, Ronaldo. “Judas do Papel Forte”. In Antônio Vieira. Jesuíta do rei, p. 156. BOCARRO, António. O livro das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, vol II, 1992 [1635], fl. 121; p. 212. A grafia foi atualizada. Segundo Garcia, a fortaleza, quadrangular, tinha dezoito metros de lado. Cf. GARCIA. “Breve roteiro das fortificações portuguesas no Estado da Índia”, p. 126.
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a Costa da Pescaria, foi espaço de atuação do Padre Francisco Xavier. A Cristandade da Serra, por sua vez, diz respeito a uma comunidade pré-existente à chegada dos portugueses, localizada ao sul de Coulão, chamados de cristãos do Oriente, ou cristãos de São Tomé, considerados heréticos e depois resgatados pela ação dos missionários. Outros dois topônimos presentes na citação, Bengala e Pegu, correspondem a um espaço em que a presença portuguesa teve características muito diferentes das que se verificou na costa ociental da Índia. São diferenças marcantes que se apagam na opacidade da lista de nomes. Bengala corresponderia ao Golfo de Bengala, cujos contornos são a costa oriental da Índia, a leste, e o reino de Pegu, a oeste. Segundo Subrahmanyam, no final do século XVII já se pensava o conceito, hoje em desuso, de Golfo de Bengala como uma unidade histórica, considerando as diferenças entre essas áreas e as do Oceano Índico ou do arquipélago da Indonésia.19 A presença cristã à qual Vieira se refere se espalharia pelas grandes regiões de Bengala e de Pegu, caracterizadas pela ausência do poder político português e pela atividade de aventureiros, “arrenegados” e “alevantados”, evadidos do controle do Estado da Índia. Os primeiros portugueses teriam ali chegado na década de 1520, após abandonarem a praça de Malaca ou desertado das fortalezas do Índico ocidental, numa onda em que se insinuariam “a deserção e a deslealdade”, como escreve Subrahmanyam. As atividades religiosas nesses espaços foram desenvolvidas pelas ordens religiosas, a dos Jesuítas de Vieira, porém, com maior destaque pelos Agostinhos.20 As dimensões da cristandade que Vieira informa ao rei não são compatíveis com o que relatam outras fontes. Frente aos “quinze mil cristãos” que diz existirem em Moçambique e rios de Cuama, na costa oriental da África, o cronista Antônio Bocarro escreveu em seu relatório: “A Cristandade que temos nas terras deste rei [onde se encontra a Ilha e a Fortaleza de Moçambique] é mui pouca porque, tirado os cativos dos portugueses que vão e vem a ela a negócios de seus amos, os mais, se algum se faz cristão em pequeno, em sendo grande tornam a seguir seus ritos”.21 Escreve ainda que a gentilidade dos rios de Cuama está a cargo dos dominicanos e a cristandade é ali também frágil e feita de cafres cativos, “que são os que logo se fazem cristãos (...) e quando muito só nomeia a Deus com boca, porém nas obras nenhum sinal dá de saber que cousa é Deus”.22 19
20 21
22
Ver SUBRAHMANYAM, S. Comércio e conflito. Lisboa, Edições 70, 1994, p. 13. O autor cita a obra do comerciante inglês Thomas Bowrey, Geographical Account of Countires Round the Bay of Bengal, 1669 to 1679, ed. R. C. Temple. Cambridge, 1905. SUBRAHMANYAM, Comércio e conflito, pp. 15, 17-18. BOCARRO, António. O livro das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental, fl. 4v; p. 16. A grafia foi atualizada. Idem, fl. 7; p. 21.
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Na carta ânua da vice-província da China de 1646, documento que pode ter passado pelas mão de Vieira, o relato era de que a missão estava a cargo de 24 padres e irmãos, espalhados por onze províncias. Dessas, apenas uma havia mandado notícias naquele ano, apontando que as conversões “passarão de 400”. “E com tudo a falta que mais se sente é de obreiros, estando muitas Igrejas sem eles”.23 Vieira também parece ter pouco discernimento a respeito da importância das praças para o Império português ou sobre o poder efetivo dos portugueses nas localidades citadas. Em Amboíno, no Extremo Oriente, na região das Ilhas Molucas, onde ele afirma existirem vinte mil cristãos, não havia mais a presença oficial de Portugal. Em outros momentos, houve ali duas fortificações, a primeira destruída em 1571 e a segunda conquistada pelos holandeses em 1605. Mesmo destino da fortaleza de Malaca, em 1641, ponto fundamental para a circulação das naus portuguesas no arquipélago. Sem o poder político nesses locais, era difícil também a conversão. Os cronistas que viveram na Ásia sabiam disso. Territórios imprecisos e onde o poder político português não se fixou, como a China e o Japão, também foram citados por Vieira. Neste último, a presença cristã havia sido rechaçada com o édito de 1639 e o martírio de muitos fiéis.
As condições de defesa
O segundo momento em que Vieira se debruça sobre a Ásia é no final do documento, quando são relacionadas as condições em que se encontram as fortalezas na América, na África e na Ásia. Vieira apresenta este panorama como um apêndice à sua argumentação, centrada no fato de que é melhor entregar Pernambuco aos holandeses, aceitar as capitulações propostas e concentrar esforços na manutenção do “restante” do Império, e principalmente da soberania da monarquia portuguesa. Segundo o quadro que oferece, a fragilidade e a vulnerabilidade marcam os domínios e a entrega de Pernambuco poderia ser uma forma de não comprometer todo o Império. “Seu receio quase obsessivo”, como escreveu Ronaldo Vainfas, “era o de perder a guerra contra a Espanha, caso o reino fosse obrigado a enfrentar uma guerra marítima contra a Holanda”.24 A explanação de Vieira em relação à Ásia se diferencia dos outros levantamentos citados pela divisão geográfica que propõe para as possessões portuguesas. Para oferecer ao
23
24
GOUVEA, António de. Cartas Ânuas da China. Edição, Introdução e Notas de Horácio P. Araújo. Lisboa, Instituto Português do Oriente, Biblioteca Nacional, 1998, p. 298; fl. 418v. A grafia foi atualizada. VAINFAS, Ronaldo. “Judas do Papel Forte”, p. 162.
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rei informações sobre os seus domínios, Vieira os divide de acordo com os continentes: América, África e Ásia. Dessa forma, as praças que se encontram sob a administração do Estado da Índia se dividem entre a África e a Ásia. Não é este o entendimento mais frequente por parte dos informantes do rei. O que comumente se informa é o estado dos domínios ao longo da Carreira da Índia, todos submissos à capital Goa, seguindo o roteiro da navegação da rota do Cabo. Os textos começam por apresentar as praças de Sofala, Moçambique, Mombaça na costa oriental africana, dali atravessam o Índico para os enclaves no Golfo Pérsico e percorrem a costa do subcontinente indiano em direção ao sul, descrevendo primeiro as Províncias do Norte, sendo as mais importantes Baçaim, Diu e Damão, depois as fortalezas mais numerosas na região do Malabar. O roteiro prossegue com as praças da Ilha do Ceilão, o atual Sri-Lanka, e o número de enclaves portugueses reduz-se drasticamente ao percorrer a costa oriental da Índia. Ali, apenas São Tomé de Meliapor foi uma praça portuguesa de importância. O material, cartográfico ou literário, se conclui com a descrição das praças para além do Cabo Camorim, com as praças do Extremo Oriente, sendo Macau e Malaca as mais importantes. Vieira, curiosamente, não segue esse roteiro. Começa seu breve relatório ao rei citando a “cabeça de todo aquele estado”25, Goa, a praça mais longamente descrita e ainda assim em menos de vinte linhas. Podemos supor que Vieira tivesse diante dos olhos um mapa em que pudesse escolher um ponto de partida – Goa – e dali descrever as possessões portuguesas ao norte e ao sul. A mesma obordagem é adotada para descrever a presença portuguesa nos outros continentes: inicia a América com “a cabeça e principal cidade do Brasil”, a Bahia de Todos os Santos, e a costa africana destaca a cidade de S. Paulo de Luanda, “cabeça do reino de Angola”. Por um lado, a divisão de Vieira pode ser entendida como uma opção moderna, entende os espaços como continentes e supera o desenho estabelecido pela geografia medieval que considerava não uma, mas três Índias: a Índia Maior, ou Hindustão — o que se entende como o subcontinente indiano —, a Índia Menor — englobando as penínsulas do Sudeste asiático -, e uma terceira Índia — a Etiópia e a costa da Ásia do Sudoeste.26 Por outro lado, sua divisão em continentes é incoerente com a forma como os territórios eram administrados, já que a praças da costa oriental da África pertenciam ao Estado da Índia, administrado a partir de Goa.
25 26
“Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses”, p. 358. Ver FONSECA, Luís Adão da. “O imaginário dos navegantes portugueses dos séculos 15 e 16”. In: Estudos Avançados. Vol. 6, nº 16, 1992, p. 37.
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No início do relato sobre a Ásia uma breve afirmação sintetiza boa parte dos problemas que os portugueses deveriam enfrentar na Índia durante o século XVII. Ao tratar de Goa, escreve que ali se encontram “quatro armadas de remo, que servem de conduzir as cáfilas, e de as defender contra os malabares, que contra os holandeses não podem”.27 Esse entendimento era expresso por homens experientes da realidade asiática, ou seja, a permanência dos portugueses, o seu domínio sobre portos importantes da Índia só tinha sido possível porque as técnicas e os equipamentos de guerra de seus opositores não estavam preparados para enfrentar a artilharia europeia. A chegada dos holandeses ao Índico mudava esse quadro. Francisco Rodrigues Silveira, experiente soldado português, autor de uma proposta de Reformulação da Milícia e Governo do Estado da Índia Oriental, já tinha escrito em 1619 que para os portugueses a “perdição era passarem a Índia inimigos de cá da Europa que se confederassem contra nós com os reis vizinhos”.28 Os relatórios encomendados pelo rei ou elaborados voluntariamente por seus súditos, que podem estar na origem das informações de Vieira, são bastante desiguais na extensão e variedade das informações que contêm. Nem todas as localidades recebem a mesma atenção, considerando que sua importância também varia. Tendo em vista apenas os que foram organizados na forma de texto, pode-se, porém, identificar alguns temas recorrentes: dados históricos relacionados à forma como foi construída a fortaleza e a comunidade portuguesa que ela abriga, se foi conquistada após uma batalha ou foi uma concessão fruto de acordo com o potentado local; a localização geográfica, dados de latitude e longitude, condições do porto, rios, montanhas e ilhas nas proximidades; a presença religiosa e administrativa, as ordens, conventos e tribunais; informações sobre a população, número de portugueses, soldados e casados, naturais da terra convertidos, e outros grupos, como cafres, hindus ou muçulmanos; dados relativos às condições de defesa, muralhas, artilharia, e homens capazes de pegar em armas; produtos comercializados e a produção agrícola local. Diante dessa variedade, o sucinto relatório de Antônio Vieira evita desvios e enfatiza apenas as informações que colaboram com sua argumentação. O próprio rei havia pedido um parecer “no mais breve estilo que fosse possível”.29 O que lhe interessa mostrar ao rei é a vulnerabilidade dos domínios portugueses na Ásia e a necessidade de concentrar esforços e
27 28
29
“Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses”, p. 358. SILVEIRA, Francisco Rodrigues. “Discurso sobre o progresso dos Gelandeses entrados novamente na Índia...”, 1619. In Reformação da Milícia e Governo do Estado da Índia Oriental. Transcrição, Notas e Índice: Benjamin N. Teensma. Lisboa, Fundação Oriente, 1996, p. 247. “Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses”, p. 309.
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recursos e, acima de tudo, a necessidade de manter a paz com Holanda. A concisão com que deveria atender à ordem do rei exigia escolhas e Vieira as fez a seu favor. Mas como se pode interpretar essas escolhas? Em sua análise desse documento, Vainfas entende que o seu autor “não estava interessado em valorizar as vitórias de uma guerra que condenava”.30 Nesse sentido, não cita sequer a vitória dos insurgentes de Pernambuco contra os holandeses em Guararapes, em abril de 1648. Baêta Neves, por sua vez, analisa a estratégia persuasiva de Vieira quando cita o grande número de fortalezas portuguesas nos três continentes e conclui que por meio da “pletora de informações” que apresenta, “ele manifesta saber torrencial e acachapante da ‘realidade’ a ponto tal que torna irrespondíveis ou de difícil resposta suas afirmações”. O conhecimento de Vieira “inibe” ou “simplesmente amedronta o interlocutor eventual que se vê diante de um castelo de saber de altíssimas muralhas”.31 Uma leitura mais atenta das informações que apresenta sobre a Ásia indica, porém, que o “elemento dissuasório”, na expressão de Baêta Neves, empregado pelo autor se sobrepôs à atenção às diferenças de cada espaço descrito. Há uma sucessão de topônimos que coloca em um mesmo nível cidades, grandes reinos, regiões de grandes dimensões, fortalezas
importantes
e
fortificações
inexpressivas.
São
todos
relacionados
indiscriminadamente e o efeito desejado seria o de ofuscar qualquer argumentação contrária e convencer pelo seu conjunto sem, contudo, oferecer informações de grande utilidade. Vieira concentrou as condições das praças portuguesas na Índia em, basicamente, duas variáveis: o número de peças de artilharia e o número de homens, entre os soldados da guarnição e os moradores portugueses das povoações. À pergunta que primeiro se faz o leitor do texto - “De onde, afinal, vêm todo este saber”32? - soma-se outra ainda mais difícil de responder. Como Vieira pôde sintetizar informações espalhadas por documentos de diferentes naturezas sobre áreas tão diversas e resumir as condições de uma praça a algumas palavras? A Fortaleza de Rachol, por exemplo, é descrita apenas como tendo “cinco peças, e vinte portugueses na povoação”, a de Onor, “grande, de onze baluartes, pouca
30 31
32
VAINFAS, “Judas do Papel Forte”, p. 162. NEVES, Luiz Felipe Baêta. “Deus, holandeses e o destino de Portugal na imaginação social do padre Antônio Vieira; dois ensaios”, pp. 148-149. Grifo do autor. NEVES, “Deus, holandeses e o destino de Portugal na imaginação social do padre Antônio Vieira; dois ensaios”, p. 149.
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artilharia, e trinta e cinco portugueses moradores”; a de Mangalor “com trinta portugueses na povoação”, e assim sucessivamente.33 Em outros momentos, se esses dados fossem suficientes para desencorajar uma campanha militar, os portugueses sequer teriam ido à Índia. A situação era realmente precária, mas a guerra na Índia se dava também por outros meios que o Padre Vieira ignorava ou omitia em sua argumentação. Em outros levantamentos não é descrito apenas o número de portugueses, mas também os de seus escravos e dos moradores cristãos “capazes de pegar em armas”. Vieira também não considera os casados, categoria específica dos domínios na Ásia que abarcava os portugueses que tendo chegado à Índia como soldados, casavam-se com mulheres convertidas ao cristianismo – ou que eram convertidas para se casarem - e passavam a residir no interior da fortaleza ou na povoação próxima. Tinham privilégios, como uma pequena porção de terra, nas praças em que isso era possível, um cavalo, participavam da Câmara e também obrigações, uma vez que não faziam parte da guarnição militar em tempos de paz, mas eram contabilizados como “homens de armas” em momentos de ameaça.34 Nas descrições de Bocarro, além do número de portugueses, efetivamente pequeno, a categoria dos casados e de seus escravos engrossam o contingente de defesa. Por fim, a incipiência das fortalezas retratada por Vieira contrasta ainda com o grande número de cristãos, mais de um milhão, que ele mesmo enumera na primeira parte do texto. A forma como se refere a algumas fortalezas causa a impressão de que dispunha de informações atualizadas sobre suas condições. Sobre a Cidade de Baçaim, escreve “(fortificada de muros e baluartes, que ainda não estão acabados) tem pouca artilharia, nenhum soldado, e duzentos moradores portugueses”; a Cidade e fortaleza de Chaul é “cercada de muros e baluartes, que não estão em sua perfeição, tem treze peças de boa artilharia, menos de duzentos moradores portugueses”, e da Fortaleza de Cambolim afirma: “com pouca artilharia, um capitão, e quinze soldados portugueses. É de lotação de cento e cinquenta lascarins (que são negros da terra) de que ao presente não há mais do que quatro ou cinco”.35 Quando se lê o relatório feito por Antônio Bocarro, verifica-se que não se chega facilmente a esses dados, uma vez que havia diferentes tipos de artilharia e a presença 33 34
35
“Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses”, p. 360. Ver DORÉ, A. “Os casados na Índia portuguesa: a mobilidade social de homens úteis”. In MONTEIRO, Rodrigo Bentes; CALAINHO, Daniela Buono; FEITLER, Bruno; e FLORES, Jorge (eds.). Raízes do privilégio. Mobilidade social no mundo ibérico do Antigo Regime. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011, pp. 509-533. “Papel que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos holandeses”, pp. 359360. Grifo meu.
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portuguesa podia se dividir entre o recinto da fortaleza e mais de uma povoação fora dos muros. Ressalte-se, porém, que muitos dados coincidem e que nos escapa o acesso que Vieira pode ter tido a informações que lhes permitiam atualizá-los. Um caso apenas, para exemplificar, permite destacar tanto o esforço na atualização dos números quanto atentar para a sua simplificação. Sobre a fortaleza de Cambolim, citada nas linhas acima por Vieira, escreve Bocarro:
“A artilharia que há nesta fortaleza são cinco peças de bronze, de oito até doze libras de calibre, e dez entre falcões e meios falcões e berços que, como foi posta só contra os inimigos da terra, canaras, esta copia e qualidade era bastante. O presídio que tem esta fortaleza é um capitão dela, que também é capitãomor do presídio, que vive em um dos ditos baluartes coberto de telha, como são os dois mais, ficando só um por cobrir. Tem mais doze portugueses, quatro dos quais são capitães destes quatro baluartes e os outros soldados, e entre eles dois bombardeiros. E também tem mais cento e cinquenta soldados pretos que chamam lascarins, cristãos dos canarins de Salsete.36
Neste trecho também se verifica a avaliação de que as condições de defesa seriam suficientes para enfrentamentos com reinos asiáticos, os “inimigos da terra”, neste caso os “canaras”, da região do Canará, na costa indiana. Se a artilharia e as práticas de guerra chegassem ao Índico, porém, as fortalezas portuguesas não poderiam resistir, como Vieira alertou também o rei. Essa breve análise de alguns parágrafos da obra de Vieira permite discutir aspectos e levantar questões sobre a circulação, o registro de informações e a tomada de decisões no início do período moderno. Podemos chamar de “imprecisas” as informações que Vieira entregou ao rei? As escolhas e simplificações não são características exclusivas da retórica do conselheiro, diplomata e pregador Antônio Vieira. Sobre o mesmo assunto, o autor da Relação das Plantas & Dezcripsões de todas as Fortalezas também simplifica quando escreve em mais de um momento que a fortaleza “tem Capitão com guarnição de gente, e artilharia necessária para sua defesa”. Assim estariam Onor, Barcelor, Cochin, Coulão, Columbo. 37 Em ambos os casos, a informação poderia tranquilizar ou alertar o rei, mas pouco dizia sobre as condições específicas de cada praça. Por que Vieira, conhecedor muito mais íntimo das condições dos cristãos no Brasil do que na Índia, onde nunca esteve, constrói dali um quadro tão promissor para a missionação 36
37
BOCARRO, António. O livro das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental, fl. 102; p. 183. A grafia foi atualizada. VEIGA, Augusto Botelho da Costa (ed.). Relação das Plantas & Dezcripsões de todas as Fortalezas, Cidades, e Povoações que os Portuguezes tem no Estado da Índia Oriental, pp. 33-42.
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ao mesmo tempo em que desqualifica a cristandade de Pernambuco? Ao propor uma resposta corre-se o risco de supor uma estratégia mais articulada do que o próprio Vieira pôde construir. O cotejamento das fontes indica que ele desenhava um cenário equivocado a respeito de Pernambuco assim como da Ásia. É provável que de caso pensado sobre o primeiro e por ignorância no segundo. Omitia as vitórias portuguesas no Brasil, assim como as vitórias holandesas na Índia para concentrar as forças portuguesas na Península Ibérica e na guerra contra a Espanha. No processo de organização das informações a fim de municiar o rei para a tomada de decisões, é preciso considerar que as notícias não só demoravam a chegar, partindo da Europa ou dos domínios no ultramar, como podiam conter dados bastante incoerentes entre si. Por isso o pedido de pareceres era feito a diferentes partes envolvidas. No caso da questão discutida por Vieira em seu documento, justamente a indecisão, uma característica que se atribui a D. João IV, foi positiva para o Império, já que Pernambuco foi retomada aos holandeses por meio da guerra.
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O Receituário de Francisco Borges Henriques: Culinária, Cosmética e Botica em Portugal no século XVIII The Recipes of Francisco Borges Henriques: culinary, cosmetics and pharmacy (Portugal, 18th century) Isabel M. R. Mendes Drumond Braga* Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras e CIDEHUS
Resumo
Abstract
Com este texto pretende analisar-se um manuscrito inédito do século XVIII no qual se encontram receitas de culinária a par de outras dedicadas a questões de higiene e beleza e mezinhas utilizadas na época, numa mistura comum neste tipo de documentos, em que se entrelaçam permanências e rupturas. Se no que se refere aos preparados com vista a obter saúde e beleza estamos perante um receituário bastante tradicional em que se cruza superstição, magia e pretensa medicina já no que se refere ao receituário de culinária estamos perante um cozinheiro criativo que apresenta várias novidades, em especial no que se refere à utilização de novos produtos.
This paper aims to examine an unpublished Portuguese manuscript of the eighteenth century, with cooking recipes and other ones about hygiene and beauty and also remedies used at the time, a common mixture in this type of documents, in which intertwine stays and ruptures. In the preparations in order to obtain health and beauty this is a very traditional recipe that intersects superstition, magic and medicine. In the other hand, is a very creative cookbook, with several novelties, particularly with regard to the use of new products.
Palavras-chave: Botica; Cosmética; Culinária; Keywords: Apothecary; Cosmetics; Food; Francisco Borges Henriques; Portugal. Francisco Borges Henriques; Portugal.
● Enviado em: 23/11/2016 ● Aprovado em: 27/06/2017
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Isabel Drumond Braga é doutora em História, especialidade em História Económica e Social (séculos XVXVIII), pela Universidade Nova de Lisboa (1996) e agregada pela Universidade de Lisboa (2006). Leciona na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa desde 1990. Foi professora visitante na Universidade Federal Fluminense (Brasil), em 2009, na Università di Catania (Itália), em 2011 e na Universidade Federal da Uberlândia (Brasil), em 2013. Colaborou com a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, no ano letivo de 2012-2013, lecionando o seminário de mestrado “História Económica dos Cuidados de Saúde em Portugal”. Tem participado em congressos científicos nacionais e internacionais em diversos países: Alemanha, Áustria, Brasil, Espanha, França, Israel, Itália, Marrocos, México, Portugal, Reino Unido, Suíça e Tunísia; e em diversos projetos de investigação em Portugal, em Espanha e no Brasil. A produção científica desenvolvida tem versado, em especial, temas como: Inquisição, minorias étnico-religiosas, religiosidade popular, relações diplomáticas, parenética, assistência e vida quotidiana, com destaque para a história da alimentação. Curriculum e parte da produção científica disponíveis em: https://ulisboa.academia.edu/IsabelDrumondBraga
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1. A produção portuguesa de livros de receitas, quer manuscrita quer impressa, não foi muito relevante, comparativamente com a de outros espaços europeus1. Por outro lado, alguns receituários, quer leigos quer monásticos ou conventuais, foram escritos por pessoas que compilaram receitas de várias tipologias, dando origem aos denominados “livros de segredos”, existentes um pouco por toda a Europa2. Nestas obras encontram-se desde receitas de culinária a mezinhas, passando por preparados de cosmética e de um vasto número de conselhos úteis para os mais variados fins domésticos. Mesmo em instituições monásticas ou conventuais, algumas com relevo no âmbito da farmacopeia3, as mezinhas estiveram sempre presentes nos receituários referidos. O texto de Francisco Borges Henriques, intitulado Receitas de milhores doces e de alguns guizados particullares e remedios de conhecida experiencia que fes Francisco Borges Henriques para o uzo da sua caza4, é da primeira metade do século XVIII, encontra-se na Biblioteca Nacional de Portugal e foi objeto de interesse e de transcrição inacabada por João Pedro Ferro a quem a morte prematura impediu a publicação. Em 2004 e em 2007, procedemos a um estudo parcial do manuscrito que agora se retoma5. Trata-se de um texto rico e variado com matéria de relevo em âmbitos diversos dos cuidados domésticos.
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Sobre os receituários portugueses, cf. Livros Portugueses de Cozinha, 2.ª edição, organização, levantamento bibliográfico e iconográfico de Manuela Rêgo, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1998. Sobre esta concetualização, cf. Philip et Mary Hyman, “Les Livres de Cuisine Imprimés en France du Règne de Charles VIII à la fin de l’Ancien Régime”, Livres en Bouche. Cinq siècles d’Art Culinaire Français du Quatorzième au Dix-huitième siècle, Paris, Hermann, Editeurs des Sciences et des Arts, Bibliothèque National de France, 2001, p. 59. Em Portugal, destaque para o Mosteiro de São Vicente de Fora. Cf. Paula Basso, João Neto, “O Real Mosteiro de São Vicente de Fora”, A Botica de São Vicente de Fora, Lisboa, Associação Nacional de Farmácias, 1994, pp. 11-18; Pedro Sousa Dias, Rui Pita, “A Botica de S. Vicente e a Farmácia nos Mosteiros e Conventos da Lisboa Setecentista”, A Botica de São Vicente de Fora, Lisboa, Associação Nacional de Farmácias, 1994, pp. 19-25; João Rui Pita, Ana Leonor Pereira, “Botica, Farmacopeia Conventual e Farmácia. A Pharmacopeia Lusitana de D. Caetano de Santo António (1704)”, Mosteiro e Saúde. Cerca, Botica e Enfermaria. Actas do III Encontro Cultural de São Cristóvão de Lafões, São Cristóvão de Lafões, [s.n.], 2008, pp. 95-107. Em São Martinho de Tibães, os monges guardavam na sua livraria um códice manuscrito com receitas de culinária, mesinhas e outros preparados. Cf. Anabela Ramos, Sara Claro, Alimentar o Corpo e Saciar a Alma. Ritmos Alimentares dos Monges de Tibães. Século XVII, Vila Real, Direcção Regional de Cultura do Norte, Porto, Edições Afrontamento, 2013. Para outros espaços, cf. Gianna Pomata, “Medicina delle Monache. Pratiche Terapeutiche nei Monasteri Femminili di Bologna in Età Moderna”, I Monasteri Femminili come Centri di Cultura fra Rinascimento e Barroco, Roma, Edizione di Storia e Letteratura, 2005, pp. 331-363. Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal (B.N.P.), Cod. 7376 [Receitas de milhores doces e de alguns guizados particullares e remedios de conhecida experiencia que fes Francisco Borges Henriques para o uzo da sua caza. No anno de 1715. Tem seo alfabeto no fim. 1715-1729]. Cf. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, “O Livro de Cozinha de Francisco Borges Henriques”, Do Primeiro Almoço à Ceia. Estudos de História da Alimentação, Sintra, Colares Editora, 2004, pp. 2004, pp. 61-99; Idem, “Beleza e Sedução: à Volta dos Cosméticos”, Vivências no Feminino. Poder, Violência e Marginalidade nos séculos XV a XIX, Lisboa, tribuna da História, 2007, pp. 147-180.
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Tentando averiguar algo sobre a biografia deste cozinheiro, apenas encontrámos uma habilitação do Santo Ofício, de 1693, na qual um Francisco Borges Henriques, filho de António Borges Henriques, almoxarife e familiar do Santo Ofício, na ilha de São Miguel, e de Graça Milão, falecida à data, solicitou a possibilidade de ser nomeado familiar, o que conseguiu a 14 de Outubro daquele ano. O documento informa-nos ainda que o requerente era natural de Alhandra, residia em Lisboa, na freguesia de São Mamede, em casa de Bento de Beja de Noronha, deputado do Conselho Geral, que era filho legítimo, solteiro e que sabia ler e escrever6. Estaremos perante um homónimo do autor do livro de receitas ou do próprio, que poderia eventualmente, ser cozinheiro do deputado do Conselho Geral do Santo Ofício e posteriormente bispo de Elvas? Presentemente, não podemos nem aceitar nem recusar nenhuma destas hipóteses.
2. O livro de receitas de Francisco Borges Henriques, com indicações de diversas datas, designadamente 1715, 1725, 1728 e 1729, é uma obra composta por 665 entradas nas quais se registaram 377 receitas de culinária, 34 receitas de higiene e beleza, 230 mezinhas e 24 outras diversificadas, a saber, modo de preparar tintas e gomas, de limpar cadeiras, cobres, latões e pinturas, orações e bênçãos e ainda indicações acerca dos tempos de luto, das missas, das épocas das sementeiras, do modo de tratar as terras para agricultar, as vinhas e os animais doentes. Em alguns casos, notam-se receitas riscadas e repetidas fólios à frente. Isto é, estamos perante uma miscelânea de assuntos que o autor colecionava e registava no códice, à medida que ia tomando conhecimento dos mesmos, uma vez que não há qualquer ordem na apresentação dos diferentes temas. Realisticamente, se excetuarmos a desarrumação dos assuntos, esta prática de compilar receitas de diversos tipos manteve-se ao longo do século XIX7 e teve, embora de forma mais modesta, antecedentes significativos, nomeadamente no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria8. Outros textos de receitas de culinárias não esqueceram também, de entre outras, as de tinta e as de conservar sanguessugas e matar toupeiras9.
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Lisboa, Arquivos Nacionais Torre do Tombo (A.N.T.T.), Habilitações do Santo Ofício, Francisco Borges Henriques, maço 23, doc. 602. Um dos exemplos mais significativos será a obra Manual de Receitas e Segredos Uteis e Necessarios a todas as Familias e aos Artistas em Geral, 6.ª edição, inteiramente reformada com muitos processos curiosos dedicados á arte da tinturaria, á economia domestica e á higiene, etc. etc., augmentada com um breve tratado da conservação da beleza, Lisboa, Joaquim José Bordalo, 1891. Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, prólogo, leitura, notas aos textos, glossário e índices de Giacinto Manuppella, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, pp. 1-7. O Livro de Receitas da Última Freira de Odivelas, introdução, atualização do texto e notas de Maria Isabel de Vasconcelos Cabral, Lisboa, Verbo, 1999, pp. 148-151 e 156.
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Como se pode verificar pelo gráfico, predominaram as receitas de culinária, as quais representaram 56% do total, seguindo-se as mezinhas e, com percentagens muito mais baixas, as receitas de higiene e beleza e as restantes, como já referimos, relativas a um leque considerável de assuntos.
Gráfico 1 Tipos de Receitas
Higiene e Beleza 5%
Mezinhas 35%
Outras 4%
Culinária 56%
Francisco Borges Henriques, com as suas Receitas de milhores doces e de alguns guizados particullares […], compiladas na primeira metade do século XVIII, viveu entre dois grandes livros de cozinha impressos em Portugal, ou seja, entre a publicação, em 1680, da Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues10 e a saída, em 1780 do Cozinheiro Moderno, da autoria de Lucas Rigaud11, ambos com sucessivas edições até ao século XIX. Neste sentido, parece-nos interessante avaliar até que ponto o receituário de cozinha de Borges Henriques se aproxima ou se afasta destas duas obras, uma que lhe é anterior e outras que lhe é posterior. Sendo o autor das Receitas de milhores doces e de alguns guizados particullares […] um compilador e experimentador aparentemente bastante activo, também é certo que não se assumiu como o maître, o cozinheiro profissional, ao contrário do que aconteceu com Domingos Rodrigues e Lucas Rigaud, cozinheiros régios de D. Pedro II, ainda regente, e de D. Maria I e D. Pedro III, respetivamente. De facto, se a diferenciação clara entre o cozinheiro profissional e o cozinheiro doméstico, frequentemente uma cozinheira, só data da primeira metade do século XIX, também é certo que antes as duas tendências já eram evidentes. Os 10
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Domingos Rodrigues, Arte de Cozinha, leitura, apresentação, notas e glossário por Maria da Graça Pericão e Maria Isabel Faria, [Lisboa], Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987. Lucas Rigaud, Cozinheir Moderno ou Nova Arte de Cozinha, prefácio de Alfredo Saramago, Sintra, Colares, 1999. Esta edição tem por base a 2.ª edição de 1785.
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grandes nomes da arte culinária pertenciam ao sexo masculino, não obstante abundarem as cozinheiras, frequentemente associadas à confeção de pratos tradicionais saborosos que se repetiam sem perspetiva de inovação, ao contrário do que acontecia com os cozinheiros profissionais, os artistas artesãos audaciosos e inventivos12. Nesta ótica, cremos que teremos que incluir Francisco Borges Henriques no grupo dos cozinheiros domésticos. Nas Receitas de milhores doces e de alguns guizados particullares […] são dadas a conhecer 58 receitas de carne, 37 de peixe, 171 de doces, 35 de legumes e ainda 76 receitas de alguns molhos, bebidas, enchidos, pontos de açúcar, modos de conservar frutos e legumes, confeção de manteiga, nata, banha, etc. No capítulo das carnes contam-se vaca, vitela, porco, javali, carneiro, coelho, lebre e aves, designadamente capado, frango, galinha, galinhola, pato, perdigoto, perdiz, peru, pombo, rolo, tordo e passarinhos, sem discriminação. Isto é, temos aves e gado de criação e abate e caça de pelo e pena. No domínio dos peixes e dos moluscos, foram apresentadas receitas com bacalhau, boga, choco, corvina, eirós, lampreia, linguado, pescada, salmonete, sardinha, sável e, genericamente, peixes de rio. Os bivalves e os mariscos ficaram parcamente representados com amêijoas, camarões e ostras. Em matéria de doces, o destaque incidiu nos de frutos, abóbora, ameixa, cereja, cidrão, ginja, laranjas doces e amargas, marmelo, melancia, melão, pera e pêssego, todos realizados com açúcar em pontos diversos; a par de muitos doces de amêndoas, leite e ovos, alguns também com coco. No grupo dos tubérculos, dos legumes e das leguminosas contam-se batata, beringela, beterraba, cebola, cenoura, couve murciana, ervilha, espargo, fava, feijão branco e feijão fradinho, isto é, feijãofrade; nabo, pepino, repolho e tomate. Os derivados do leite ficaram representados por nata, manteiga, queijo, queijo flamengo e requeijão. Nas bebidas o destaque vai para o café e para o chocolate. Bastante rica é a lista dos temperos. O omnipresente sal, a par das muitas especiarias e produtos orientais e brasileiros, nomeadamente açafrão, almíscar, âmbar, canela, cardamomo, cominho, cravo do Maranhão, cravo do Pará, cravo-da-índia, erva-doce, gengibre, gergelim, noz-moscada, pimenta e pó de sândalo; ervas diversas, tais como coentro, louro, manjericão, manjerona, orégão, salsa e tomilho, e ainda agraço, água de flores, alcaparra, alho, limão azedo, laranjas doces e amargas, pimentão e vinagre. Recorde-se que Francisco Borges Henriques definiu ervas finas, como um grupo composto por tomilho, manjericão, manjerona, louro, cravo e pimenta; e adubos pretos, ou seja, açafrão, canela,
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Sobre estes aspectos, cf. Leo Moulin, Les Liturgies de la Table. Une Histoire Culturelle du Manger et du Boire [Paris], Albin Michel, 1989, p. 184 ; Stephen Mennell, All Manners of Food. Eating and Taste in England and France from the Middle Ages to the Present, 2.ª edição, Urbana e Chicago, University of Illinois Press, 1996, pp. 200-201.
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cravo-da-índia e pimenta13. As gorduras utilizadas foram manteiga de vaca para doces e alguns outros pratos, manteiga de porco, isto é, banha; para carne e tanto as carnes como alguns doces contaram, esporadicamente, com azeite. Em termos de representatividade, como se pode ver pelo gráfico, as receitas de doces, secos e molhados, à base de açúcar, ovos, leite e também frutas, predominaram, tendo representado 46% do total das receitas de culinária. A carne e o peixe, com 15% e 10%, respetivamente, ficaram acima dos legumes com uma percentagem na ordem dos 9%. Em contrapartida, os pontos de açúcar, as bebidas, os molhos, os modos de conservar legumes e frutos, nomeadamente a secagem e os preparados de achar; os diversos tipos de enchidos, bem como as maneiras de fabricar manteiga, natas, banha e agraço representaram uma percentagem não negligenciável, já que estiveram acima dos pratos de carne.
Gráfico 2 Diferentes Tipos de Receitas
Outras 20% Doces 46%
Legumes 9% Peixe 10% Carne 15%
Algumas
considerações
se
impõem
face
à
lista
de
produtos
enunciada.
Comparativamente a Domingos Rodrigues e a Lucas Rigaud, Francisco Borges Henriques apresentou menos receitas e uma menor diversidade das espécies de carne, de peixe e de legumes. A presença de receitas de peixes como o bacalhau e a sardinha não deixa de ser interessante já que estamos perante espécies pouco apreciadas pelo grupo aristocrata14. Já no que se refere aos legumes a situação é diferente. O receituário em estudo conta com diversas receitas de tomate, as quais estão quase totalmente ausentes dos livros nacionais impresso
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Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fols 1, 68. Sobre o bacalhau, cf. Isabel Drumond Braga, “Morue”, Dictionnaire des Cultures Alimentaires, direcção de Jean-Pierre Poulain, Paris, PUF, 2012, pp. 889-893.
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até à segunda metade do século XIX15. Inovadora será também uma receita de esparregado que poderia ser feita com “qualquer erva”16. Algumas palavras para a batata, que apenas nos aparece numa receita doce, o que confirma a tendência já antes verificada na obra de Domingos Rodrigues e, posteriormente, na de Lucas Rigaud. Efetivamente, a sua difusão nos receituários aristocráticos será posterior17. As diferentes massas estão ausentes e o arroz parcamente representado, mas com interessantes receitas como um arroz de forno com pato ou peru ou um arroz de camarão, que talvez possa ser entendido como um antepassado pobre do atual arroz de marisco. O uso e abuso das especiarias, tanto nos pratos de carne como nos de peixe não deixa de ser surpreendente. Neste domínio, Francisco Borges Henriques está mais perto das tradições culinárias quinhentista e seiscentista do que da setecentista de Rigaud. Nos doces, à exceção de uma receita de alcomonia18, não se revelam grandes novidades: muitos doces de amêndoa, ovos, leite e alguns de coco, essa decerto a maior diferença, sem esquecer os de melão, melancia e escorcioneira. Não esqueçamos ainda o café e o chocolate, a par da ausência do chá, bebidas de luxo que se foram difundindo entre os grupos privilegiados, cada vez em maior quantidade ao longo dos séculos XVIII e XIX19.
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Contudo, em Castela, já havia receitas de conserva de tomate, pelo menos, desde 1745. Cf. Juan Altamiras, Nueva Arte de Cocina, Huesca, La Val de Onsera, 1994, p. 121. Esta edição que tem por base a de 1758. A 1.ª edição é de 1745. Sobre o esparregado, cf. Luís da Camara Cascudo, História da Alimentação no Brasil, 2.ª edição, vol. 2, Belo Horizonte, Itatiaia, São Paulo, Universidade de São Paulo, 1983, pp. 552-553. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, Portugal à Mesa. Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade (1800-1850), Lisboa, Hugin, 2000, pp. 45-50. Sobre este doce popular, comercializado no Baixo Alentejo, cuja receita não se encontra nas obras de cozinha impressas do período moderno, cf. Maria da Conceição Vilhena, “Reminiscências Árabes na Doçaria Portuguesa. As Alcomonias”, Arquipélago. História, 2.ª série, vol. 4, n.º 2, Ponta Delgada, 2000, pp. 625-634. Sobre o percurso do chocolate em Portugal, cf. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, A Herança das Américas em Portugal. Trópico das Cores e dos Sabores, Lisboa, CTT Correios de Portugal, 2007; pp. 133221; Idem, “O Caminho de uma Delícia”, Revista de História da Biblioteca Nacional, n.º 6, Rio de Janeiro, 2005, pp. 62-65; Idem, “O Chocolate à Mesa: Sociabilidade, Luxo e Exotismo”, Colóquio Formas e Espaços de Sociabilidade. Contributos para uma História da Cultura em Portugal, Lisboa, Universidade Aberta, 2008 [cd rom]; Idem, “A América à Mesa do Rei”, A Mesa dos Reis de Portugal, coordenação de Ana Isabel Buescu e David Felismino, Lisboa, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011, pp. 336-349. Sobre o percurso destes géneros em outros pontos da Europa cf. Fernand Braudel, Civilização Material, Economia e Capitalismo séculos XV-XVIII, tradução de Telma Costa, tomo 1, Lisboa, Teorema, 1992, pp. 213-223; Carson I. A. Richie, Comida e Civilização. De como a História foi Influenciada pelos Gostos Humanos, tradução e notas de José Labaredas, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, pp. 156-158, 169-173; Maguelonne Toussaint-Samat, A History of Food, 5.ª edição, tradução de Anthea Bell, Oxford, Blackwell, 1999, pp. 574606; María de los Ángeles Pérez Samper, “La Alimentación en Tiempos del Emperador : Un Modelo Europeo de Dimensión Universal”, Carlos V. Europeísmo y Universalidad, coordenação de Juan Luis Castellano, Francisco Sanchez-Montes González, vol. 5, Madrid, Sociedad Estatal para la Commemoración de los Cententenarios de Felipe II y Carlos V, 2001, pp. 515-516 ; Caroline Le Mao, “A la Table du Parlement de Bordeaux: Alimentation et Auto-Alimentation chez les Parlamentaires Bordelais au début du XVIIIe siècle”, Du Bien Manger et du Bien Vivre à travers les Ages et les Terroirs, [s.l.], Maison des Sciences de l’Homme d’Aquitaine, 2002, p.158. Sobre a sua difusão no Brasil, cf. Luís da Câmara Cascudo, História da Alimentação no Brasil […], vol. 1, p. 300, vol. 2, pp. 423-425; José Newton Coelho Meneses, O Continente Rústico. Abastecimento Alimentar nas Minas Gerais Setecentistas, Diamantina, Maria Fumaça,
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O receituário manuscrito em análise revela-se percursor, relativamente às informações que encerra acerca do chocolate e do café, apesar da receita de chocolate ser confusa. Efetivamente, se o uso do primeiro, divulgado entre os grupos privilegiados portugueses em especial no século XVIII20, aparece enquanto bebida, raramente se encontram receitas de doces confecionados com o referido ingrediente – entre as exceções contam-se conservas de café e de chocolate e um creme de baunilhas, chocolate e café, apresentados por Lucas Rigaud21 – Francisco Borges Henriques não esqueceu as possíveis aplicações medicinais do café, aconselhando a sua ingestão com leite, em determinadas patologias. Sabe-se que já Domingos Rodrigues ensinara a confecionar o chocolate, embora de forma incompleta, omitindo a preparação do café22 e sabe-se também que ambas as bebidas chegaram a ser entendidas como detentoras de propriedades curativas daí fazerem parte dos géneros fornecidos aos doentes23. Tal atitude não foi uma especificidade portuguesa24. No livro de receitas em estudo está patente uma grande preocupação em conservar os alimentos, para que, na época em que os não havia frescos, os mesmos se pudessem consumir num estado diferente. Sabendo-se que a conservação dos alimentos era precária devido à falta de redes de frio, as soluções de Francisco Borges Henriques passaram pela secagem dos frutos, com a obtenção de passas de ameixa, maçã, marmelo, pera, pêssego e uva; pela conservação das frutas através da realização de doces e geleias25, pela salga e secagem de
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2000, p. 117; Leila Mezan Algranti, “ ‘Bebida dos Deuses’: Técnicas de Fabricação e Utilidades do Chocolate no Império Português (séculos XVI-XIX), O Império por Escrito. Formas de Transmissão da Cultura Letrada no Mundo Ibérico séculos XVI-XIX, organização de Leila Mezan Algranti e Ana Paula Megiani, São Paulo, Alameda, 2009, pp. 403-426. Carlos Veloso, A Alimentação em Portugal no século XVIII nos Relatos dos Viajantes Estrangeiros, Coimbra, Minerva, 1992, pp. 127-131; Francisco Santana, “Aspectos da Alimentação Setecentista em Processos Inquisitoriais”, Fraternidade e Abnegação. A Joaquim Veríssimo Serrão, os Amigos, vol. 1, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1999, p. 441; Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, A Herança das Américas […], pp. 133-221; Idem, “O Caminho de uma Delícia”, Revista de História da Biblioteca Nacional, n.º 6, Rio de Janeiro, 2005, pp. 62-65; Idem, “O Chocolate à Mesa: Sociabilidade, Luxo e Exotismo”, Colóquio Formas e Espaços de Sociabilidade […]; Idem, “A América à Mesa do Rei”, A Mesa dos Reis de Portugal […], pp. 336-349. Lucas Rigaud, Cozinheiro Moderno ou Nova Arte de Cozinha [...], pp. 235. Domingos Rodrigues, Arte de Cozinha […], pp. 139-140. Maria Marta Lobo de Araújo, Dar aos Pobres e Emprestar a Deus: as Misericórdias de Vila Viçosa e Ponte de Lima (séculos XVI-XVIII), [s.l.], Santas Casas da Misericórdia de Vila Viçosa e de Ponte de Lima, 2000, p. 216, sobre o chocolate. M. Mercè Gras i Casanovas, “Una Polèmica dius l’Alimentació Mediterrània dels segles XVII-XVIII. La Xocolata, una Addició Perillosa o un Plaer Autoritzat?”, La Mediterrània, Àrea de Convergencia de Sistemas Alimentaris (segles V-XVIII). XIV Jornades d’ Estudis Històrics Locals, coordenação de Maria Barcelò Crespí e Antoni Riera Melis, Palma, Institut d’ Estudis Històrics Baleàrics, 1996, pp. 741-752. Esta prática foi comum em outros reinos europeus. Para Castela, cf. María Ángeles Pérez Samper, La Alimentación en España en el Siglo de Oro. Domingos Hernández de Maceras, Libro del Arte de Cocina, Huesca, La Val de Onsera, 1998, pp. 38-49; para França, cf. Nostradamus, Tratado da Maneira de fazer Doces de Frutas, prefácio de Loy Rolim, Sintra, Colares, 2002. Também no Brasil o recurso às compotas e geleias foi uma realidade que contou com a enorme diversidade dos frutos da colónia. Cf. Luís da Camara Cascudo, História da Alimentação no Brasil […], vol. 2, pp. 639-643, passim.
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peixe26 e de carne, neste caso com a produção de buchos, chouriços, linguiças, morcelas, presuntos e salsichas; e ainda pela utilização de achar, isto é, uma espécie de pickles; de salmoiras para peixe, toucinho e queijo de cabra, sem esquecer receitas para conservar azeitonas, cebolas, feijões em vagem e manteiga, calda de tomate e ainda uma receita de pãode-ló para viagem e de canja para doentes. As técnicas de culinária utilizadas por Francisco Borges Henriques evidenciam já um certo refinamento. Um levantamento dos termos utilizados nas receitas mostra o conjunto dos processos que os alimentos sofriam desde a sua obtenção até ao final da preparação. Assim, o cozinheiro utilizou os verbos abafar, aboborar (demolhar), abrir, adoçar, afogar, amassar, apalpar, aparar, assar, atar, barrar, bater, borrifar, botar, caldear, catar, clarificar, coalhar, coar, cobrir, corar, cortar, cozer, cravejar, curar, debulhar, derreter, descascar, desfazer, desfiar, encher, enfarinhar, engrossar, enxugar, esbrogar, escaldar, escalfar, escorrer, escumar, esfriar, esmigalhar, espalmar, espremer, estender, ferver, frigir, golpear, guarnecer, juntar, lançar, lardear, lavar, limar, limpar, meter, mexer, migar, misturar, moer, partir, pelar, peneirar, pesar, picar, pilar, pisar, pulverizar, salpicar, torrar, tostar, ralar, raspar e virar. Enquanto técnicas igualmente desenvolvidas, recordemos o recurso ao achar, à calda, ao escabeche, ao fumeiro, à salmoura e aos pontos de açúcar, nomeadamente alambre, quebrar, tanger na tigela, espadana, meia espadana, fixo, pasta, fio, fio alto, cabelinho, cobrir, bandeira e grade; bem como o uso de papéis untados e de formas untadas e enfarinhadas. Para as diferentes operações culinárias era necessária uma bateria de cozinha. Além de forno, fogão e fogareiro contam-se agulhas de colchões, alfinetes, alguidares, almofarizes, azados, bacias, bacias vidradas, batedores, boiões, boiões vidrados, cafeteiras, canivetes, carretilhas, cestos, chocolateiras, colherões, colheres, colheres de prata, colheres de ferro, covilhetes, cutelos, escumadeiras, espetos, facas, farpinhas agudas de dois gumes, frigideiras, frigideiras vidradas, funis, garrafas, garfos, grais, guardanapos, joeiras, linhas, moinhos, palanganas, palhas de junco, panelas, panelinhas, panelinhas vidradas, palhinhas, panos, papéis diversos, paus de estender, peneiros, pincéis, pratos, pratos de prata, prensas, púcaros, ralos (raladores), rengos, tábuas, tabuleiros, taças, tachos, tenores, tigelas, torteiras, vasilhas, vasos vidrados e xícaras. Independentemente do que se possa vir a apurar, cremos que Francisco Borges Henriques foi, como antes referimos, cozinheiro de alguma grande casa, uma vez que colecionava e experimentava receitas, facto que não era comum a quem não se dedicasse a tal
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Sobre esta realidade em Castela, cf. Juan Altamiras, Nueva Arte de Cocina […], pp. 96, 98.
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mister, especialmente sendo do sexo masculino. Tenhamos presente que, em alguns passos da obra, Francisco Borges Henriques não escondeu que juntava receitas, as quais lhe chegavam de diversas proveniências. Por exemplo, escreveu: “Manjar Branco cuja receita me mandou a Senhora D. Maria com hum fermozo prato delle per amostra em 12 de Maio de 1725” 27; “outra receita que me ueio do Porto”28, “Sardinhas de Vianna do conego de Vianna tem a Receita o cozinheiro do Marques de Angeia”29, ou “receita de D. Jozefa”30. Por outro lado, no fólio 144 intercalou um papel impresso intitulado “Fava de Santo Ignacio”, a que acrescentou à mão certas observações31. A familiaridade de Francisco Borges Henriques com a culinária é visível nos comentários que frequentemente apôs aos títulos das receitas e nos que teceu, sugerindo o acrescento de algum produto a certas receitas, a utilização de determinadas espécies de frutos ou até indicando o local de venda de algum objeto. Isto é, o autor do códice não só cozinhava como comentava algumas das receitas. Ou seja, estamos perante um receituário testado, se não na totalidade pelo menos em grande parte. Se é uma realidade que a culinária proposta pelos livros de cozinha revela o que se podia comer e não necessariamente o que se comia32 – sabemos que nunca confecionamos todas as receitas dos livros de cozinha que possuímos – também é certo que, no caso em apreço, a experimentação foi uma realidade atestada por frequentes comentários33. No conjunto das impressões pessoais motivadas pela experimentação das receitas, destaquem-se, por exemplo: “aduirta ce que nem toda a pera serue e a milhor he a que tem caroucinho dentro ou pera vermelha a do conde he excellente”34, “Almondegas que são muito boas”35, “as boas peras pera cobrir são de Rio Frio e do conde e quando sejão outras aduirtão a que se não fação vermelhas na agoa quando se cozerem”36, “Bollos de mel de talhada de Abrantes bons e de menor trabalho”37, “Caldos de arroz com que me achei bem despoes de haver tres meses que andei rouco e tomando muitos remedios so
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Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 34. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 34 Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 203. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 49. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 144. A. H. de Oliveira Marques, “Introdução”, in João Pedro Ferro, Arqueologia dos Hábitos Alimentares, Lisboa, D. Quixote, 1996, p. 11. Sobre este tipo de comentários nos livros de cozinha franceses, cf. Jean-Louis Flandrin, “A Distinção pelo Gosto”, História da Vida Privada, direcção de Philippe Ariès e George Duby, vol. 3 (Do Renascimento ao Século das Luzes), tradução portuguesa com revisão científica de Armando Luís de Carvalho Homem, Porto, Afrontamento, 1990, pp. 286-287. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 7. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 88. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 7. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 183.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 com elles me achei bom”38, “Esta gelleia fica emcarnada e se a quizerem branca como se faz no Porto vão duas receitas della a folio 37 que he a milhor e a mais clara e a folio 104 outra com menor clareza”39, “esta sopa he muito bom prato e a comi muitas vezes”40, “Farteis de que uzamos e são os milhores”41, “Outros farteis mas não são tão bons”42, “Gingas cuja receita he de Villa Vicoza e a tenho por milhor”43, “Lebre e he como a uzamos por ser milhor”44, “Manjar real cuja receita he de Villa do Conde onde se faz o milhor”45, “Manjar Real cuja receita he de Santa Crus de Villa Vicoza e a não tenho por boa como outras”46, “Outra receita milhor de pacas de uuas cuja receita he de Alegrete aonde as comi”47, “Pecegos de calda muito bons que se fazem em Santa Crus de Vila Vicoza”48, “Pecegos cubertos de Coimbra de que uzamos”49, “Pesegada de pedacos de que uzamos he excelente”50, “Perada de que uzamos”51, “Receita de Manjar Real que se faz no Conuento de Val de Pereyras yunto a Ponte de Lima cujo manjar vaj ao Brazil sem se corromper e se me mandou por milhor que o de Villa do Conde Pedro da Costa Lima mo mandou”52, “se lhe quiserem deitar cidrão rallado ficão milhores”53, “se lhe quizerem misturar hũa pouca de amendoa bem pizada tanto nos de abóbora como nos de escorcioneira ficão mais gallantes”54, “tirada do lume se quizerem deitar lhe hũas gemas de ouos me parece tãobem ficara bem”55, “tire ce lhe o carouco com hũa frapainha aguda e de dois gumes que se costumão fazer na Cutillaria de Lixboa”56 e “Vaca Estofada que he hum notauel prato”57.
No receituário manuscrito de Francisco Borges Henriques, tal como em todos os textos portugueses de cozinha, detetam-se influências estrangeiras. O facto explica-se quer devido ao percurso pessoal dos autores quer devido à cópia sucessiva de receitas. Contudo, nem sempre podemos estar totalmente seguros da “naturalidade” de algumas receitas, apesar da nomenclatura dos pratos ser, contudo, um indicativo. As principais preocupações foram no sentido de apresentar pratos confecionados à moda de outros países, de outras cidades ou de outros povos58. No códice em estudo, encontram-se 25 receitas que se enquadram no que 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58
Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 69. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 3. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 68. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 16. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 16. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 6. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 198. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 32. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 33. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 99. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 5. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 5. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 4. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 7. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 36. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 18. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 8. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 53. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 5. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 88. O mesmo aconteceu em França, onde a internacionalização permitiu referir receitas à moda da Inglaterra, Alemanha e Holanda. Cf. Jean-Paul Aron, Le Manguer du XIXe siècle, prefácio de Marc Ferro,
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acabámos de expor. Ou seja, a indicação de receitas confecionadas “à moda de”. Assim, temos talhadas da China59, biscoitos romanos60, chouriços genoveses61, três receitas à castelhana, isto é, caramelo, achar e chouriços62; quatro pratos à francesa, nomeadamente sopa de peixe, sopa de substância, sopa de vaca e leite crespo63; cinco pratos à inglesa, a saber, pudim, torta de maçã, queijadas, coelho e fricassé64; e, por fim oito receitas brasileiras: quatro doces de laranjas, ovos-moles, papas de arroz, ambrósia e limonada65. Francisco Borges Henriques, ao indicar as receitas “à moda de”, seguiu o costume da época, tanto português como internacional, já que até aqui em nada se afastou de Domingos Rodrigues nem de Lucas Rigaud66. Porém, superou ambos quando explicitou que todas as receitas brasileiras eram genuinamente brasileiras, duas delas da Baía 67 – ambrósia e limonada – e que o pudim era um prato inglês68. Isto é, pela primeira vez, tornou-se evidente que uma receita de determinado espaço poderia ser diferente de uma “receita à moda de”. Neste último caso, poderemos estar apenas a combinar ingredientes e modos de preparação típicos de um determinado local sem que nesse mesmo local se faça aquele prato dessa mesma maneira. Tanto quanto sabemos, esta perspetiva, de apresentar as duas situações – as receitas “à moda de” e as receitas genuinamente de certo local –, só se voltará a repetir em 1876, com a Arte de Cozinha de João da Mata69 e em 1889, na Novíssima Arte de Cozinha70. Francisco Borges Henriques teve o mérito de compilar receitas de diversas zonas do país, antecipando-se ao nascimento dos livros de culinária regional dos séculos XIX e XX. Assim, foram apresentadas receitas confecionadas de acordo com a prática culinária de
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Paris, Payot, 1989, p. 150. Num livro de receitas escrito em inglês, existente na Biblioteca Nacional de Portugal, a situação repetiu-se. Encontram-se, de entre outras as seguintes receitas: “Portugal cake, Polonia sauceags e italian cream & sugar loags”. Lisboa, B.N.P., Cod. 158, fols 14, 26, 35. Em obras castelhanas também se detetam pratos à portuguesa. Cf. María Ángeles Pérez Samper, La Alimentación en España en el Siglo de Oro […], pp. 28, 210. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 24. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 65. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 201. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fols 21, 81, 201. No capítulo dos perfumes regista-se uma água de Córdova, no fol. 55. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fols 54, 83, 192, 199. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fols 50, 191. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 19-21, 25, 52-53, 64. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, Portugal à Mesa. Alimentação, Etiqueta e Sociabilidade […], pp. 110112. Sobre a culinária da Baía, cf. Joaquim da Costa Pinto Netto, Caderno de Comidas Baianas, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1986. Sobre o pudim inglês, cf. Laura Mason, “Les Puddings et l’Identité Anglaise”, Histoire et Identités Alimentaires en Europe, direcção de Martin Bruegel e Bruno Laurioux, [s.l.], Hachette, 2002, pp. 169-181. João da Mata, Arte de Cozinha, 5.ª edição, Lisboa, Vega, 1993. Novissima Arte de Cozinha. Illustrada com numerosas Gravuras e contendo as melhores Receitas Culinárias, ao alcance de todos, uma Secção completa de Doces, Pudins, Massas, etc., variadíssimos pratos da Cozinha Brazileira e o modo de servir á Mesa e de trinchar, Lisboa, Tavares Cardoso & Irmão, 1889.
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diversas zonas, cidades e vilas do reino, a saber: Abrantes (bolos de mel de talhada), Coimbra (pêssegos cobertos), Elvas (conserva de azeitonas e geleia), Guimarães (ameixas secas e em calda), Lisboa (caramelo, duas receitas de toucinho do céu), Mafra (biscoitos), Minho (unto), Porto (geleia branca, manjar branco, sericaia e tripas), Setúbal (empadas de peixe), Viana da Foz do Lima (sardinhas), Vila do Conde (manjar real)71. Incluiu ainda receitas conventuais tais como manuschripti e marmelada das Flamengas (isto é, das freiras clarissas do convento de Nossa Senhora da Quietação)72, ovos-moles com nata, de Santa Mónica (a saber, do convento lisboeta das agostinhas descalças), bolos da Esperança (ou seja, bolos cuja receita seria do convento franciscano de Nossa Senhora da Piedade da Esperança, de Lisboa)73, pão de calo, do convento de Santa Clara (igualmente de freiras clarissas de Lisboa)74, manjar real do convento de Vale de Pereiras, junto de Ponte de Lima (isto é, do convento feminino de São Francisco)75, manjar branco, manjar real e pêssegos em calda de Santa Cruz de Vila Viçosa, ou seja, do convento de Santa Cruz, de eremitas calçada de Santo Agostinho76 e papim das freiras de Monforte, o mesmo é dizer das clarissas do convento do Bom Jesus 77. A par disto, salientou a qualidade das peras de Rio Frio, das ameixas de Guadalupe, do café do Levante e do chocolate das Índias de Castela, referindo ainda os de Curaçau, Martinica e Maranhão78. Tal como em outros receituários antigos, a imprecisão nas quantidades foi uma constante. Embora se refiram medidas para sólidos como o arrátel (0,459 kg), a quarta [de arrátel] (0,115 kg) e a onça (0,029 kg), e para líquidos, como a canada (1,413 l) e o quartilho (0,353 l), a maioria das quantidades apareceu de forma imprecisa 79. Francisco Borges Henriques teve, nesta matéria, diferentes posicionamentos. Referiu os ingredientes sem especificar as quantidades, por exemplo, na receita de tomates pode ler-se: “Tomarão huas talhadas de Prezunto e as porão a fregir e em meio fregir lhe deitarão os tomates em quatro quartos e hua migalha de sabolla picada”80 ou na de arroz de camarão “Salsa sabolla e pimenta açafrão crauo e manteiga e os camaroes esbrugados tudo posto ao fogo despoes de feruer e estarem cozidos se lhe botara agoa e uinagre e a manteiga e sera tudo comforme a quantidade
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Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fols 12, 15, 22-23, 32, 34, 80, 83, 97, 183-184, 186, 190, 203. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fols 38, 107. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 27. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 66. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fols 36-37. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fols 5, 33. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 54. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fols 7,12 61, 62. Sobre as equivalências das medidas antigas, cf. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, “A Circulação e a Distribuição de Produtos”, Portugal do Renascimento à Crise Dinástica (= Nova História de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. 5), Lisboa, Presença, 1998, pp. 207-208. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 92.
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do arroz que quizerem fazer”81; deu conta das proporções, como por exemplo, na receita sobre o modo de fazer café indicou-se “deitarão as chicaras de agoa que quizerem e tanto que feruer lhe lançarão o cafe que he hua colher de prata bem chea pera tres chicaras” 82, tal como na receita de batatada, na qual optou por idêntico processo: “a cada arratel de massa dois de asucar”83; as comparações explicitas aparecem quando numa receita de café se escreve “hum bocadinho de manteiga bem lauada do tamanho de hua noz moscada” 84. No domínio dos temperos, o “quanto basta” reinou totalmente. Ou seja, indicou-se pouco, bastante, “hum pequenino de” “huas pedrinhas de”, “hua pinga de” ou apenas se enunciam os referidos temperos, nomeadamente especiarias e ervas sem qualquer indicação da quantidade. Já a quantidade de cebola, por vezes, aparece “hua migalha”. Mais curiosa é a referência aos preços para definir quantidades, tais como, “de ambar hum cruzado novo” 85. Quanto aos tempos de preparação dos pratos as informações são praticamente inexistentes. Vai ao forno até tomar cor, a cozer, etc. Apenas no caso do pudim inglês se refere a necessidade daquele cozer hora e meia86.
3. Passemos para as receitas de cosmética presentes no texto de Francisco Borges Henriques. Nesta área torna-se bem evidente a faceta de colecionador e compilador de informações mesmo que esses dados não lhe fossem diretamente úteis. Recordemos que no mundo ocidental, o uso de cosméticos, entendidos como produtos para limpar, corrigir, proteger, embelezar e retardar o envelhecimento cutâneo ou conservar e restabelecer a beleza dos dentes e dos cabelos87, difundiu-se durante o Renascimento, apesar de se terem verificado diversas resistências. Então, o berço destas práticas, tal como o da estética em geral, foi a península itálica. Mas, um pouco por todo o lado, as críticas aos enfeites luxuosos, às modas e aos cosméticos marcaram discursos de teólogos e moralistas, tendo também presença no teatro e na literatura dita popular. Não aprofundando os cânones de beleza da época88, mas também não omitindo que mulheres roliças, de ancas avantajadas e seios generosos, redondos e firmes; dotadas de pele 81 82 83 84 85 86 87
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Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 87. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 61. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 15. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 208. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 62. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 50. Sobre o conceito e a finalidade dos cosméticos, cf. João Rui Pita, “Breve História dos Cosméticos”, Munda, n.º 32, Coimbra, 1996, p. 17; Eduardo A. F. Barata, Cosméticos. Arte e Ciência, Lisboa, Porto, Coimbra, 2002. Sobre os entendimentos do conceito de beleza, cf. Arthur Marwick, A History of Human Beauty, Londres e Nova Iorque, Hambledon and London, 2004.
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clara, cabelo louro, lábios encarnados, face rosada, sobrancelhas pretas, pescoço e mãos compridos e esguios, pés pequenos e cintura flexível parecem ter sido ícones de beleza na Europa Moderna89, ponderemos que, quando as mulheres, especialmente as das elites, não eram dotadas de tais atributos procuravam alterar o quadro menos favorável recorrendo ao uso de cosméticos, tantas vezes criticados através do púlpito, uma vez que eram entendidos como formas de vaidade e de luxúria90. Efetivamente, aos cosméticos cabia corrigir ou disfarçar defeitos e, consequentemente, melhorar a aparência. As tonalidades cromáticas da maquilhagem eram reduzidas. Importava apenas o branco da pele em geral e o vermelho do rosto. O branco era sinónimo de pureza e a cor da beleza da pele por excelência. Era também sinal de distinção social, só as mulheres que podiam permanecer em casa se mantinham brancas, as que tinham atividades servis andavam e trabalhavam na rua, consequentemente, ficavam morenas pela acção do sol. Por seu lado, o encarnado era a cor da saúde, da perfeição, resultante do sangue em movimento. Para embranquecer a pele usava-se solimão ou alvaiade, este último de origem árabe, muito em voga durante os séculos XVI a XVIII. Para corar a face recorria-se ao uso de concela ou revol. No século XVIII, fabricavam-se os encarnados com cochinilha, madeira do Brasil e orcaneta da Provença e do Languedoc, sendo visível a escolha de tons adaptados à expressão dos sentimentos, da sensibilidade e da luz91. A eliminação de pelos era conseguida, ou pelo menos tentada, com tanquia e sabão, o depilatório da Época Moderna. O uso de sabões – preto e branco – era comum, pressupõe-se que não apenas para a lavagem da roupa mas também para o corpo ou para partes do corpo. Os perfumes continuavam a fazer parte dos produtos utilizados pelas mulheres da Corte92. Em Lisboa, já em meados do século XVI, contavam-se 12 89
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Sara F. Matthews Grieco, “O Corpo, Aparência e Sexualidade”, História das Mulheres no Ocidente, direcção de George Duby e Michelle Perrot, vol. 3 (Do Renascimento à Idade Moderna), coordenação de Arlette Farge e Natalie Zemon Davis, tradução revista por Maria Helena da Cruz Coelho e Leontina Ventura, Porto, Afrontamento, 1994, p. 85. Em Portugal, a avaliarmos pelos trabalhos realizados, não terá sido significativa esta preocupação. Cf. António Franquelim Sampaio Neiva Soares, A Arquidiocese de Braga no século XVII. Sociedade e Mentalidades pelas Visitações Pastorais (1550-1700), Braga, Edição do Autor, 1997; Federico Palomo, Fazer dos Campos Escolas Excelentes. Os Jesuítas de Évora e as Missões do Interior de Portugal (15511630), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2003; Bruno Leal, La Crosse et le Bâton. Visites Pastorales et Recherche des Pécheurs Publics dans la Diocèse d’Algarve 16301750, Paris, Centro Cultural Calouste Gulbenkian, 2004. Georges Vigarello, Histoire de la Beauté. Le Corps et l’Art d’Embellir de la Renaissance à nos Jours, Paris, Seuil, 2004, pp. 116-117 ; Anne-Marie Mommessin, Femme. Beauté et Soins du Corps à travers les Ages, Levallois-Perret, Editions Altipresse, 2007, pp. 89, passim ; Catherine Lanoë, La Poudre et le Fard. Une Histoire des Cosmétiques de la Renaissance aux Lumières, prefácio de Daniel Roche, Seyssel, Champ Vallon, 2008, pp. 27-61. Maria José Palla, Do Essencial e do Supérfluo. Estudo Lexical do Traje e Adornos em Gil Vicente, Lisboa, Estampa, 1992, pp. 138-146; Maria Isabel Morán Cabanas, Traje, Gentileza e Poesia. Moda e Vestimenta no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, Lisboa, Estampa, 2001, pp. 275-279; Georges Vigarello, Histoire de la Beauté […], pp. 19, passim; Cristina Marchisio, “Seguindo a Senda dos Púcaros. Cosme III de
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mulheres que faziam composições para o rosto e oito que perfumavam luvas 93. “Coisas de perfumes” também podiam ser adquiridas em quatro casas da capital, segundo testemunho de João Brandão94. Os cabelos, entendidos como um dos aspetos mais relevantes da beleza feminina (não esqueçamos que algumas mulheres do Islão os escondem exatamente para não despertarem olhares concupiscentes por parte dos homens) eram objeto de atenção e de cuidados especiais. Quando bem penteados eram sinónimo de distinção social, só os rústicos se apresentavam despenteados, com aspeto de selvagens. Entre as receitas de higiene e beleza destaquem-se as que se referiram às preocupações estéticas com os cabelos – desde a queda à mudança de cor, passando pelo alisamento95 – mas também com a limpeza dos dentes96 e com a pele das senhoras97. Algumas destas receitas, em tudo semelhantes às que iremos encontrar nos anúncios de determinados produtos publicados nos periódicos, sobretudo em Oitocentos98, serão uma realidade em outros pontos da Europa ao longo da Época Moderna99. Naturalmente que a produção de artigos de beleza na Época Moderna, tal como a dos medicamentos, era devida à manipulação. Logo, era sobretudo uma produção doméstica e sempre artesanal. Mesmo assim, os anúncios nos jornais tiveram tendência a crescer. Procuravam divulgar e levar à aquisição de pós e líquidos para apresentar dentes brancos 100 e diversos preparados para a higiene, rejuvenescimento e vitalização do corpo, tais como sabonetes, produtos para por fim à calvície, aos cabelos brancos, às rugas, às sardas e às manchas da pele e até aos pelos e aos calos101. A lenta valorização do banho começou a marcar
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Toscana en España e Portugal (1668-1669)”, A Viaxe a Compostela de Cosme III de Médicis, Santiago de Compostela, Museu Diocesano, 2005, pp. 295-296. Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551. Sumário em que brevemente se contêm algumas coisas assim Eclesiásticas como Seculares que há na Cidade de Lisboa (1551), Lisboa, Livros Horizonte, 1987, p. 100. João Brandão (de Buarcos), Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, organização e notas de José da Felicidade Alves, Lisboa, Livros Horizonte, 1990, p. 196. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fols 101, 131-134. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 102. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 101. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, “A Higiene”, Portugal e a Instauração do Liberalismo, coordenação de A. H. de Oliveira Marques, (= Nova História de Portugal, direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, vol 9), Lisboa, Presença, 2002, pp. 529-531. Sobre os receituários de beleza, cf. María de los Ángels Pérez Samper, “Los Recetarios de Mujeres y para Mujeres. Sobre la Conservación y Transmisión de los Saberes Domésticos en la Época Moderna”, Cuadernos de Historia Moderna, vol. 19, Madrid, 1997, pp. 122-123. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, “Medicina Popular versus Medicina Erudita no Portugal de D. João V”, Assistência, Saúde Pública e Prática Médica em Portugal séculos XV-XIX, Lisboa, Universitária Editora, 2001, pp. 115-117. Cf. a situação para a primeira metade do século XIX, in Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, “Princípios Higienistas e Saúde Pública no Final do Antigo Regime”, Assistência, Saúde Pública e Prática Médica em Portugal séculos XV-XIX, Lisboa, Universitária Editora, 2001, pp. 136-138. Para a segunda metade do século XIX e início do século XX, cf. Ana Leonor Pereira, João Rui Pita, “Liturgia Higienista no século XIX.
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presença substituindo paulatinamente a “limpeza a seco” e as abluções parciais ou simplesmente a mudança de roupa. Um dos primeiros textos portugueses a apresentar receitas de cosméticos é o de Francisco Borges Henriques, analisemos o seu conteúdo. No que se refere às receitas de produtos de higiene e beleza, sabemos que as mesmas ocupam 5% do total da obra. Nelas contam-se perfumes (líquidos e em pastilhas), pomadas para a cara e para os cabelos e ainda preparados para fazer crescer, escurecer e alourar o cabelo, a par de mistelas para eliminar verrugas e limpar os dentes. De notar que uma destas receitas, a de pastilhas de perfume, era proveniente das freiras do convento de Santa Clara, de Lisboa102. A preparação caseira dos produtos de beleza para uso individual foi o patamar mais elementar da produção de cosméticos. No manuscrito que estudámos, recorria-se a produtos diversos como especiarias (cravo do Pará e da Índia, canela, cardamomo, noz moscada) a par de outros elementos aromáticos (alfazema, algália, água de flores, âmbar, benjoim, estoraque, polvilhos) para confecionar perfumes através de cozeduras, pisoamentos e destilações. No que se refere à composição dos cremes para o rosto, manipulava-se gordura animal (porco), açúcar, figos, cebolas, raízes de malvas e flor de alecrim ou uvas, ovos, vinho, açúcar e solimão, de entre outros. Tornar os cabelos mais claros implicava a mistura de vinho branco e cascas de ruibarbo. Esconder os cabelos brancos incluía a mistura de água-forte, prata e água rosada ou cascas de noz verde e ovos de corvo fêmea. Fazer crescer o cabelo poderia ser conseguido através da utilização de um preparado em cuja composição entrava vinagre, clara de ovo, bolo arménico e casca de romã. Em alternativa, mel, folhas de carvalho, alvaiade e caroços de tâmaras. Lutar contra a queda do cabelo poderia ser ainda mais penoso. A receita contemplava casca de raiz de ulmo, lixo de pombas, urina de cabras, raízes de malva e canela ou, em alternativa, azeite em que previamente se tinham fritado moreias. Alisar o cabelo implicava, igualmente, alguma dificuldade uma vez que se sugeria fritar um lagarto vivo em azeite. Recomendava-se que a operação se fizesse na rua por causa do mau cheiro. Não menos
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Pistas para um Estudo”, Revista de História das Ideias, vol. 15, Coimbra, 1993, pp. 437-559; Idem, “La Publicite Pharmaceutique, Médicale et Cosmétique dans la Revue A Ilustração (Paris, 1884-1892), Revue d’Histoire de la Pharmacie, tomo 43, n.º 309, Paris, 1996, pp. 159-168; Idem, “Publicidade a Cosméticos (séculos XIX-XX)”, Munda, n.º 35, Coimbra, 1998, pp. 29-40. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 60. De notar que, em vários momentos o mundo conventual feminino teve problemas com os abusos, nomeadamente com o uso de cosméticos. Cf. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, “Vaidades nos Conventos Femininos ou das Dificuldades em deixar a Vida Mundana (séculos XVIIXVIII)”, Revista de História da Sociedade e da Cultura, vol. 10, tomo 1, Coimbra, 2010, pp. 305-322; Idem, “Enfermement et Résistance: Les Religieuses Portugaises et la Transgression au XVIIIe siècle”, Colloque International Rapports Hommes /Femmes dans l’Europe Moderne: Figures et Paradoxes de l’Enfermenent [on-line], disponível em .
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dramáticas eram as mistelas contra as verrugas: urina de cão ou sabugo verde e caracol vivo esmagado.
4. Finalmente, algumas referências às mezinhas. Como se sabe, a manipulação de produtos variados, sob prescrição médica cabia aos boticários, independentemente de se confecionarem preparados por particulares. Algumas boticas apresentavam também especialidades supostamente da sua própria criação. Em alguns casos, encontraram-se boticas conventuais que abasteciam quer as comunidades religiosas quer as populações leigas. Por exemplo, na do mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, as manipulações ali efetuadas eram utilizadas quer na casa quer em qualquer outro mosteiro da mesma Ordem quer ainda por parte da população da capital. Entre as especialidades, destaquem-se as pedras cordeais, a teriaga brasília e, sobretudo, a panaceia mercurial. Esta última era distribuída acompanhada por um regimento onde se explicava em que casos deveria ser tomada e quais as doses recomendadas. Os saberes com vista à manipulação das substâncias eram compilados nas chamadas farmacopeias, inicialmente estrangeiras, depois também produzidas em Portugal. Na botica de São Vicente de Fora, destacou-se um monge boticário, D. Caetano de Santo Antão que, antes de ingressar na casa de Lisboa, professou em Coimbra, tendo aí publicado a Pharmacopeia Lusitana (1704). Trata-se da primeira farmacopeia redigida por um português, na língua nacional e editada em Portugal. A obra conheceu outras edições em Lisboa: 1711, 1725 e 1754 (póstuma). Da primeira edição para a segunda deram-se importantes alterações, nomeadamente a introdução da farmácia química, por influência das leituras das obras dos franceses Nicolás Lémery (1645-1715) e Moyse Charras (1619-1698). A obra foi dedicada ao conde de Redondo, D. Tomé de Sousa Coutinho, um entusiasta dos medicamentos químicos103. Paralelamente aos estes textos oficiais, havia outros de uso das comunidades religiosas e de particulares. O manuscrito em estudo é exemplo disso mesmo. Ou seja, nele se compilaram 230 mezinhas, as quais representaram 35% das receitas do livro de Francisco
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Pedro Sousa Dias, Rui Pita, “A Botica de S. Vicente e a Farmácia nos Mosteiros e Conventos da Lisboa Setecentista”, A Botica de São Vicente de Fora, Lisboa, Associação Nacional de Farmácias, 1994, pp. 2325; Rui Pita, PITA, João Rui, Farmácia, Medicina e Saúde Pública em Portugal (1772-1836), Coimbra, Minerva, 1996, pp. 169-172; Idem, Farmácia, Medicina e Saúde Pública em Portugal (1772-1836), Coimbra, Minerva Editora, 1996, pp. 160-161; José Pedro de Sousa Dias, Droguistas, Boticários e Segredistas. Ciência e Sociedade na Produção de Medicamentos na Lisboa de Setecentos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2007, pp. 90-97; João Rui Pita, Ana Leonor Pereira, “Botica, Farmacopeia Conventual e Farmácia. A Pharmacopeia Lusitana de D. Caetano de Santo António (1704)”, Mosteiro e Saúde. Cerca, Botica e Enfermaria. Actas do III Encontro Cultural de São Cristóvão de Lafões, São Cristóvão de Lafões, [s.n.], 2008, pp. 101-107.
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Borges Henriques. Estas receitas visaram abranger um leque muito vasto de problemas de saúde que seria fastidioso enunciar. De qualquer modo, registem-se, a título de exemplos, as que procuraram resolver problemas de asma, azia, catarro, cólicas, dores de cabeça, dores de dentes, febres, flatos, obstruções, quebraduras, quedas, sarna, tosses, etc., a par de duas outras mais ousadas, intituladas “remedio pera que as mulheres que cazarem parecão Domzellas” e “remedio pera os Cazados terem Filhos”104.
Por tão inesperado, merece ser transcrito o “remedio pera as mulheres que cazarem parecão Domzellas”, o qual não se pode desligar da importância dada às aparências e à necessidade de proteger a honra feminina, que passava pela capacidade de escamotear uma sexualidade activa105: “Despoes de pacar a sua ocasião sete ou oito dias antes de se cazar tomara vinho branco em o qual cozerão Sinza de Vides cascas de ouos noses de sipreste murta e Cascas de romãa azeda e ainda que falte algũa cousa destas se deite mais quantidade das outras e despoes se coe despoes de bem feruido lauarão muito bem a boca do utero e despoes a emchugem e terão hũa esponja que haja estado no mesmo vinho quando o feruerem e espremida a empaparão em sangue de galinha pera que a matarão ao mesmo tempo em que se quizer fazer ou frango ou Pombos ou Cabrito e a meterão the pela manhã na parte e quantas mais vezes se fizer produzirão major effeito pedindo a Deos seja pera maior gloria e honra sua este remedio tras D. João de La torre y Bacharel no seu Compendio de Medicina empresso em Madrid no anno de 1705”106.
Estamos perante receitas preparadas com produtos naturais, bem típicas desta época107. Nelas encontram-se folhas diversas, designadamente de agriões, almeirão, bisnaga (também conhecida por paliteira), erva barbosa, borragens, escorcioneira, ortigas e poejos, a par de açúcar, almácega (uma resina oleosa da arvore homónima da Amazónia), café, especiarias (pimenta), farelo de trigo, frutos (passas de uva, romãs), leite de vaca, língua de vaca, mel, ovos, pão, unto e produtos diversos como óleo rosado, pés de perdizes, sândalo vermelho, sangue-de-drago, sementes de bisnaga, sementes de funcho, sumo de rosas de Alexandria, urina de menino e vinho. Em alguns casos, o compilador teve o cuidado de explicar quem tinha sido o autor de tais preparados ou quem os tinha aplicado. Assim,
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Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 146. Sobre a questão da honra feminina na Época Moderna, cf. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, A Bigamia em Portugal na Época Moderna. Sentir mal do Sacramento do Matrimónio? Lisboa, Hugin, 2003 e a bibliografia aí citada. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 146. Sobre a publicitação deste tipo de tratamentos no século XVIII, cf. Eugénio dos Santos, “O Homem Português perante a Doença no século XVIII: Atitudes e Receituário”, Revista da Faculdade de Letras. História, 2.ª série, vol. 1, Porto, 1984, pp. 187-201; Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, “Medicina Popular versus Medicina Erudita […]”, pp. 93-125.
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aparecem, por exemplo, os nomes dos médicos portugueses e espanhóis Diogo Nunes Ribeiro108, João de La Torre109, João Palasos110, Manuel de Andrade111 e João Dinis Bitacallo112. As mezinhas eram para aplicação tópica e para ingestão, de acordo com as patologias. Tal como em relação às receitas culinárias e às de cosmética, estes preparados – pelo menos alguns – foram experimentados por Francisco Borges Henriques que não escamoteou a sua opinião. Por exemplo, em relação a certa mistela destinada à cura da sarna, escreveu “remedio infalliuel para a sarna e experimentado”113. Refira-se ainda que nestas receitas temos desde indicações concretas relativas às quantidades, como tantas onças, passando por “uma mão cheia de” ou algumas folhas, uns talos, etc.
5. Esbocemos um balanço do contributo do receituário manuscrito de Francisco Borges Henriques. As receitas compiladas por este seguidor das artes culinárias mas também das mezinhas, da cosmética e de tantos outros assuntos de interesse doméstico revelam uma figura interessada e interessante. Trata-se, certamente de um homem ligada a alguma casa de um nobre ou de um eclesiástico, talvez à de Bento de Beja de Noronha, que, claramente, assumiu responsabilidades consideráveis ao nível da prática alimentar e da economia doméstica durante a primeira metade do século XVIII. As enormes preocupações com a conservação de todos os tipos de alimentos perpassam por toda a obra mas não são particularmente originais. Já a presença de alguns produtos provenientes da América não deixaram de fazer parte do receituário, tais como a batata, o cacau, o pimentão, o pepino e o tomate, o que constituiu um contributo interessante e, em alguns casos, muito original114. Recordemos que Francisco Borges Henriques se revelou um precursor notável ao recomendar e compilar diversas receitas de tomate, ao incluir outras de sardinhas e de diversos doces de abóbora, escorcioneira, melão e melancia, a par dos mais tradicionais de marmelo, maçãs, peras e pêssegos. Introduziu o pimentão no tempero de diversas carnes e o coco em diversas receitas de doces e explicou o modo de preparar 108 109 110 111 112 113 114
Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 128. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 146. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 144. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 161. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 167. Lisboa, B.N.P., Cod. 7376, fol. 103. Sobre estas plantas, cf. José María López Piñero, María Luz López Terrada, La Influencia Española en la Introducción en Europa de las Plantas Americanas (1493-1623), Valencia, Institut de Estudios Documentales e Historicos sobre la Ciencia, Universitat de València, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1997; María de los Angeles Pérez Samper, “La Integración de los Produtos Americanos nos Sistemas Alimentarios Mediterráneos”, La Mediterrània, Àrea de Convergencia de Sistemas Alimentaris (segles V-XVIII). XIV Jornades d’ Estudis Històrics Locals, coordenação de Maria Barcelò Crespí e Antoni Riera Melis, Palma, Institut d’ Estudis Històrics Baleàrics, 1996, pp. 89-148.
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chocolate e café, de forma desenvolvida, sem esquecer os fins terapêuticos do café, especialmente quando misturado com leite. Se bem que não tenha indicado nenhuma receita “à portuguesa”, deu a conhecer diversas de doces populares conhecidos até ao presente e ausentes das primeiras obras impressas, como por exemplo as de alcomonias, cavacas, diversas receitas de pão-de-ló e sericaia e indicou, primeiro do que qualquer outro autor, receitas de diversas zonas do país, incluindo receitas conventuais, além de pela primeira vez ter feito a destrinça entre receitas “à moda de” e receitas genuinamente de determinado espaço. Estes aspetos só voltarão a estar presentes nos receituários impressos da segunda metade do século XIX. Francisco Borges Henriques compilou e experimentou um receituário elaborado mas, simultaneamente, talvez mais próximo do quotidiano de abastados não nobres do que os de Domingos Rodrigues e Lucas Rigaud. Queremos com isto afirmar que a inclusão de certos produtos, tais como o tomate, o pimentão e as sardinhas estavam mais ligados aos consumos populares do que aos aristocratas. Contudo, no caso da batata não conseguiu ousar, apenas apresentou uma receita e de um doce. Por outro lado, há que chamar a atenção para um conhecimento com algum pormenor de certas realidades do Brasil, reveladas quer pela divulgação de oito receitas daquela colónia, duas das quais da Baía, quer pela utilização de certos produtos tais como o coco, o cacau do Maranhão e ainda o cravo do Pará e o do Maranhão. No que se refere às preocupações de higiene e beleza, o receituário apresentado mostra-se ingénuo, para os padrões atuais, naturalmente. Mas, completamente de acordo com outros em voga em vários pontos da Europa. Ou seja, trata-se de um conjunto muito revelador das principais preocupações estéticas femininas e marginalmente masculinas, neste caso, em especial a tentativa de esconder os cabelos brancos115, com recurso a produtos naturais e a procedimentos que constituem um misto entre mezinha e superstição. Mas o receituário revela ainda uma realidade interessante, as receitas dão conta dos mais relevantes problemas de estética, para os quais se pretendia obter solução, particularmente em relação aos cabelos, ao rosto, às mãos e o corpo em geral, numa hierarquia que é corroborada por outras fontes116. Finalmente, a botica. Eis que nos surge um compilador atento a leituras diversas e que junta mezinhas de proveniência eclética que não hesita em experimentar para, em seguida,
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Não esqueçamos que os cabelos constituíram durante muito tempo uma das principais preocupações estéticas dos homens. Cf. Jean Claude Bologne, Histoire de ka Coquetterie Masculine, [Paris], Perrin, 2011, pp. 50-56, 105-112, passim. Cf. Isabel M. R. Mendes Drumond Braga, “Beleza e Sedução: à Volta dos Cosméticos”, Vivências no Feminino […], pp. 147-180.
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opinar sobre as mesmas. O manancial de produtos que entram nas manipulações e a quantidade de problemas a que pretendiam dar resposta é muitíssimo eloquente dos conhecimentos e das preocupações de Francisco Borges Henriques. Será, porventura a área menos original do seu “livro de segredos”, mas, mesmo assim, não podemos deixar de a considerar significativa e alheia à farmácia química que se irá impor na segunda metade do século XVIII. Em suma, estamos perante um receituário vasto, muito rico do ponto de vista culinário e com interesse para as áreas da saúde e da higiene, que merece um tratamento exaustivo, enquadrado nas preocupações de bem gerir uma casa em vários domínios. Não esqueçamos que inclui também algumas preocupações do âmbito da etiqueta e do protocolo, num todo que se articula como um puzzle, apesar da muita desorganização na maneira como as matérias vão aparecendo. O manuscrito apresentado, um livro de segredos, dadas as características enunciadas, apesar de aparentemente ser uma miscelânea de assuntos díspares não era assim entendido na época. Culinária, cosmética e farmacopeia eram três matérias que tinham como palco as cozinhas das casas, e que se produziam a partir das heranças de conhecimentos de alimentação e saúde antigos, elaborados e reelaborados de acordo com as práticas e a integração de novos produtos. A união culinária, cosmética e botica era então uma realidade, pelos produtos, pelas técnicas e pelos locais de produção utilizados, quase sempre os mesmos ou com variantes pouco acentuadas se esquecermos algumas excentricidades contidas em certas mezinhas.
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A Livraria do Convento de Nossa Senhora do Cardal (Século XVIII) La Bibliothèque du Couvent de Notre Dame du Cardal (XVIIIe siècle) Ricardo Pessa de Oliveira * Universidade de Lisboa, CLEPUL/Universidade Aberta, CIDH
Resumo
Résumé
Com base num documento inédito do século XVIII, este artigo pretende dar a conhecer e analisar os espécimes que formavam a livraria do convento de Nossa Senhora do Cardal, pertencente aos religiosos franciscanos da Província de Santo António. O estudo do catálogo permite identificar as diferentes temáticas que compunham a biblioteca e avaliar o peso que cada uma detinha. Por outro lado, possibilita analisar as datas, os locais de edição e os idiomas em que as obras foram dadas à estampa. Dado que as bibliotecas, embora incorporassem no seu acervo inúmeras matérias, constituíam sobretudo instrumentos de trabalho, pretende-se dar a conhecer com rigor a função desempenhada pela livraria em apreço, estabelecendo as necessárias comparações com as de outras Casas da mesma Ordem.
Basé sur un document inédit du XVIIIème siècle, cet article prétend faire connaître et analyser les spécimens qui formaient la bibliothèque du couvent de Notre-Dame du Cardal, appartenant au religieux franciscain de la Province de SaintAntoine. L'étude du catalogue permet identifier les différents thèmes qui composent la bibliothèque et d'évaluer le poids de chacun. Par ailleurs, l’étude permet d'analyser les dates, lieux d'édition et les langues dans lesquelles les travaux ont été publiés. Puisque les bibliothèques, bien que intégratif de nombreuses matières sur ses acquis, constituaient essentiellement des instruments de travail, il vise à faire connaître rigoureusement le rôle de la bibliothèque en question, établissant les comparaisons nécessaires avec les autres maisons du même ordre.
Palavras-chave: Portugal, século XVIII, livraria conventual.
Mots-clés: Portugal, XVIIIe siécle, bibliothèque conventuelle.
● Enviado em: 23/11/2016 ● Aprovado em: 27/06/2017
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Doutor em História, especialidade de História Moderna, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal. Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através de FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projecto UID/ELT/00077/2013 E-mail:
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1. A construção do convento de Nossa Senhora do Cardal, localizado em Pombal, à época, vila portuguesa da Província da Estremadura, Comarca de Leiria, integrando no plano religioso o bispado de Coimbra, teve início a 28 de maio de 1686 1. A obra foi mandada erigir por Luís de Vasconcelos e Sousa, 3.º conde de Castelo Melhor, celebre valido do rei D. Afonso VI, sendo seu objetivo trasladar para a igreja do novo convento a imagem da Senhora do Cardal, existente numa ermida defronte do novo edifício, e os restos mortais de seus pais. Além da igreja, mandou edificar um pequeno convento capaz de albergar até 14 religiosos “o qual offereceu a Congregaçaõ dos Conegos Seculares de São João Evangelista”2. Segundo consta, primeiramente, o edifício terá sido destinado aos padres Bernardos 3. No entanto, não seriam esses nem os Lóios a ocupar a Casa mas sim os religiosos franciscanos da Província de Santo António de Portugal, que tomaram posse do imóvel em 17074. Segundo o autor do Santuário Mariano a obra “tem custado huma grande soma de mil cruzados em que tambem tem sua parte não só os moradores da Villa, mas os do termo; porque todos concorrerão segundo a sua possibilidade, pela affectuosa devoção, que todos têm para com aquella
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Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Informações Paroquiais de 1721, doc. 200; EUSÉBIO, Joaquim. Pombal 8 séculos de História. 2.ª edição. Pombal, Câmara Municipal de Pombal, 2007, pp. 116 e 313. Lisboa, Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), Ordem dos Frades Menores (OFM), Província de Santo António, Convento de Nossa Senhora do Cardal, mç. 23, documento não numerado, não datado. Segundo os Estatutos de 1737, o convento em análise tinha capacidade para sustentar comodamente 14 religiosos, cf. Estatutos da província de S. Antonio dos Capuchos do reyno de Portugal, feitos em virtude de hum breve do Senhor P. Urbano VIII, condedido à mesma província por ordem do capitulo provincial celebrado em o Convento de S. Antonio da Castanheyra aos 22 de Agosto de 1733. Lisboa Ocidental, Oficina da Congregação do Oratório, 1737, p. 194. No entanto, esse número chegou a ser ultrapassado. Por exemplo, a 15 de janeiro de 1805, o convento era habitado por 15 frades, cf. Lisboa, ANTT, OFM, Província de Santo António de Portugal, mç. 8, macete 5. SANTA MARIA, Agostinho (Frei) de. Santuario Mariano, e Historia das Imagens milagrosas de Nossa Senhora. tomo IV. Lisboa, Oficina de António Pedrozo Galram, 1712, p. 470. A 1 de julho de 1698, foi concedido alvará régio para um convento de cónegos regulares de São João Evangelista em Pombal, cf. ALMEIDA, Fortunato de. História da Igreja em Portugal. vol. II. Porto, Lisboa, Civilização, 1968, p. 168. Segundo CARVALHO, Henriques de, MACEDO, Abílio de. Breve Notícia das Differentes Terras de Portugal por onde passam os Caminhos de Ferro: Pombal. Coimbra, Imprensa Literária, 1867, p. 13, os cónegos regulares de São João Evangelista rejeitaram o convento “por a cerca não ter a área que exigiam”. Sobre os vários conventos oferecidos à Congregação de São João Evangelista e que por motivos vários ficaram sem efeito cf. SANTA MARIA, Francisco de. O Ceo na Terra. História das Sagradas Congregações dos Conegos Seculares de S. Jorge em Alga de Venesa & de S. Joaõ Evangelista em Portugal. tomo I. Lisboa, Oficina de Manuel Lopes Ferreira, 1697, pp. 538-542. CONCEIÇÃO, Apolinário (Frei) da. Claustro Franciscano, erecto no dominio da Coroa Portugueza, e estabelecido sobre dezeseis Venerabilissimas Columnas. Expoem-se sua origem, e estado presente. A dos seus conventos, e mosteiros, annos de suas Fundações, numero de Hospicios, Prefecturas, Recolhimentos, Parroquiais, e Missoens, dos quaes se dá individual noticia, e do numero de seus Religiosos, Religiosas, Terceiros, e Terceiras, que vivem Collegiadamente, tanto em Portugal, como em Suas Conquistas. Lisboa Ocidental, Oficina de António Isidoro da Fonseca, 1740, p. 48. Sobre os franciscanos em Portugal cf. MOREIRA, António Montes. “Franciscanos” In AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.). Dicionário de História Religiosa de Portugal. Lisboa, Circulo de Leitores, 2000, vol. C-I, pp. 273-280.
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milagrosa Senhora”5. A trasladação da venerada imagem teve lugar a 27 de julho de 1709, numa cerimónia presidida pelo bispo de Coimbra, D. António de Vasconcelos e Sousa, irmão do conde de Castelo Melhor que esteve igualmente presente com outros familiares6.
2. Entre o património móvel dos conventos figuravam livros, sendo que a quantidade e a qualidade do seu acervo conferia prestígio às Casas religiosas. As livrarias conventuais contaram-se, de facto, entre as de maior vulto, sendo algumas delas comparáveis às Reais e à da Universidade de Coimbra7. Segundo os estatutos, os conventos da Província de Santo António dos Capuchos deveriam possuir livrarias onde estivessem “todos os livros do convento, de que avera inventario, por onde conste dos que nellas estão […] e nesta morará o Pregador da Casa”8. Os provinciais deviam prover tais espaços “dos Livros necessarios, principalmente dos Escritturarios, Predicativos, e Moraes”9. Um documento conservado na Biblioteca Nacional de Portugal, intitulado Catálogo da livraria do convento de Nossa Senhora do Cardal, permite conhecer a biblioteca do convento10. O inventário, que não se encontra datado, nem assinado, permite identificar os formatos, os títulos das obras, os nomes e apelidos dos autores, bem como o número, os locais e os anos 5
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SANTA MARIA, Agostinho (Frei) de. Santuário […], pp. 469-470. A propósito dos lugares do termo da vila, cf. OLIVEIRA, Ricardo Pessa de, GOMES, Saul António. Notícias e Memórias Paroquiais Setecentistas – 11. Pombal. Coimbra, Centro de História da Sociedade e da Cultura – Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Palimage, 2012. SANTA MARIA, Agostinho (FREI). Santuario […], pp. 470-472. BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. “As Realidades Culturais”. In SERRÃO, Joel, MARQUES, A. H. de Oliveira (Dir.). Nova História de Portugal, vol. VII, Da Paz da Restauração ao Ouro do Brasil, coordenação de Avelino de Freitas de Meneses. Lisboa, Editorial Presença, 2001, pp. 534-536. São conhecidos alguns inventários e estudos de bibliotecas de conventos de Franciscanos. A propósito cf. CARVALHO, José Adriano de Freitas. «Nobres leteras»...«Fermosos volumes»... Inventários de bibliotecas dos franciscanos observantes em Portugal no século XV. Os traços de união das reformas peninsulares. Porto, Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade, 1995. Sobre a livraria do Convento de Xabregas cf. LOPES, Fernando (Frei) Félix. Colectânea de Estudos de História e Literatura, vol. I, Fontes Históricas e Bibliografia Franciscana Portuguesa. Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1997, pp. 317-369. Sobre a do convento da Arrábida, um dos raros casos em que a livraria se manteve praticamente intacta até aos tempos que correm, cf. ROCHA, Ilídio. Catálogo da Livraria do Convento da Arrábida e do Acervo que lhe estava anexo. Lisboa, Fundação Oriente, 1994; ROCHA, Ilídio. “A Livraria do Convento da Arrábida” In I-II Seminário. O Franciscanismo em Portugal. Actas. Lisboa, Fundação Oriente, 1996, pp. 185-194; CARVALHO, José Adriano de Freitas. “Recensão Crítica à Obra Ilídio Rocha, Catálogo da Livraria do Convento da Arrábida e do Acervo que lhe estava anexo” In Via Spiritus: Revista de História da Espiritualidade e de Sentimento Religioso. Porto, CIHEUP, 1994, vol. 1, pp. 213-223; CARVALHO, José Adriano de Freitas (Dir.). Da Memória dos Livros às Bibliotecas da Memória, vol. I, Inventário da Livraria de Santo António de Caminha. Porto, Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade, 1998; CARVALHO, José Adriano de Freitas (Dir.). Da Memória dos Livros às Bibliotecas da Memória, vol. II, Inventário da Livraria de Santo António de Ponte de Lima. Porto, Centro Interuniversitário, de História da Espiritualidade, 2002. Estatutos da Provincia de Santo Antonio […], 1673, p. 88. Cf. igualmente o capítulo XXXI dos Estatutos da Provincia de Santo […], 1737, p. 58. Estatutos da Provincia de Santo Antonio […], 1673, p. 88; Estatutos da Provincia de Santo […], 1737, pp. 58-59. Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), Reservados, Mss. 2, n.º 4.
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das edições. A ausência de obras posteriores a 1763 parece indicar que estamos perante um manuscrito da segunda metade do século XVIII. Como se sabe, nessa época, a censura dos livros e das publicações passou para influência direta do Estado11. A 5 de abril de 1768, D. José I criou uma nova instituição, com competências exclusivas sobre a fiscalização das obras, leigas ou religiosas, designada por Real Mesa Censória. Por edital de 10 de julho de 1769 12, foi determinado que todos os livreiros, impressores, mercadores de livros, religiões, comunidades, corporações e pessoas particulares enviassem o catálogo dos seus livros à nova instituição. Coloca-se pois a hipótese do inventário ter sido realizado nesse âmbito. O número de edição, nos casos em que foi apontado, poderia fornecer pistas para a datação do documento, designadamente quando foi referido tratar-se de uma última edição. No entanto, tais indicações revelaram-se imprecisas. Por exemplo, o convento possuía a de 1710, da Polyanthea Mariana de Hippolytus Marraccius13, que no catálogo surge como sendo a mais recente. No entanto, sabemos da existência de pelo menos uma outra no ano de 1728. O mesmo sucedeu com as Obras de Lorenzo Gracian de que existia um exemplar de 1664, que se refere como sendo a última edição quando em 1669 e em 1674 foram impressas novas edições a primeira em Antuérpia e a segunda em Madrid14. O catálogo não fornece qualquer elemento a respeito do valor económico da livraria, nem tão-pouco sobre o estado de conservação das obras. Por outro lado, nada adianta sobre a formação da biblioteca. Mais uma vez, torna-se essencial recorrer aos textos normativos. Nas livrarias seriam incorporados os livros dos frades falecidos e os que fossem doados ou legados por devotos. No caso de existirem exemplares duplicados numa determinada biblioteca seriam remetidos para outra onde esse espécime não existisse e “quando nem com isto se supra a falta, que delles ouver em algũa casa dará ordem com que os Guardiães dellas 11
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Cf. MACEDO, Jorge Borges de. “Real Mesa Censória” In SERRÃO, Joel (Dir.). Dicionário de História de Portugal. Lisboa, Iniciativas, 1971, vol. III, pp. 40-42; SANTOS, Piedade Braga. “Actividade da Real Mesa Censória – Uma Sondagem” In Cultura: História e Filosofia. Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1983, vol. 2, pp. 379-382; PEREIRA, Isaías da Rosa Pereira. “A Real Mesa Censória e algumas bibliotecas da cidade de Angra em 1770” In Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira. Angra, Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1992, vol. 50, p. 169; MARTINS, Maria Teresa Payam. A Censura Literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2005. O edital encontra-se publicado em PEREIRA, Isaías da Rosa Pereira. “A Real Mesa […]”, pp. 174-175. MARRACCIUS, Hippolytus. Polyanthea Mariana, in qua libris octodecim Deipara Mariae Virginis sanctissima nomina, celeberrima & innumerata laudum encomia altissimae gratiarum, virtutum, & sanctitatis excellentiae, & celestes denique praerogativae & dignitates. Editio Novíssima. Colonia Agrippina, apud Franciscum Metternich, 1710. GRAÇIAN, Baltasar. Obras de Lorenzo Gracian. Ultima impression mas corregida, y enriquezida de tablas. Madrid, Pablo de Val, a costa de Santiago Martin Redondo, 1664; GRAÇIAN, Baltasar. Obras de Lorenzo Gracian. Amberes, en casa de Geronymo y Iuanbaut. Verdussen, 1669; GRAÇIAN, Baltasar. Obras de Lorenzo Gracian. Madrid, Imprenta Real de la Santa Cruzada, a costa de Santiago Martin Redondo mercader de libros, 1674.
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mandem tomar os necessarios pellas esmolas, que tiver o Sindico que precisamente não forem necessarias para a sustentação dos frades”15. A livraria em análise compreendia 335 obras, num total de 566 volumes16, sendo 143 in fólios, 131 in 4.º, 42 in 8.º, e 9 in 12.º, não existindo indicação de formato dos restantes. No que respeita à classificação das obras, o inventário foi dividido em cinco secções: Teologia (262 obras, 455 volumes), Jurisprudência (quatro obras, dez volumes), Filosofia (três obras, três volumes), História (45 obras, 74 volumes) e Belas Letras (21 obras, 24 volumes).
Gráfico 1 Temáticas da Livraria do Convento de Nossa Senhora do Cardal
História 14%
Jurisprudência 1%
Belas Letras 6%
Filosofia 1%
Teologia 78%
Fonte: Lisboa, BNP, Reservados, Mss. 2, n.º 417. Tratava-se de uma pequena livraria conventual. Sem prejuízo, possuía mais títulos do que os inventariados em 1834, nos conventos de Penela e Pedreira. Nessa data, a biblioteca do convento de Santo António de Penela era constituída por 417 volumes: 57 títulos em 220 volumes e 197 volumes de “livros de capa de papelão de diversos autores” 18. No edifício existiam ainda Breviários (dois), Cadernos da Ordem (dois), Caderno de Missa de Defuntos
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Estatutos da Provincia de Santo Antonio […], 1673, p. 88; Estatutos da Provincia de Santo […], 1737, p. 59. Em seis obras não foi registado o número de tomos. Nos gráficos e quadro que se seguem a fonte repete-se pelo que não voltara a ser indicada. RODRIGUES, Alice Correia Godinho, RODRIGUES, Manuel Augusto. “O Convento de Santo António de Penela – O Inventário dos seus Bens ao Tempo da sua Extinção (1834)” In Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra. Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra, 1982, vol. IV, pp. 106-107.
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(um), Cadernos de Ofício de Sepultura (cinco), Cerimonial (um), livros de Cantochão (dois), livros para oração (um), Manuais (dois), Martirológio (um), Missais (cinco) e Saltério (um). Por sua vez, a biblioteca do Convento de Santo António da Pedreira, em Coimbra, possuía 250 títulos em 855 volumes19. No coro existiam ainda Breviários (cinco), Martirológio (um) e Saltério (um), enquanto na sacristia estavam Missais (três), Livro de Cantochão (um) e Livro da Paixão (um)20. Já a livraria de Santo António de Ponte de Lima possuía cerca de 930 obras21 e a congénere de Caminha mais de 500 títulos22. A propósito dos inventários realizados após o decreto de 28 de maio de 1834, que determinou a extinção das Ordens Religiosas masculinas, importa referir que o do convento do Cardal não catalogou a livraria. Nesse documento, foram unicamente registados livros de missa e de coro: quatro Breviários, um Missal, um Discurso sobre a História Eclesiástica, um livro Cantochão de Coro, um Martirológio Romano, um Ritual Romano, um Decreto Autêntico, um Theatro ecclesiastico23, um Director Fúnebre, um Ofício Omnia, um Cânticos Eclesiásticos e um livro que serviria para determinados registos. Como explicar que a biblioteca não tivesse sido inventariada em 1834? Por um lado, é possível que tenha sido destruída durante a terceira Invasão Francesa (1810-1811). O referido conflito provocou caos, destruição, morte e pilhagem em todo o território do atual concelho de Pombal 24. Além do sofrimento da população, os prejuízos materiais foram avultados. Na vila, os cartórios foram consumidos pelas chamas ou sofreram extravio, caso do da Santa Casa da Misericórdia 25. No que respeita ao convento em apreço, sabemos que foi ocupado por tropas francesas e inglesas, sendo 19
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RODRIGUES, Alice Correia Godinho. “O Convento de Santo António da Pedreira de Coimbra. Inventário dos seus Bens ao Tempo da sua Extinção (1834)” In Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra. Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra, 1982, vol. IV, pp. 195-206. RODRIGUES, Alice Correia Godinho. “O Convento de Santo António da Pedreira […]”, pp. 179, 184 e 186. Estes números parecem não corresponder à totalidade da biblioteca porquanto foi declarado existir “uma livraria que se compõe de muitos volumes da qual se tem feito discripção de uma grande parte. Parte cuja discripção se apensa a estes autos para nelles ser entranhada logo que ella se conclua […]”, cf. Idem, Ibidem, p. 147. CARVALHO, José Adriano de Freitas (Dir.). Da Memória dos Livros […], vol. II, p. 10. CARVALHO, José Adriano de Freitas (Dir.). Da Memória dos Livros […], vol. I, p. XIII. ROSÁRIO, Domingos (Frei) do. Theatro ecclesiastico, em que se acham muitos documentos de canto-chão para qualquer pessoa dedicada ao culto divino nos officios do coro, e altar. Lisboa, Oficina Joaquinianna da Musica de D. Bernardo Fernandez Gayo, 1743. EUSÉBIO, Joaquim. Pombal […], pp. 154-164; MARQUES, António Manuel Erse. O Concelho de Pombal nos Finais do Antigo Regime. Aspectos Demográficos e Sociais (1782-1834). Coimbra, Tese de Mestrado em História Moderna, Poderes, Ideias e Instituições, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2011, pp. 66-73, exemplar mimeografado; LOPES, Maria Antónia. “Mujeres (y Hombres), víctimas de la 3.ª Invasión Francesa en el Centro de Portugal” In El Comienzo de la Guerra de la Independencia. Congreso Internacional del Bicentenario. Madrid, Editorial Actas, 2009, pp. 750-772; LOPES, Maria Antónia. “Sofrimentos das Populações na Terceira Invasão Francesa. De Gouveia a Pombal” In O Exército Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular. Lisboa/Parede, Exército Português/Tribuna da História, 2011, vol. III, pp. 299-323. Sobre esta instituição cf. OLIVEIRA, Ricardo Pessa de. História da Santa Casa da Misericórdia de Pombal (1628-1910). Pombal, Santa Casa da Misericórdia de Pombal, 2016.
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célebres os desacatos cometidos sobre os restos mortais de Sebastião José de Carvalho e Melo, 1.º marquês de Pombal26. Na freguesia vizinha de Abiul, os franceses destruíram “todos os livros particulares, e ainda mesmo os livros dos assentos da mesma igreja queimando e rasgando todos os cartorios dos escrivais e asentos da mesma camara”27. Por outro lado, o reduzido valor económico da biblioteca poderia explicar a inexistência de inventário. É possível que, confrontados com essa realidade, os louvados tivessem optado por não proceder ao catálogo e posterior envio para o porto de embarque, como sucedido com a livraria do convento de São Jerónimo do Mato, da ordem dos Jerónimos, em Alenquer28. Regressando à análise do catálogo da livraria da segunda metade de Setecentos, verificou-se que entre as obras de teologia contavam-se bíblias e comentários, obras de patrística, livros de devoção mariana, manuais de confessores, sermões, regras e cerimoniais. De entre os autores, destaque para Alonso de Andrade, António das Chagas, António Vieira, Bartolomeu do Quental, Carlos Borromeu, Cornelius Jansenius, Diogo de Cellada, Diego de Estella, Felix Potestas, Francisco Garau, Francisco Mendonça, Hipólito Marracci, Hugo de Santo Caro (cardeal), Jerónimo de Belém, João de Ceita, João Duns Scotus, Luís de Granada, Manuel Bernardes, Manuel Rodrigues, Martín de Torrecilla, Nicolau de Lira e Rafael Bluteau. Refira-se ainda a existência da obra Diferença entre o Temporal e o Eterno do jesuíta Juan Eusebio Nieremberg; e a ausência de qualquer título do jesuíta Paolo Segneri, presença massiva em tantas outras livrarias conventuais29. Em filosofia, secção parcamente representada, destaque para a Filosofia Moralis de Aristóteles30. No ramo das belas letras evidencia para os dicionários de Ambrósio Calepino31 e de Jerónimo Cardoso32, e para a Gramática Inglesa de Carlos Bernardo da Silva Teles de Menezes33. A temática de história
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MARBOT, General Barão de. Memórias sobre a 3.ª Invasão Francesa. Introdução de António Ventura. Lisboa, Caleidoscópio, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2006, pp. 74-75; CARVALHO, Henriques de, MACEDO, Abílio de. Breve Notícia das Differentes Terras de Portugal […], pp. 25-26; A Defesa, n.º 777, de 22 de agosto de 1909. Coimbra, AUC, Cat-Cor.B.Pimenta, doc. 117. BARATA, Paulo Jorge dos Santos. Os Livros e o Liberalismo. Da livraria conventual à biblioteca pública, uma alteração de paradigma. Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, 2003, p. 155. CARVALHO, José Adriano de Freitas (Dir.). Da Memória dos Livros […], vol. II, pp. 98-99, 137, 242, 248 e 255. ARISTÓTELES. Aristotelis Stagiritae libri omnes quibus tota moralis philosophia, quae ad formandos mores, tum singulorum, tum familiae, tum civitatis, spectat, continentur; omnia ad grecum exemplar recognita quorum seriem versa pagella indicabit. Lugduni, sumptibus Horatij Cardon, 1618. CAPELINO, Ambrósio. Dictionarium octo linguarum. Paris, apud Nicolaum Nivellium, 1588. CARDOSO, Jerónimo. Dictionarium latino lusitanicum et vice-versa lusitanico latinum. Conimbricae, [s.n.], 1584. MENEZES, Carlos Bernardo da Silva Teles de. Gramatica ingleza ordenada em portuguez. Lisboa, Oficina Patriarcal Francisco Luís Ameno, 1762.
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compreendia, entre outras obras, o primeiro tomo do Agiologio Lusitano de Jorge Cardoso34, o Gran diccionario histórico de Louis Moreri35, o Castrioto Lusitano de frei Rafael de Jesus36, uma Historia Naturalis de Caius Plinius Secundos37 e a Prompta bibliotheca de Lúcio Ferraris38. Nesta classe figuraram ainda crónicas de várias ordens religiosas, com destaque para as das províncias franciscanas, obras sobre determinados conventos, tais como a Historia da Fundação do Real Convento do Louriçal39, e biografias de religiosos de que é exemplo a vida da Madre Maria do Lado40. Apenas foi inventariado um manuscrito titulado Postilha de Moral, da autoria do padre José de Múrcia, com a data de 168241. De referir ainda a existência de cinco espécimes da autoria de religiosas: Maria de Jesus de Agreda42, Santa Teresa de Jesus43, Abadessa do Louriçal44 e Madre Maria Clementina45. O catálogo revelou algumas surpresas, designadamente a ausência de textos legais da Província. Não deixa de ser estranha a inexistência dos Estatutos da Província de Santo António, tanto os impressos em 1645 e em 1736, como o manuscrito Modificação dos Estatutos
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CARDOSO, Jorge. Agiologio lusitano dos sanctos, e varoens illustres em virtude do Reino de Portugal, e suas conquistas. Lisboa, Oficina Craesbeekiana, 1652, tomo I. MORETI, Louis. El gran diccionario historico, o miscellanea curiosa de la historia sagrada y profana, traduzido del frances de Luis Moreri con amplissimas adiciones y curiosas invertigaciones relativas à los Reynos de España y Portugal por Don Joseph de Miravel y Casadevante. Paris, a costa de los Libreros Previligiados en Leon de Francia, de los Hermanos de Tournes, 1753. JESUS, Rafael (Frei) de. Castrioto Lusitano, parte I, entrepresa, e restauraçaõ de Pernambuco; & das Capitanías confinantes, varios, e bellicos successos entre portuguezes, e belgas acontecidos pello discurso de vinte e quatro annos, e tirados de noticias, relaçoes, & memorias certas. Lisboa, António Craesbeeck de Mello, 1679. O catálogo apenas indica Plínio, Historia Naturalis, 1 tomo em fólio, pelo que é difícil, senão impossível, identificar com precisão o local de edição, o impressor e o ano em que foi dada à estampa. FERRARIS, Lúcio. Prompta bibliotheca, canonica, juridica, moralis, theologica, nec non ascetica, polemica, rubricistica, histórica, opera et studio monachorum Ordinis Sancti Benedicti, Bononiae, sed prostant Venetiis, Apud Franciscum Storti, 1758. FERRARIS, Lúcio. Prompta Bibliotheca canonica, juridica, moralis theologica, Aditiones I Suplementa. Bononiae, [s.n.], 1763. MONTEIRO, Manuel (Padre). Historia da Fundação do Real Convento do Louriçal de Religiosas Capuchas Escravas do Santissimo Sacramento, e vida da veneravel Maria do Lado, sua primeira instituidora, e de algumas Religiosas, que falleceraõ no mesmo Convento com opiniaõ de virtude. Lisboa, Oficina de Francisco da Silva, 1750. Compendio da admiravel vida da veneravel Madre Maria do Lado, offerecida à Magestade Fidelissima do Senhor D. Jozé I, Rei de Portugal &c, pela Abbadessa, e Religiosas do convento do Santíssimo Sacramento do Lourisal. Lisboa, Oficina de Miguel Rodrigues, Impressor do Cardeal Patriarca, 1762. Lisboa, BNP, Reservados, Mss. 2, n.º 4, fls. 17v-18. JESUS De AGREDA, Maria de. Mystica ciudad de Dios, historia divina, y vida de la Virgen Madre de Dios. Antuérpia, Henrico y Cornelio Verdussen, 1696. JESUS, Teresa (Santa) de. Cartas. [Bruxelas], [Francisco Foppens], 1676; JESUS, Teresa (Santa) de. Obras de la gloriosa Madre Santa Teresa de Jesus, fundadora de la reforma de la Orden de Nuestra Señora del Cármen. [Bruxelas], [Francisco Foppens], 1684. Compendio da admiravel vida da veneravel Madre Maria do Lado […]. CLEMENTINA, Maria (Madre ). A Preciosa Allegoria Moral. Lisboa, [s.n], 1731.
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de 171246. Na categoria dos cerimoniais apenas foi arrolado o Ceremonial Seráfico Romano47, carecendo o convento do Ceremonial da Provincia de S. Antonio dos Capuchos do Reyno de Portugal48 e do Ceremonial Reformado49. Tais ausências não foram um exclusivo da livraria de Nossa Senhora do Cardal. O inventário da biblioteca do convento da Pedreira registou somente o Ceremonial Reformado50, enquanto o de Penela arrolou meramente um “Estatuto de São Francisco”51. Já no convento de Santo António de Ponte de Lima, que até 1705 pertencera à Província de Santo António, entre os vários cerimoniais, contava-se o Ceremonial de frei Luís de Santa Maria. No que respeita a estatutos era proprietário, entre outros, dos da Província da Conceição e dos da Província de Santo António dos Capuchos52. No convento de Caminha, que passara igualmente à Província da Conceição, existia somente o Ceremonial de frei Manuel da Conceição, o Mestre de Cerimonias53 e os Estatutos da Província da Conceição54. A maior parte das obras existentes na livraria do Cardal havia sido impressa no século XVII (49 por cento), seguindo-se as dadas à estampa na centúria seguinte (37 por cento). No entanto, uma outra análise demonstrou que o maior número de obras presentes na biblioteca (110) foi editado na primeira metade do século XVIII. Os livros impressos no século XVI, estavam mais parcamente representados correspondendo a 11 por cento do total da livraria. O título mais antigo era uma Bibliam em seis tomos do Cardeal Hugo de Santo Caro publicada 46
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Estatutos da Provincia de Santo Antonio do Reyno de Portugal, confirmados por Authoridade Apostolica, tirados de varios Estatutos da Ordem, & da Provincia, acrescentando nelles o que servia para mais reformaçaõ do instituto da vida Capucha, feitos, & ordenados com o consentimento, & approvação do Diffinitorio, & Discretorio no Capitulo, que se celebrou nesta Casa de S. Antonio de Lisboa, no anno de 1645. em que sahio eleito em Provincial o irmaõ Fr. Manoel da Purificaçaõ. [S.l.], [s.n.], 1645; Estatutos da província de S. Antonio dos Capuchos do reyno de Portugal, feitos em virtude de hum breve do Senhor P. Urbano VIII, condedido à mesma província por ordem do capitulo provincial celebrado em o Convento de S. Antonio da Castanheyra aos 22 de Agosto de 1733. Lisboa Ocidental, Oficina da Congregação do Oratório, 1737. CONCEIÇÃO, Manuel (Frei) da. Ceremonial serafico, e romano para toda a Ordem Franciscana, e em especial para a observancia da provincia dos Algarves. Lisboa Ocidental, Oficina da Musica, 1730. SANTA MARIA, Luís (Frei) de. Ceremonial da Provincia de S. Antonio dos Capuchos do Reyno de Portugal. Em o qual com toda a clareza se trata do modo & ceremonias, com que se haõ de celebrar os officios divinos, assim no coro, como no altar. E os maís actos da communidade, exercicios da religiaõ, & custumes da Provincia conforme os ritos da S. Igreja Romana, decretos apostolicos, & ceremoniaes reformados. Lisboa, Impressão de Bernardo da Costa de Carvalho, 1696. SÃO JOSÉ, Clemente (Frei) de. Ceremonial Reformado, segundo o Rito Romano e Serafico para o uso dos Religiosos da Reformada Provinda de Santo António de Portugal. Lisboa, Oficina de Inácio Nogueira Xisto, 1763. RODRIGUES, Alice Correia Godinho. “O Convento de Santo António da Pedreira […]”, p. 199. RODRIGUES, Alice Correia Godinho, RODRIGUES, Manuel Augusto. “O Convento de Santo António de Penela […]”, p. 106. CARVALHO, José Adriano de Freitas (Dir.). Da Memória dos Livros […], vol. II, pp. 18-19 e 309-310. SÃO LUÍS, António (Frei) de. Mestre de Ceremonias que ensina o rito romano e seraphico aos religiosos da reformada e real Província da Immaculada Conceição do Reino de Portugal. Lisboa, Miguel Manescal da Costa, 1766. Estatutos da Província da Conceição no Reyno de Portugal Ordenados e Reformados por Frei Manuel da Natividade. Coimbra, Oficina de Luís Seco Ferreira, 1735. CARVALHO, José Adriano de Freitas (Dir.). Da Memória dos Livros […], vol. I, pp. 161, 164 e 166.
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em Basileia no ano de 1504, enquanto as obras mais recentes eram a Theologia Morallis de Alfonso María de Ligorio55 e a Prompta Bibliotheca de Lucio Ferraris56, ambas impressas em 1763.
Gráfico 2 Edições existentes no Convento de Nossa Senhora do Cardal por séculos
s.d 3%
XVI 11%
XVIII 37%
XVII 49%
Na categoria de teologia as obras do século XVII representavam 53 por cento, seguindo-se as do século XVIII com 34 por cento e as do século XVI com 11 por cento. Também nesta categoria há que chamar a atenção para a primeira metade do século XVIII, período em que haviam sido impressos 84 títulos. Das obras de jurisprudência três eram do século XVII e uma de Setecentos. Na temática de filosofia existiam duas obras do século XVI e uma do século seguinte. Nas áreas da história e das belas letras predominavam as obras do século XVIII, representando 56 e 42 por cento do total, respetivamente.
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MARÍA De LIGORIO, Alfonso. Theologia Morallis. Bononiae, Sumpt. Remondinianis, 1763. FERRARIS, Lúcio. Prompta Bibliotheca […].
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Gráfico 3 Obras impressas segundo o século e a temática
Belas Letras História Filosofia Jurisprudência Teologia 0
50
s.d
Séc. XVIII
100 Séc. XVII
150
Séc. XVI
No que toca aos locais de edição, a análise do catálogo revelou a predominância de Portugal, onde foram impressas 169 obras, a saber 133 em Lisboa, 26 em Coimbra, seis em Évora, duas em Braga e outras tantas no Porto. Em Espanha foram editadas 62 das obras, designadamente 29 em Madrid, nove em Barcelona, oito em Salamanca, cinco em Saragoça, três em Cádis, igual número em Pamplona, duas em Alcalá de Henares e em Sevilha e uma em Burgos. De França provinham 33 obras: 20 de Lyon, 12 de Paris e uma de Douai. Na região que hoje conhecemos por Itália haviam sido editados 26 dos títulos: 13 em Veneza, sete em Roma, três em Bolonha, duas em Pádua e uma em Ancona. Da região da Flandres eram provenientes 18 edições: 15 da Antuérpia, duas de Bruxelas e uma de Lovaina. Apenas uma obra presente no inventário havia sido dada à estampa na Holanda, concretamente em Amesterdão. Do Sacro Império Romano Germânico eram 14 obras: doze de Colónia, uma de Frankfourt e outra de Mainz. Nos cantões suíços haviam sido editadas duas obras, ambas em Basileia, e em Inglaterra uma, a saber, em Londres. Em nove ocasiões não foi registado o local de publicação.
Quadro 1 Principais locais de edição Local de Edição
N.º de Obras
%
Portugal
169
50 %
Espanha
62
19 %
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França
33
10 %
Península Itálica
26
8%
Flandres
18
5%
Império
14
4%
Pese o catálogo não o referir, foi possível apurar o idioma para a quase totalidade dos títulos. Dos 335 espécimes inventariados, 133 haviam sido escritos em latim, 127 em português e 65 em castelhano. Não conseguimos identificar a língua em que haviam sido redigidas dez obras. Excetuando a classe da história onde a percentagem de obras em português era de 58 por cento, o latim dominava em todas as restantes categorias, correspondendo a 100 por cento das obras em filosofia, 75 por cento em jurisprudência, 47 por cento em belas letras e 41 por cento em teologia.
Gráfico 4 Obras por Século e Idioma
80 70
N.º de obras
60 50 40 30 20 10 0 séc. XVI
Séc. XVII
séc. XVIII
Século
Latim
Português
Castelhano
O gráfico 4 demonstra o aumento de importância do português face ao latim e ao castelhano. Se nos espécimes do século XVI o latim dominou claramente, existindo inclusive mais obras em castelhano do que em português, na centúria seguinte assistiu-se a um aumento muito significativo do português que ultrapassou o castelhano e igualou o latim. No
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século XVIII, a língua portuguesa afirmou-se como a predominante57, facto que não pode ser desligado da defesa e da valorização do idioma nacional que a centúria de Setecentos acentuou58. Não existiam títulos em italiano e em francês, ainda que existissem traduções de obras naqueles idiomas59. Contabilizámos um total de 15 traduções: sete do castelhano para português; seis traduções de obras italianas, três para português, duas para castelhano e uma para latim; e duas traduções de obras em francês, uma vertida em português e outra em castelhano. A título exemplificativo refira-se a obra do francês Louis Moreri autor do Le Grand Dictionnaire historique traduzido em espanhol por D. José de Miravel y Casadevante60, ou ainda a Arte de Bem Morrer traduzida do italiano para o português por António de Vilas Boas e Sampaio61. O acervo das bibliotecas, não obstante ser constituído por diversas matérias, detinha uma ligação evidente com a atividade profissional dos proprietários62. As livrarias conventuais refletiam idêntica realidade. A dos franciscanos de Caminha possuía mais de 300 títulos de sermões, facto que levou José Adriano de Freitas Carvalho a classifica-la como uma “biblioteca para pregadores”, referindo que as livrarias das Casas religiosas masculinas, sobretudo as que não eram casas de estudo, eram formadas na maioria dos casos para o estudo dos pregadores63. Já a biblioteca do convento de Santo António de Ponte de Lima parece ter sido uma biblioteca de casa de estudos e formação, não obstante possuir uma percentagem considerável de sermões64. No catálogo da livraria do convento do Cardal foram registados 77 títulos de sermões em 165 tomos o que corresponde a 22,9 por cento dos títulos da biblioteca e 29,4 por cento dos títulos que compunham a secção de teologia. Se a estes juntarmos os 13 títulos de obras consagradas à prédica a percentagem sobe para 26,8 e 34,5 por cento, respetivamente. Dado 57
58 59 60 61
62
63 64
Caso semelhante ocorreu na biblioteca do Convento da Arrábida onde a percentagem de obras em latim foi decaindo com o passar dos séculos, cf. ROCHA, Ilídio. “A Livraria do […]”, pp. 192-193. Cf. BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. “As Realidades […]”, pp. 469-479. A respeito das traduções cf. BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. “As Realidades […]”, pp. 479-480. MORERI, Louis. El gran diccionario histórico […]. Arte de Bem Morrer, industrias para fazer huma boa morte. Tradução de António de Vilas Boas e Sampaio. Coimbra, José Ferreira, 1685. Diogo Barbosa Machado na Bibliotheca Lusitana, vol. 1, pp. 427-428 não referiu o nome do autor da obra, mencionado somente o nome do tradutor. No catálogo da livraria do convento do Cardal a obra é atribuída ao padre Júlio César, cf. Lisboa, BNP, Reservados, Mss. 2, n.º 4., fls. 2v.-3. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Cultura Luso-Brasileira. Da reforma da Universidade à independência do Brasil. Lisboa, Editorial Estampa, 1999, pp. 129-133. Um exemplo pode ser encontrado na biblioteca que Jorge Cardoso reuniu para elaboração da sua obra, cf. FERNANDES, Maria de Lurdes Correia. A Biblioteca de Jorge Cardoso (1669), autor do Agiológio Lusitano, Cultura, Erudição e Sentimento Religioso no Portugal Moderno. Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2000. CARVALHO, José Adriano de Freitas (Dir.). Da Memória dos Livros […] vol. I, p. XXIII. CARVALHO, José Adriano de Freitas (Dir.). Da Memória dos Livros […], vol. II, pp. 11-12.
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que os exemplares duplicados são caso singular na livraria em estudo, não deixa de ter algum significado a presença de dois espécimes da Pancarpia de António Lopes Cabral, o que reforça a importância que a sermonária detinha neste espaço65. Se aos títulos de sermões juntarmos as bíblias e comentários, as obras de Padres da Igreja e os textos de espiritualidade temos aquilo que Federico Palomo referiu como sendo o núcleo básico do acervo literário dos pregadores66. Podemos, pois, afirmar que a livraria em análise destinava-se ao uso dos pregadores67 o que, de resto, era válido para a quase totalidade das bibliotecas das casas religiosas masculinas.
3. O catálogo da livraria do convento do Cardal deu conta de 335 títulos, sendo que 79 por cento dos mesmos integravam a classe da teologia. O estudo do inventário revelou que as edições existentes eram na sua maioria anteriores à fundação do convento, que Portugal foi o principal local de edição das mesmas, seguido de Espanha, e que a língua portuguesa foi ganhando importância face a outros idiomas, dominando entre as edições do século XVIII. O documento evidenciou ainda a falta de textos legais da Província. Os títulos arrolados não compreenderiam com toda a certeza a totalidade dos livros existentes no convento uma vez que fora da biblioteca existiam outras obras de pouca “sustancia, & não accomodados às livrarias, como são alguns de devoção, ou outros pequenos de outras materias”68. De igual forma, podiam ser encontrados manuscritos nas celas dos pregadores, já que estes estavam autorizados a possuir um armário ou gaveta para o efeito69. Em pouco mais de um século de existência o convento em apreço tornou-se proprietário de uma pequeníssima livraria em que a sermonária ocupou um lugar de destaque entre as obras conservadas. A formação contínua e estudo dos pregadores eram deveras importantes, não tivesse sido a pregação um dos principais instrumentos de doutrinação, assumindo um papel crucial no disciplinamento dos fiéis.
65
66 67
68 69
No catálogo, não obstante tratar-se da mesma obra, as entradas foram registadas de diferentes formas: uma com o título de Sermões, Lisboa, 1694 e outra com o título de Pancarpia, Lisboa, 1694. A propósito da singularidade dos exemplares repetidos de uma mesma obra, convém referir que os estatutos ordenavam “que os que ouver dobrados nas Cazas, se repartão pelas que estiverem faltas delles”. Procurava-se por este meio evitar custos com o transporte dos livros levados pelos pregadores, cf. Estatutos da Provincia de Santo Antonio […], 1673, pp. 24-25. PALOMO, Federico. A Contra-Reforma em Portugal 1540-1700. Lisboa, Livros Horizonte, 2006, pp. 79-80. Esta parece ter sido uma constante nas livrarias da Província, tanto mais que “o Pregador more sempre na livraria, & tomarà entrega della pelo inventario, fazendo por escrito termo de acceitação que assinará com o Prelado, & Discretos […]”, Estatutos da Provincia de Santo Antonio […], 1673, pp. 25 e 88. Estatutos da Provincia de Santo Antonio […], 1673, p. 89. Estatutos da Provincia de Santo Antonio […], 1673, p. 25.
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Livros e exames de Retórica no tempo de Pombal: a emergência de uma disciplina de conhecimento Books and exams of Rhetoric in the time of Pombal: the emergence of a discipline of knowledge Maria Renata da Cruz Duran* Universidade Estadual de Londrina
Junior César Pereira** Universidade Estadual de Londrina
Resumo
Abstract
Acusados de obscurantismo, seja por conta dos métodos de manutenção do poder conquistado, seja por conta do tipo de ensino praticado na época, o contributo dos missionários jesuítas foi considerado pernicioso à utopia iluminista que se apresentava em Portugal no século XVIII. A fim de redirecionar a formação do corpo administrativo do Estado lusófono, Pombal criou cadeiras ou Aulas Régias, pagando, via Estado, por um ensino público e laico no campo dos Estudos Menores. O conjunto era comporto por 7 disciplinas em que a Retórica, em português, recebeu maior destaque, uma vez que Pombal fixou no exame de retórica um ponto de intersecção entre os ensinos menor e maior. Na primeira etapa de implantação da disciplina, para lecionar era necessário realizar o exame da matéria em colégios reconhecidos, na época concentrados em Portugal e, sobretudo, na Universidade de Coimbra. Alguns dos primeiros exames foram realizados por estudantes que sequer tiveram contato com o ensino da disciplina, pelo menos em português, durante seus tempos de estudo. Os exames antecederam a publicação dos manuais que orientaram a disciplina a partir de 1756 e, de uma certa maneira, inauguraram o campo de conhecimento na língua local. Manuel Inacio da Silva Alvarenga
Accused of obscurantism, either because of the methods of maintaining the power conquered neither because the type of teaching practiced at the time, the contribution of the Jesuit missionaries was considered pernicious to the Enlightenment utopia presented in Portugal at the XVII century. In order to redirect the formation of the administrative body, Pombal has created chairs or Royal Classes, paying for a public and secular education in the field of Minor Studies. The set comports 7 disciplines, in which Rhetoric, in Portuguese. A discipline that received greater prominence, since Pombal fixed at rhetoric's exam a point of intersection between minor and superior teachings. In the first stage of implementation of the discipline, to teach, was necessary to study the subject at recognized colleges, concentrated in Portugal and, above all, at the University of Coimbra. Some of the first exams were carried out by students who did not even have contact with the teaching of the discipline, at least in Portuguese, during their study time. The examinations preceded the publication of the manuals that guided the discipline from 1756 and, in a certain way, inaugurated the field of knowledge at the local language. Manuel Inácio da Silva Alvarenga was
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Professora adjunta de História Moderna e Contemporânea na Universidade Estadual de Londrina. Bolsista CNPq Pós-doutoranda na Universidade de Lisboa, com supervisão de Isabel Drumond Braga. CV completo: lattes.cnpq.br/6065557882134228 . Graduando em História na Universidade Estadual de Londrina, bolsista de Iniciação Científica da Fundação Araucária, sob a orientação de Maria Renata da Cruz Duran. CV completo: http://lattes.cnpq.br/3374492420704737.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 foi o primeiro mestre régio de Retórica na América Portuguesa. Estudante de Direito em Coimbra, lecionou para os vultos do Império chegando a ser preso pela difusão das suas idéias. Sem o suporte de uma escola, tal como conhecemos hoje, com biblioteca, secretaria, etc, o mestre régio era responsável pelos materiais de ensino que intentasse utilizar, no que esmerou-se Alvarenga, compondo uma das maiores bibliotecas fluminenses do período. Da combinação da análise desses dois conjuntos documentais, quais sejam: alguns dos primeiros exames de Retórica em Portugal e o índice da biblioteca do primeiro mestre licenciado da disciplina na América Portuguesa, acreditamos ser possível delinear uma genealogia dos estudos da matéria em ambiente luso-brasileiro. A sondagem da disciplina na dispersiva fase inicial se justifica não apenas para uma melhor compreensão da emergência de uma norma retórica lusófona, mas também como exercício do entendimento dos caminhos do saber, em que se inscreve uma economia do conhecimento, senão uma política da educação luso-brasileira.
the first regent master of Rhetoric in Portuguese America. A law student in Coimbra, he taught to the figures of the Empire getting arrested by the diffusion of his ideas. Without the support of a school, as we know it today, with a library, a secretariat, and so on, the royal master was responsible for the teaching materials that he tried to use, in which Alvarenga excelled, composing one of the largest libraries in Rio de Janeiro. From the combination of the analysis of these two documentary sets, some of the first exams of Rhetoric in Portugal and the library index of the first licensed master of the discipline in Portuguese America, we believe it is possible to delineate a genealogy of the studies of the matter in the Portuguese-Brazilian environment. The scrutiny of the discipline in the dispersive initial phase is justified not only for a better understanding of the emergence of a Lusophone rhetorical norm but also as an exercise of the understanding of the ways of knowing, which inscribe an economy of knowledge, if not a policy of Luso-Brazilian education.
Palavras-chave: Bibliotecas; Retórica; História da Educação e da Leitura no século XVIII
Keywords: manuals of rhetoric; enlightenment; libraries; Lusophone culture.
● Enviado em: 23/11/2016 ● Aprovado em: 27/06/2017
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A instrução ministrada na em território lusitano de 1500 até meados de 1700 foi uma instrução religiosa. Sediados nas grandes cidades da época, Rio de Janeiro, Olinda e São Paulo, os seminários jesuítas da América Portuguesa seguiam a Ratio Studiorum e atendiam a uma população restrita, seja pela disponibilidade dos mestres e discentes, seja pelo pouco interesse pela instrução1. Trivium e quadrivium compunham um roteiro de disciplinas básico em que o latim figurava como eixo central, ocupando 9 anos de um estudo ministrado de maneira mais ou menos flexível, sobretudo no caso dos leigos, ou seja, daqueles cuja carreira religiosa não constituía o objetivo central da própria instrução2. No ensino do latim constata-se uma instrução focada na compreensão e leitura de textos bíblicos e clássicos que incluíam Quintiliano, Cícero, Santo Agostinho, as Cartas Apostólicas de Paulo, entre outros3. Há que se notar, que à unificação dos estudos em todo o Ocidente em torno de uma única língua subjaz um ideário universalista, em que a civilização se mescla à cristianização4. Na ocupação do território decorrente da expansão marítima, essa cristianização recebeu a marca missionária dos jesuítas e, portanto, caracterizou-se pelos princípios que conformavam a vocação da ordem: disciplina e erudição. Aplicados ao ensino, memória e disciplina destacaram-se como objetivos perseguidos mediante a leitura e releitura dos textos de maior prestígio na época. Com a escassez dos volumes impressos, o exercício de aprendizado e memorização ocorria conforme práticas orais, supostamente facilitados pela sonoridade da língua latina. Todavia, se no momento de sua implementação o ensino do latim pudesse ter significado um alargamento da cultura erudita romana, na época moderna, com a emergência e consolidação das línguas locais, o mesmo já não podia ser afirmado. Pouco utilizado no cotidiano popular ou mesmo nas transações oficiais e comerciais, o latim importava, no século, como língua marcial e distintivo social. Na Europa de Erasmo de Roterdã, garantia-se o entendimento entre intelectuais de alto calão e diferentes origens, mas na América de espanhóis, índios, africanos e portugueses, oferecia parcas condições de apoio ao estabelecimento do fácil entendimento e mesmo da paz, ainda que seguisse distinguindo aqueles que tinham ou não condições de negociar diretamente com reinóis e clérigos suas contendas5.
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FERNANDES, Pe. A. P. C. Missionários jesuítas no Brasil no tempo de Pombal. Porto Alegre: Globo, 1936. ALMEIDA, J. R. P. de. Instrução pública no Brasil (1500-1889). História e legislação. Trad. Antonio Chizzotti. São Paulo: Educ, 2000. SOUZA, R. A. de. O Império da Eloqüência: Retórica e Poética no Brasil Oitocentista. Rio de Janeiro: EDUERJ/ EdUFF, 1999. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1969. 3ª Ed. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil no Antigo sistema colonial. São Paulo: Hucitec, 1973.
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Paralela à constituição de Estados Modernos corroborados a partir de uma história e uma cultura local que também incluía o domínio e a utilização de uma língua própria, a derrocada do latim foi ainda resultado da difusão de um dispositivo de trocas de informação que iria alterar as relações da cultura letrada de então: o livro. Com a impressão do conhecimento, perdeu-se o controle da transmissão do saber6. À medida em que os textos proliferavam, crescia a possibilidade de difusão do saber entre desconhecidos, bem como a ameaça da descoberta de segredos e estratégias antes garantidos pela simbologia intrínseca ao trânsito de objetos particulares ou pela fluidez e privacidade do diálogo entre iguais. Por outro lado, crescia também o potencial de coesão social necessário para a geração de unidades político-sociais capazes de defender e atuar em prol de causas comuns, estados unificados, ideários religiosos7. Acusados de obscurantismo, seja por conta dos métodos de manutenção do poder conquistado, seja por conta do tipo de ensino praticado na época, o contributo dos missionários jesuítas foi considerado pernicioso8 à utopia iluminista que se apresentava. Os franceses foram os primeiros a bani-los do domínio instrutivo, em 1746. Os portugueses, pela pena do Marquês de Pombal, decretaram sua expulsão em 17569. De um modo geral, a instrução seguiu incipiente e não é raro ler na bibliografia especializada que a época foi marcada muito mais pelo desmonte do pouco que havia, do que pela criação de um sistema de ensino propriamente dito10. De uma maneira ou de outra, Pombal criou cadeiras ou Aulas Régias, pagando, via Estado, por um ensino público e laico no campo dos Estudos Menores. Eram 7 as disciplinas, que mantiveram a estrutura disciplinar criada pelos inacianos. Eram poucos os professores e o número de alunos difícil de estimar, ainda que Guilherme Pereira das Neves (1984) tenha computado um número de 700 estudantes no final do século XVIII11. A mudança mais radical da proposta era a concentração, no lugar do latim, na 6 7
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ABREU, M. (org.). Leitura, História e História da Literatura. Fapesp, 1999 (Coleção Histórias de Leitura). ALGRANTI, L. M. Livros de devoção, atos de censura: Ensaios de História do Livro e da Leitura na América Portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2004. PORTUGAL. Compendio histórico do estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados jesuítas e dos estragos feitos nas ciências e nos professores, e diretores que regiam pelas maquinações e publicações nos novos estatutos por eles fabricados. Lisboa: Régia Oficina Tipográfica, MDCCLXXI. CARRATO, J. F. O iluminismo em Portugal e as reformas pombalinas do ensino. São Paulo: Seção Gráfica da USP, 1980. CARDOSO, T. M. R. F. L. As luzes da educação: fundamentos, raízes históricas e prática nas aulas régias do Rio de Janeiro. 1759-1834. Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação da prof. Dra. Maria de Lourdes Viana Lyra. Rio de Janeiro, 1998. NEVES, Guilherme Pereira das. O Seminário de Olinda: educação, cultura e política nos tempos modernos. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói (RJ), 1984.
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disciplina de Retórica e em seu ensino na língua portuguesa. Pombal fixou no exame de retórica um ponto de intersecção entre os ensinos menor e maior. Como se pode imaginar, a reforma pombalina da educação gerou uma nova demanda por livros e professores da matéria que, num primeiro momento, foi suprido pela utilização do que se tinha à disposição, seja em matéria de livros, seja em matéria de docentes12. Todavia, ao reaproveitamento de antigos materiais, seguiu-se a criação de novos. Na primeira etapa de implantação da disciplina, para lecionar era necessário realizar o exame da matéria em colégios reconhecidos, na época concentrados em Portugal e, sobretudo, na Universidade de Coimbra. Alguns dos primeiros exames foram realizados por estudantes que sequer tiveram contato com o ensino da disciplina, pelo menos em português, durante seus tempos de estudo. Era exigido dos candidatos que sorteassem um tema supostamente estudado ao longo dos Estudos Menores, preparassem uma tese e a defendessem publicamente em data acordada entre as partes, geralmente de 24 a 72 horas após o sorteio. Em média, de três a cinco professores catedráticos acompanhavam o exame e procediam a uma espécie de sabatina após a apresentação do candidato aos Estudos Maiores, todo o processo era público, muito embora apenas estudantes e professores integrassem a assistência desse tipo de evento13. Os exames antecederam a publicação dos manuais que orientaram a disciplina a partir de 1756 e, de uma certa maneira, inauguraram o campo de conhecimento na língua local14. Manuel Inacio da Silva Alvarenga foi o primeiro mestre régio de Retórica na América Portuguesa. Estudante de Direito em Coimbra, lecionou para os vultos do Império chegando a ser preso pela difusão das suas idéias15. Sem o suporte de uma escola, tal como conhecemos hoje, com biblioteca, secretaria, etc, o mestre régio recebia a licença para atuar em sua própria casa ou onde preferisse, mas era responsável pelos materiais de ensino que intentasse utilizar, incluindo a produção de compêndio próprio ou a aquisição dos livros do curso, bem como a contabilidade do curso16. Diferente de mestres como Miguel do Sacramento Lopes
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DURAN, Maria Renata da Cruz. Retórica à moda brasileira. Transições da cultura oral para a cultura escrita de 1746 a 1834. São Paulo, Editora Unesp, 2012. ALMEIDA, F. M. R. de . Origem do Colégio Pedro II: memória lida a augusta presença de Vossa Magestade Imperial, pelo sócio correspondente Sr. Francisco M. R. De Almeida. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XIX, volume 119, número 24, 1856, Imprensa Nacional. 1926. BRANDÃO, R. de O. Estudos sobre os manuais de retórica e poética brasileiros do século XIX. Tese de doutoramento em letras elaborada junto ao Departamento de Lingüística e Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: 1972. VERISSIMO, J. História da literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. CARDOSO, 1998. Opt cit.
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Gama, autor de Elementos da Eloquência Nacional17, Alvarenga não nos deixou uma obra em que seu ideário instrucional fosse acessível. Tampouco seu exame de retórica é conhecido atualmente. Todavia, graças ao bibliófilo Rubens Borba de Morais18 conhecemos as obras que compunham sua biblioteca e, portanto, com as quais inaugurou-se o ensino da disciplina no país. Da combinação da análise desses dois conjuntos documentais, quais sejam: alguns dos primeiros exames de Retórica em Portugal e o índice da biblioteca do primeiro mestre licenciado da disciplina na América Portuguesa, acreditamos ser possível delinear uma genealogia dos estudos da matéria em ambiente luso-brasileiro. A sondagem da disciplina na dispersiva fase inicial se justifica não apenas para uma melhor compreensão da emergência de uma norma retórica lusófona, mas também como exercício do entendimento dos caminhos do saber, em que se inscreve uma economia do conhecimento, senão uma política da educação luso-brasileira. Iniciamos pela biblioteca de Alvarenga, não porque ela tenha sido constituída inicialmente, mas porque antes de submeter-se a exame, um estudante lê. E o que lê para submeter-se a um exame de retórica? Tal é o que esperamos depreender da análise de sua biblioteca que, como sabemos, vai além dos volumes que um iniciante na carreira intelectual pode possuir, dado que se trata do espólio de um mestre com mais de 30 anos no exercício da docência, mas, justamente por isso amplia o cabedal de títulos então disponível. Vale ressaltar também que muitos dos títulos da biblioteca de Alvarenga foram publicados num momento em que a disciplina já se encontrava em tempo de maturação. Neste sentido, saiba o leitor que distinguiremos as obras conforme sua data de publicação, permitindo que o mesmo tenha uma idéia da parábola de constituição desse conjunto de volumes que conforma a biblioteca do primeiro mestre de retórica em português na então América Portuguesa. Finalizamos com os exames de Retórica realizados em Portugal por diferentes colégios e instituições do reino, nomeadamente estudantes dos Seminários de Mafra e Santarém e do Real Colégio dos Nobres. Lamentavelmente não podemos acessar uma parte imprescindível para a compreensão desse tipo de exame: a eloquência do candidato. Restam-nos a matéria escrita dos exames: suas teses. As teses, entretanto, tratam do tema específico da retórica, destacando, em sua definição, a importância do estudo da matéria. Lembremos que com a
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GAMA, Miguel do Sacramento Lopes. O Carapuceiro, 1932-1842. Prefácio de Leonardo Dantas Silva; estudo introdutório de Luiz do Nascimento. Recife: Prefeitura, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1883. Edição fac-similar. MORAIS, R. B. de. Livros e bibliotecas no Brasil colonial. Rio de Janeiro. São Paulo: Secretaria da Cultura , Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1979.
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promulgação do ato que instituiu e regulamentou as Aulas Régias19 publicou-se também a obra do frei oratoriano que inspirou a reforma, O verdadeiro método de estudar, de Luis Antonio Verney20, e que, malgrado não tenha sido adotada de maneira extensiva pelos mestres régios da época, a coleção incluía um volume específico sobre retórica. Note-se que sua difusão foi posterior, contudo, à execução dos primeiros exames, como, aliás, já se disse antes. Passemos, pois, aos cumprimento das promessas feitas, o estabelecimento de uma intersecção entre bibliotecas e exames no intuito de delinear a emergência de uma nova força na economia do conhecimento iluminista: a arte de falar em língua própria.
2. A biblioteca do poeta-mestre: o que liam os estudantes de retórica na América Portuguesa?
Manuel Inácio da Silva Alvarenga nasceu em Villa Rica, no ano de 1749. Pouco sabemos sobre sua mãe, uma negra de origem humilde, casada com o músico profissional Inácio da Silva Alvarenga. Em 1768 encaminhou-se para o Rio de Janeiro onde viria a dar os passos iniciais no curso de humanidades. “Conseguiu progredir nos estudos aparentemente pelo empenho do pai e de uma subscrição de amigos que teriam financiado sua ida ao Rio de Janeiro e depois a Coimbra”21. No ano de 1771, se matriculou no curso de Cânones, estudando aí a legislação de cariz internacional da época. Por intermédio de Basílio da Gama, de quem se tornou grande amigo, aproximou-se do Marquês de Pombal. Sua aproximação do círculo pombalino lhe rendeu certo status. Em 1774, aos 24 anos, estando no segundo ano do curso de Cânones publica, por interferência do ministro, seu poema em cinco cantos: O Desertor das Letras22. Da mesma época é a Ode à mocidade portuguesa.23 Em 1776, nova edição em Portugal de O Desertor veio a lume24, denotando a boa recepção da obra num contexto em que poucas segundas edições eram
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PORTUGAL. Alvará de regulamento para os estudos das línguas latinas, grega e hebraica e da arte da retórica. Lisboa: Tipografia Oficina Rodrigues Galhardo,1759. VERNEY, L. A. Verdadeiro método de estudar. Edição organizada pelo prof. Antonio Salgado Junior. Lisboa: Livraria Sá da Costa. Volume V: Estudos Canônicos, 1952. ALVARENGA, Manuel Inácio da Silva. O desertor: poema herói-cômico. Org. Clara C. Souza Santos e Ricardo M. Valle. São Paulo: Hedra, 2010. P.9. ALVARENGA, Manoel Inácio da Silva. O desertor. Poema herói-cômico. Coimbra: Real officina da Universidade, 1774. ALVARENGA, Manuel Inácio da Silva. Ode á mocidade portuguesa por ocasião da reforma da Universidade de Coimbra. Miscellanea Curiosa e Proveitosa. Vol. IV, Lisboa, Typografia Rollandiana, 1782. Pg. 329-331. TOPA, Francisco. Silva Alvarenga - contributos para a elaboração de uma edição crítica das suas obras. Porto, edição do autor, 1994.
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publicadas25. Vale lembrar, que a obra do poeta fora publicada no auge da política pombalina, “e quase às vésperas de sua queda repentina, em 1777, com a morte de Dom José I e a consequente ascensão de Dona Maria I”26. Acompanhado de Antônio Caetano Vilas Boas, irmão de seu amigo Basílio da Gama, retornou à América portuguesa já formado em Cânones, no ano de 1777. Cinco anos mais tarde era nomeado como professor régio de retórica e poética pelo então vice-rei D. Luiz de Vasconcelos. Concomitante à docência, Silva Alvarenga exercia a profissão de advogado.27 Compôs o poema Às artes28, que recitou em louvor à Dona Maria I, em 1788 na Sociedade literária, em presença do vice-rei. Com o governo do Conde de Rezende, nosso poeta passou por seu pior momento. Em 1794, Silva Alvarenga foi preso, acusado de conspirar contra a coroa portuguesa, além de fazer circular obras francesas.29 Por indulto de Dona Maria I foi posto em liberdade no ano de 179730. Imediatamente após os duros anos no cárcere, o beletrista volta a lecionar e exercer a advocacia. Segundo seu primeiro biógrafo, o cônego Januário da Cunha Barbosa, nos anos seguintes fora tomado por profunda depressão e misantropia em consequência da prisão31. Todavia, já no ano de 1799 retoma a atividade de escrita. Neste mesmo ano publica a primeira edição do célebre poema Glaura pela tipografia Nunesiana32, também com uma segunda edição, de 180133. No ano anterior à sua morte vê sua obra A tempestade34 ser publicada n’O Patriota.35 Cabe ressaltar que no período que nosso poeta-mestre viveu e produziu havia grandes dificuldades para a publicação de obras literárias. Em Portugal,
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ARAÚJO, J. de S. Perfil do leitor colonial. Bahia: UESC, 1999. ALVARENGA, ... P.9. BARBOSA, Januário da Cunha. “Doutor Manuel Inácio da Silva Alvarenga”. In: Revista do instituto histórico e geográfico brasileiro, Rio de Janeiro: n.11, tomo III, 1841. ALVARENGA, Manoel Inácio da Silva. Ás artes. Lisboa: Typografia Morazziana, 1788. SOUZA E SILVA, Joaquim Norberto. Obras poéticas, collegidase precedidas do juízo crítico dos escriptores nacionaes e estrangeiros, e de uma notícia sobre o autor e suas obras acompanhadas de documentos históricos por J. Norberto de Souza Silva. 2 tomos, Rio de Janeiro: Garnier, 1864. ALVARENGA, Manuel Inácio da Silva. O desertor: poema herói-cômico. Org. Clara C. Souza Santos e Ricardo M. Valle. São Paulo: Hedra, 2010. P.11. BARBOSA, Januário da Cunha. “Doutor Manuel Inácio da Silva Alvarenga”. In: Revista do instituto histórico e geográfico brasileiro, Rio de Janeiro: n.11, tomo III, 1841. P.340. ALVARENGA, Manuel Inácio da Silva. Glaura: poemas eróticos de Manoel Ignácio da Silva Alvarenga, bacharel pela Universidade de Coimbra, e professor de rhetorica no Rio de Janeiro. Na Arcádia, Alcino Palmireno. Lisboa, Officina Nunesiana, 1799. ALVARENGA, Manuel Inácio da Silva. Glaura: poemas eróticos de Manoel Ignácio da Silva Alvarenga, bacharel pela Universidade de Coimbra, e professor de rhetorica no Rio de Janeiro. Na Arcádia, Alcino Palmireno. Lisboa, Officina Nunesiana, 1801. ALVARENGA, Manuel Inácio da Silva Alvarenga. A tempestade. Canção no dia dos anos da Fidellisima Rainha Nossa Senhora em 17 de dezembro de 1797. In. O patriota. N. Set. 1813. TOPA, op.cit, p.59.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 a censura foi exercida (a partir do estabelecimento da Inquisição no reino, em 1536) conjuntamente pelo Santo Ofício, pelo Ordinário e pelo Desembargo do Paço. O Santo Ofício e o Ordinário defendendo a igreja, e o Desembargo do Paço, o poder civil. Em 1551 os censores já dispunham de um índice expurgatório: o Rol dos livros defesos, elaborado pelo inquisidor geral, o cardeal D. Henrique.36
Com Pombal o cenário muda. Em 1758, o déspota esclarecido unifica o sistema das três licenças, por onde todo impresso deveria ser submetido, “criando uma repartição do Estado encarregada da censura: a Real Mesa Censória”
37(Ibidem,
p.58). Funcionários leigos e
eclesiásticos nomeados pelo rei compunham a mesa. Após a morte de José I e a consequente ascensão de Maria I ao trono, a questão referente ao mecanismo censório se reconfigura novamente. Por meio do decreto de 21 de junho de 1787, a soberana criou um novo organismo, a saber, a Comissão Geral Para o Exame e Censura dos Livros. Moraes completa na sequência As Cortes de 1820, pelo decreto de 31 de março de 1821, aboliram a Inquisição, mas não acabaram com a censura. Ficou nas mãos do Ordinário para as questões de fé católica e nas do Desembargo Paço para as questões políticas.38
Nesse período, poucas obras logravam ter segundas edições. Autores de extrema relevância como Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), e José Basílio da Gama (1741-1795)39 estavam entre aqueles que não presenciaram novas edições de suas obras. Tal fato, descortina um momento onde a censura dificultava a possibilidade de publição de livros na América portuguesa. No dia 1 de novembro de 1814, aos 65 anos, Manuel Inácio da Silva Alvarenga veio a falecer deixando um legado substancial para um autor de língua portuguesa residente no Brasil. Como escreve Moreira de Azevedo: O excesso, a paixão a que se entregara o enfermo apressou-lhe o momento fatal; nunca mais abriu os olhos, nem falou, e algumas horas depois, em 1 de novembro desceu o anjo dos tumulos até ao leito do poeta e indicou-lhe o caminho da cova. Depois de incessantes pesquisas descobrimos que o cadáver do poeta foi sepultado na igreja de São Pedro, em 2 de novembro, quando os sons tristes e
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Borba, op.cit, p.58 Ibidem, p.58. Ibidem, p.58. COUTINHO, Afrânio; SOUSA, José Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional; Academia Brasileira de Letras, 2001. 2 v. ISBN 8526007238
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 lúgubres de todas as igrejas anunciavam o dia dos mortos. Eram os gemidos da pátria repetidos junto ao túmulo do seu filho dilecto.40
Para mais, sua carreira de docente fora extremamente importante para a formação de vários personagens de destaque no âmbito político brasileiro. Entre estes, chamamos a atenção para Januário da Cunha Barbosa, Frei Francisco do Monte Alverne, Frei Santa Úrsula Rodovalho e ainda Antônio Carlos Andrada e Silva41. Ao nos debruçarmos sobre o conteúdo de uma biblioteca particular, no intuito de traçar um mapa das referências pelas quais transitava seu dono encontramos grandes dificuldades, na medida em que as possibilidades de leituras são diversas, mas também limitadas. Como se sabe, a posse de um livro não implica em sua leitura, ainda que a difícil aquisição de obras no período leve a crer que a quantidade de volumes não lidos, uma vez que seu acesso e aquisição era um impeditivo real, fosse restrita. Da mesma maneira, a pressuposição da leitura de uma obra não garante o apreço pela mesma, bem como sua utilização em meio instrutivo. Muitas obras eram censuradas e sua transmissão constituía crime do qual inclusive Alvarenga fora acusado. Quiçá um cruzamento entre a biblioteca de Alvarenga e os livros citados por seus antigos alunos em discursos e textos publicados pudesse nos levar a essa espécie de mapeamento (a posse e utilização instrutiva), contudo, não era costume na época referenciar as obras lidas da maneira sistemática como fazemos hoje em dia42. Para mais, o ecletismo em que a intelectualidade local estava imersa lhes permitia conjurar diferentes referências em um mesmo argumento, obstruindo a exatidão da localização das obras na fluidez dos discursos43. Ainda assim, a biblioteca de um grande mestre como foi Alvarenga na escassa paisagem livresca da passagem do século XVIII para o XIX no Rio de Janeiro constitui, a nosso ver, um patrimônio material de qualidade ímpar na sondagem da composição da intelectualidade brasileira. Primeiro porque sua montagem não obedece às regras públicas de aquisição livresca, podendo conter obras censuradas ou mesmo fora do escopo instrutivo em voga na época. Segundo porque o mestre era egresso da Universidade de Coimbra no tempo de Pombal, podendo ter adquirido muitas de suas obras em livrarias às quais o público local não tinha acesso. Terceiro porque o caráter de sua atividade económica central, a docência,
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AZEVEDO, Moreira de. Homens do passado – chronicas dos séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro. B.L. Garnier, 1875. P.114. MARTINS, W. História da inteligência brasileira (1794 – 1855). São Paulo: Cultrix, 1977. ZILBERMAN, R. LAJOLO, M. A leitura rarefeita: livro e literatura no Brasil. SP: Brasiliense, 1991. DURAN, M. R. C.. Ecletismo e retórica na filosofia brasileira: de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) ao frei Francisco do Monte Alverne (1784-1858). Almanack, v. 9, p. 115-135, 2015.
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implicava na transmissão de conhecimentos por meio de um crescente manejo livresco, o que, aliado ao perfil dos estudantes de Alvarenga, os grandes da pátria, pressupõe um debate elevado, em que tais obras ocupassem o centro das aulas ministradas. No caso da análise que tencionamos realizar, temos um horizonte investigativo bem delimitado a nossa frente. Como foi dito anteriormente, nosso estudo acerca da biblioteca de Manuel Inácio da Silva Alvarenga tem como objetivo maior detectar quais obras de retórica o primeiro professor dessa disciplina na América portuguesa possuía. O acervo de livros do mestre régio foi divulgado pela primeira vez por Rubens Borba de Moraes, em sua célebre obra Livros e bibliotecas no Brasil colonial44. Esta, traz um documento em anexo, que nos mostra duas listas feitas na ocasião em que a biblioteca de Silva Alvarenga foi adquirida pela Real Biblioteca, em 28 de fevereiro de 1815. A primeira lista diz respeito aos livros comprados pelo livreiro Manoel da Silva Porto, junto a Preta Joaquina (a qual é declarada como herdeira e testamenteira do falecido poeta),45 e a outra corresponde aos títulos passados pelo livreiro à Real Biblioteca. Ao contrário de Borba de Moraes, que apresentou a livraria por meio de uma breve descrição, Gustavo Henrique Tuna fez uma investigação mais profunda de tal documentação.46 Na última parte de sua tese Manuel Inácio da Silva Alvarenga, representante das luzes na América Portuguesa, defendida em 2009 na USP, o autor, com base na obra Les republicains de lettres. Gens de culture et lùmieres au 18 siècle de Daniel Roche47, analisou a biblioteca do poeta como um estado d’alma: Pondo em tela os diferentes motores que alavancaram a constituição da livraria, pode-se constituir o universo mental de leituras que estavam a disposição poeta e que podem, como desafiou Daniel Roche, sugerir um estado d’alma.48
Ao situarmos o leitor acerca da documentação e as análises feitas pelos autores mencionados, torna-se necessário lançarmos um olhar geral sobre o acervo estudado. Além das obras indispensáveis para um professor de retórica, o que um advogado e poeta como Silva Alvarenga possuía nas suas estantes? De antemão, podemos dizer que a biblioteca de
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MORAES, opt. cit. TUNA, Gustavo Henrique. Manuel Inácio da Silva Alvarenga, representante das luzes na América portuguesa. São Paulo, USP. 2009. P.222. Na listagem analítica do autor, podemos contar 1003 volumes. Optamos por utilizar esta, para nossa contagem, por se tratar de uma pesquisa mais profunda sobre o catálogo que Borba de Morais apresenta na sua obra, a qual contabilizava 1576 volumes. ROCHE, Daniel. Les republicains de lettres. Gens de culture et lùmieres au 18 siècle. Paris: Fayard, 1988. TUNA, op. cit., p.206.
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nosso personagem estava composta por uma imensa variedade de temáticas. Como nos lembra Tuna Sem sombra de dúvidas, a composição da biblioteca de Silva Alvarenga possui raízes que se mostram mais evidentes do que outras, como as que podem ser relacionadas com a sua formação na Universidade de Coimbra, à sua atividade de ensino, ao seu trabalho como advogado e aos seus afazeres na Sociedade literária do Rio de Janeiro. Além das motivações mais imediatas, outros ânimos podem ser encontrados no acervo pessoal do poeta.49
Nesse sentido, lancemos nossos olhos sobre o conteúdo da livraria em si. Torquato Tasso, Ludovico Ariosto e Giovanni Guarini, escritores italianos que exerceram enorme influência sobre os árcades, figuravam nas estantes de Alvarenga. Destes autores, encontramse respectivamente, Jerusalem libertada em tradução italiana (1581) e francesa (1774); os textos poéticos em seis volumes; e Il pastor fido, que fora publicada pela primeira vez em 1590, obra censurada pelas autoridades portuguesas50. Os principais escritores franceses dos séculos XVII e XVIII também aparecem na livraria. Como bem observou Borba de Moraes, a presença da literatura francesa suplanta consideravelmente a de autores gregos e latinos. Molière e La Rochefoucauld ganham destaque, o primeiro devido aos oito volumes de uma edição de suas Oeuvres (1798), e o segundo por dois volumes de suas Obras morais (1797).51 Havia ainda livros que satirizavam os costumes, como o polêmico Histoire de Gil Blas de Saintillane, de Alain René Le Sage (1797). Outro autor satírico de extrema relevância que aparece no acervo do poeta mineiro é o abade Antoine François Prévost52, representado pela obra Histoire de Cleveland, que também foi censurada em Portugal.53 Boileau encontra-se representado por um volume de suas sátiras (1666), assim como Jean La Fontaine e suas Fábulas (1668), o dramaturgo Pierre Corneille com uma coleção de doze volumes de sua obra teatral (1664), além de sete volumes das obras de Claude Crébillon, cuja leitura só era permita aos que possuíam licença de leitura. As Lettres de Ninon de Lenclos ao Marquis de Sevigné (1750) figuravam na biblioteca de Silva Alvarenga, ao lado das Lettres d’um Péreviénne, de Françoise Graffigny; Les aventures
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Ibidem, p.206. Ibidem, p.208. Ibidem, p.209. Ibidem, p.209. Ibidem, p.209.
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de Télémaque, de Françoise Fenélon, e a poesia de Jacques Delille representada por três títulos: La Pitié, Poèsies fugitives e Les trois règnes de la nature.54 Além das importantes obras de literatura francesa sublinhadas acima, cabe colocarmos em relevo os livros de teoria da literatura e história. A primeira categoria está representada por Le Lycée ou cours de littérature ancienne et moderne, de Jean-Françoise La Harpe, Essai sur le style (1774), de Diudonnè Thiébault e Principes de littérature (1753), de Charles Batteux. A segunda categoria está representada pelos Elements d’histoire de France (1780) e Histoire Universelle (1769), do Abade Millot, além da Histoire des Indes Orientales, anciennes et modernes (1744) e a Histoire des empires et des republiques, depuis le déluge jusq’à Jésus-Christ (1733), do abade oratoriano Claude-Marie Guyon, e ainda a Some information respecting America (1794), do advogado inglês Thomas Cooper.55 Para mais, como bem visualizou Tuna A presença dos ilustrados franceses na biblioteca de Silva Alvarenga é marcada por uma vistosa característica: a variedade das perspectivas dos autores existentes no acervo. Na biblioteca, encontram-se livros dos pensadores das Luzes francesas de matizes diversas como Nicolas Malebranche, Charles de Secondat Montesquieu, Bernardin de Saint-Pierre, Jean Marmontel, François Marie Arouet Voltaire, Denis Diderot, Jean D’Alembert e Louis Sébastien Mercier.56
De Malebranche pode-se visualizar a célebre obra intitulada De la recherche de la verité, a qual foi publicada em três volumes entre os anos de 1674-1675. Do médico francês Paul-Joseph Barthez consta a obra Nouveaux éléments de la Science de L’homme (1778). Silva Alvarenga também possuía seis volumes da obra Études de la nature (1786) do botânico francês Bernardin de Saint-Pierre. Marmontel está representado por uma edição em três volumes dos Contes moraux e quatro volumes de Oeuvres. Do filósofo Voltaire, encontram-se quatro títulos: Dicitionnaire philosophique portatif (1764), Le siècle de Louis XIV, La Henriade (1728) e quatro volumes de seu Romans et contes. A obra Mélanges de littérature, d’histoire et de philosophie, de D’Alembert aparece na livraria do poeta mineiro, assim como os doze volumes de Tableau de Paris (1781), de Mercier.
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Não obstante, também repousavam nas
estantes de Silva Alvarenga títulos de alguns juristas italianos
Que na segunda metade do século XVIII, compuseram um momento fulcral de proposições reformistas no âmbito do pensamento jurídico europeu. O poeta
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Ibidem, p.210. Ibidem, p.211. Ibidem, p.213. Ibidem, p.214.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 mineiro possui as traduções francesas de Dei Delitti de Delle Pene, de Cesare Bonesana, Marques de Beccaria de De la scienza dela legislatione, de Gaetano Filangieri.58
Tais livros corroboram a tese de Sérgio Buarque de Holanda de que, depois da cultura francesa, a italiana também teve grande influência na conformação do pensamento local59. Para mais, é impossível concluir que Alvarenga possuísse tantos livros na língua francesa sem fazer uso dos mesmos e que, portanto, Alvarenga era um leitor fluente da língua em que o iluminismo se forjou. Para mais, vale ressaltar que a literatura francesa de maior apreço do mestre era aquela dedicada às letras e à política, bem como à história de ambas e que, para além de textos religiosos ou técnicos (como aqueles dedicados à botânica), a sátira de que emergiu um criticismo iluminista, foram os textos mais recorrentes, de onde também se pode depreender a verve literária do autor de O desertor das letras. Como pôde-se notar, temas voltados ao bucolismo poético, além da libertinagem sexual, reforma jurídica e a filosofia em geral de ilustrados como Voltaire e D'Alembert compõe as bases estruturais do universo de leituras que se situava nosso poeta-mestre. Diferente dos muitos padres-mestres do período, a liberdade laica em que a formação de Alvarenga se estabeleceu, talvez tenha lhe permitido uma amplitude maior de leituras. Tanto o quanto um tom mais bem humorado, assim como mais ácido, na consideração da profissão docente e na composição dos argumentos. Se a escrita é mesmo influenciada pela leitura, como aliás também se pensava na época60, do acesso à sátira francesa nas estantes de Alvarenga se pode depreender a inspiração para a publicação de jornais como A mutuca picante, de Januário da Cunha Barbosa; mas também o tom agudo e urgente das metáforas de frei Francisco do Monte Alverne, no púlpito da Capela Real61. Da cátedra ao púlpito, a oratória conformada pelas instruções retóricas de Alvarenga são, pois, forjadas na leitura das obras de retórica que compunham sua biblioteca e que foram listadas a seguir de acordo com o ano de publicação, língua e origem:
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TUNA ... P.218. HOLANDA, S. B. Capítulos de Literatura Colonial. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. MARCÍLIO, M. L. História da escola em São Paulo e no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo/ Instituto Fernand Braudel, 2005. MONTE ALVERNE, F..Obras Oratórias. Rio de Janeiro: Garnier: 1856, tomo I.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 Tabela 1.Obras referentes à disciplina de retórica presentes na biblioteca de Manuel Inácio da Silva Alvarenga
Obras e autores
Ano de publicação
Língua
Origem de publicação
Blair, Hugh. Léçons de rhétorique et de belleslettres, par le docteur Hugh Blair traduit de l’anglais par M. Cantwell.
1797
Francês
Paris
Cícero. M. Tulli Ciceronis opera omnia ab Alexandro Minutiano in lucem edita. Cum Ciceronis vita a Plutarcho scripta et in latinum versa a Leonardo Aretino.
14981499
Latim
?
Cícero. M. Tulli Ciceronis opera omnia quae estant a Dionysio Lambino, ... emendata. Ejusdem D. Lambini annotationes, seu emendationum rationes, singulis tomis distinctae
15651566
Latim
Paris
Cícero. Orações principais, trad. E notas pelo Padre Antônio Joaquim
17791780
Português
Lisboa
Heineccius, Johann Gottlieb. Fundamenta stili cultioris in usum auditoria adornavit et syllogen exemplorum adjecit
1736
Latim
Lepzig
Quintiliano, Marcus Fabius. Institutionum Rhetoricarum libri três ex. M. Fab. Quinctiliani .... accomodati a Pedro Josepho A Fonseca.
1781
Latim
Lisboa
1794
Português
Coimbra
1804
Francês
Paris
1794
Português
Lisboa
1626
Latim
Leiden
Quintiliano, Marcus Fabius. Os três livros das Instituições Rhetoricas de M. Fab. Quintiliano accommodadas aos que se aplicam ao estudo da eloquência / Pedro José da Fonseca; trad. João Rozado de Villa Lobos e Vasconcellos. Virgílio. L’ Enéide traduite par Jacques Delille. Virgílio. Tradução livre ou imitação das Georgicas de Virgílio, em verso solto, e outras mais composições poéticas, trad. Por Antônio José Ozório de Pina Leitão. Vossius, Gerardus Joannes. Ger. Jo. Vossii Elementa rhetorica, oratoriis ejusdem partitionibus accommodata inque usum scholarum Hollandie et WestFrisiae denuo edita.
Fonte: Sistematização própria a partir de TUNA (2009, p.236-298)
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Podemos perceber que as obras de retórica aparecem em menor quantidade em relação às demais temáticas62, representando a ínfima porcentagem de 0.89% dos 1.003 livros de Alvarenga. Destas, a maioria (4) em latim, seguidas pelo português (3), e pelo francês (2). Padrão, todavia, que não corresponde ao universo em foco, aonde 1,79% das obras está em língua italiana, 18,74% em português, 23,13% em latim e 52,84% em francês.63 Entre os autores, temos três juristas, um poeta e dois sermonistas que, embora escrevam acerca do mesmo tema, obviamente o abordam em sentidos próprios à sua aplicação mais frequente. Três referências advém da Roma Antiga, duas delas em publicações que remetem ao chamado período clássico ou renascentista, de onde emergem os dois germânicos do grupo que, não obstante, adotaram alcunha latina, como era costume entre os pares. O único iluminista do grupo é também o único anglófono. Embora o extrato das obras referentes à retórica não possa ser considerado um indicativo de que a língua portuguesa tenha sido adotado como eixo central dos estudos da matéria, a utilização das obras clássicas de Cícero, Quintiliano, Virgílio e Heinecius demonstram que as principais referências recomendadas pela Junta da Providência e Ordens de Portugal eram atendidas no seu ensino64. Considere-se ainda que os três primeiros possuíam títulos em latim e em português, no que o atendimento das prescrições régias se fazia notar. Entre as obras listadas, várias não foram localizadas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e, portanto, perderam-se do espólio do poeta-mestre. São elas: as leçoens de Hugh Blair aparecem em uma edição de quatro volumes traduzidas para o francês, publicada em Paris, no ano de 1797; as obras Ciceronis opera omnia ab Alexandro Minutiano in lucem edita. Cum Ciceronis vita a Plutarcho scripta et in latinum versa a Leonardo Aretino e Orações principais; as obras de Virgilio65 e Quintiliano66. Merece destaque, contudo, a presença, ainda que em francês, das lições de Hugh Blair. Reputado sermonista escocês nascido em 1718 e falecido em 1800, Blair ocupou a cadeira de
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Entre as áreas mais cotadas: 43,59 % no campo do direito e das leis; 37,88% no campo da poesia e da literatura, 10,76% no campo da história; 7,77% outras. Na listagem não aparecem obrar em inglês. Há ainda vários autores associados a certa quantia de volumes, os quais não têm títulos correspondentes. Ademais, notam -se alguns periódicos com linguagem não notificada e uma obra em espanhol. BRASIL. ALVARÁ DE REGULAMENTO PARA OS ESTUDOS DAS LÍNGUAS LATINAS, GREGA E HEBRAICA E DA ARTE DA RETÓRICA. LISBOA, TIPOGRAFIA OFICINA RODRIGUES GALHARDO1759. BIBLIOTECA NACIONAL, DIVISÃO DE OBRAS RARAS, 88,7,16, NO. 27. A Eneida de Virgílio aparece em tradução francesa, de 1804, e as Georgicas, do mesmo autor, são identificadas em tradução portuguesa, realizada em Lisboa, no ano de 1794. Foi encontrada apenas a Institutionum rhetoricarum, de 1781, e uma tradução da mesma obra publicada em Coimbra, em 1794.
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retórica e belas letras da Universidade de Edimburgo, tendo escrito o mais importante manual de retórica anglófono do período. No Brasil, a obra seria utilizada como cerne das referências do estudo da matéria a partir de 1834, reordenando a composição dos discursos locais em tom conciliatório e conservador, muito recorrente na política da segunda metade do século XIX, como assinala José Murilo de Carvalho67. Se a retórica da passagem do século XVIII ao XIX possui, portanto, uma curvatura instável, seja em termos de língua padrão (latim-francêsinglês), seja em termos de espólio referencial (Itália-França-Reino Unido) ou mesmo de referencia teórico (Iluminismo-Liberalismo)68 de certa maneira, todas essas obras já se encontram germinadas na biblioteca de Alvarenga, de onde pode-se concluir, como assinala Aleida Assmann69, que a memória ocidental forjou-se a partir do trabalho de poetas que, como nosso mestre, exploraram as inovações emergentes da cultura nacional em prol da conformação de um universo vocabular e referencial que legitimasse a nova figuração do mundo, então em expansão. Dispersa na atualidade, a biblioteca de Alvarenga também conformou-se a partir da dispersão ao longo dos muitos anos de sua carreira intelectual. Neste ensejo, há que se reconhecer que outros letrados também se esforçaram na definição de disciplinas de conhecimento consideradas úteis para o progresso da humanidade. No âmbito da retórica, como já se disse aqui, esses esforços se apresentaram nos primeiros exames de retórica conforme as regras inauguradas pelo Marques de Pombal em 1771. Averiguar, na insipiência da eloquência em papel, as forças atuantes na efetivação das transições projetadas, é o que esperamos fazer a partir de agora.
3. A retórica dos pupilos: quais temas e questões abordavam os estudantes de retórica lusitanos?
Manuel Inácio da Silva Alvarenga matriculou-se em Direito Canônico pela Universidade de Coimbra no ano de 1771, ano de criação das Aulas Régias, que tornaram o ensino público laico na América Portuguesa e que efetivaram, por força de Alvará supracitado, o acesso dos Estudos Menores aos Estudos Maiores por meio de um exame de retórica em língua
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CARVALHO, J. M. de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi. No.1,vol.1, Ed. Letras, set/2000, UFRJ, Rio de Janeiro. MACEDO, Ubiratan Borges de. A idéia de liberdade no século XIX: o caso brasileiro. Brasília: Expressão e Cultura, 1997. ASSMANN, Aleida. Cultural memory and western civilization. Cambridge, Cambridge University Press, 2011.
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portuguesa70. Como se pode notar, pelos livros sobre a matéria que o mestre possuía, Alvarenga havia estudado retórica à moda antiga, em latim. O que, todavia, não o impedia de se candidatar à elevação de nível na carreira acadêmica dado que os livros recomendados para o estudo da matéria eram, em geral, os mesmos da época anterior, mas em versões lusófonas. Professor de retórica na nova sede do Reino, preparava os alunos para o mesmo tipo de exame e, embora não tenha sido detectado nenhum folheto ou impresso contendo a publicação desse tipo de tese em sua biblioteca, é plausível assinalar que o poeta-mestre conhecesse esse tipo de obra ou mesmo a utilizasse como referência para a preparação de seus estudantes. Entre os exames que passaremos a sondar, lamentavelmente, nenhum saiu da pena de um latino-americano como Alvarenga, tampouco fomos felizes no levantamento das carreiras dos estudantes em questão quando procuramos saber se alguns deles se dedicaram ou não à docência, como Alvarenga. Todavia, a condição de estudantes luso-parlantes e candidatos ao exame de retórica num mesmo período de transformações, conforme bibliografia similar os une. Mais do que isso, a invenção de uma retórica lusófona conforme pontos de partida e horizontes de chegada nos permite essa união, primeiro formulada a partir das referências bibliográficas e culturais e desde já das questões e objetivos em que a disciplina se inscreveu. Entre os exames ora apresentados, figuram exames realizados no Real Colégio dos Nobres71 e nos seminários de Mafra e Santarém. As exigências desse tipo de exame estavam adequadas às decisões reais de 1759, seguindo, portanto, um padrão normativo como aquele adotado no Real Colégio dos Nobres, em 1791, quando os estudantes Antonio de Saldanha da Gama, Antonio José de Saldanha Oliveira e Souza, José Sebastião de Saldanha Oliveira e Sousa e João Galvão Mexia Mascarenhas defenderam sua tese, conforme as seguintes recomendações: Das Instituições Retóricas de Quintiliano exporão tão somente as Doutrinas, que se contém no Compêndio deste autor, impresso para uso do Real Colégio dos Nobres. Além disto, analisando a Oração de Cícero pro Dejotaro, mostrarão todo o artifício Oratório, que nela poderão descobrir. Também se oferecem a
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BRAGA, T. História da Universidade de Coimbra. Lisboa: Tipografia da Academia Real de Ciências, 1992.AN. OR 1591 VS BIB. NA CASA DOS ACTOS DO REAL COLÉGIO DOS NOBRES FAZEM PÚBLICO EXAME DE RHETORICA. ANTONIO DE SALDANHA DA GAMA, ANTONIO JOSÉ DE ALDANHA OLIVEIRA E SOUSA, JOSÉ SEBASTIÃO DE SALDANHA OLIVEIRA E SOUSA, JOÃO GALVÃO MEXIA MASCARENHAS, PRESIDINDO FRANCISCO XAVIER DE OLIVEIRA COSTA. AOS 30 DE JUNHO DE TARDE. Lisboa, Régia Oficina Tipográfica, MDCCXCI/ 1791. BIBLIOTECA NACIONAL, DIVISÃO DE OBRAS RARAS, 25B, 2, 27.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 explicar a Carta de Horácio aos Pisões, chamada vulgarmente Arte Poética, seguindo a interpretação dos melhores escritores72.
Além das mesmas referências, os estudantes também poderiam apresentar uma única tese, desde que sua exposição fosse feita separadamente, ou seja, a elocução do discurso valia tanto quanto ou mais do que a tese escrita73. Essas avaliações envolviam todo um cerimonial que legitimava a importância que o estudante arrogava a si mesmo. Quando a tese era defendida, na maioria das vezes, já se havia cumprido a etapa da escrita a contento da banca examinadora; aí não tanto o que se falava, mas o modo como se falava fazia toda a diferença74. A sonoridade da voz, a expressão da face, os gestos das mãos, o balanço do corpo e a certeza de si eram as qualidades que estavam em teste. Desse comportamento fazia parte um ar de solenidade, um instinto de propriedade treinados ao longo dos Estudos Menores por meio de provas orais, uma vez que sempre que falava o jovem se submetia à avaliação de seus conhecimentos, não lhe sendo franqueada a palavra em outros tipos de ocasiões75. Para o estudante, a finalidade desse ritual era provar aos examinadores que era capaz de persuadir e deleitar aqueles a quem apresentava um raciocínio direcionado por uma tese, cujos argumentos e sua apresentação eram previamente estudados. Nos primeiros exames da disciplina, tanto a forma quanto o tema da tese deveriam estar relacionados com a retórica76. O frei Martinho do Rosário, estudante do Real Colégio de Mafra, em 1790, foi um dos primeiros estudantes a realizar esse tipo de exame. Nesta ocasião, Rosário tentava provar o quanto os Príncipes Beneméritos eram justamente louvados pela eloqüência e poesia. Para isso, iniciou seu discurso pela definição desta arte, seu uso e seus preceitos, conforme se pode ler a seguir:
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CASA DOS ACTOS do Real Colégio dos Nobres fazem público exame de rhetorica. Antonio de Saldanha da Gama, Antonio José de Saldanha Oliveira e Sousa, José Sebastião de Saldanha Oliveira e Sousa, João Galvão Mexia Mascarenhas, presidindo Francisco Xavier de Oliveira Costa. Aos 30 de junho de tarde. Lisboa: Régia Oficina Tipográfica, 1791. P. 1, grifos do autor. MADUREIRA FEIJÓ, J. de M. Orthographia de arte de escrever e pronunciar com acerto a língua portugueza para o uso do exmo. Duque de Lafões pelo seu mestre...Presbítero do H.de S. Pedro, Bacharel em Teologia e Pregador. Lisboa: Imprensa Régia, 1806. DE SIMONI, L. V. Da necessidade da eloqüência. Seção do Cavalheiro Vicente Monti, pronunciada em 29 de novembro de 1803, na ocasião da abertura do curso de eloqüência, da Universidade de Pávia. Versão de Luis Vicente de Simoni. Biblioteca Nacional, Divisão de Manuscritos, I-46,6,12. ORDEM TERCEIRA DE SÃO FRANCISCO. Plano de Estudos para a Congregação dos Religiosos da Ordem Terceira de São Francisco do Reino de Portugal. Lisboa: Regia Oficina Tipografica, 1769. BIBLIOTECA NACIONAL, DIVISÃO DE OBRAS RARAS, 63,5,18. SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1988.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 Chamar-se-á retórica, ou arte de bem falar, à coleção dos preceitos, que ensinam a persuadir pelo discurso. O uso desta arte é tão universal, como é a necessidade da persuasão. Daqui o apreço com que a estimam sempre os eruditos, certos dos meios, que ela oferece, para fazer agradável qualquer das ciências, que estudam, ou sobre que escrevem. Ainda que estes preceitos são da natureza e o Orador as observa, para os praticar, ser-lhe-á muito dificultoso, e talvez impossível a sua execução, sem os aprender nas obras dos que se serviram deles felizmente. 77
Ao ler uma definição como esta, deve-se ter em mente que a retórica era uma arte prescritiva e universal que dependia da erudição de seus portadores, inspirados tanto pelo estudo de textos considerados clássicos como pela observação do comportamento dos bem falantes. Era necessário, portanto, que o discípulo estudasse grandes mestres da retórica; na época, Cícero, Demóstenes, Bossuet, Massillon, Vieira, entre outros. As referências da disciplina no final do século XVIII variavam de uma retórica clássica, como a grega e a latina, a uma retórica sagrada, como aquela ministrada pelos jesuítas, passando pelos renovadores da arte, em língua francesa78. Definida a retórica como uma arte de bem falar que se estendia a tantos assuntos quanto fosse possível falar, Rosário localizava sua importância na Europa do final do século XVIII: Mas hoje a Europa tem assaz aprovado os sentimentos daquele famoso mestre [Cícero], quando assina à Retórica um lugar distinto no Plano dos seus Estudos. Nós, que além de seguirmos este mesmo Plano, achamos honrada a nossa arte, depois que a nossa soberana se tem dignado a observar os seus progressos muitas vezes, assim como os das outras que manda ensinar neste seu Real Colégio; servimo-nos também de um tão grande estímulo, para continuarmos anualmente, como agora, a expor e defender os seus princípios79.
Para Rosário a disciplina recobrava sua importância no final do século XVIII, galgando novos espaços entre estudantes e homens de Estado. Nesse caminho, Rosário afirmou sobre a importância do seu estudo: Como é certo que as coisas se proferem da mesma sorte que se idearam, se não há regra que as emende, para saírem ao público, debaixo da sua direção, e como é também certo que, a saírem sem esta regra, mil vezes, hão de perder o fruto de moverem aos que a ouvem, segundo se propõem sempre quem quer persuadir, fica indubitável, que os preceitos da Retórica geram a Eloqüência 77
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ROSÁRIO, Fr. M. Ao sereníssimo príncipe do Brasil por sua benevolência para com os estudiosos, oferece conclusões de Retórica e Poética, presidindo D. Luiz Da Senhor do Carmo, cônego regular do real colégio de Mafra. (Na sala pública dos atos do mesmo Real Colégio), aos 8 de setembro. Lisboa, Oficina de Lino da Silva Godinho, MDCCLXXXX. P. 3. RIBEIRO, A. L. Theoria do Discurso Aplicada à Língua Portuguesa. Lisboa: Impressão Régia, 1819. ROSÁRIO, Ao sereníssimo..., p. 3.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 nos que se sentem hábeis em conceber as idéias que servem à persuasão. Ainda mesmo sem esta utilidade, merece todo o apreço a retórica, por dar a conhecer aos que a estudam o bom, ou mau gosto das composições literárias, certeza, que nunca pode ter quem ignora esta arte80.
Na opinião de Rosário, a retórica agia em prol da coerência, do consenso e, ainda, do discernimento – movimentos considerados imprescindíveis na Europa de então. Para mais, a perfeição do discurso deveria ser buscada por meio do estudo e, mesmo que essa perfeição não fosse atingida, sua busca já representava um aprimoramento das relações de comunicação entre os homens81. Em outras palavras, a retórica fomentava ainda a disciplina e o esforço, qualidades cuja importância despontava de maneira exemplar na época82. Não obstante, havendo uma correspondência entre o pensamento e a fala, na retórica, o que se disciplinava era o próprio pensamento, tanto de quem falava, quanto de quem ouvia. Assim, fomentando a retórica
acreditava-se criar um efeito multiplicador do conhecimento,
disseminando noções de coerência, consenso, discernimento e disciplina83. Todavia, para cada matéria e/ou finalidade, se deveria utilizar um gênero adequado. Para Rosário, havia três gêneros: demonstrativo, deliberativo e judicial. Em todos esses gêneros, a finalidade do orador é persuadir seu ouvinte da tese proposta: Os meios do Orador introduzir a persuasão no auditório é trabalhar por ser acreditado, por parecer reto, e por lhe mover os corações: e eis aqui assaz vasta matéria para a invenção do mesmo orador, e que só pode julgar fácil aquele que nada reflete sobre as dificuldades, que a vontade opõem sempre aos que pretendem arrancá-la as suas próprias mãos84.
Note-se que merecer crédito não é algo simples, o orador há de manter uma conduta constante se quiser garantir seu crédito social. Essa constância poderia, primeiro, ser demonstrada por meio dos estudos. Depois, a humildade deveria ser prestigiada. Isso porque a insolência poderia caracterizar o trabalho do discursista como um esforço artificial, interesseiro, e, por conseguinte, a falta de naturalidade do discurso colocaria em dúvida a autenticidade da tese, aliás, colocaria em dúvida a probidade daquele que discursa. Finalmente, o estudante que assumia o lugar de orador precisava saber recomendar-se para 80 81
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ROSÁRIO, Ao sereníssimo..., p. 4. CARVALHO, F. F. Lições elementares de eloqüência nacional para uso da mocidade de ambos os hemisférios, agora mais correta e acrescentadas nesta quarta edição por. Lisboa, Tipografia Rollandiana, 1850. IMBERT, I.B.A. Discurso sobre a influência que as letras exercem no estado social e da necessidade de as fazer florescer. Rio de Janeiro: Typographia Austral, 1836. DU MARSAIS. Lógica ou reflexões sobre as principais operações do entendimento. Lisboa: Oficina Simão Tadeu Ferreira, 1801. ROSÁRIO, Ao sereníssimo..., p. 9.
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ser bem aceito, afinal, por melhor que fosse, se não parecesse bom, não convenceria seu público que, uma vez receoso de acreditar em suas palavras, tampouco deixaria que seus sentimentos fossem conduzidos pelo orador85. Razão e sentimento faziam parte da retórica de modo equivalente, e ambos deveriam estar submetidos ao controle do orador86. Para alcançar um equilíbrio, era necessário o estudo dos sentimentos que, nos primeiros exames da disciplina são designados como afetos. Para João Dias Pereira Chaves, estudante de Mafra, os afetos tinham tal importância na retórica a ponto de serem distinguidos segundo seus estilos: Sobre os estilos dos afetos subscrevemos as seguintes regras: 1. O Orador deve usar aqui das frases mais perceptíveis que puder, 2. Não manifestar pensamento que gere qualquer embaraço na inteligência dos ouvintes, 3. Não expor as idéias em ar de quem argumenta com proposições, 4. Doer-se com termos de consternação e angústia e irar-se pelos mais fortes e expressivos, 5. Evitar toda a flor da Locução que alicie com a aparência de engenhosa, 6. Fugir de certos lugares comuns, que encantem pelo trabalho e curiosidade com que são ataviados, 7. Deixar as antíteses, períodos harmoniosos e toda a colocação de palavras que pareça estar de propósito em correspondência e desafio de outra semelhante, 8. Fazer com que os afetos não venham sem provas, que os disponham, exceto nas matérias em que todos estão já apaixonados, 9. Absterse de sentenças que nascem ordinariamente da meditação mais profunda87.
Para Chaves, ao mostrar quais atitudes inspiravam confiança, indignação, ódio ou entusiasmo, o orador ensinava ao seu público alguns valores morais edificantes88. Para um público sem discernimento, assistir a raiva do orador diante desta ou daquela situação era instruir-se no que podia ou não fazer, em como deveria se comportar nesta ou naquela ocasião89. Igualmente atentos aos afetos, os estudantes Paulo Ignácio Ferreira e Manuel da Assunção apresentaram sua noção desse aspecto da retórica em seu exame, assinalando que “os afetos são a descoberta mais proveitosa e ao mesmo tempo a mais agradável, que o Orador pode fazer pela Invenção, a favor da sua causa”. Para Ferreira e Assunção, todavia, era preciso 85
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ORDEM TERCEIRA DE SÃO FRANCISCO. Plano de Estudos para a Congregação dos Religiosos da Ordem Terceira de São Francisco do Reino de Portugal. Lisboa: Regia Oficina Tipografica, 1769. BIBLIOTECA NACIONAL, DIVISÃO DE OBRAS RARAS, 63,5,18. FONSECA, P. J. Tratado dos afetos e costumes oratórios, considerados a respeito da eloqüência. Dividido em duas partes. Lisboa: Régia Oficina Tipográfica, 1786. CHAVES, J. D. P.. Exposição dos Preceitos da Retórica e Poética; Tratados de Cícero, Quintiliano, Horácio, Boileau e outros mestres da eloqüência e poesia que presidindo D. Luiz da Sra. Carmo, Cônego Regular oferece a Exame Público, na sala dos actos do Real Colégio de Mafra, no dia 16 de junho de tarde. Lisboa: Oficina de Lino da Silva Godinho, 1784. P. 14. EÇA, M. A. R. da S. Reflexões sobre a vaidade dos homens ou discursos morais sobre os efeitos da vaidade. São Paulo: Livraria Martins. IMBERT, 1836, opt.cit.
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que o orador estivesse atento para relacionar afetos ao entendimento. Isto porque, para os estudantes, “a vontade não abraça mais que os objetos representados pelo entendimento” 90, ou seja, não sendo inteligível, dificilmente um discurso seria aceito. Essa preocupação com a importância do entendimento e do estudo tinha como pano de fundo uma certa resistência, se não uma contraposição à crença de que a retórica e a eloqüência, eram fruto de um dom que, uma vez herdado ou ganhado, bastava para que se persuadisse este ou aquele público. Para mais, estava calcado num princípio kantiano de que a inteligência tinha haver com a sua comunicabilidade, que a razão tinha haver com o domínio da linguagem, advindo do seu polimento no exercício disciplinado do estudo e da eloquência. Daí a importância da relação entre o que se lia e como se falava, entre as bibliotecas e os discursos.91 Em 1782, o estudante Ignácio Joseph de Moraes Brito apresentou-se preocupado justamente com a eficácia do entendimento na condução de afetos tais como a virtude. Em sua tese, este estudante tentava responder à questão: “Quanto é eficaz a persuasão da eloqüência para conduzir a virtude e a boa índole dos príncipes?” no seu exame de retórica. Sua tese é a de que quando o orador conseguia manter a objetividade no seu discurso, isso significava que ele era um homem de bem, porque se esforçava por não dispersar o ouvinte falando de temas desnecessários que, inclusive, poderiam desviá-lo da verdade. Para Brito, essa objetividade dependia do estudo, pois dele era oriunda a sagacidade e a clareza necessárias para compreender e explicar um tema, ou seja, o entendimento contribuía para o polimento dos afetos na medida em que permitia uma seleção, entre as múltiplas sensações do homem, daquilo que realmente deveria ser considerado importante. A objetividade, portanto, estabelecida a partir de uma noção de utilidade que, de maneira gradual era entendida como um princípio público, se impunha contra tergiversações dispersas ou dispersivas. Dar um sentido ao próprio discurso, assim como dar um sentido à própria vida, eram prerrogativas para uma noção cada vez mais pulsante de progresso. Essa noção de progresso implicava na construção de unidades direcionadas, conformando um ideário de coesão social que só se afirmaria na segunda metade do século XIX, mas que desde o século XVIII atende pelo nome de instrução pública92.
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BRUNETTE, P. I. F. Conclusões sobre a poezia, e eloqüência, presidente D. Luiz da Senhora do Carmo. Defendem frei Manoel d’Assunção e . Aos 8 de setembro. Lisboa: Silva Godinho, 1785. (BN/OR 40,10,9). P. 33. FERREIRA, S. P. Preleções philosóphicas sobre a theoria do discurso e da linguagem, e esthética, a diceósyna e a cosmologia. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1813. CAYRU, V. Escola Brasileira ou Instrução Útil A todas as classes, extraída da sagrada escritura para uso da mocidade. Rio de Janeiro: Tipografia de Plancher-Seignot, 1827.
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Não obstante, para Brito, se o caso é convencer, aquele que ouve é sempre mais importante do que aquele que fala, assim a retórica deve sempre estar direcionada para o objeto da ação, motivo pelo qual o orador deve estudar o comportamento do seu público, pois somente com um discurso corretamente direcionado para um determinado público é que poderia persuadir. O estudo do outro ganha, com a História que se escreve no período, um aval e um respaldo. Assim como ocorreu na Inglaterra shakespeareana o mito da nação se inscreve sobre o ideário universaliza da Igreja Católica93 conferindo antiguidade e heroísmo suficientes para legitimar a distinção entre os homens. Se no reino anglo-saxônico isso ocorre por meio do teatro, no mundo latino a expressão é liderada pelos púlpitos94. De uma maneira ou de outra, as cátedras e agremiações científicas ou literárias irão se esforçar por arregimentar e conduzir tais discursos95. Ao orador, por conseguinte, Será necessário que faça consistir a sua primeira qualidade em ser homem de bem, para não enganar jamais o auditório, que lho não merece, pela confidência com que se entregou a sua probidade. Para isso, todos os seus argumentos ou razões com que prova os assuntos devem ser ao menos verossímeis, disposto a deixá-los, apenas se mostrarem verdadeiros os do contrário. Estas razões pode achá-las o orador e com efeito as descobre na atenção com que olha para as circunstâncias da causa; porque nenhuma outra coisa o fará mais eloqüente, que o encher-se dela, ou da justiça que a acompanha96.
O orador não deveria, portanto, subestimar seu público, não deveria deixá-lo sem entender aquilo que dizia e, para isso, deveria recorrer às mais variadas maneiras de se fazer entender. Acerca dessas maneiras, pontuou Brito: “valem muito os Exemplos; sobretudo para com os menos sábios, que ordinariamente, ou não entendem, ou temem as razões como laços armados à sua simplicidade”97. Esses exemplos eram geralmente retirados da história e a sensibilidade para saber quando e onde utilizá-los vinha, para Brito, de uma certa cultura de salão, imprescindível ao orador quando quisesse ser simpático e sensível às paixões. Neste sentido, Brito compara a disposição do discurso com a ordem na construção de um edifício: um mau discurso pode ser um labirinto. Os “cômodos” do discurso deveriam, pois, ser
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ASSMANN, 2011, opt cit. GALVÃO, B. F. R. O púlpito no Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 92, volume 146, Imprensa Nacional, 1926, Rio de Janeiro. RIBEIRO, J. S. História dos estabelecimentos científicos, literários e artísticos de Portugal, nos sucessivos reinados da monarquia. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Ciências, 1871. BRITO, I. J. de M.. Conclusões de retórica e poética, presidente D. Luis da Senhora do Carmo, defende Ignácio Joseph de Moraes Brito, colegial de Mafra, na aula dos atos públicos, aos 10 de outubro de 1782. [Mafra]: [s.n.], [1782] (BN/OR 63,3,13). P. 5 BRITO. Conclusões..., p. 6.
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acomodados à sua função, assim, para começar um discurso: exórdio; para apresentar a tese: proposição; para comprovar a tese: narração; para encerrar o discurso: epílogo. No exórdio, o orador deve cumprimentar sua platéia e informá-la do que seguirá. A isso deve suceder a proposição que, uma vez anunciada, será comprovada e, para este estudante, “As provas do discurso são o todo dele, porque mais esperam os mesmos ouvintes, como objeto que lhes anunciou na proposição”98. Após a apresentação das provas e da ponderação de questões em contrário, deve o orador resumir o que foi dito e concluir suas idéias no epílogo. À construção dos andaimes da oração, devia suceder sua ornamentação: Juntas assim e dispostas todas as coisas precisas à Oração, segue-se adornálas, e por a última demão a este belo edifício. Assinam-se quatro meios para isto; a saber: Elegância, Composição, Dignidade e Decoro. O primeiro está todo em falar pura e claramente; o que cumpre aquele orador que foge das palavras antigas, quando não as precisa; das novas, que tem raro uso; das sórdidas e estrangeiras à Língua, em que se explica; e das frases poéticas, alheias certamente da gravidade da Oratória. O segundo está na boa colocação das mesmas palavras que se adotam, dando-lhes ordem, união e número; o que mostraremos com exemplos. Consiste o terceiro nas figuras da Retórica; que não devem ter este nome, se carecem de força e graça. Usa-se, enfim, do quarto; apropriando os estilos diversos de falar às causas, e ainda às partes diversas das mesmas causas, segundo o pede a sua grandeza, ou vulgaridade99.
Para que um discurso fosse corretamente finalizado, contudo, era necessário proceder a elocução e, neste quesito, a eloqüência era imprescindível. Acerca deste tema, Luiz Gonzaga da Silva, Filipe Neri Vital Gorjão, Joaquim José Duarte, João Marques de Oliveira, Francisco de Assis e Manoel da Silva Botelho, alunos do Real Colégio Patriarcal de Nossa Senhora da Conceição na Vila de Santarém, defenderam que a “Retórica é a arte que ensina a descobrir tudo quanto é capaz de persuadir em um discurso”, o que não significa dizer que quem conhece as regras é feliz em aplicá-las, pois há muita “há muita diferença entre Retórico e Orador”100. O primeiro escreve o discurso, o segundo o proclama. A inteligência da proclamação está na entonação exata das palavras, mas também no uso da letra escrita de acordo com a sensibilidade em relação ao público. Entende-se, portanto, que muitos dos discursos hoje lidos não foram proclamados tal como se nos apresentam. Os oradores incluíam frases, cortavam frases, mudavam sua forma de apresentação. Esse dado nos leva a 98 99 100
BRITO. Conclusões..., p. 11. BRITO. Conclusões..., p. 14. REAL COLÉGIO PATRIARCAL DE SANTAREM. Para exame público de retórica, presidindo José Francisco da Soledade Bravo, oferecem Luiz Gonzaga da Silva, Filipe Neri Vital Gorjão, Joaquim José Duarte, João Marques de Oliveira, Francisco de Assis, Manoel da Silva Botelho. Alunos do Real Colégio Patriarcal de Nossa Senhora da Conceição na Vila de Santarem, as seguintes teses: no dia do presente mês de tarde. Lisboa: Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, [179?].
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concluir ainda que tanto os discursos publicados eram utilizados por mais de uma pessoa, que o colhia em páginas de jornais, folhetins avulsos ou coletâneas, revisavam o material inserindo exemplos próximos ao público ouvinte e adequando a linguagem às necessidades locais; quanto apenas aqueles discursos considerados modelos replicáveis eram publicados em papel101. Com essa informação, há que se reconhecer que um discurso publicado possuía um efeito multiplicador ainda por ser mensurável. Quantas vezes se leu as teses aqui elencadas? Para quantas pessoas? Em quantos diferentes espaços esses discursos tiveram aplicações diversas? Assim como um livro voltado para a instrução, o uso e reuso desse tipo de material é presumível, mas pouco palpável ainda. Para os estudantes do colégio de Santarém, a destreza dos oradores era uma dádiva divina que só podia ser aperfeiçoada, nunca gerada. Paralelamente, a inexperiência dos retores ou retóricos provocava a construção e a discussão de regras inaplicáveis à oração. Aliás, essa não era uma opinião exclusiva dos estudantes de Santarém. Com suas Conclusões sobre a poesia e a eloqüência, o estudante Sebastião José de S. Paio Mello e Castro submeteu-se ao exame de conclusão dos estudos menores em 1779. Para ele, retórica e eloqüência eram áreas que comportavam diferentes habilidades, distinguidas no momento da elocução: Esta é a parte da retórica que distingue tanto o homem eloqüente, do que só é retórico; como a que diferencia entre si os oradores. Dar preceitos, bem se vê que não é pô-los em prática; mas sendo muitos os que se aplicam sabiamente a esta prática, só o modo de os fazer mais ou menos agradavelmente, é que pode distingui-los, e eis aqui a vantagem que traz a elocução a qualquer orador. Uma imaginação fecunda pode inventar facilmente um juízo sólido; e o conhecimento dos preceitos inspiram uma boa ordem, e corrigem todo o desvario das lembranças; mas a elocução pede mais trabalho, medita muito sobre a língua que se fala, para escolher dela os termos mais expressivos, claros, puros, e estar sempre usando deles; e além disto reserva também, e põe como à mão, os mais concisos e sonoros, porque tem ainda bastantes vezes de por em uso; já para imitar nas palavras os pensamentos; já para fazer aos ouvidos uma espécie de música, com que os recreie ao mesmo tempo em que fala. As figuras retóricas tem aqui o seu lugar próprio, para o que deve conhecer-se a força e a graça particular de cada uma, a fim de que o bom orador nem as introduza sem a necessidade de algum especial movimento que então peça o discurso, nem as julgue indiferentes por lhe parecer que qualquer delas poderá aí fazer o mesmo efeito. A arte ensina as próprias de cada lugar; tranqüilas e mais ou menos veementes, porque na sua economia e boa escolha, vai grande parte da fortuna a que aspira o discurso. Os diversos estilos igualmente tem o seu uso na elocução. Da maior ou menor importância da matéria, se tira o conhecimento de qual deles lhe compete. Nós
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WOLF, F. O Brasil literário. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Pref./Trad./Not. Jamil Almansul Hadad. Série 5ª, vol. 278/Brasiliana, 1955.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 responderemos ao que se nos perguntar sobre todas estas advertências, que constituem a boa Elocução.102
Na memória do ouvinte, a longo prazo, estariam fixados os afetos que a elocução do orador era capaz de inspirar. Nesse limite, a eloqüência era mais importante, porque só a experiência garantia ao orador a capacidade de mover os afetos da platéia mais resistente. Consoante, o discípulo que se arriscasse ao exame de retórica precisava possuir o que os estudantes lusitanos denominavam como “natureza eloqüente”. Essa natureza era caracterizada por um certo poder de sedução por meio das palavras que se comprovava pela boa compreensão, boa conduta e pela morigeração demonstradas103. Essa vocação era demonstrada na defesa de uma tese. O ar solene com que este tipo de comunicação foi praticada contribuiu igualmente para que se projetasse um tipo de postura do letrado diante de seus colegas. Num espaço em que falar era o mesmo que estudar e refutar a opinião do colega era considerado um ato de vilania – porque debater as idéias apresentadas poderia diminuir a nota do expositor, que geralmente era um igual –, o debate entre os alunos foi considerado um ato equivocado e, por isso, deixado em segundo plano. Em suma, discutir desautorizava o colega, diminuía a força do discurso.104 Só aos mestres essa possibilidade era apresentada e, na cátedra, a palavra do mestre encerrava verdades incontestáveis, tanto porque este se tornara mestre em razão de seus muitos méritos – a alfabetização por si só já constituía sinal de distinção e nobreza –, quanto porque não havia muitos outros meios pelos quais suas idéias poderiam ser comprovadas ou mesmo discutidas além das orações docentes. A retórica era aí considerada uma ação que propiciava a distribuição da cultura, tão necessária para a civilização e conseqüente prosperidade da população. Seu uso era naturalmente bom, pois demonstrava a generosidade de seu portador em compartilhar seus conhecimentos. O aplauso do público servia como base para o julgamento das habilidades do orador. O ornamento do discurso garantia a distinção dos oradores segundo classe, profissão ou intenções. Tal recurso estava vinculado ao nível de conhecimento e habilidades do orador
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CASTRO, S. J. de S. P. M. e. Conclusões sobre a poesia e eloqüência, presidente D. Luis da Senhora do Carmo. Lisboa: Oficina Luisiana, 1779. (BN/OR 35,21,1). P. 12-13. FORTES, Pe. Inácio Felizardo. Breve exame de pregadores, pelo que pertence a arte de Retórica, extraído da Obra intitulada: O pregador instruído nas qualidades necessárias para bem exercer o seu ministério; pelo (...). Rio de Janeiro, Publicações da Imprensa Régia, 1818. BIBLIOTECA NACIONAL, DIVISÃO DE OBRAS RARAS. ANÔNIMO. O verdadeiro pregador no século XVIII, referindo os processos e decadências e restaurações, que tem tido a Oratória sagrada, desde o princípio do mundo até o presente e reprovando o sistema adotado por alguns pregadores, mais modernos: propõe ultimamente em diferentes sermões, diferentes modelos da Eloqüência Evangélica. Porto: Oficina de João Agathon, 1798.
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em relação às partes que compunham a arte retórica, mas a eficácia do discurso estava mais próxima do carisma de seu portador, típica da eloqüência. O exercício da eloqüência, por sua vez, faria com que o discurso na língua pátria e com referências da cultura local se tornasse cada vez mais "natural" e, portanto, mais autêntico, propiciando aos nacionalismos então emergentes tanto uma justificativa quanto um incentivo.
Considerações Finais
Como se sabe, o terreno da instrução é de difícil escrutínio, seja porque não se estabeleceu aí uma cultura do registro, seja porque a fluidez das relações não é captada pela seleção interna de textos e matérias publicadas105. Trata-se, portanto, de um terreno insólito que, voltado para a construção discursiva do futuro a partir da legitimação disciplinar do passado, se arroga, em princípios do século XVIII, o papel de libertador do povo106. A libertação proposta a partir do conhecimento integra a chamada cosmologia iluminista107 sob a insígnia do instruir recreando108. Se efetiva pelo estabelecimento da retórica em língua nacional como eixo compartilhado desde a França, em 1746, até Portugal, 1756. Embora parta de uma renovação da área amalgamada no classicismo renascentista, só se efetiva com a proposta de ampliação e laicização da oferta em meados do século XVIII109. A razão é protagonista desse movimento e a lógica da argumentação procura ordenar línguas locais seja pelo exercício do purismo na localização de referências autênticas, seja pela construção de uma estrutura discursiva modelar o suficiente para a manutenção do entendimento universal. Consoante, a proposta é a de conformação de um discurso que seja a um tempo universal e local, nacional e integrador, inovador e tradicional. Nesse paradoxo da modernidade situamse o poeta-mestre, Manuel Inácio da Silva Alvarenga, e os primeiros estudantes avaliados nos exames de retórica de 1770 em Portugal. Na biblioteca do primeiro encontramos uma retórica clássica e latina, salpicada de influências italianas, francesas e inglesas. Vale destacar que aquele que seria o principal manual da área em meados de 1830 já está presente, em língua francesa - o manual do sermonista escocês Hugh Blair. Nos exames dos segundos, a utilidade e o objetivo da retórica 105
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JULIA, D. A cultura escolar como objeto historico. Revista Brasileira de Historia da Educaçao, Campinas, n. 1, p. 9-44, 2001. BOTO, Carlota, A Escola do Homem Novo: Entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. SP: Ed. UNESP, 1996 FERREIRA, 1813, opt.cit. LEAL, F. L. Plano de estudos elementares. Lisboa: Oficina de João Procópio Correa da Silva, MDCCCI. BURKE, Peter. Linguagens e Comunidades nos Primórdios da Europa Moderna. São Paulo, Unesp, 2010.
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concentram as atenções. Para quê estudar a comunicação oral proposta pela retórica? A resposta é clara, para persuadir. Mas persuadir à quê? Nos parece que essa persuasão seja reflexiva: persuadir da importância da própria retórica, esta entendida como dínamo do polimento do indivíduo, de uma cultura local, de uma utopia iluminista, do progresso da nação que cumpre com o próprio destino, todos elementos construídos no âmbito do próprio discurso, que deverá dizer como esse indivíduo deve ser (ministrando receitas de afetos), quais costumes possui, quais objetivos alcançar e por quais elementos mensurar a distância em relação aos mesmos. Tautológica, é verdade. Hermenêutica, quiçá. Obsoleta, será? Construída em circuitos fechados, com a finalidade de delimitar fronteiras nacionais, a disciplina, baseada no treino da memória, na reconstrução da História e no entendimento da comunicação como a principal finalidade do conhecimento, emerge como escopo do enaltecimento da individualidade, na valorização do homem pela quantidade de seguidores que ele é capaz de mover.
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O perfil dos redatores do periódico O Auxiliador da Indústria Nacional (1833-1896) The profile of newspaper editors O Auxiliador da Indústria Nacional (1833-1896)* Cesar Agenor Fernandes da Silva ** Universidade Católica de Santos
David Francisco de Moura Penteado*** Universidade Católica de Santos
Resumo
Abstract
Na primeira metade do século XIX no Brasil, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, dezenas de periódicos que se propuseram a vulgarizar o conhecimento científico e suas técnicas foram publicados com um objetivo comum: trazer as benesses da civilização para a recém-nascida nação. Entre esses periódicos, foi fundado no ano de 1833, um jornal oriundo dessa tradição que se destacou em sua época por sua longevidade e especificidade na busca pelo melhoramento das técnicas produtivas da nação, seu nome era O Auxiliador da Industria Nacional. Criado como órgão de divulgação da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, o jornal existiu durante sessenta anos, sendo extinto apenas em 1896. Responsáveis pelo periódico estavam um redator e uma comissão normalmente composta por três membros, todos associados a essa sociedade. Buscou-se, no presente artigo, compreender a biografia dos redatores e de outros homens que auxiliariam na feitura do segundo periódico mais duradouro do período. Foi possível realizar um estudo prosopográfico a partir das informações pesquisadas no periódico da Sociedade Auxiliadora, demais publicações do
In the first half of the nineteenth century in Brazil, especially in the city of Rio de Janeiro, dozens of journals that sought to popularize scientific knowledge and its techniques were published with a common goal: a civilizing project for the newborn nation. Among these periodicals was founded in 1833 a newspaper from this tradition that stood out in its time for its longevity and specificity in the search for the improvement of the productive techniques of the nation, its name was O Auxiliador da Indústria Nacional. Created as an organ of dissemination of the Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, the newspaper existed for sixty years and was extinguished only in 1896. Responsible for the periodical was a writer and a committee usually composed of three members, all associated with this association. In this paper, we sought to understand the biographies of writers and other men who assist in making the second most durable periodical of the period. And, from the biographical information researched in the periodic of the Sociedade Auxiliadora, other publications of the period, biographical dictionaries and more recent academic
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A pesquisa que resultou na redação deste artigo contou com apoio do CNPq. Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista – Unesp campus de Franca –, se dedica ao estudo do periodismo oitocentista fluminense, especialmente os que lindavam com conteúdos técnicocientíficos. Professor da Universidade Católica de Santos e da Universidade Metropolitana de Santos.. Graduado em licenciatura em História pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). Foi bolsista PIBIC de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) entre 2014 e 2015. Pela pesquisa que deu origem a este artigo, recebeu o prêmio de melhor apresentação de trabalho de Iniciação Científica na X Jornada de Iniciação Científica e Tecnológica da Universidade Católica de Santos na área Ciência Humanas e Sociais Aplicadas.
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publications, to draw a prosopographic profile of these men. The engineers, doctors, lawyers, teachers and, most prominently, those who composed the state administration and who were the helpers in the publication of the periodic.
Palavras-chave: periodismo; ciência e técnica; Rio de Janeiro.
Keywords: periodism; science and technique; Rio de Janeiro.
● Enviado em: 12/05/2017 ● Aprovado em: 27/06/2017
O estudo prosopográfico nunca é tarefa fácil aos historiadores.1 Contudo, elaborar uma biografia coletiva, traçar um perfil de um grupo, perceber indícios das redes de sociabilidade que ligava homens e mulheres do passado é uma atividade que nos permite compreender de forma mais aprofundada quem eram e quais funções sociais, políticas e econômicas ocupavam os membros de um determinado grupo social. Além disso, podemos perceber o grau de influência deste grupo na sociedade no período estudado. No caso deste artigo, não realizamos um estudo contendo todas as relações variáveis possíveis, sobretudo pela escassez de informações, mas nos dedicamos a traçar um perfil dos redatores do periódico O Auxiliador da Industria Nacional, publicado entre 1833 e 1892 de forma continua.2 Esse jornal foi criado e mantido pela Sociedade Auxiliador da Industria Nacional, cuja existência esteve intimamente ligada ao Governo Imperial brasileiro. São parcas as informações sobre redatores de periódicos oitocentistas brasileiros, pois, em geral, as publicações não traziam informações sobre autoria.3 A preocupação com a 1
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De acordo com Lawrence Stone: “A prosopografia é a investigação das características comuns de um grupo de atores na história por meio de um estudo coletivo de suas vidas. O método empregado constitui-se em estabelecer um universo a ser estudado e então investigar um conjunto de questões uniformes – a respeito de nascimento e morte, casamento e família, origens sociais e posição econômica herdada, lugar de residência, educação, tamanho e origem da riqueza pessoal, ocupação, religião, experiência em cargos e assim por diante. Os vários tipos de informações sobre os indivíduos no universo são então justapostos, combinados e examinados em busca de variáveis significativas. Eles são testados com o objetivo de encontrar tanto correlações internas quanto correlações com outras formas de comportamento ou ação.” STONE, Lawrence. Prosopografia. Revista Sociologia Política, Curitiba, v. 19, n. 39, p.115-137, jun. 2011. Um caso raro de longevidade no periodismo brasileiro oitocentista, cujos jornais duravam por curtos período de tempo ou padeciam “do mal dos sete números”, como foi comentado no próprio período. A Constituição do Império do Brasil de 1824 garantia a liberdade de imprensa, mas, ao publicar, os autores deveriam se responsabilizar pelos escritos. A liberdade tinha limites, não era permitida a calúnia, a difamação e a mentira. A normatização dos crimes de imprensa só foi realizada em 1830, no
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responsabilidade dos autores sobre seus textos no Brasil seguiu um movimento que vinha ocorrendo no Velho Mundo. Na Europa ocidental, do meio para o fim do século XVIII, a preocupação com a questão da autoria começou a se manifestar. O “quem escreve” ou “quem fala” passou a ser um dos objetos de legitimação do próprio texto, de sua autoridade, e a figura do autor passou a ser requisitada, a exercer uma função. A Inglaterra formulou a lei de copyright em 1765. Essa lei também foi criada em outros países do continente no início do século XIX, especialmente pela influência das ações de guerra de Napoleão, pois os territórios ocupados pela França passaram a incorporá-la, como no caso da Itália, em 1810, por decreto de Napoleão.4 Os jornais e o próprio periodismo publicados no Brasil oitocentista, especialmente no Rio de Janeiro, tiveram, entretanto, características distintas em comparação às publicações europeias. O periodismo brasileiro, até meados do século XIX, teve uma marca muito predominante: os magazines ficavam, em sua maioria, sob a responsabilidade de um único redator. Esses redatores dificilmente assinavam seus nomes nos jornais e, quando o faziam, era sob pseudônimo. Quando havia colaboradores fixos ou ocasionais, os textos eram assinados.5 Ao traçarmos este perfil acreditamos que estamos esboçando um quadro que pode contribuir para o preenchimento desta lacuna, ou, então, arriscamo-nos em dizer que existe grande possibilidade deste perfil ser extrapolado para uma boa parte dos autores de magazines que se dedicavam à vulgarização do conhecimento técnico-científico no Brasil oitocentista, especialmente na Corte. Para tanto, iniciaremos este texto descrevendo brevemente a história e as características da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) e seu periódico e, posteriormente, traçaremos o perfil dos redatores, bem como apontaremos indícios que possibilitam a ampliação desse estudo para os demais membros da SAIN.
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Código Criminal do Império. Nesse Código foi definido que o tipografo era o primeiro responsável pelos crimes de abuso cometidos, todavia, se provassem quem eram os autores, se livrariam da culpa. Embora os periódicos na primeira metade do século XIX raramente fossem assinados por seus autores, o universo de escritores nacionais era pequeno e era pouco provável que os autores dos jornais não fossem conhecidos publicamente. O Correio Braziliense noticiou em várias oportunidades a adoção dessa lei em diversas regiões que foram ocupadas pelas tropas napoleônicas. Correio Braziliense ou Armazém Literário,Londres, 18081822. Mesmo nas fichas catalográficas dos magazines elaboradas na Biblioteca Nacional (fruto dos esforços do historiador José Honório Rodrigues, em boa parte) não foi possível encontrar o nome dos redatores. No entanto, em alguns trabalhos historiográficos dispersos, como o trabalho de VIANNA, Hélio. Contribuição a história da imprensa brasileira (1812-1869). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945 (que normalmente tratam de personagens), é possível encontrar a autoria de um ou outro periódico. Dos anos 60 do século XIX em diante, o historiador que se debruçar sobre este tipo de documentação não enfrentará tal problema.
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A SOCIEDADE AUXILIADORA NACIONAL E O SEU PERIÓDICO
O Auxiliador da Indústria Nacional foi um periódico de vulgarização científica que veio à público pela primeira vez em15 de janeiro do ano de 1833, criado por associação civil inaugurada seis anos antes, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional(SAIN) como seu órgão de divulgação. Seu objetivo, em síntese, era o de levar para o público leigo, mas letrado e industrioso, o conhecimento sobre as mais recentes descobertas científicas relativas à inovação tecnológica, que pudessem modernizar a indústria nacional, conceituada sob o trinômio de indústria fabril, agrícola e manufatureira.6 “O Auxiliador da Industria Nacional, ou Coleção de Memorias e Notícias Interessantes aos Fazendeiros, Fabricantes, Artistas, e Classes Industriosas no Brasil, tanto Originais, como traduzidas das Melhores Obras que Neste Gênero se Publicam nos Estados-Unidos, França, Inglaterra, &c.” era seu título completo, e o extenso nome não somente explicitava as temáticas que seriam tratadas pelo periódico como também trazia à tona o instrumento empregado para que se conseguisse auxiliar a indústria nacional, isto é, a tradução das mais variadas espécies de textos, originalmente publicados em periódicos estrangeiros e que pudessem auxiliar os homens laboriosos do Império. A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, por sua vez, uma associação civil de direito privado, havia sido criada com o objetivo de modernizar as técnicas produtivas e impulsionar a introdução de maquinários nas ditas indústrias fabris, mas, especialmente, na indústria agrícola do Império do Brasil.Nascida sob a jurisdição do Ministério dos Negócios do Império, mas, posteriormente, no ano de 1860, transferida para a alçada do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras (MACOP), a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional também existia como um órgão consultivo do Governo Imperial, apesar de sua autonomia administrativa. O sucesso do movimento independentista, poucos anos antes, trouxe à tona a grande desigualdade entre as quase primitivas técnicas brasileiras e aquelas utilizadas em outros países, mesmo entre as nações americanas. Essas dificuldades, com o tempo, se tornaram um problema de Estado para a recém-criada nação. A defasagem tecnológica limitava não somente a capacidade produtiva e os ganhos do país em sua atividade comercial, mas remetia
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O IMPÉRIO do Brazil na Exposição Universal de 1876 em Philadelphia. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1875, p. 315.
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a própria ideia de que naquele início do século XIX o poderio de uma nação estava diretamente relacionado à importância econômica da nação.7 Quer fosse a causa desse problema, o desconhecimento das classes industriais – termo que, na época, também abarcava a indústria agrícola – ou mesmo a falta de interesse na modernização de seus métodos de produção, Ignácio Álvares Pinto de Almeida, o idealizador da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, acreditava que aquela associação, em parceira com o Governo Imperial, poderia ser um caminho para que se solucionasse a deficitária cadeia produtiva brasileira. Um esforço em direção ao progresso nacional através do desenvolvimento tecnológico e econômico.8 Vale aqui uma pequena digressão:a valorização do desenvolvimento econômico foi amplamente inspirada nas ideias contidas nos escritos de Adam Smith, cujas primeiras discussões em torno de suas teorias foram introduzidas no território luso-brasileiro por José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu.9 Para desempenhar ações em busca do referido objetivo, a Auxiliadora, além de contar com o subsídio pecuniário do Governo Imperial, também contava com as mensalidades de seus associados. O ápice no número de associados foi entre 1866 e 1877, com a marca de 1300 sócios, entre perpétuos, honorários, correspondentes e efetivos. Com esse auxílio de tão vultosa quantidade de associados, majoritariamente composta por agricultores e comerciantes, a associação pretendia racionalizar os métodos de produção buscando “quer 7
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Manoel de Oliveira Fausto, nono redator do AIN, asseverava que “já se não calcula o poder das nações pelo número dos seus soldados, pela organização dos seus exércitos, ou pela força de sua artilheira, mas sim pela importância de seus capitães, e pela natureza de suas instituições econômicas: e pôde-se dizer que só os povos ricos é que são poderosos”. In: O Auxiliador da Indústria Nacional, Segunda Nova Série, n. 1, 1854, v. IV, p. 6. Discurso de inauguração da SAIN por Ignácio: “Reconhecendo, meus Srs., que ser um dever do Cidadão, que ama sua Pátria, prestar, quanto cabe em suas forças, todos os ofícios, que possam cooperar para a felicidade Nacional; e convencido de que nenhum País floresce, e se felicita sem Industria, por ser ela o móvel principal da prosperidade, e da riqueza, tanto pública, como particular de uma Nação culta, e realmente independente; convencido igualmente de que os Maquinismos são poderosos auxiliadores da Industria, cujos benéficos resultados se derramam sobre todas as classes da Sociedade, e desejando por tanto conciliar estes princípios de verdade incontrastável a benefício do Brasil, que me deu o berço, e onde a Industria sufocada por mais de três séculos, demanda todos os socorros, eu trabalho desde 1820 para que se crie entre nós esta Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional, cujo fim principal é auxiliar a indústria, mormente pelo que respeita à aquisição de Maquinismos, que, expostos ás visitas do Público, façam-se conhecidos, possam ser copiados, e desafiem o interesses dos nossos Agricultores, e dos nossos Artistas: para que por meio delas consigam minorar os trabalhos de mão d’obra, obtendo ao mesmo tempo com mais facilidade, perfeição, e menos despesas maior soma de produtos.” ALMEIDA, Ignacio Alvares Pinto de. Discurso que no Faustíssimo dia 19 de Outubro de 1827, em que foi installada a Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional recitou Ignacio Alvares Pinto de Almeida. Rio de Janeiro: Typographia Imperial e Nacional, 1828, p. 3 apud BARRETO, Patrícia Regina Corrêa. Op. cit., 192f. Silva Lisboa, mais conhecido como Visconde de Cairu, foi um dos intelectuais nascidos no Brasil que mais textos, traduções, panfletos e periódicos produziu, no período joanino. No entanto, convém esclarecer que sua produção, sobretudo no campo jurídico e na área da economia política, teve uma boa recepção no universo acadêmico lusitano em um período anterior à transferência da Corte. Os seus dois primeiros livros (Princípios de direito Mercantil e leis da Marinha, de 1798, e Princípios de Economia Política, de 1804) faziam parte da bibliografia lida na Universidade de Coimbra.
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relativamente a qualidade quer a quantidade”,10 mas que fosse capaz de transformar o primitivo cenário no qual o Brasil se encontrava. O periódico da Associação, em seu primeiro número, deixou claro aos seus leitores esses objetivos: Este Império, que a natureza nos apresentara rústico, precisa dos ornatos da civilização; os tijupares de pendula devem tornar-se em elegantes e cômodas habitações; os matos embrenhados, em fazendas de uma cultura perfeita; os rios empecidos, em canais de franca navegação; as apenas praticáveis veredas, em fáceis e seguras estradas; os toscos teares, em máquinas perfeitíssimas; enfim é do nosso dever, quanto esteja da nossa parte, enfeitar o que achamos gentil, é verdade, porém meio nu, e desalinhado.11
Entre as principais atividades realizadas pela Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional durante sua existência estiveram a distribuição de sementes12 e animais,13 a responsabilidade pela aprovação de pedidos de privilégios,14 a realização de concurso de memórias15 e produtos agrícolas,16a organização e preparação para Exposições Nacionais e Internacionais17 e a publicação de Manuais Agrícolas.18 Outro célebre empreendimento foi a 10 11 12
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O Auxiliador da Indústria Nacional, Nova Série, n. 1, 1851, v. VI, p. V. O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 1, 1833, v. 1, p. 12-13. Desde seus primeiros anos, a SAIN se dedicou em importar sementes de outros países e distribuir entre agricultores ou presidentes de províncias, para que eles fizessem esse trabalho, com o objetivo de promover o cultivo de novas culturas. Havia, inclusive, um modelo de formulário presente na edição do AIN de 1852 para agricultores se inscreverem para o recebimento dessas sementes. Apesar de não ter sido uma atividade realizada com frequências, aliás, apenas encontrei uma única vez em que isso ocorreu, ainda assim foi essa uma atividade empreendida por ela. Em 1860, simultaneamente a publicação do “Manual do Tratamento dos Porcos”, que também foi publicado AIN daquele ano, a Seção de Melhoramentos das Raças Animais propôs que se importassem porcos da raça Berkshire para o Brasil, ver: O Auxiliador da Indústria Nacional, SegundaNova Série, n. 12, 1860, v. VIII, p. 446. Os privilégios eram concessões dadas pelo Estado brasileiro, durante o Governo Imperial, para a exploração exclusivista de determinada atividade econômica durante um pré-determinado período de tempo. Até sua extinção no ano de 1850, cabia a Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação do Império do Brasil a incumbência de analisar petições por privilégios. A partir dessa data, a SAIN passou a ser responsável por esses pedidos. Com início em 1837, a SAIN passou a ofertar premiações para quem enviasse os melhores textos relacionados ao melhoramento da indústria nacional. Raimundo Matos da Costa, primeiro-secretário da SAIN à época, anunciou com animação o início desses concursos: “Ainda há mais, Senhores! A Sociedade apresentou ao Brasil a prova do seu patriotismo estabelecendo prêmios pecuniários, e medalhas de honra às pessoas que melhor satisfizerem aos artigos do programa que foi organizado acerca de diversos vamos da Industria Nacional”. In: O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 9, 1837, v. V, p. 273. Os concursos de agricultura, realizados pela SAIN desde seus primeiros anos, ofertavam premiações para os melhores produtos colhidos, melhores pesticidas, etc.; como 50$000 réis para quem extraísse azeite da semente do chá e a mesma quantia para quem apresentasse o remédio contra a peste em aves domésticas. Para o concurso de 1837, ver: O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 1, 1837, v. V, p. 7. A SAIN foi responsável pelas Exposições Nacionais e pelos preparativos brasileiros para as Exposições Universais e Internacionais. Entre as tarefas empreendidas por ela esteve a tarefa de analisar a possibilidade de participação brasileira nas exposições estrangeiras e avaliar os objetos que seriam expostos. Os Manuais Agrícolas foram publicações avulsas editadas e vendidas pela SAIN paralelamente ao AIN. O primeiro foi o Cathecismo de Agricultura em 1838, mas muitos outros se seguiram. As publicações desses Manuais tiveram seu auge durante o período de Frederico Leopoldo César Burlamaque na da redação do seu periódico, quando vários desses manuais de sua autoria foram publicados.
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criação de duas escolas: a Escola Noturna de Instrução Primária para Adultos e a Escola Industrial. Primeiramente idealizadas por Joaquim Antônio de Azevedo, 19 começaram a funcionar a partir do ano de 1871. Não somente o Brasil carecia de instrução, técnicas produtivas compassadas com os mais recentes avanços científicos como também carecia de instituições. Almejava essa sociedade instruir os homens industriosos e agricultores, que estavam “presos à fatal rotina em que foram educados” e oferecia para eles o conhecimento técnico-científico necessário “para alívio de seus braços e progresso de suas industrias”.20 Ela também surgia como uma fonte de instrução per se, pois a associação também fazia parte da tradição europeia do associativismo científico, fortemente influenciada pelo Iluminismo.21 O patriotismo dos seus associados também não pode ser olvidado, pois o objetivo último daquela associação era o desenvolvimento econômico do Império do Brasil. “O melhoramento de qualquer ramo de agricultura e de indústria”, escreveu frei José Mariano da Conceição Velloso em um artigo republicado nas páginas do periódico da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, “[...] quando aprofunda o seu conhecimento, acha ser sinônimo da melhoria de um Estado, da sua riqueza e da comodidade dos seus habitantes”.22 Não obstante, no centro das atividades empreendidas pela Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, além das outras já mencionadas, estava seu órgão de divulgação, O Auxiliador da Indústria Nacional.23Uma década após seu lançamento, o redator e secretário perpétuo Emílio Joaquim da Silva Maia afirmaria que o periódico era a mais importante realização da Sociedade Auxiliadora. Escreveu Emílio Maia, que “quando a Sociedade Auxiliadora mais nada tivesse feito, bastava só a impressão deste seu periódico para ter rendido ao país relevantes serviços”,24 tamanha era a importância de sua publicação para a associação.
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Joaquim Antônio de Azevedo foi um dos sócios mais importantes da SAIN. Além de ter sido o principal responsável pela criação das referidas escolas, presidente interino por várias ocasiões, ter redigido o AIN em 1876 quando o redator à época, Nicolau Joaquim Moreira, esteve ausente, participou de várias comissões e outros cargos, sendo ume sócio bem ativo. Foi chamado de “segundo Ignácio Alvares”, em referência ao criador da SAIN. Sobre esse comentário, ver: O Auxiliador da Indústria Nacional, SegundaNova Série, n. 6, 1886, v. LIV, p. 123. O Auxiliador da Indústria Nacional, SegundaNova Série, n. 1, 1869, v. XXIV, p. I-II. DOMINGUES, H. M. B. A Ideia de Progresso no Processo De Institucionalização Nacional Das Ciências No Brasil: A Sociedade Auxiliadora Da Indústria Nacional. Asclepio, Vol. XLVIII, 2, 1996, p. 149-162. O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 11, 1841, v. IX, p. 321. Além da edição e publicação do AIN, a SAIN ainda se dedicou em importar e vender periódicos estrangeiros no Brasil, como foi o caso com o Journal dês Connaissances Utiles no ano de 1837. Ver: O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 3, 1837, v. V, p. 66-7. O Auxiliador da Indústria Nacional, Nova Série, n. 7, 1846, v. I, p. 7.
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No Brasil oitocentista, a publicação d’O Auxiliador da Indústria Nacional foi a segunda mais exitosa e longeva dessa espécie, mantendo-se em circulação durante mais de seis décadas e somente sendo ultrapassada pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, publicada até os presentes dias. O seu encerramento ocorreu em dois momentos: pela vez primeira no ano de 1892, quando o Congresso Nacional sob o então novo Governo Republicano decidiu cortar o subsídio fornecido à Sociedade Auxiliadora, e que era utilizado para a manutenção do periódico e dos outros empreendimentos da sociedade; e, posteriormente, no ano de 1896, quando o jornal havia sido relançado no mesmo ano, em edições trimestrais, mas foi novamente encerrado após uma única edição sem quaisquer explicações. A própria Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional não continuou a existir por muito tempo após o fim de seu periódico.25 Apesar de tentativas no início do novo século para reanima-la, como no ano de 1900, quando seus antigos associados se reuniram para propor a criação de uma associação voltada unicamente para os interesses industriais e reiniciar a publicação do periódico, e mesmo tendo conseguido uma resposta positiva por parte do Governo Republicano para o fornecimento de subsídio, “nada de concreto se efetivou por parte do novo regime”.26 Hipótese aqui levantada também é a de que a imagem da Sociedade esteve sempre associada ao Império, inclusive a presença do Imperador D. Pedro II era comum nas exposições de novos maquinários apresentados na sede da SAIN, 27 o que no novo contexto republicano representava um grande problema. Diante das dificuldades para reerguer a Sociedade Auxiliadora, antigos associados criaram e migraram para o Centro Industrial do Brasil (CIB), fundado em 10 de agosto de 1904. Uma associação criada a partir da fusão da SAIN e do Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão e destinada a ser órgão de classe para defender os interesses das indústrias. Após muitas alterações, o Centro Industrial do Brasil acabou por se tornar a Federação Industrial do Rio de Janeiro (FIRJAN). A publicação periódica voltada a temáticas científicas não era novidade em terras brasileiras, essa espécie de publicação já havia aparecido pela primeira vez com As Variedades ou Ensaios de Literatura (1812 - 1813), na província da Bahia, e pouco tempo depois com O Patriota: Jornal Litterario, Político, Mercantil &c. (1813 - 1814), no Rio de Janeiro. Seguiram-se a esses dois jornais muitas outras publicações voltadas ao mesmo propósito: vulgarizar a 25
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WEID, Elisabeth von der. Apontamentos para a História do Centro Industrial do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Portinho Cavalcanti, 1977. Ibid. DANTES, Maria Amélia M (org). Espaços da ciência no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocurz, 2001.
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ciência. Até o ano de lançamento d’O Auxiliador da Indústria Nacional, foram lançados no município neutro os Annaes Fluminense de Sciencias, Artes e Litteratura (1822), Jornal Scientifico, Economico e Litterario (1826) e o Beija-Flor: Annaes Brasileiros de Sciencia, Politica, Litteratura... (1830 - 1831). Ao longo do século XIX, foram criados cerca de sete mil periódicos no Brasil, dos quais aproximadamente trezentos relacionados de alguma forma às ciências.28 Apesar de herdeiro dessa tradição periódica, O Auxiliador da Indústria Nacional distinguiu-se dessas demais publicações pela especificidade das temáticas abordadas em suas páginas. Ao contrário dos outros jornais mencionados, o periódico da Auxiliadora não se obstinava a vulgarizar toda forma e espécie de conhecimento para a população geral, tanto porque nem buscava ele ser lido por toda população, mas por aqueles responsáveis pela cadeia produtiva brasileira. A indústria que se propunha a auxiliar não corresponde ao seu significado contemporâneo, mas a “arte, destreza, para granjear a vida, engenho, traça, em lavrar e fazer obras mecânicas”.29 Ainda mais preciso foi José da Silva Lisboa (1756 – 1835), o Visconde de Cairu, conceituando Indústria como um termo usualmente mais empregado “ao trabalho engenhoso, que executa com algum considerável grau de inteligência, para se distinguir do mero grosseiro trabalho braçal”.30 Os temas dos artigos publicados nas páginas d’O Auxiliador, mesmo fora da seção de Variedades, eram extraordinariamente diversos. Em uma amostra de suas quatro primeiras décadas se encontram seções de correspondência, agricultura, medicina doméstica, economia doméstica, Indústria e artes, publicações literárias, medicina prática, horticultura, economia agrícola, medicina doméstica, economia usual, economia rural, economia, medicina veterinária, bichos da seda, chá, economia industrial, arboricultura, arte veterinária, higiene pública, memória, entomologia, indústria fabril, indústria sérica, indústria agrícola e indústria. O periódico abrigou uma gama variada de artigos originais e traduções que versavam sobre técnicas agrícolas, instruções para construção de maquinários, criação de animais, notícias sobre a descoberta de novos avanços que fossem relevantes à indústria nacional e mesmo de receitas aplicáveis ao uso comum. Outras temáticas, muitas vezes traduzidos de
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MOREIRA, Ildeu de Castro; MASSARANI, Luisa. Aspectos históricos da divulgação científica no Brasil. In: MASSARANI, Luisa; Ildeu de Castro Moreia; Fatima Brito (Org.). Ciência e público: caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Ciência - Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fórum da Ciência e Cultura, 2002, p. 46. SILVA, Antonio de Morais. Dicionário de Língua Portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813, T.1. Verbete: indústria. LISBOA, José da Silva. Observações sobre a franqueza da indústria e estabelecimento de fábricas no Brasil. Rio de janeiro: Impressão Régia, 1810. Por ordem de sua alteza real. In: ROCHA, Antonio Penalves. ROCHA, Antonio Penalves (org. e introd.) José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu. São Paulo: Ed. 34, 2001, p.222 (Coleção Formadores do Brasil).
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periódicos estrangeiros, versavam sobre fertilizantes, o cultivo de café, algodão, tabaco, açúcar, mandioca; a fabricação de produtos de origem animal e vegetal, velas; a conservação de produtos agrícolas diversos e mesmo de utensílios domésticos. Além de promover a utilização de maquinismos e técnicas desenvolvidas à luz de métodos científicos para serem aplicadas nas atividades produtivas do Império. Os sessenta de anos publicação não passaram incólumes para as temáticas de textos publicados n’O Auxiliador. A temática das publicações, apesar de sempre diversa e abrangendo um grande espectro de assuntos, por vezes sofreram mudanças em suas tendências. A primeira – e talvez também a única alteração realmente profunda – aconteceu com a entrada de Nicolau Joaquim Moreira na redação do periódico, no ano de 1866, quando os temas relacionados a atividade de agricultura perderam seu lugar de destaque para artigos que abordavam maquinários, balança comercial, economia e outros temas mais vinculas a indústria fabril. A trajetória desse periódico contempla, em uma estimava, 26700 páginas publicadas,31 721 números32 e 61 edições, que compilavam os números publicados de cada ano findo. Lançado em edições mensais durante a maior parte de sua existência,33. A edição e edição d’O Auxiliador da Indústria Nacional sempre foi de responsabilidade de um associado da SAIN. Em sua trajetória, foram responsáveis pelo periódico doze redatores, juntamente com vinte e nove membros na comissão de redação – homens que sempre foram sócios efetivos da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional.34 Os nomes dos redatores35 d’O Auxiliador da Indústria Nacional, entretanto, dificilmente estavam explícitos nas páginas do periódico. Por ser o órgão de divulgação de uma associação, a contribuição e reconhecimento do redator muitas vezes esteve sublimada diante de seu aspecto institucional. Somente na edição do ano de 1848 o nome do redator apareceu pela primeira vez apresentado em seu frontispício, e apenas esporadicamente retornou a ser
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O cálculo dessa estimativa foi feito com base nos seguintes números: A média de páginas para cada edição do AIN até 1878 é de 500 folhas. Após essa data, essa média caiu para trezenas folhas por edição. Assim, 22500 foram a média de páginas pré-1878 e a partir dela 4500. Somou-se o número médio de folhas para esses dos períodos e chegou-se a esse número. Doze números de sessenta edições anuais mais o último número da edição de 1896. Entretanto, menciono que alguns anos o AIN publicou mais que doze números a cada edição anual. Durante o relançamento do AIN em 1896, ele passou a ser publicado em edições trimestrais. Ver: O Auxiliador da Indústria Nacional, SegundaNova Série, n. 1, 1896, v. LXI, p. 70. Existiram quatro tipos sócios na SAIN: (1) o sócio efetivo, (2) sócio correspondente, (3) sócio honorário e (4) o sócio perpétuo, apesar do Estatuto de 1831 apenas mencionar os três primeiros. Além desses quatro, havia o chamado sócio subscritor, que eram aqueles que faziam a assinatura anual do AIN. A definição empregada de redator neste trabalho é a de aquele responsável pela edição do periódico, decidindo quais textos vão compor a sua edição e sob quais formas. Optei por manter o temo redator por ser aquele utilizado pela SAIN, apesar de muitas outras pessoas redigirem para o jornal.
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exposto da mesma maneira. No restante desse tempo, o nome do redator somente era apresentado entre as atas das sessões do conselho da Sociedade Auxiliadora e se limitando-a referências indiretas. No período anterior, só foi possível conhecer o nome dos redatores por meio de menções nas atas das sessões e, ainda mais raramente, nas listas dos associados que compunham o Conselho Administrativo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, listas essas que eram frequentemente publicadas nas páginas de seu órgão de divulgação. Por causada imprecisão dessas informações, por vezes ficaram dúbias as datas de entrada e saída de cada redator. Nas listas de membros do Conselho Administrativo, eram publicados os membros das muitas comissões e os ocupantes dos cargos administrativos da Sociedade. Esses sócios eram eleitos pelos demais membros para um mandato de um ano,36 e só podiam ser eleitos para esses cargos os sócios efetivos.37 Em um primeiro momento, votavam nessa eleição trinta membros do conselho escolhidos dentre todos os sócios efetivos em Assembleia Geral, que eram escolhidos por indicação de outros sócios efetivos e escrutinados em Assembleia Geral.38 A primeira lista do Conselho Administrativo da Sociedade Auxiliadora foi publicada nas páginas do periódico em seu oitavo número, em 1833. A comissão responsável pela administração d’O Auxiliador era a Comissão de Redação de Jornais, Programas, e revisão de memorias. O nome dessa comissão, no entanto, sofreria alterações com o tempo. Estranhamente o redator responsável pelo jornal apenas esteve entre seus membros durante pouquíssimas ocasiões, assim como a função de redator não aparentou estar sempre sujeita às eleições.39 Em outras palavras, a comissão pareceu exercer um papel secundário na administração da publicação.40
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Nas primeiras edições d’O Auxiliador da Indústria Nacional, esse processo era frequentemente descrito antes da publicação das listas dos membros que compunham, naquele período, o conselho. O Auxiliador da Indústria Nacional, Nova Série, n. 6, 1851, v. VI, p. 196. ESTATUTOS da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Rio de Janeiro: Typographya Austral, 1838, p. 9-10; 11. Na sessão n. º 162 do conselho da Sociedade, realizado dia 27 de julho de 1837, foi criada uma emenda para um dos artigos do Estatuto da SAIN, em que se previa a situação do redator não fosse nem mesmo membro do Conselho Administrativo. Na reforma estatuária do ano de 1847, a função de redator do periódico apareceu como vinculada às tarefas do secretário perpétuo. Essa vinculação, no entanto, durante seu curto período de duração – ela foi alterada em 1849 – dificilmente era efetivada. Apenas Emílio Joaquim da Silva Maia foi redator em decorrência de sua posição como secretário perpétuo. O outro secretário perpétuo eleito durante a vigência dessa reforma pediu autorização do Conselho Administrativo para contratar outro redator para seu lugar.Ver: O Auxiliador da Indústria Nacional, Nova Série, n. 5, 1847, v. II, p. 200-8, O Auxiliador da Indústria Nacional, Nova Série, n. 4, 1849, v. IV, p. 156.
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As atribuições da comissão responsável pelo jornal eram de certa forma obscuras, já que não foram descritas nas páginas do periódico. Por meio das atas das sessões, porém, foi possível saber duas das tarefas que eram assiduamente incumbidas aos membros dessa comissão: a primeira era a de analisar e redigir os estatutos da Sociedade, que frequentemente sofriam alterações. Em segundo lugar, a tarefa de analisar as memórias e outros textos enviados para publicação no jornal, uma atividade que ocorria com bastante frequência, pois muitos sócios enviavam seus textos para O Auxiliador,41 uma prática que também era bastante incentivada pelos redatores para os assinantes.42
OS REDATORES
De acordo com os registros para o ano de 1833, a data de lançamento do periódico, sabemos que o primeiro redator d’O Auxiliador da Indústria Nacional foi Januário da Cunha Barbosa (1780-1846),43 que também ocupava o cargo de Secretário Adjunto da Sociedade Auxiliadora no período de lançamento do jornal. Ao seu lado, também na Comissão de Redação de Jornais, Programas, e revisão de memorias, estavam o frei Custódio Alves Serrão (17991873) e o conselheiro Balthazar da Silva Lisboa (1761-1840).44 Os redatores desempenharam um papel mais longevo e relevante na administração e condução d’O Auxiliador da Indústria Nacional do que os membros da referida comissão. Eram eles responsáveis pelos artigos que seriam publicados, as suas traduções, respondiam cartas de leitores e alguns deles redigiam textos originais para o periódico. Foram redatores Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), João Maria Barbosa (?-1848), Manoel Ferreira Lagos (18161871), Lino Antônio Rebello (?-1857), Emílio Joaquim da Silva Maia (1808-1859), Pedro de Alcântara Lisboa (?-1885), Miguel Joaquim Pereira de Sá (s/d), Berthold Goldschmidt (18171893), Manoel de Oliveira Fausto (1854-1857), Frederico Leopoldo César Burlamaque (18031866), Nicolau Joaquim Moreira (1824-1894) e Domingos Sérgio de Carvalho (1861-1924). A 41 42
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O Auxiliador da Indústria Nacional, Nova Série, n. 3, 1846, v. I, p. 80. Frequentemente eram publicados avisos nas páginas d’O Auxiliador pedindo para quem tivessem recebidos sementes da SAIN enviassem memórias com descrições sobre os resultados. E.g. “[...] aos Srs. Fazendeiros, que receberem sementes, que nos digam em tempo quais os resultados que obtiverem”. In: O Auxiliador da Indústria Nacional, SegundaNova Série, n. 2, 1853, v. II, p. 33. O pedido também se estendia para seus subscritores, “As pessoas que quiserem publicar artigos, observações e notícias que possam de alguma sorte interessar à lavoura, artes ou ofícios do Brasil, devem-se dirigir ao redator [...]”, In: O Auxiliador da Indústria Nacional, SegundaNova Série, n. 7, 1854, v. II. No décimo primeiro número do AIN do ano de 1833, em um artigo intitulado “Carta dirigida ao Secretário da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional, pelo Redactor deste Periodico”, Januário da Cunha Barbosa se identificou como o redator do periódico, ver: O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 11, 1833, v. 1, p. 1. O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 8, 1833, v. I, p. 19.
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partir da Tabela 1 conseguimos traçar o período no qual estes homens exerceram, a naturalidade, bem como suas ocupações e formações.
Tabela 1 – Redatores do periódico O Auxiliador da Indústria Nacional com suas respectivas naturalidades, ocupações e diplomações.
PERÍODO 1833 -1837; 1843 - 1846
REDATOR Januário da Cunha Barbosa
NATURALIDADE Rio de Janeiro, Brasil
1837 - 1840
João Maria Barbosa
Portugal
1840 - 1842
Manoel Ferreira Lagos
Rio de Janeiro, Brasil
1843
Lino Antônio Rebello
Buenos Aires, Argentina
1846 - 1849
Emílio Joaquim da Silva Maia
Bahia, Brasil
1849 - 1850
Pedro de Alcântara Lisboa Miguel Joaquim Pereira de Sá
Rio de Janeiro, Brasil
1851 - 1854
Berthold Goldschmidt
1854 - 1857
Manoel de Oliveira Fausto
Grão-Ducado de Posen, Prússia Desconhecido, possivelmente Brasil
1857 - 1866
Frederico Leopoldo César Burlamaque
Portugal4546
1866 - 1892
Nicolau Joaquim Moreira
Rio de Janeiro, Brasil
1896
Domingos Sérgio de Carvalho
Brasil
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Maranhão, Brasil
OCUPAÇÃO E FORMAÇÃO Deputado, professor (lente), cônego, jornalista e diretor da Biblioteca Nacional. Frei, padre e professor (lente). Diretor de seção do Museu Nacional, médico e pesquisador. Professor, médico, doutor em Filosofia e funcionário da tesouraria de Minas Gerais. Médico, professor (lente), diretor de seção do Museu Nacional e vereador. Engenheiro químico e professor. Doutor em Matemática e funcionário do Tesouro Nacional. Professor e médico homeopata. Advogado e funcionário da Secretaria de Instrução Pública. Professor (lente), engenheiro, militar e diretor do Museu Nacional. Intendente, Diretor do Jardim Botânico e subdiretor do Museu Nacional. Engenheiro agrônomo, professor do Museu Nacional e funcionário do MAIC.47
No texto Elogio Histórico, publicado no jornal da Sociedade em sua homenagem na ocasião de sua morte, foi dito que Frederico tem “por berço essa orla occidental da península ibérica, que admirada prezenciara os heróicos feitos de Viriatus, e estaziada embalara o grande gênio de Camões”. In: O Auxiliador da Indústria Nacional, Segunda Nova Série, n. 6, 1866, v. XXI, p. 210-11. Innocencio Francisco da Silva, autor do Diccionario Bibliographico Portuguez e Augusto Victorino Alves Sacramento Blake, autor do Dicionário Bibliographico Brazileiro afirmam que Frederico Leopoldo César Burlamaque nasceu cidade de Oeiras, na província do Piauí. Essa informação, inclusive, foi seguida por trabalhos contemporâneos acerca de Burlamaque. Para esta pesquisa, contudo, foi preferida a naturalidade de Burlamaque contada pelas páginas do AIN, que afirma que seu nascimento foi em Portugal. Sobre a posição de Innocencio, ver: SILVA, Innocencio Francisco da. Diccionário Bibliographico Portuguez: estudos applicaveis a Portugal e Brazil. Lisboa: Imprensa Nacional, 1858, t. 9, p. 403. Sobre Blake, ver: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. 5.v. Dicionário Bibliographico Brazileiro. 7.v. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, t. 3, p. 160-3. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.
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Os redatores d’O Auxiliador da Indústria Nacional não eram, majoritariamente, homens notórios na Política ou largamente honrados pelo Estado brasileiro, assim como os componentes das comissões. Entre os redatores se destacaram por sua atividade política nomes como o do seu primeiro redator, Januário da Cunha Barbosa e Nicolau Joaquim Moreira. Januário, o mais proeminente, teve relevante participação durante o movimento independentista brasileiro e na consolidação do Brasil como uma nação independente. Tendo sido, inclusive, exilado por causa de desavenças com a política de Dom Pedro I.48 Januário também foi deputado na primeira Assembleia Legislativa do Brasil, entre os anos de 1826 e 1829, pela Província do Rio de Janeiro, e ainda assumiu um segundo mandato no ano de 1845.49 Outro que também teve destaque foi Nicolau Joaquim Moreira, que exerceu o cargo de presidente da Intendência da Capital Federal entre os anos de 1891 e 1892.50 A maioria dos redatores seguintes, entretanto, devido à escassa biografia de alguns deles, não conseguimos registro de participaçãoem alguma atividade política. A exceção foi o de Emílio Joaquim da Silva Maia, que foi vereador entre os anos de 1841 e 1844; mas, como comentado por seu amigo Joaquim Manoel de Macedo,51 esse evento teve sua relevância subestimada. Manoel Ferreira Lagos, Emílio Joaquim da Silva Maia e Frederico Leopoldo César Burlamaque, para mencionar três dos redatores mais proeminentes de acordo com a presente historiografia (com a exceção de Januário da Cunha Barbosa), são reconhecidos majoritariamente por suas atividades científicas. O primeiro, pelo seu trabalho em zoologia no Museu Nacional e por organizar e participar da Comissão Científica de Exploração do norte do Império (janeiro de 1859 até julho de 1861). 52 O segundo, Emílio Joaquim da Silva Maia, por
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BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. 5.v. Dicionário Bibliographico Brazileiro. 7.v. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, t. 3, p. 294-5. PEREIRA NETO, J. A memória biográfica do cônego Januário da Cunha Barbosa. In: Encontro Regional de História da ANPUH-Rio, 2012, São Gonçalo. A memória biográfica do cônego Januário da Cunha Barbosa, 2012. p. 1-10. De acordo com a biografia de Nicolau Joaquim Moreira publicada nas páginas AIN, ele foi intendente do Rio de Janeiro no ano de 1894. “Quem o buscava ia lá na seara do sábio, e tinha a certeza de achar o constante e desvelado lavrador manejando o arado da Ciência”, escreveu Macedo. In: MACEDO, Joaquim Manoel de. Discurso do Orador do Instituto Histórico o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t. 22, 1859. p. 704-712. Composta por Francisco Freire Alemão (Botânica); Guilherme Schüch de Capanema (Geológica e Mineralógica); Manoel Ferreira Lagos (Zoológica); Giacomo Raja Gabaglia (Astronômica e Geográfica) e Antônio Gonçalves Dias (Etnográfica e Narrativa da Viagem), a Comissão Científica de Exploração, uma viagem técnico-científica ao interior do país, realizou pesquisas nas áreas de botânica, geologia, mineralogia, zoologia, astronomia, geografia e etnografia em todo o território do Ceará e arredores. Cf. PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Comissão das borboletas: a ciência do Império entre o Ceará e a corte (1856-1867). Fortaleza: Museu do Ceará/Secult. 2003.
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suas publicações relativas a atividade médica,53 mas também em zoologia, muitos desses textos foram publicados na Revista Médica Fluminense (1835-1841), a Revista Médica Brasileira (1841-1843) e os Anais de Medicina Brasiliense (1845-1849).54 Além da medicina, Emílio Maia também possuía publicações sobre zoologia, história e sanitarismo.55 E o terceiro, Frederico Leopoldo César Burlamaque, pela administração do Museu Nacional e suas contribuições para a paleontologia, considerado um dos principais e pioneiros trabalhos da paleontologia brasileira.56 Publicou também uma monografia sobre mamíferos pleistocênicos no ano de 1855.57 Esses homens, apesar do destaque obtido em suas respectivas áreas científicas, não deixaram de estar vinculados ao Estado brasileiro, começando pela própria Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, um órgão consultivo, embora estivessem fora de sua administração. Januário da Cunha Barbosa, além de sua carreira política, foi nomeado pregador régio – Cônego – na Capela Real (posteriormente Capela Imperial) do Rio de Janeiro e para o Hábito da Ordem de Cristo. Com vinte e oito anos de idade, foi admitido como substituto na cadeira de Filosofia Racional e Moral e para o pró-comissariado na Ordem Terceira dos Mínimos.58 João Maria Barbosa, além de padre e frei,59 foi professor da Academia Militar.60 Manoel Ferreira Lagos, assim como muitos outros redatores, foi funcionário do Museu Nacional, mas também ocupou o posto de oficial-arquivista da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros.61 Lino Antônio Rebello próximo ao fim de sua vida, foi funcionário da 53
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GARCIA, Lucia Maria Cruz. Emílio Joaquim da Silva Maia: um intelectual no Império do Brasil. 2004. 106 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. A Revista Médica Fluminense, publicada entre os anos de 1835 e 1841, foi o nome da segunda publicação patrocinada pela Sociedade Médica do Rio de Janeiro (posteriormente Academia Imperial de Medicina). Em maio de 1841 a revista passou a se chamar Revista Médica Brasileira e continuou a ser publicada até 1843. Mais à frente, em 1845, foi lançada pela mesma Academia os Anais de Medicina Brasiliense, que depois passaram a se chamar Annaes Brasilienses de Medicina em 1849. Cf. DEALENCASTRO, R. B.; SANTOS, Nadja P. dos; PINTO, Angelo da C. Periódicos Brasileiros no Século XIX – Publicações na Área da Química. In: 1o. Congresso Luso-brasileiro de História da Ciência e da Técnica, 2000, Évora. Livro de Resumos, 2000. v. 000. p. 87-88. BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. 5.v. Dicionário Bibliographico Brazileiro. 7.v. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, t. 2, p. 272-4. Sobre a atuação de Burlamaque no Museu Nacional e os avanços na paleontologia, ver EWBANK, C. O.; FERNANDES, A. C. S.; SILVA, M. J. E.; HENRIQUES, D. D. R. Uma lembrança de infância: os 'fósseis colossais' e o papel de Frederico Leopoldo César Burlamaque como paleontólogo brasileiro. Filosofia e História da Biologia, v. 5, p. 239-259, 2010. MARTINEZ, Paulo Henrique. A nação pela pedra: coleções de paleontologia no Brasil, 1836-1844. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, n. 4, p. 1155-1170, Dec. 2012. BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. 5.v. Dicionário Bibliographico Brazileiro. 7.v. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899, t. 3, p. 294-5. O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 1, 1838, v. VI, p. 47. O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 1, 1838, v. VI, p. 34-5. PACHECO, J. F. Manoel Ferreira Lagos (1817-1871): Dados biográficos do segundo zoólogo do Museu Nacional. Atualidades Ornitológicas, Ivaiporã, v. 68, p. 12-13, 1995
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tesouraria da Província de Minas Gerais.62 Emílio Joaquim da Silva Maia foi professor do Imperial Colégio Pedro II63 e também funcionário do Museu Nacional.64 Pedro de Alcântara Lisboa foi professor da Escola Normal da Província do Rio de Janeiro.65 Miguel Joaquim Pereira de Sá foi funcionário do Tesouro Nacional.66 Berthold Goldschmidt trabalhou como professor no Imperial Colégio Pedro II. Manoel de Oliveira Fausto, além de advogado, 67 foi funcionário da Secretaria de Instrução Pública.68 E Frederico Leopoldo César Burlamaque, que ingressou na carreira militar ainda jovem, se reformou com a patente de Brigadeiro; 69 mas, além dessa função, também ocupou importantes cargos nas instituições destinadas às ciências e educação do Estado brasileiro, como de diretor do Museu Nacional (1847-1866), do Jardim Botânico (1861-1862), Lente na Escola Militar (a partir de 1846), professor de geologia na Escola de Aplicação do Exército.70 Quanto ao seu último redator, Domingos Sérgio de Carvalho (1896), que apenas participou d’O Auxiliador durante uma edição e curtíssimo período de tempo, sua caracterização é mais difícil. Dado a pouquíssima biografia encontrada a seu respeito, não foi possível saber o quão representativo foram seus trabalhos no Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC)71 e Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN) em comparação ao restante de suas atividades. Dificultando, dessa forma, a construção de um perfil.72 62
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Foram quatro as nacionalidades dos redatores d’O Auxiliador da Indústria Nacional. A maioria deles, oito do total de doze redatores, eram brasileiros; e, dentre esses, metade são sabidos terem nascido no município neutro do Rio de Janeiro. Dos quatro redatores que não eram naturais do Brasil, dois eram portugueses, um argentino e um prussiano. Quer seja pela maior sobrevivência de documentos impressos relacionados ao Estado, o controle empreendido por essa instituição nas mais diversas áreas da sociedade ou por uma real tendência desses homens em se afiliar com instituições governamentais, são pouquíssimos os registros de suas atividades não vinculadas ao Estado brasileiro, mesmo que, na maioria das vezes, distantes de importantes funções na cadeia administrativa do governo. As conclusões retiradas das informações colhidas sobre os Auxiliadores não podem, entretanto, serem levadas para muito longe. Os dados biográficos, bem como quase tudo aquilo que pode ser objeto histórico, está limitado, primeiro, pela falibilidade dos documentos utilizados, mas, especialmente, pela dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de se determinar a representatividade dos documentos acessados.81 A única exceção a essa crítica será, talvez, as nacionalidades desses homens, pois não é possível que tenham nascido em duas nações. Uma proposição possível a respeito do perfil dos redatores do periódico O Auxiliador da Indústria Nacional é a de que a maioria deles foram homens dedicados às ciências, fosse na sua produção ou em sua vulgarização. Os homens que compuseram as comissões da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional eram responsáveis pelas emissões de pareceres técnicos sobre a condição de indústrias, petições de privilégios e mesmo para a resolução de disputas. As comissões, posteriormente chamadas de seções,82 eram compostas por associados eleitos usualmente com formação especializada para investigar e emitir relatórios sobre determinadas áreas. A princípio, as comissões eram seis:83 de fundos; de análise e processos químicos; de economia doméstica e rural; de agricultura; de artes, fábricas e comércio; e de redação de jornais, programas e revisão de memórias. Não raramente os componentes dessas seções, ou comissões, prestavam seus serviços ao Estado brasileiro em nome da Sociedade, emitindo, por exemplo, relatórios técnicos
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81
82 83
ARAUJO, Nilton de Almeida. A escola agrícola de São Bento das Lages e a institucionalização da agronomia no Brasil (1877-1930). Dissertação (mestrado) - Feira de Santana-Salvador/BA: UFBA/UEFS, 2006, 175-6 f. FISCHER, David Hackett. Historians’ Fallacies – Toward a Logic of Historical Thought. New York: Harper Perennial, 1970, p. 216. A partir do ano de 1857, as comissões foram reformuladas e passaram a se chamar seções. SOCIEDADE AUXILIADORA DA INDUSTRIA NACIONAL. Estatuto da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Rio de Janeiro: Typographia Austral, 1838.
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quando solicitados sobre indústrias ou maquinários,84 dos quais muitos eram publicados nas páginas do periódico. Para a Comissão de Redação de Jornais, Programas, e revisão de memorias, talvez por não requisitar daqueles que a compunham um aprofundado conhecimento técnico-científico, seus componentes estão mais próximos àqueles que compunham o Conselho Administrativo, sendo homens mais relacionados à atividade política. As características dos associados da Sociedade Auxiliadora como pertencentes a uma aristocracia, entretanto, está presente entre os sócios que compunham a Comissão de Redação de Jornais, Programas, e Revisão de Memórias, parcialmente responsável pelos artigos publicados no periódico. São frequentes entre seus membros nomes de destaque na atividade política brasileira e quase sempre possuidores de cargos de alto-escalão dentro da estrutura administrativa imperial. Os membros da referida comissão eram frequentemente alterados, tendo sido membros delas, como já dito, vinte e nove homens. Foram eles (cronologicamente): Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), Custódio Alves Serrão (1799-1873), Balthazar da Silva Lisboa (1761-1840), João Maria Barbosa (?-1848), José Cesário de Miranda Ribeiro (1792-1856), Candido José de Araújo Vianna (1793-1875), Bento da Silva Lisboa (1793-1864), Caetano Maria Lopes Gama (1795-1864), Caetano Alberto Soares (s/d), José Domingues de Ataíde Moncorvo (s/d), Diogo Soares da Silva Bivar (1795-1865), Manoel de Araújo Porto Alegre (1806-1879), José Gonçalves de Magalhães (1811-1882), Rodrigo de Souza José, José de Paiva Magalhães Calvet (1808-1853), Manoel Ferreira Lagos (1817-1871), Joaquim Teixeira de Macedo (1795-1853), João José de Souza Silva Rio (1810-1886), Luiz de Souza Lobo (s/d), Manoel Maria de Moraes Valle (1824-1866), Lourenço Vieira de Souza Meirelles (s/d), Braz Joaquim da Silveira (s/d), José Júlio Dreys (s/d), Alexandre José do Rosário (s/d), Manoel Paulo Vieira Pinto (s/d), José Bonifácio Nascentes de Azambuja (1814-1877), José Pedro Dias de Carvalho (1808-1881), Antônio José Victorino de Barros (1824-1891) e João Carlos de Souza Ferreira (s/d).85 Entre todos esses homens que compuseram a referida comissão, ou ao menos nos nomes
que
conseguimos
descobrir,
encontramos
que
esses
associados
eram
desembargadores, deputados gerais, senadores, lentes, freis, médicos, professores, diretores do Museu Nacional e do Jardim Botânico, ministros da Justiça e da Fazenda, presidentes de
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O primeiro exemplo dessa espécie de publicação apareceu logo na segunda edição do AIN; o exame de um maquinário inventado por Antônio de Santo Valério Scheult. Ver: O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 3, 1834, v. II, p. 72. As datas de nascimento e falecimento indicam quais dos membros da Comissão foi possível identificar a biografia.
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províncias e de inúmeros outros cargos, mas principalmente aqueles relacionados ao aparelho do Estado brasileiro e seu alto-escalão administrativo. A partir da edição 1857, as comissões permanentes da Sociedade Auxiliadora foram extintas de suas páginas e, em seu lugar, surgiram seções dedicadas a atividades mais específicas, como a Secção de Geologia applicada o chimica industrial, Secção de melhoramento das raças animaes, etc., que agora também possuíam mais membros, sete por seção. A Comissão de Redação de Jornais, Programas, e revisão de memorias, no entanto, desapareceu das páginas d’O Auxiliador e, aparentemente, não foi substituída por nenhuma seção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, apesar de ter sido uma associação de longuíssima duração e uma das mais importantes instituições brasileiras do século XIX, genitora de outras tantas sociedades, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838), a Sociedade Vellosiana (1850) e o Instituto Imperial Fluminense de Agricultura (1860), ainda possui muito de sua história para ser escrita. Este artigo, destarte, pôde contribuir com uma série de novas informações sobre ela: as premiações que a sociedade recebeu por sua publicação, a mudança do local onde se realizavam as reuniões de seus associados, os Manuais Agrícolas publicados e seus autores, a continuidade no funcionamento da Escola Noturna de Instrução Primária para Adultos e a Escola Industrial após o ano de 1892, assim como a tentativa de relançamento do periódico em 1896, mas, sobretudo, a história dos redatores d’O Auxiliador da Indústria Nacional. Os doze homens responsáveis pelos sessenta anos de existência do periódico, ao contrário da receita que até então se escreveu para os associados da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, não se seguem para esses homens. Não precediam seus nomes títulos nobiliárquicos como de Viscondes e Marqueses, também não ocuparam cargos de destaque dentro da política da administração imperial e republicana, e mais longe estiveram de serem considerados, mesmo entre seus pares, homens políticos. Eram homens que acreditavam na ciência e muitas vezes se viam encantados pelas proezas que esse aqui-sabido método superior estava trazendo para a humanidade em alhures, e ansiavam em ver essas mesmas conquistas florescendo em terras brasileiras. Anunciam trazer o conhecimento científico como os portadores de uma vela a iluminar a escuridão da rotina e da ignorância que a produção brasileira estava envolta, fosse essa escuridade o desconhecimento dos homens laboriosos acerca dos métodos de produção Revista Diálogos Mediterrânicos
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modernos, a inação do Governo Imperial ou a escravidão.86 Alguns entre esses homens acreditavam que a imprensa periódica sozinha seria capaz de contribuir para o “progresso social, cientifico e industrial”.87 A prodigiosa ciência, lembrou Januário da Cunha Barbosa, nem sempre foi benquista, em outros tempos, comentou o Cônego, “a ciência era perseguida, desprezada e oprimida”. 88 O método empírico, entretanto, prevaleceu ao racionalismo naquele momento. Conscientes dessa nova realidade, esses homens se propuseram para decantar aquele conhecimento que fosse útil para os brasileiros e, notadamente, que fosse útil para o melhoramento das técnicas de produção e, por fim, conseguisse alcançar o mesmo progresso que demais nações já haviam alcançados. E, para eles, a publicação periódica era o melhor meio para esse empreendimento. Pois além de amantes da ciência também o eram de sua nação, o Império do Brasil. Todos os redatores brasileiros frequentemente confessam o seu amor pelo país e professavam ser esse o maior incentivo para os seus respectivos trabalhos na vulgarização científica: o sonho de ver o Brasil equiparado as principais potências de sua época. Pedro de Alcântara Lisboa, o engenheiro químico, associado e redator do periódico, ansiava poder convencer os seus leitores “de que Venezuela e outros países muito inferiores ao Brasil empregam melhores meios de preparar o café, eles dariam por bem empregados alguns ensaios para melhorar essa preparação”.89E mesmo entre os redatores nascidos em algures foi possível encontrar sentimentos semelhantes para com o Império. Não obstante a inseparável relação desses homens com a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, alguns dos quais só são conhecidos por sua associação a ela. Deverá este, portanto, terminar com uma síntese do quem foram aqueles homens. E a melhor constituição de um perfil para os redatores está nas palavras escritas por Joaquim Manuel de Macedo, em sua homenagem póstuma para o redator e secretário perpétuo Emílio Joaquim da Silva Maia, mas que poderia ser empregada para a maioria dos Auxiliadores d’O Auxiliador da Indústria Nacional: É este um nome que não ouviste repetir nem nas lutas ardentes dos comícios públicos, nem nos certames ardentes arrebatados dos comícios públicos, nem nos certamos arrebatados da imprensa política; nome que nunca foi 86
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À primeira vista, essa analogia pode parecer demasiadamente descabida, mas ela foi inspirada por um trecho do texto de introdução do próprio AIN, escrito por Januário da Cunha Barbosa. Escreveu ele: “Esta [a ciência] oferece-nos infinitos tesouros, mormente em um país onde a luz das Ciências não tem penetrado os campos assombrados pela espessa escuridade dos brutais Africanos [...]”. In: O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 1, 1833, v. 1, p. 10. O Auxiliador da Indústria Nacional, Nova Série, n. 1, 1849, v. IV, p. 3. O Auxiliador da Indústria Nacional, n. 1, 1833, v. 1, p. 1-10. O Auxiliador da Indústria Nacional, Nova Série, n. 1, 1849, v. IV, p. 1-4.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 endeusado nem proscrito pelos tribunos, nem nos escreveu jamais ato algum da alta administração do país. Foi o de um cidadão que não se encontrava no parlamento, onde se debatiam os partidos, nem nos gabinetes dos ministros, onde se combinava as profundas medidas para o governo do Estado; sua esfera foi mais modesta, seu horizonte menos brilhante, talvez, porém, mais vasta, sem dúvida mais serena. Quem o buscava ia à seara do sábio, e tinha a certeza de achar o constante e desvelado lavrador manejando o arado da ciência.90
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MACEDO, Joaquim Manoel de. Discurso do Orador do Instituto Histórico o Sr. Dr. Joaquim Manoel de Macedo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, t. 22, 1859. p. 704-712.
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Expressões culturais na Lisboa revolucionária. Carlos Malheiro Dias, um cronista da cidade (1904-1913) Cultural Expressions in revolutionary Lisbon. Carlos Malheiro Dias, a chronicler of the city (1904-1913) Teresa Sousa Nunes * Universidade de Lisboa
Resumo
Abstract
Entre 1904 e 1913, Carlos Malheiro Dias revelouse um observador atento e crítico da realidade lisboeta, descrita nas páginas do Comércio do Porto. Intituladas “Cartas de Lisboa”, as suas crónicas constituem um repositório relevante para a reconstituição dos ambientes culturais desenhados na atmosfera pré e pós revolucionária na capital. Sem perder de vista o ideário monárquico de Malheiro Dias, nunca enjeitado, nem o seu impacto nas avaliações apresentadas aos leitores do Comércio do Porto, o nosso objectivo consiste na caracterização das manifestações culturais ocorridas em Lisboa, atendendo a factores idiossincráticos do tecido urbano da capital como, de igual modo, às dinâmicas exógenas actuantes no período em análise.
Between 1904 and 1913, Carlos Malheiro Dias was an attentive and critical observer of the Lisbon reality, described in the pages of the Comércio do Porto. Entitled "Cartas de Lisboa", his chronicles constitute a repository relevant for the reconstitution of the cultural environments designed in the pre and post revolutionary atmosphere in the capital. Without losing sight of the monarchical ideals of Malheiro Dias, or its impact on the evaluations presented to readers of Comércio do Porto, our objective is to characterize the cultural manifestations that took place in Lisbon, taking into account idiosyncratic factors in the urban fabric of the capital As well as to the exogenous dynamics in the period under analysis.
Palavras-chave: Lisboa; Cultura; Revolução.
Keywords: Lisbon; Culture; Revolution.
● Enviado em: 30/05/2017 ● Aprovado em: 28/06/2017
*
Instituto de História Contemporânea, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.
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Introdução
Em meados da primeira década do séc. XX, Carlos Malheiro Dias aceitava o convite do Comércio do Porto para assegurar a rubrica “Cartas de Lisboa”. Ao diário portuense de larga circulação dirigido por Bento Carqueja importaria menos a informação de natureza institucional e política, privilegiando as dimensões sociais e dinâmicas culturais da capital. A opção por Carlos Malheiro Dias encontrava explanação facilitada na naturalidade do autor, complementada pelo percurso profissional descrito entre a literatura, o teatro, o jornalismo e também a política. Nascido no Porto1, no seio da burguesia comercial com ligações ao Brasil, Carlos Malheiro Dias frequentou o Curso Superior de Letras em Lisboa, entre os anos de 1896 e 1899, e ingressava nas fileiras do Partido Regenerador, em 1900. Eleito deputado pelo círculo de Viana do Castelo, no ano seguinte, Malheiro Dias daria prioridade à actividade de parlamentar e, posteriormente, de chefe de gabinete do Ministro das Obras Públicas, Conde de Paçô Vieira, em detrimento da carreira literária que se esboçava com a publicação dos seguintes romances: O Filho das Ervas, em 1900, Os Teles de Albergaria, em 1901 e Paixão de Maria do Céu, em Maio de 1902. Aquém do prelúdio auspicioso para o romance moderno em Portugal, estas obras valeram a crítica acérrima da Revista Nova ao jovem escritor sobre o qual impendiam as expectativas da sucessão feliz de Eça de Queiroz, desaparecido em 19002. Os títulos supracitados integravam um elenco vasto e ambicioso de análise crítica da sociedade e cultura portuguesas oitocentistas, não concretizado pelo autor que se estreara na dramaturgia em 1897 com a peça Corações de Todos, recusada pela Companhia de Teatro de Lucinda Simões em face da impossibilidade de ser representada3. Recepção diferente estava reservada a O Grande Cagliostro, levada à cena no D.Amélia, a 15 de Novembro de 19054, pela qual viria a ser agraciado pelo Rei D. Carlos I com a Ordem de Santiago no decurso da quarta representação. 1
2 3
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Carlos Malheiro Dias nasceu a 13 de Agosto de 1875, na Rua da Cedofeita. Filho primogénito de Henrique Malheiro Dias, natural do Porto, e Adelaide Carolina de Araújo Pereira, nascida no Rio Grande do Sul. Morreu em Lisboa, a 19 de Outubro de 1941. NUNES, Teresa. Carlos Malheiro Dias, Um Monárquico entre os dois regimes. Lisboa, Centro de História/Caleidoscópio, 2009, pp. 15-16. A resposta e crítica ao Filho das Hervas é publicada na Revista Nova, sob o título de "O Pai das Hervas"Ano I, nº2, Lisboa, 25 de Abril de 1901. O autor, no prólogo da edição desta peça, expõe as razões apontadas para esta recusa e argumenta criticamente a decisão tomada pela companhia. Carlos Malheiro Dias, Corações de Todos, Lisboa, Imp. Libânio da Silva, 1897. A propósito desta peça recusada, pronuncia-se Joaquim Madureira, Impressões do Teatro. Cartas a um Provinciano e Notas sobre o joelho, I Série, Lisboa, Ferreira e Oliveira, 1905. Esta peça de Carlos Malheiro Dias, que não correspondeu ao êxito esperado pelo seu autor, será alvo de caricatura por parte de O Século, primeiro conotando o personagem principal com o Conde de Burnay (24 de Outubro de 1905) e depois atribuindo-lhe a intenção de atingir o Presidente da República Francesa, Loubet, então de visita a Lisboa (7 de Novembro de 1905).
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Finda a experiência governativa, com a demissão do executivo regenerador, Malheiro Dias regressava à Câmara dos Deputados, como representante do círculo eleitoral de Viana do Castelo, na sequência das eleições de 26 de Junho de 19045. Contudo, não se retirava do jornalismo, mantendo participação assídua nos órgãos oficiais do Partido Regenerador a saber, a Tarde e, principalmente, o Notícias de Lisboa, fundado por Hintze Ribeiro, a 16 de Janeiro de 1905, onde pontificou no domínio da intervenção política a par de outras figuras do partido como António Sérgio de Castro, Manuel Fratel, Alberto de Almeida Navarro, João Costa, Alberto Sequeira Bramão, Cristovão Aires, Eduardo Schwalbach Lucci, Higino Mendonça, José Joaquim Mendes Leal e António Maria de Queiroz Veloso6. As colaborações supra enunciadas, com uma natureza e objectivos partidários expressos, não se confundiam facilmente com o labor de Malheiro Dias para o Comércio do Porto, as já mencionadas “Cartas de Lisboa”, igualmente perceptíveis ao público lisboeta, em particular a Silva Graça, responsável pelo jornal O Século que, instado por Eduardo Schwalbach, convidava o colunista para a direcção artística do magazine A Ilustração Portuguesa, em Janeiro de 1906. Aceite o convite resultante da recepção favorável do trabalho desenvolvido pelo autor nas páginas do Comércio, qual balão de ensaio para as actividades de análise cronística subsequentes, o exercício da direcção artística de A Ilustração Portuguesa viria a ecoar na concepção de “Cartas”, demonstrada na afinidade metodológica e, em larga medida, temática.
Lisboa de Carlos Malheiro Dias Em ambos os contextos editoriais, o objectivo de Carlos Malheiro Dias consistia no esforço contínuo de caracterização da cidade de Lisboa, retratada como personagem singular, cuja dissecação reportava a temporalidades e geografias mais ou menos distantes: “Quando, por ocasião do centenário da Índia, alguns persas vieram a Lisboa a convite do governo, o lisboeta parecia reconhecê-los e olhava-os, sem exagerado pasmo, como relações de infância. Um turbante de seda ou um fez escarlate, aparecendo entre cartolas e chapéus de coco, não faz voltar a cabeça senão ao forasteiro”7. Concomitantemente, a cidade surgia igualmente definida como figura compósita, formada por uma multiplicidade de realidades diferenciadas, 5
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Carlos Malheiro Dias é eleito deputado pelo círculo nº1, de Viana do Castelo, por vinte e dois mil e quatro votos, juntamente com António de Almeida Pinto Mota, Alberto Sequeira de Bramão, Manuel Afonso Espregueira, Luis José Dias e Gaspar de Queiroz Ribeiro de Almeida e Vasconcelos. Correio da Noite, 16 de Janeiro de 1905, p.1. DIAS, Carlos Malheiro. Cartas de Lisboa. III vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1907, p. 60.
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inconciliáveis mesmo, que se entrecruzavam na simultaneidade física e temporal da urbe: a lisboeta8, a sua religiosidade pascal9 em contraste com as varinas lisboetas da Murtosa e do seu papel na preservação das manifestações religiosas da cidade10; Lisboa das festas protocolares11 e populares12, por ocasião da visita de Afonso XIII a contrastar com a mobilização colectiva da capital na recepção ao Presidente Loubet13. Por último, a capital era caracterizada pelo efeito polarizador sobre os arredores e as províncias, conforme uma dimensão tentacular14, cuja matriz unívoca se expressava na especificidade identária da urbe no confronto com o país. Assim, na perspectiva concebida por Carlos Malheiro Dias, a Lisboa do início do séc. XX “não se parece no seu aspecto, nos seus hábitos, na menor particularidade da sua vida, com a restante terra portuguesa”15. Os factores responsáveis pela diferenciação apontada residiam no crescimento demográfico da capital, visível a partir da década de 80 do séc. XIX, e exponenciado no contexto da crise económica e financeira ocorrida nos princípios do decénio seguinte 16. As alterações em curso no sector agrícola português17, conjugadas com a redução paulatina das exportações nacionais, reduziam a procura de mão de obra nos campos que, em larga medida, procuravam em Lisboa os recursos económicos que se esgotavam nas áreas mais ou menos limítrofes à capital18. Este influxo populacional espelhava-se na malha urbanística da cidade, caracterizada pela abertura de novas áreas residenciais em finais de Oitocentos. Todavia, revelar-se-iam escassas e, simultaneamente, desadequadas ao poder de compra destes novos habitantes lisboetas cujos baixos rendimentos eram também uma consequência das condições financeiras, em vista da desvalorização da moeda e do reforço do proteccionismo alfandegário. A cidade conhecia a carestia continuada dos preços e as levas sazonais de desemprego, aplacadas pontualmente com as obras de recuperação urbana. Consequentemente, o tecido comercial de retalho, um dos alicerces das estruturas sociais e culturais da cidade, “de tradições tão laboriosas e honestas, vai modificando radicalmente o
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Idem, ibidem, I vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1904, pp. 74-76. Idem, pp. 67-70. Idem, ibidem, III vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1907, pp. 13-14. Idem, ibidem, I vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1904, pp. 19-37. Idem, pp. 46-49 e 51. Idem, ibidem, III vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1907, pp. 36-39. Idem, ibidem, I vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1904, p. 263. Idem, p. 74. FERNANDES, Paulo Jorge. “A Crise de fim de século e o balanço do Fontismo”. In História Económica de Portugal. O Século XIX. II vol., Lisboa, ICS, 2005, pp. 413-419 PEREIRA, Miriam Halern. Livre Câmbio e Desenvolvimnto Económico. Portugal na segunda metade do século XIX, Lisboa, Cosmos, 1971. RODRIGUES, Teresa Ferreira coord.. História da População Portuguesa. Porto, CEPESE/Afrontamento, 2009, pp. 345-416.
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seu antigo carácter e adquirindo hábitos de bandolismo repugnante”19, previsivel e brevemente dissemináveis ao pleno do território nacional. Em vésperas da implantação do regime republicano em Portugal, a capital do país apresentava características singulares – fraco poder de compra, populações desenraizadas, instabilidade social e marginalidade – no contexto nacional, propiciadoras da adesão a fórmulas insurreccionais de contestação e da perfilha de novas formas de organização política. Segundo o autor, “O pão é caro? É certo. Mas a vida é alegre. Pode morrer-se de fome em Lisboa. Ninguém aqui morre de aborrecimento”20.
Expressões culturais em Lisboa
As premissas de análise subjacentes às abordagens elaboradas por Carlos Malheiro Dias induziam o autor a conferir visibilidade a fenómenos culturais de natureza diferenciada os quais, embora associados a públicos distintos, encontravam uma proximidade inusitada num denominador comum, a saber, a manifesta cultura insuficiente das diversas camadas que compunham Lisboa nos primórdios do séc. XX. Partindo do pressuposto genérico de “a conversa é o melhor instrumento de avaliação para a cultura do indivíduo e da classe a que pertence”21, o cronista enfatizava a incultura generalizada da capital. Transversal na população lisboeta, esta realidade reflectia as mudanças políticas e sociais ocorridas no Portugal de Oitocentos, mormente o processo de substituição de elites resultante do advento do regime liberal. Se, por um lado, “a democracia, entregando o poder às classes liberais emancipando-o desta casta, resumiu o papel social da fidalguia”22, por outro, a capital perdia o brilhantismo associado aos mecenas, e respectivas grandes colecções de arte, ao requinte dos bailes e às exigências dos públicos cultos nos teatros e na ópera: “no Portugal do séc. XIX não resta de pé nenhuma das grandes casas históricas. Em nenhuma república a devastação das aristocracias foi maior. O luxo – esse luxo hierárquico e nobre que foi sempre apanágio das grandes castas, desapareceu”23. Decerto não escasseavam fortunas em Portugal, chamadas ao exercício ilustrativo do cronista para a demonstração inequívoca do alcance qualitativo das mudanças suscitadas pelo surgimento da nova elite liberal; José Maria dos Santos, grande proprietário rural, “o primeiro lavrador português, vive com 19
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DIAS, Carlos Malheiro. Cartas de Lisboa. III vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1907, pp. 87-88. Idem, p. 91. Idem, p. 26. Idem, ibidem, I vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1904, p. 55. Idem, p. 243.
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simplicidade em sua casa na Junqueira”. Ou a família Sommer, habitando “sem ostentação e sem ruído, na sua casa no Príncipe Real”24. O impacto das modificações ocorridas na estrutura social do país durante o séc. XIX adquiria um efeito multiplicador nas vivências quotidianas da capital, alcançando de forma indistinta as esferas mais elevadas da representação do Estado e os segmentos menos favorecidos da sociedade lisboeta. As cerimónias protocolares transmutavam-se num “espectáculo enfadonho e quase sombrio”25, fruto da “confusão de categorias e de classes que sempre e em toda a parte substrai às relações dos homens a cordialidade e o desembaraço que são a vida das sociedades”26. Em compensação, os leilões de colecções de arte mobilizavam o lisboeta comum, afatigado pela curiosidade em conhecer os recheios das casas e palácios da cidade. Em alternativa, afluia à Empresa Liquidadora, fundada em Fevereiro de 1895, “vastos armazéns de venda, para onde as falências, as doenças, as penhoras, as ruínas e partilhas lançam periodicamente os despojos sumptuosos ou vulgares da casa de Lisboa, e por onde tem transitado nestes últimos anos parte do mobiliário das grandes famílias”27. A dispersão do património artístico português, canalizado sem peias para os museus e coleccionadores estrangeiros desde 1875, constituía uma das preocupações do cronista, empenhado na sensibilização dos poderes públicos para a necessidade de promover um inventário nacional. A par da diversificação e do enriquecimento dos asservos museológicos da capital. “Sem monumentos de arte, nem notáveis museus, nem u opulento comércio, destituída de quase todos os grandes progressos com que se adornam as capitais do séc. XX”, Lisboa destacava-se pelo Tejo, pelo bucolismo de Sintra e a “pastiche pretenciosa do Estoril”28. Tratava-se de uma caracterização propositadamente ligeira do cronista, ao qual não fora indiferente a constituição do museu dos Coches em Belém nem os esforços desenvolvidos por D.Amélia na concretização de um projecto cultural para a cidade onde “a casa de Bragança exposesse, com método e arte, as suas colecções históricas de equipagens, arreios, selas e librés”29. No entanto, estas apreciações deixavam antever o inconformismo de Malheiro Dias sobre a incúria do Estado no domínio da preservação dos monumentos e obras de arte nacionais. Relembrava, com particular acuidade, a oportunidade perdida com a recusa do Estado na aquisição do Palácio Foz que “teria permitido agrupar em salas maravilhosas todos 24 25 26
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Idem. Idem, p. 19 Idem, p. 20. O autor não se poupava na caracterização dos bailes da Ajuda; na recepção oferecida a Afonso XIII “todos assistiram […] com um recolhimento que seria para desejar que conservassem na Igreja ao ouvir missa”. Idem, p. 27. Idem, p. 101. Idem, ibidem. III vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1907, p. 160. Idem, ibidem, I vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1904, p. 309.
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os objectos de arte ornamental existentes nas Janelas Verdes, que seriam exclusivamente dedicados à pintura. Poderia esse museu da Avenida igualar-se pela sua magnificente instalação, aos museus de Artilharia, em Santa Apolónia, e dos Coches, em Belém, permitindo que se desse às salas do museu Nacional uma disposição diferente, e talvez mesmo transferindo para as suas vastas dependências do rés-do-chão as aulas de pintura da Academia de Belas-Artes”30. Idêntico desconforto suscitava ao autor a manutenção do Palácio do Marquês da Foz. Sublinhe-se, contudo, a natureza parcial deste esforço, acompanhado de modificações substantivas na traça original do palácio e bem assim nos seus interiores, determinadas pela adaptação da estrutura a novas finalidades. Assim, um dos palácios mais sumptuosos de Lisboa, cenário dilecto da cultura e das artes – “o marquês empenhou-se, ao contrário, em coleccionar obras de arte, em ficar em Portugal modelos preciosos de mobiliário, de escultura, tapeçaria e de pintura, protegendo os artistas nacionais, dando trabalho aos pintores, escultores e arquitectos, educando uma geração de entalhadores habilíssimos e contribuindo poderosamente […] para radicar nas inestéticas classes dirigentes o culto pela obra de arte” – metamorfaseava-se em legação diplomática dos Estados Unidos da América31. O tributo às representações diplomáticas dos países acreditados em Portugal espraiava-se em âmbitos diferenciados no quotidiano lisboeta, conforme o entendimento crítico do cronista. “Representantes da ciência da adaptação e da socialibilidade”32, os diplomatas estrangeiros cumpriam uma função indelével em Lisboa: a de agentes actuantes e, simultaneamente, de guardiões do cosmopolitismo intrínseco à urbe que, ao cabo de séculos de contactos estreitos com outras gentes e culturas, soçobrava face às tendências modernizantes observadas na Europa de Oitocentos. A Lisboa, outrora de pendor universalizante, confrontava-se com a tarefa árdua de concretizar uma dimensão eminentemente europeia, capaz de transcender a memória das visitas de Estado, prolongadas nos assobios dos garotos da capital33. Tal a encruzilhada de Lisboa nos primórdios de Novecentos, corroborada nas observações do cronista sobre o número escasso de turistas europeus na capital portuguesa e, mais relevante, as capacidades de acolhimento da urbe a visitantes exigentes34. Se a exiguidade de recursos financeiros determinava uma intervenção claramente insuficiente dos 30 31 32 33 34
Idem, pp. 310-311. Idem, pp. 63-64. Idem, p. 58. Idem, p. 40. Idem, ibidem. III vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1907, pp. 15-22.
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poderes públicos, central ou locais, na projecção apelativa de Lisboa no contexto europeu, as dinâmicas sociais e culturais da cidade, verificadas nas últimas décadas do séc. XIX, repercutiam-se segundo uma lógica de descaracterização dissolvente. “Lisboa é hoje [1907] a menos característica das cidades da península e sem dúvida aquela em que com mais perseverança, de há trinta anos, a esta parte, uma população tenha trabalhado para apagar a orginalidade de costumes herdados e durante séculos mantidos”35. Os reflexos desta tendência observavam-se nas vivências religiosas de Lisboa que, das mais crentes do cristianismo, no final do séc. XVIII, se tranformava numa das mais irreverentes da Cristandade36. Apelava à influência do positivismo para justificar a eliminação de grande número de festividades religiosas na capital, uma asserção dificilmente compaginável com os elevados níveis de analfabetismo da sociedade lisboeta. Evocava, de igual modo, os efeitos da modernidade sobre a ancestralidade de tradições cuja integridade resultava exclusivamente do contributo actuante de entidades exógenas a estrutura clerical. Desta feita, a subsistência das quatro grandes procissões de Lisboa, Corpo de Deus, Nossa Senhora da Saúde e as procissões do Senhor dos Passos assentava na correspondência dos rituais referidos “a tradições sociais de hierarquia e de classe” a saber, do Rei, do exército e da nobreza37. Na primeira década de Novecentos, subsistiam outros fenómenos de religiosidade, a procissão marítima dos Círios para a Senhora da Atalaia e a romaria do Senhor da Serra, singularmente preservados através dos elos com comunidades oriundas de outras regiões do país que, há muito radicadas em Lisboa, reproduziam na capital, as vivências culturais da áreas de proveniência respectiva. Assim, à varina de Lisboa, natural da Murtosa, devia a capital a prevalência do culto e das formas lúdicas tradicionais associadas38. Idêntica projecção angariava o Entrudo na sociedade lisboeta dos primórdios do séc. XX. Contudo, a transversalidade social intrínseca ao Carnaval em Lisboa e o percurso descrito pela efeméride, de origem pagã, no decurso de Oitocentos concitavam as atenções de Carlos Malheiro Dias. Remontando ao início do séc. XIX, o cronista procedeu ao esforço de reconstituição histórica sintética do entrudo, uma festividade profana de convergência entre nobres e povo, à luz dos princípios da transgressão evasiva e, não menos importante, de crítica às convenções políticas e sociais. A referida confluência apreciava-se na figura do Chéché, “admirável criatura popular do Antigo Regime” do qual herdava a “cabeleira de 35 36 37 38
Idem, p. 160. Idem, p. 157. Idem, p. 154. Idem, pp. 13-14.
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estopa, laçarote no rabicho, a cómica luneta, o dístico obsceno do bicórnio, o facalhão inofensivo, a bengala distorcida, terminada por um chavelho de bode, a sua casaca de seda, os seus sapatos de fivela, o Chéché era a síntese ridícula, comicamente vingativa, do tempo do Intendente, da inquisição e da forca”39. Instrumento de contestação, o Chéché ingressava no Entrudo de Lisboa acalentado pelas aspirações liberais da plebe seduzida pelo anti-clericalismo. Conotado com a irreverência jacobina, a figura cumpria a finalidade de dar visibilidade às instituições políticas fundadas na Carta Constitucional, de 1826. Assim, enraizava-se definitivamente, à luz das especificidades do regime cuja corte irrequieta garantia pertinência às funções críticas desta figura que “inimigo da ditadura” verberava contra déspotas e ditadores em tom desafiante das autoridades policiais. Tal era o Carnaval de Lisboa: arruaceiro, original e pitoresco, produto genuíno da recepção popular ao ideário liberal. Em finais do séc. XIX, mais concretamente no rescaldo da crise financeira de 18911893, o carácter excessivo das festividades lisboetas angariava o ensejo das autoridades municipais em reconstruir a festa pagã na capital. Tratava-se de civilizar o Entrudo, desordem periódica de um povo “ordeiro, pacífico, policiado e oprimido que durante três dias no ano desafogava rumorosamente, tumultuariamente, as suas amarguras”40. A reconversão forçada dos hábitos festivos inspirava incidentes reactivos, protagonizados no espaço público, por resistentes e respectivas tropelias. Contudo, a antevisão do ocaso restabelecia elos de transversalidade ancestrais em torno do Carnaval: a “reacção não foi só popular – a nobreza quis, nesta hora histórica, acompanhar o seu aliado e deu em S.Carlos uma batalha já célebre, a batalha das sanduiches”, ocorrida com a cumplicidade indisfaçável de D.Carlos cujo sorriso irónico era retido pela observação do cronista41. Sucumbia o “Carnaval romântico”, a contragosto dos foliões lisboetas, ou não, eivados da atmosfera festiva da cidade, conforme o exemplo dado pelo Conde Tattembach, o ministro plenipotenciário alemão em Lisboa, um dos protagonista principal do “batalha da sanduiches”. Decerto, por oposição à “batalha das flores”, festividade cuja civilidade inquestionável dificilmente congregava as atenções do público lisboeta. Ao invés, o comércio expandia-se, industrializando a efeméride que, de pagã, assumia uma dimensão de “batalha de anúncios”42.
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Idem, ibidem. II vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1906, p. 150. Idem, p. 153. Idem, ibidem. III vol., Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1907, p. 144-145 Idem, p. 148.
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Expressões culturais na Lisboa revolucionária
As crónicas “despretenciosas” de Carlos Malheiro Dias, entre 1904 e 1910, subentendiam uma dimensão revolucionária à evolução política nacional, a qual suportava e largamente justificava uma teia complexa de alterações substantivas na dinâmica cultural de Lisboa. As perspectivas de ruptura institucional, concebidas enquanto matriciais da decadência paulatina da sociedade portuguesa e, por extensão, da realidade lisboeta, avalizavam os entendimentos do cronista sobre a iminência de uma transformação de vulto. Nesta cadência analítica, o ano de 1906 conotado com o advento do consulado franquista, constituía um momento de viragem na sociedade portuguesa, transmitido nos textos de Malheiro Dias como prelúdio de novos tempos. “A vida de Lisboa parece, todavia, apagar-se. Nos salões, nos cafés, nos teatros como na Arcada e nas antecâmras dos ministros, só se fala de política. Não há um acontecimento dominante, que sobrenade nesta corrente geral de boatos e de intrigas, de murmurações e de ameaças que submerge todos os pequenos incidentes que são a fortuna do cronista”43. Todavia, as reacções da Lisboa mundana ao perfil económico moralizante do presidente de ministério interessavam sobremaneira a Malheiro Dias, conforme a evidência das contradições entre os objectivos do executivo e a multiplicação de efemérides festivas e divertimentos em Lisboa44. Nesta atmosfera, também insurreccional, o autor observava a consolidação de tendências esboçadas no início da década. Referia-se, em particular, ao recuo paulatino do lisboeta comum face ao teatro, uma realidade tão mais significativa quanto “o lisboeta não tem casa. Tem uma habitação, tem um andar onde almoça, onde janta, onde dorme. A noite do ano em que os teatros mais dinheiro ganham é a noite de Natal”45, uma circunstância que justificava o elevado número de teatros em funcionamento na capital em 1907. Longe de se circunscrever a uma faixa etária específica, a ligação entre o lisboeta e o teatro iniciava-se na infância. “Toda a criança de Lisboa, com excepção das muito pobres ou das muito ricas, principia a ir ao teatro aos seis meses. Aos seis anos, toda a criança alfacinha, digna desse nome, viu representar o Hamlet pelo actor Brazão, viu cantar Boccacio, pela actriz Palmira Bastos, viu dançar o cancan a Mercedes Blasco […]. Aos seis anos, a criança de Lisboa tem, em questão de teatros, uma opinião”46.
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Idem, p. 159. Idem, p. 220. Idem, p. 265. Idem, pp. 306-307.
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Curiosamente, esta adesão espontânea do lisboeta ao teatro não se reflectia no contexto desse espaço onde, intimidado no confronto com as classes mais favorecidas, diluíase silencioso na sala de espectáculo em assento compatível com o seu poder de compra. Conduta díspare observava-se noutros ambientes lúdicos da cidade, em especial do Coliseu dos Recreios, às Portas de Santo Antão cujo êxito inspirava a remodelação de outras casas de espectáculo similares em Lisboa. Esta mutação de hábitos correspondia, na visão do cronista, a uma mudança qualitativa nos critérios subjacentes à dimensão lúdica do espectador. “O público que vai admirar ao Coliseu não é a dançarina emérita, mas a cortesã real tão favorecida pelos reis caducos como pelos príncipes adolescentes […]. Dantes, ia-se ao circo para rir. Hoje vai-se ao circo para estremecer”47. Aos olhos de Carlos Malheiro Dias, a sedução exercida pelo perigo nas massas populares, sem desprimor das ideias de coragem, de força ou energia, eram demonstrativas do esmorecimento por valores fundamentais, o respeito pela vida humana e contribuiam para “desorientar as consciências rudimentares das maiorias” ao invés de “lhes educar o ânimo na intrepidez e na audácia”48. Esta Lisboa dos teatros, dos coliseus e dos circos, a mesma que frequentava as feiras da cidade – de Belém ou do Campo Grande – e alimentava a centena de associações de música existentes na capital, mantinha uma relação distanciada com o animatógrafo durante a primeira década do séc. XX. O recurso ao cinema resultava excepcional, justificada exclusivamente pelo período de encerramento das casas de espectáculo da capital. Funcionava para o lisboeta como um subterfúgio possível, não diverso dos espectáculos de bailarinas espanholas ou cançonetistas francesas que afluíam a Lisboa na época baixa49. Implantada a República, o carácter transitório, eivado de sazonalidade, cedia espaço à dimensão perene com repercussões devastadoras para a actividade teatral em Lisboa50. Sob a égide do regime republicano, o teatro atravessava um período de crise, dificilmente justificável com uma alteração pontual das opções lúdicas associada à ruptura institucional e política ocorrida em Outubro de 1910. Em meados de 1913, o cronista procurava explicações para este fenómeno, as quais descobria nos domínios económico e cultural da sociedade lisboeta: “o público encontrou no cinema um espectáculo rápido, acessível à sua incultura e à sua bolsa. O campo do teatro vai-se restringindo progressivamente”51. Decerto, tratava-se de 47 48 49 50 51
Idem, p. 138-139. Idem, p. 141. Idem, pp. 267-268. Idem, “Carta de Lisboa”, Comércio do Porto. Ano LX, nº 147, 22 de Junho de 1913, p. 1. Idem.
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uma consequência do agravamento das condições de vida na capital, nos anos de 1911 e 1912, actuante num contexto cultural pré-existente. Plausível, a justificação sumária de um fenómeno complexo não correspondia aos objectivos de amplo entendimento sobre a realidade lisboeta para a qual Carlos Malheiro Dias perscrutava novas hipóteses. O exercício comparativo com a sociedade francesa proporcionava uma apreciação distanciada sobre a correlação entre a qualidade da dramaturgia e a afluência de público aos teatros. As conclusões desta análise proporcionavam ao cronista elementos adicionais para a compreensão da crise do teatro lisboeta, amplamente frequentado antes de 1910, a saber, a debilidade da oferta teatral de Lisboa durante a primeira década do século. “Mas desde que, por um lado, se subalternizou a beleza literária do diálogo e a concepção filosófica do drama perante as habilidades da fábula dramática e, por outro, à decadência literária da cena correspondeu a decadência dos intérpretes, o caminho achava-se aberto ao triumfo facílimo do drama mínimo”52. No caso português, especificamente o lisboeta, o cinema encontrava campo vasto de propagação bem sucedida, angariando indistintamente segmentos diferenciados de público. Em suma, “o que sucedeu era fatal e se de todo o cinematógrafo não arruinou os teatros de Lisboa, contra eles está movendo a mais séria concorrência do que em qualquer outra cidade da Europa”53.
Conclusão
Em Julho de 1913, cessavam as “Cartas de Lisboa” no Comércio do Porto. As convicções monárquicas de Carlos Malheiro Dias tornavam-se inconciliáveis com o regime republicano, largamente empenhado em difundir a imagem ordeira das instituições implantadas em Outubro de 1910. Tal facto significava, para o cronista de Lisboa, a suspensão das suas colaborações com os periódicos brasileiros, a principal fonte de subsistência do autor desde 1912. Em Novembro de 1913, Carlos Malheiro Dias embarcou para o Brasil, país de exílio onde permaneceu até 1935. Contrafeito com a partida, afirmava-se disposto a manter acesa a oposição à República, uma arquitectura institucional entendida como desfavorável aos interesses nacionais e, potencialmente, penalizadora dos mesmos no contexto da Paz Armada bem como da animosidade crescente da Espanha. Tais propósitos de intervenção política, mas 52 53
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também social, não se viriam a concretizar durante os anos de ausência, pontuados por deslocações sumárias a Portugal. O âmago dos interesses de Carlos Malheiro Dias concentrava-se na produção historiográfica, nas relações luso-brasileiras e, não menos relevante, nas actividades associadas à colónia portuguesa radicada no país de acolhimento. De igual forma, o fascínio e atenção à capital soçobravam perante a distância geográfica; contudo, a Lisboa descrita nas suas idiossincracias e vivências culturais entre os anos de 1904 e 1913, cedia espaço a uma urbe caracterizada pelo carácter insurrecional latente e propensa a movimentos colectivos violentos.
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A educação no discurso parlamentar feminino português (Estado Novo, 1935-1974) Education in the parlamentary female portuguese discourse (Estado Novo, 1935-1974). Paulo Drumond Braga * Cátedra Infante D. Henrique / Universidade Aberta Resumo
Abstract
De 1935 a 1974, a Assembleia Nacional, câmara legislativa do Estado Novo português, albergou um total de 22 mulheres. Tudo o que se relacionava com a educação ocupou as atenções das mesmas, até porque onze delas eram professoras de diferentes graus de ensino. As temáticas foram diversificadas, nomeadamente o papel da universidade, as reformas dos ensinos primário e liceal, o lugar da mãe como educadora, a condição social dos professores e a acção de instituições como a Mocidade Portuguesa, a Mocidade Portuguesa Feminina, a Obras das Mães pela Educação Nacional e ainda as especificidades de Angola e Moçambique, que preocuparam duas deputadas africanas dos anos 60 e 70. Eis os temas que iremos analisar e explicar neste texto.
From 1935 to 1974, the National Assembly, the legislative chamber of the Portuguese Estado Novo, hosted a total of 22 women. All that is related to education occupied the attention of them same, because eleven of them were teachers of different educational levels. The themes were diverse, including the role of the university, the reforms of primary and secondary school teaching, the mother's place as an educator, the social status of teachers and the action of institutions like the Mocidade Portuguesa, Mocidade Portuguesa Feminina e Obra das Mães pela Educação Nacional, and also the specifics of Angola and Mozambique.
Palavras-chave: Assembleia Nacional; EstadoNovo; Educação; Portugal.
Keywords: Portugal; Estado-Novo; Education; Nation Assembly.
● Enviado em: 23/11/2016 ● Aprovado em: 28/06/2017
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Paulo Drumond Braga é licenciado em História (1987) e mestre em História da Idade Média (1992) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e doutor em História dos Descobrimentos e da Expansão pela mesma universidade (1997). Leciona, desde 1997, na Escola Superior de Educação Almeida Garrett (Lisboa), sendo investigador do Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade da Universidade do Porto (CEPESE) da Universidade do Porto.
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A Assembleia Nacional – câmara parlamentar do Estado Novo português – teve, nos 39 anos da sua existência (1935-1974), 22 mulheres entre um total de 655 deputados, ou seja, 3,3%1. Representaram sempre baixíssimas percentagens, sendo, ainda assim, superiores ao que ocorreu em Espanha entre 1943 e 19752. Tal não destoava, vistas bem as coisas, com o que se passava em países ditos democráticos. Tome-se como exemplo a Itália do pós-guerra, onde, entre 1946 e 1979, as mulheres na Câmara dos Deputados oscilaram entre 3,8% e 8,5%, ficando-se, no Senado, pelos 0,4% em 1953 e pelos 3,4% em 1968, 1976 e 19793. Está-se perante uma elite que claramente sai da esfera do privado para a do público, e, atendendo ao facto de que cerca de metade dessas mulheres eram solteiras – e, mais do que isso, todas até 1953 – , acabava-se, um pouco a contratio sensu, por inverter a escala de valores defendidas pelo regime para o sexo feminino e que elas próprias ajudavam a divulgar. Muito longe estavam estas mulheres, por exemplo, das esposas dos políticos que integraram a primeira junta central da Obra das Mães pela Eduação Nacional4. Distantes se achavam igualmente, se bem que talvez mais próximas, de outras mulheres que o Estado Novo deixou vir às luzes da ribalta, como Fernanda de Castro5, a famosa escritora casada com o homem forte da propaganda, mas esta talvez se enquadre antes no perfil da mulher culta que sempre existiu entre nós.
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Quando Portugal abriu as portas do parlamento ao sexo feminino, em 1934, já outros Países o haviam feito. O pioneiro havia sido a Finlândia, em 1907. Seguiram-se o Reino Unido (1918 ), a Alemanha (1919), a Áustria (1919) – seria aqui que, em 1927, uma mulher iria pela primeira vez desempenhar as funções de presidente do parlamento – , a Polónia (1919), a Hungria (1920), a Holanda (1920), a Noruega (1921), a Irlanda (1922), a Espanha (1927), a Bélgica (1929), entre outros exemplos. Não ficaram de fora países da América e da Oceânia: os Estados Unidos da América (1917), o Canadá (1921), a Austrália (1921), o Brasil (1933) e a Nova Zelândia (1933). Posteriores a Portugal seriam, por exemplo, os casos de França (1945), da Itália (1946) e da Grécia (1953). Neste artigo, retomo parte do que escrevi em BRAGA, Paulo Drumond, Mulheres Deputadas à Assembleia Nacional (1935-1974). Lisboa, Assembleia da República, 2015. Na Espanha de Franco as mulheres nas Cortes foram sempre menos de 1% de 1943 a 1967, tendo subido para 1,06% em 1967-1971 e para 1,5% em 1971-1975. Cfr. FRANCO RUBIO, Gloria A. “De la vida doméstica e la presencia pública: las mujeres en las Cortes franquistas” In De la Democracia Ateniense a la Democracia Paritaria, direção de Pilar Pérez Cantó. Barcelona, Icaria, 2009, pp. 187-207. WILSON, Perry. Italiane. Biografia del Novecento. Roma, Bari, Laterza, 2011, p. 257. Na lista, encontram-se apelidos reveladores, como Ortins de Bethencourt, Teotónio Pereira, Costa Leite (Lumbeales), Passos e Sousa, Lopes Mateus, Carneiro Pacheco, Nobre Guedes e Caeiro da Mata. cfr. PIMENTEL, Irene Flunser. História das Organizações Femininas do Estado Novo. Lisboa, Temas e Debates, 2001, p. 127, nota 2. Maria Fernanda Teles de Castro e Quadros Ferro (1900-1994), romancista, poetisa, dramaturga e tradutora, casada com António Ferro, foi uma das fundadoras da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses, actual Sociedade Portuguesa de Autores. Interessou-se também por outras questões, fundando a Associação Nacional de Parques Infantis.
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Quadro I Mulheres Deputadas por legislatura
Legislatura I (1935-1938)
II (1938-1942)
III (1942-1945) IV (1945-1949) V (1949-1953) VI (1953-1957) VII (1957-1961) VIII (1961-1965)
IX (1965-1969)
X (1969-1973)
XI (1973-1974)
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Deputadas Maria Guardiola Cândida Parreira Domitila de Carvalho Maria Guardiola Domitila de Carvalho Luísa Van Zeller Maria Guardiola Luísa Van Zeller Luísa Van Zeller Virgínia Gersão Leonor Botelho Maria Guardiola Leonor Botelho Margarida Craveiro Lopes Margarida Craveiro Lopes Irene Costa Margarida Craveiro Lopes Irene Costa Custódia Lopes Custódia Lopes Ester de Lemos Lurdes Albuquerque Sinclética Torres Sinclética Torres Custódia Lopes Luzia Beija Raquel Ribeiro Alda Almeida Josefina Marvão Lia Lelo Ângela Gama Clementina Vasconcelos Lurdes Oliveira Luísa Oliveira Teresa Lobo Sinclética Torres
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Quadro II Percentagem de Mulheres Deputadas
Legislatura I (1934-1938) II (1938-1942) III (1942-1945) IV (1945-1949) V (1949-1953) VI (1953-1957) VII (1957-1961) VIII (1961-1965) IX (1965-1969) X (1969-1973) XI (1973-1974)
Percentagem 3,3 3,3 2,2 1,7 1,7 1,7 1,7 2,3 3,1 3,1 6
A educação foi um dos temas que mais preocupou estas deputadas. Onze delas, aliás, desempenharam funções docentes em diversos níveis de ensino6 e, na Assembleia Nacional, quando se criaram, em 1945, comissões parlamentares7, a de Educação Nacional, Cultura Popular e Interesses Espirituais e Morais teve várias mulheres8. Na primeira (1935-1938) e na segunda legislaturas (1938-1942), estava na ordem do dia a profunda transformação que o sector educativo sofreu durante os anos iniciais do Estado Novo, sobretudo a partir do momento em que Carneiro Pacheco passou a estar à frente do ministério da tutela que se denominou, a partir de 11 de abril de 1936, da Educação Nacional. O ministro, que fora nomeado a 18 de janeiro desse ano, levou a cabo uma importante obra reformadora. A mesma lei de 11 de abril, estabeleceu livros únicos em todos
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Nove foram professoras de liceu, das quais uma igualmente da Escola Normal Superior de Lisboa, outra na escola normal primária de Lisboa e uma terceira jurista, acabando esta vertente por se tornar predominante na sua vida profissional. Duas lecionaram na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, uma das quais igualmente do Instituto de Higiene Mental Infantil António Aurélio da Costa Ferreira, tendo outra, vindo posteriormente a leccionar em liceus e de novo no ensino superior, desta feita privado. Sobre as comissões parlamentares, cfr. CASTILHO, J. M. Tavares. Os Deputados da Assembleia Nacional (1935-1974). Lisboa, Assembleia da República, 2009, pp. 143-148. A saber, Virgínia Gersão (1945-1949), Maria Guardiola (1949-1953), Margarida Craveiro Lopes (19531961), Irene Costa (1957-1965), Custódia Lopes (1961-1965 e 1969-1973), Ester de Lemos (19651969), Alda Almeida, Lia Lello e Maria Luísa Oliveira (1973-1974)
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os graus de ensino (com excepção do superior), impôs a obrigatoriedade dos crucifixos nas salas de aula das escolas primárias e infantis da rede pública e criou a Junta Nacional da Educação. Era todo um programa de forte politização da acção educativa, que viria ainda a ser complementado com medidas diversas tomadas em 1936 e 1938: o nascimento da Mocidade Portuguesa, da Mocidade Portuguesa Feminina e da Obra das Mães pela Educação Nacional, reformas do ensino primário e do ensino liceal, transformação dos postos de ensino em postos escolares, encerramento das escolas do magistério primário, imposição da obrigatoriedade de as professoras terem autorização do ministério para casar e extinção do ensino infantil público. Carneiro Pacheco foi ainda o criador do Instituto para a Alta Cultura, da Academia Portuguesa da História e do Instituto Nacional de Educação Física9. Assim sendo, temos, por exemplo, na primeira legislatura, a apresentação, por Maria Guardiola, de um projeto de lei que visava alterar determinado passo da Constituição 10, caminhando para uma “confessionalização funcional” do ensino11. A proposta foi aprovada, dando origem à lei constitucional n.º 10, de 23 de maio de 1935 12. Uma outra deputada, Domitila de Carvalho enviou à mesa um projeto de lei sobre a introdução do ensino de higiene e puericultura nos liceus femininos e nas escolas secundárias em geral, o que foi conseguido quando, a 14 de outubro de 1936, Carneiro Pacheco criou, nos liceus femininos, o curso especial de educação feminina, onde a higiene e a puericultura estavam presentes, a par com outras matérias, nomeadamente costura, bordados, culinária, educação física, “economia e artes domésticas”, “moral geral, familiar e social” e outros13. Maria Guardiola sugeriu ainda
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MÓNICA, Maria Filomena. Educação e Sociedade no Portugal de Salazar. A Escola Primária Salazarista (1926-1939). Lisboa, Gabinete de Investigações Sociais, Presença, 1978; CARVALHO, Rómulo de. História do Ensino em Portugal. Desde a Fundação da Nacionalidade até ao fim do Regime de Salazar-Caetano. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, pp. 753-778; NÓVOA, António. “A ‘Educação Nacional’ ” In Portugal e o Estado Novo (1930-1960). coordenação de Fernando Rosas. Lisboa, Presença, 1992, pp. 458460. Onde aqui se lia “O ensino ministrado pelo Estado é independente de qualquer culto religioso, não o devendo porém hostilizar, e visa, além do revigoramento físico e do aperfeiçoamento das capacidades intelectuais, à formação do caráter, do valor profissional e de todas as virtudes cívicas e morais”, sugeria que se passasse a ler: “O ensino ministrado pelo Estado visa, além do avigoramento físico e do aperfeiçoamento das faculdades intelectuais, à formação do caracter, do valor profissional e de todas as virtudes cívicas e morais, não podendo contrariar os princípios da moral cristã” (Diário das Sessões, n.º 8, 23 de janeiro de 1935, p. 96). SANTOS, Paula Borges Santos. A Questão Religiosa no Parlamento. vol. III. Lisboa, Assembleia da República, 2011, p. 39. Diário das Sessões, n.º 44, 8 de abril de 1935, pp. 921-923. ADÃO, Áurea, REMÉDIOS, Maria José. “As raparigas portuguesas vão aos liceus do Estado Novo. Uma educação diferenciada no cumprimento de um ideário (1936-1947)” In Olhares sobre as Mulheres. Homenagem a Zília Osório de Castro. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, Centro de Estudos de Sociologia, 2011, pp. 41-54. O curso veio a ser extinto em 1947, com uma nova reforma do ensimo liceal
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três novas bases para o projeto da reforma do ensino secundário14 e foi cosubscritora de duas alterações ao projeto de lei de Henrique Galvão sobre a reorganização da educação física no ensino secundário15. A mesma deputada, assim como Cândida Parreira e Domitila de Carvalho, contribuiram ainda de diversas formas para a proposta de lei n.º 83, sobre a reforma do ministério da Instrução Pública16, nomeadamente propondo, com outros colegas, a adoção do livro único no ensino primário e nas disciplinas de História de Portugal, História Geral, Filosofia e Educação Moral e Cívica do ensino secundário17. Maria Guardiola participou, em março de 1938, no debate sobre a reforma do ensino primário, elogiando a ação da Obras das Mães pela Educação Nacional e referindo-se à “a difícil situação económica em que muitos deles [professores do ensino primário], com famílias numerosas a seu cargo, se debatem angustiadamente”18. No mesmo contexto, subscreveu, com outros colegas, uma proposta visando a educação das crianças “anormais”19. Domitila de Carvalho e Maria Guardiola foram também coautoras de duas outras propostas de alteração, a respeito dos exames da 4.ª classe20. Já na segunda legislatura, Maria Guardiola aplaudiu, em fevereiro de 1940, a criação, ocorrida dias antes, do Instituto Nacional de Educação Física21. Domitila de Carvalho apoiou, em janeiro de 1941, as disposições relativas ao recrutamento de professores primários oficiais22 e, em outra ocasião, louvou aquilo que considerou a ação notável do ministro da
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“Base V-A. Os exames do curso dos liceus de qualquer ciclo ou classe constarão simplesmente de provas escritas. Os exames do curso complementar constarão de provas escritas em todas as disciplinas e ainda de provas práticas naquelas cuja natureza o justifique. Nos casos de dúvida, a contraprova será também escrita. Base V-B. O exame e julgamento das provas escritas e práticas far-se-ão pelo regime de anonimato. Base V-C. Nos liceus femininos e sem prejuízo dos cursos complementares que existirem nos liceus masculinos deve existir uma secção de formação cultural feminina, onde, a par da intensificação do estudo da língua pátria, das línguas vivas já estudadas, de higiene, de puericultura e da prática dos lavores femininos, se ministrem também, conhecimentos das economias social e doméstica e de enfermagem”14. A proposta foi votada nesse mesmo dia e foi rejeitada a base V-A, sendo aprovadas as duas restantes (Diário das Sessões, n.º 38, 30 de março de 1935, p. 786). Diário das Sessões, n.º 40, 3 de abril de 1945, p. 819. Diário das Sessões, n.º 75, 8 de fevereiro de 1936, pp. 441-443; n.º 77, 12 de fevereiro de 1936, pp. 453456 e 470-476. Diário das Sessões, n.º 77, 12 de fevereiro de 1936, p. 476. A proposta de lei n.º 83 deu origem à lei n.º 1941, de 11 de abril de 1936. Diário das Sessões, n.º 175, 24 de março de 1938, pp. 546-547. Diário das Sessões, n.º 180, 1 de abril de 1938, p. 628; n.º 182, 6 de abril de 1938, p. 646. Diário das Sessões, n.º 182, 6 de abril de 1938, p. 652. Já me havia referido, em trabalho anterior, a alguns aspetos do eco desta reforma do ensino primário na Assembleia Nacional. Cfr. BRAGA, Paulo Drumond. “O Estado Novo e a educação pré-escolar: os debates parlamentares de 1938” In Cadernos de Investigação Aplicada. Lisboa, 2010, vol. IV, pp. 13-31. Diário das Sessões, n.º 271, 14 de fevereiro de 1940, pp. 271-272. Sobre a instituição em causa, cfr. INEF. 1940-1990. [Lisboa], Faculdade de Motricidade Humana, 1990; NÓVOA, António, GOMES, Rui, “Educação física” In Dicionário de História de Portugal. Porto, Figueirinhas, 2000, vol. VII, pp. 601-603. Diário das Sessões, n.º 96, 25 de janeiro de 1941, pp. 154-155.
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Educação Nacional, referindo-se a vários diplomas legislativos que contemplavam diversos aspectos de vários graus de ensino23. Na terceira legislatura (1942-1945), Maria Guardiola interveio em defesa das organizações femininas a que se encontrava ligada, a Obra das Mães pela Educação Nacional – “pretende despertar, valorizar o orientar qualidades e virtudes que vivem latentes no corarão da mulher” – e a Mocidade Portuguesa Feminina – que educava mulheres “para a vida do lar” e “também no amor da Pátria, que devem servir com generosidade”, além de não descurar “a cultura do espírito”24. Entretanto, a partir de finais dos anos 40, deu-se uma clara viragem na política educativa, o que não pode ser desligado do desenvolvimento económico relativo e da parcial abertura da economia portuguesa à Europa. Nesse processo, salientaram-se dois ministros da tutela, Fernando Augusto Pires de Lima, que deteve a pasta de 1947 a 1955, e Francisco Paula Leite Pinto, de 1955 a 1961, e dois subsecretários de Estado, Henrique Veiga de Macedo, que exerceu funções de 1949 a 1955, e Baltasar Rebelo de Sousa, de 1955 a 1961. Foi a época em que se iniciou o combate sistemático ao analfabetismo, sendo de salientar o Plano de Educação Popular (1952), assim como a intenção de Leite Pinto de elaborar uma reforma profunda de todo o sistema educativo, contando para isso com a colaboração da O.C.D.E. (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico), muito interessada então nos efeitos económicos da educação. O ministro equiparou as Escolas Superiores de Belas-Artes a universidades, alterou a estrutura dos cursos de Letras, continuou e aprofundou a política de combate ao analfabetismo: além de ter prosseguido o Plano de Educação Popular, tornou obrigatórias, no ensino primário, quatro classes para os rapazes e três para as raparigas (1956), eliminando, depois, a descriminação sexual (1960) e chegou a projectar alargar a escolaridade obrigatória para seis anos, medida que viria a ser concretizada anos depois25. Neste contexto, na quarta legislatura (1945-1949), Luisa Van Zeller comentou, em fevereiro de 1947, a proposta de lei de reorganização do ensino técnico-profissional, lamentando que o diploma deixasse de fora o ramo dos “profissionais de serviço social”26.
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Diário das Sessões, n.º 105, 26 de novembro de 1941, pp. 4-6. Diário das Sessões, n.º 39, Lisboa, 8 de abril de 1943, pp. 389-391. CARVALHO, Rómulo de. História do Ensino em Portugal […], pp. 784-797; NÓVOA, António. “A “Educação Nacional” […], pp. 460-461; SOUSA, Marcelo Rebelo de. Baltazar Rebelo de Sousa. Fotobiografia. Vendas Novas, Bertrand, 1999, p. 68-143; ADÃO, Áurea, REMÉDIOS, Maria José. “O alargamento da escolaridade obrigatória para as meninas portuguesas (1960). Uma medida legislativa envergonhada: sua representação nos jornais”. In Revista Histedbr [em linha]. Campinas, 2009, vol. 9, n.º 36, pp. 3-13 [disponível in http://www.fe.unicamp.br/revistas/ged/histedbr/article/view/3794/3210, consultado a 29 de janeiro de 2015]. Diário das Sessões, n.º 82, 1 de fevereiro de 1947, pp. 440-444.
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Uma outra deputada, Virgínia Gersão, embora se propusesse dissertar sobre o mesmo projeto, acabou por apresentar um quadro negro do que era, em sua opinião, o ensino primário de então: “a propósito de os [refere-se aos alunos] habituarmos a raciocinar depressa, nem vemos que os tornamos quase autómatos”27. Em janeiro de 1948, Virgínia Gersão pronunciouse sobre a reforma do ensino liceal, então recentemente publicada (setembro de 1947) e ainda alvo de muita polémica e discussão28. A referida deputada criticou o tempo excessivo que os alunos passavam nos liceus, o grande número de discentes por turma, a supressão do Latim, o fim das aulas práticas de Ciências e o desaparecimento do ponto programático relativo a Os Lusíadas da secção de Ciências29. Em março de 1949, alertou para o perigo das concessões de diplomas de habilitação para funções docentes em estabelecimentos privados a pessoas sem cursos superiores30. Mais tarde – não deixando, a dado passo, de salientar: “sou mesmo partidária do ensino pré-primário” – , voltou a insistir na necessidade de reduzir o número de horas que os alunos passavam nos liceus31. Em abril de 1950, já durante a quinta legislatura (1949-1953), Maria Guardiola, quando se discutia a proposta de lei de reforma do ensino das belas-artes, assinou uma proposta de substituição, que veio a ser aprovada, que contemplava, entre outros aspetos, a exigência, para o ingresso no curso de Arquitectura, da aprovação nos exames de História, Filosofia e Organização Política e Administrativa da Nação do 7.º ano liceal32. Em outubro de 1952, a mesma deputada felicitou o governo pelos decretos n.ºs 38 968 e 38 969, publicados
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Diário das Sessões, n.º 82, 1 de fevereiro de 1947, pp. 444-448. Note-se que a referida reforma do ensino técnico, começada a preparar por uma comissão nomeada em 1941, veio a ser implementada por decretos-lei de 25 de agosto de 1948, 13 de dezembro do mesmo ano e 22 de julho de 1949. Veio substituir legislação de 1918 e 1931. A principal novidade foi a criação de um ciclo preparatório de dois anos. De notar ainda o alargamento da formação geral e tecnológica em detrimento da formação prática. Manteve-se, no essencial, até à queda do Estado Novo. Cfr. Ensino Técnico Profissional. Edição Oficial. Lisboa: Imprensa Nacional, 1950; GRÁCIO, Sérgio. Ensinos Técnicos e Política em Portugal. 1910 / 1990. Lisboa, Instituto Piaget, 1998, pp. 117-135; ALHO, Albérico Afonso. Salazar e a Escola Técnica. A Reforma Tolerada num Regime Intolerante. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2011. Entre outros aspetos, estabelecera três ciclos para o ensino liceal (o terceiro apenas para quem fosse ingressar no ensino superior), reforçara os poderes dos reitores, aumentara o papel da Mocidade Portuguesa e da Mocidade Portuguesa Feminina nos liceus e criara a inspeção do ensino liceal. Cfr. Diário do Governo, I série, n.º 216, Lisboa, 17 de setembro de 1947, p. 879-927; NÓVOA, António. “A ‘Educação Nacional’ […], pp. 484-489; ADÃO, Áurea, REMÉDIOS, Maria José. “Memória para a frente, e... o resto é lotaria dos exames. A reforma do ensino liceal em 1947” In Revista Lusófona de Educação. Lisboa, 2008, vol. 12, pp. 41-65; Ó, Jorge Ramos do. Ensino Liceal (1836-1975). Lisboa, Ministério da Educação, Secretaria-Geral, 2009. Diário das Sessões, n.º 128, 28 de janeiro de 1948, pp. 192-194. Diário das Sessões, n.º 179, 24 de março de 1949, p. 313. O Estatuto do Ensino Particular veio a ser publicado a 8 de setembro desse ano, acompanhado do decreto-lei que regulamentava a inspeção desse mesmo ensino. Cfr. NÓVOA, António. “A ‘Educação Nacional’ […]”, pp. 461-464; SANTOS, Paula Borges. A Questão Religiosa no Parlamento. vol. III. […], pp. 102-108. Diário das Sessões, n.º 161, 11 de dezembro de 1952, p. 34. Diário das Sessões, n.º 47, 21 de abril de 1950, p. 864.
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dias antes33, considerando extremamente útil a luta contra o analfabetismo que vinha sendo feita pelo Estado Novo e enaltecendo a recente Campanha de Educação de Adultos 34. Naquela que seria a sua derradeira intervenção no parlamento, em dezembro do referido ano de 1952, defendeu a Mocidade Portuguesa e a Mocidade Portuguesa Feminina, que dias antes haviam sido atacadas por um outro deputado35. Na sexta legislatura (1953-1957), Margarida Craveiro Lopes dissertou, em março de 1955, sobre a educação da juventude, considerando que a mesma deveria ser partilhada entre a família, a Igreja e o Estado. Em sua opinião, o verdadeiro problema educacional português residia na existência de “compartimentos estanques entre aqueles que o têm nas mãos”, havendo a necessidade de se ser “cada vez mais objetivo na solução do pormenor, mais amplo na visão conjunta”36. Em janeiro de 1957, a mesma deputada, assim como Leonor Botelho, assinaram, com outros colegas, uma solicitação para apreciar o decreto-lei n.º 40 900, que criava a Comissão Permanente das Obras Circum-Escolares e Sociais do Ensino Superior37. Na sétima legislatura (1957-1961), Irene Costa defendeu, em abril de 1958, que a escolaridade obrigatória deveria ser de seis anos, como na maioria dos restantes países da Europa; alertou para a necessidade de não esquecer a especificidade da educação feminina; sugeriu a criação de um instituto para o “estudo científico da criança portuguesa e onde se ensaiem os métodos de ensino mais adequados à sua mentalidade”; defendeu a revisão da questão dos regentes escolares e dissertou sobre o ensino especial38. A mesma deputada voltou a este último tema, que lhe era bastante caro39. No ano seguinte, abordou de novo
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Diário do Governo, I série, n.º 241, Lisboa, 27 de outubro de 1952, pp. 1067-1095. Diário das Sessões, n.º 159, 5 de novembro de 1952, pp. 886-887. Sobre esta, cfr. PARREIRA, Jorge Martins. O Plano de Educação Popular (1952-1956). Um Desígnio da Educação Nacionalista para a Escolaridade Obrigatória. Dissertação de Mestrado em Ciências da Educação, especialização em Educação, Desenvolvimento e Políticas Educativas apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, exemplar mimeografado, Lisboa, 2006. Diário das Sessões, n.º 184, 16 de dezembro de 1952, p. 390-394. Enquadre-se em PIMENTEL, Irene Flunser. História das Organizações Femininas do Estado Novo […], pp. 228-229. Diário das Sessões, n.º 86, 30 de março de 1955, pp. 702-709. Diário das Sessões, n.º 177, 16 de janeiro de 1957, p. 221. A legislatura terminou sem que a Assembleia Nacional voltasse a pronunciar-se. Algum tempo depois, desencadeou-se a crise académica de 1962 e o governo, a 15 de outubro desse ano, promulgou o decreto-lei n.º 44 632, que substituiu o 40 900. Diário das Sessões, n.º 40, 18 de abril de 1958, pp. 869-873. Recorde-se que os regentes escolares surgiram em 1931, para estarem à frente dos chamados postos escolares, a criar em locais onde não existissem escolas, e que em 1936 se passaram a denominar postos de ensino. Pessoas sem qualquer formação, os regentes foram, a partir de 1935, submetidos a exames escritos e orais. O sistema só despareceu em 1973. Cfr. RIAS, Ana Paula Lopes de Oliveira Andrade. Regentes Escolares. “Colaboradores Benévolos” ao Serviço da Educação Nacional. Dissertação de mestrado em Histótia dos Séculos XIX e XX, seção século XX, apresentada à Faculdade de Cências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, exemplar mimeografado, Lisboa, 1997; GUINOTE, Paulo. “O lugar dos regentes escolares na política educativa do Estado Novo. Uma proposta de releiturs (anos 30 – anos 50)” In Sísifo. Revista de Ciências da Educação. Lisboa, 2006, vol. 1, pp. 113-126. Diário das Sessões, n.º 154, 18 de março de 1960, pp. 424-427.
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questões relacionadas com a educação, louvando as reformas do ensino primário e das escolas de formação de professores, o esforço realizado no particular das construções escolares, a possibilidade de acesso dos regentes de postos de ensino a professores e o projetode criação do ciclo preparatório40. Por seu turno, Margarida Craveiro Lopes referiu-se ao papel da família na educação do futuro adulto, deixando um apelo: “Será suficiente franquear às nossas raparigas as portas de todas as escolas se não atendermos o bastante à formação da futura mãe e dona de casa?”41. Em dezembro de 1962, na oitava legislatura (1961-1965), Irene Costa alertou para a necessidade de reformar as universidades, investir na investigação científica e criar um Instituto de Ciências da Educação42. Em janeiro de 1964, a mesma deputada defendeu o investimento na educação pré-escolar, o alargamento da escolaridade obrigatória para seis anos e a necessidade de formar especialistas em educação especial43. Margarida Craveiro Lopes, salientou o papel da família e da escola no processo educativo, recordando quão necessário era, em seu entender, educar os dois sexos de forma diferenciada. Considerou, assim, indispensável que a escola primária ministrasse noções de costura, higiene, economia doméstica e puericultura, ao mesmo tempo que as alunas das escolas do magistério primário deveriam ser, desde logo, alertadas para “o significado e a importância de uma valorização autenticamente feminina”, não deixando, a concluir, de elogiar o papel da Obra das Mães pela Educação Nacional e da Mocidade Portuguesa Feminina44. Uma outra parlamentar, Custódia Lopes, oriunda de Moçambique, interessou-se pela educação naquele território. Assim, em março de 1962, abordou a situação do ensino primário, alertando para o muito que, em sua opinião, havia ainda a fazer 45. Em outra ocasião, aludiu ao aumento dos gastos do Estado com a educação na província, recordando, contudo, que alguns setores careciam de melhoras, como o da saúde escolar e os da “assistência infantil” e da “educação das crianças em idade pré-escolar”. Também chamou a atenção para o cuidado que deveria haver na escolha dos manuais escolares para o Ultramar e aplaudiu a
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Diário das Sessões, n.º 212, 21 de abril de 1961, pp. 791-794. Diário das Sessões, n.º 213, 22 de abril de 1961, pp. 804-808. Diário das Sessões, n.º 62, 15 de dezembro de 1962, pp. 1612-1615. Diário das Sessões, n,º 122, 30 de janeiro de 1964, pp. 3005-3008. De facto, em 1963, o ministro Inocêncio Galvão Teles projetou a elaboração de um Estatuto da Educação Nacional, que nunca chegou a ser implementado, e que redefinirira os grandes princípios orientadores da acção educativa, contemplando, além dos aspectos mais ou menos óbvios, como a reforma dos ensinos primário, liceal e técnico, outros, como o apoio ao ensino particular, a instituição dos serviços sociais universitários e a promoção do ensino da língua portuguesa no estrangeiro, sobretudo em França. Diário das Sessões, n.º 123, 31 de janeiro de 1964, pp. 3038-3044. Diário das Sessões, n.º 40, 2 de março de 1962, pp. 896-899.
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criação recente do ensino superior nas províncias46. Em fevereiro de 1964, foi subscritora de uma moção, onde se defendia o prolongamento da escolaridade obrigatória e uma vasta revisão de todo o sistema de ensino, que foi aprovada47. A educação no Ultramar estava, de facto, na ordem do dia. Recorde-se que, em 1962, foram criados, pelos ministros da Educação Nacional, Manuel Lopes de Almeida, e do Ultramar, Adriano Moreira, os Estudos Gerais Universitários, ao mesmo tempo que foi aumentando significativamente, a partir de 1956, o investimento estatal nos restantes níveis de ensino48. Na nona legislatura (1965-1969), de novo os assuntos ligados à educação ocuparam as deputadas. Em janeiro de 1967, Ester de Lemos usou da palavra, referindo-se ao papel do Estado (a quem competiria “coordenar esforços e com o exemplo que encoraja e o apoio que fortalece, estimular as iniciativas particulares de quantos se dediquem à educação”) e da família, (a quem cabe “a maior responsabilidade que não poderemos contudo exigir-lhe se ela não estiver à altura de satisfazer pelas suas fracas e insuficientes possibilidades materiais, morais e espirituais, as obrigações que lhe competem e de assumir o direito que por natureza lhe assiste na educação da juventude”)49. Dias depois, elogiou o papel das duas organizações de juventude50. Em outra ocasião, lamentou que se tivessem criado, nas Faculdades de Letras, institutos a que se não deu verba51. Em março de 1969, elogiou a acção de Maria Guardiola, que meses antes deixara o comissariado nacional da Mocidade Portuguesa Feminina, depois de mais de três décadas de exercício. A dada altura referiu: “As ideias de renovar, rever, reformar (tudo acções a que o prefixo confere afinal um sentido de repetição e retorno) são incentivos que às vezes perturbam e embriagam a multidão, até ao ponto de levar os homens à infidelidade e à ingratidão, que é a mais feia das suas formas. […] E na verdade é às vezes apenas a ânsia do novo, da mudança, que parece mover os homens contra aquilo que esta —e que eles ajudaram a estar. Tendência em si mesma salutar —, na condição, porém, de não pretender mudar o que deve ser, dentro dos limites humanos, imutável; de não tocar no essencial da doutrina. Em suma: de não se faltar à fé jurada, uma vez que se tenha jurado uma fé”52. Segundo me foi declarado pela própria Ester de Lemos, esta intervenção desagradou 46 47 48
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Diário das Sessões, n.º 124, 1 de fevereiro de 1964, pp. 3071-3076. Diário das Sessões, n.º 126, 6 de fevereiro de 1964, p. 3153. PAULO, João Carlos. “Da ‘educação colonial portuguesa’ ao ensino no Ultramar” In História da Expansão Portuguesa, direção de Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri. Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, vol. 5, pp. 304-333. Diário das Sessões, n.º 60, 21 de janeiro de 1967, pp. 1083-1085. Diário das Sessões, n.º 61, 25 de janeiro de 1967, pp. 1095-1102. Diário das Sessões, n.º 146, 9 de março de 1968, pp. 2677-2679 Diário das Sessões, n.º 197, 21 de março de 1969, pp. 3613-3615.
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profundamente ao recém-empossado Marcelo Caetano, que a considerou uma crítica indirecta à sua política, embora, na verdade, não o fosse53. Em março de 1967, Custódia Lopes referiu-se a um conjunto de realidades do ensino ultramarino, nomeadamente as recém-criadas classes pré-primárias e considerou que seria vantajoso criar escolas de artes e ofícios para ambos os sexos, ao mesmo tempo que se deveria incentivar a frequência das escolas agrícolas já existentes54. Meses depois, a mesma deputada, começou por recordar que os problemas do ensino liceal no Ultramar eram superiores aos da metrópole, lamentando que fossem ainda poucos os que frequentavam os liceus moçambicanos. Seguidamente, analisou o problema do elevado número de reprovações nos exames de admissão aos liceus na província55. Em fevereiro de 1969, defendeu que “o ensino da língua portuguesa deverá ser feito de uma maneira actualizada, com os métodos modernamente adoptados ao ensino das línguas vivas”, não como se fosse uma língua morta, atendendo somente a aspectos “gramaticais, filológicos e linguísticos e ainda históricoliterários”. Alertou finalmente para uma necessidade de “reforma de métodos, programas e meios de acção”56. Uma outra deputada africana, concretamente oriunda de Angola, Sinclética Torres, por duas vezes propôs a necessidade de adaptar os manuais escolares às realidades do Ultramar57. Também considerou desajustados os períodos escolares em Angola: “As aulas funcionam apanhando os meses mais quentes do clima tropical. A juventude infantil tem de ficar em casa durante as férias por serem os meses mais frios, os de cacimbo. Os adolescentes, nas férias grandes, impossibilitados de um período de praia, ou vida ao ar livre, vão para cafés e bares, onde se viciam na bebida, sem nenhum proveito salutar, e à noite, porque o corpo não fez exercícios durante o dia, vão para cabarets e clubes dos subúrbios, onde iniciam uma vida de corrupção indesejável sob todos os aspectos. De resto, com a Universidade em Angola já não se justifica este capricho dos perdidos escolares não adaptados ao clima tropical; seria ainda um meio de fixação de que a província tanto carece”58. Na primeira legislatura escolhida sob a gestão de Marcelo Caetano, a de 1969-1973, quatro mulheres sentaram-se em São Bento. Na ocasião, a Assembleia Nacional conheceu uma
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Declarações prestadas telefonicamente a 14 de janeiro de 2015. Diário das Sessões, n.º 83, 17 de março de 1967, pp. 1522-1525. Diário das Sessões, n.º 136, 15 de fevereiro de 1968, pp. 2239-2243. Diário das Sessões, n.º 175, 8 de fevereiro de 1969, pp. 3131-3134. Diário das Sessões, n.º 78, 9 de março de 1967, pp. 1402-1403; n.º 133, 9 de fevereiro de 1968, pp. 24022403. Diário das Sessões, n.º 162, 16 de janeiro de 1969, pp. 2933-2935.
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renovação total de 65%59, o que só parcialmente se refletiu na representação feminina60. Estáse no tempo da chamada “ala liberal” 61, de que uma das mulheres, Raquel Ribeiro, fazia parte, e que integrava independentes e jovens – a media etária foi de 42 anos – empenhados nalgumas transformações graduais do Estado Novo a partir de dentro, nomeadamente José Pedro Pinto Leite, Francisco Sá Carneiro, Miller Guerra, Francisco Pinto Balsemão e Magalhães Mota. Contudo, se inicialmente se esperou alguma mudança no regime – falou-se então de “primavera marcelista” e de “renovação na continuidade”62 – , a partir de 1971 verificou-se que tal era praticamente impossível, pelo menos a curto ou médio prazo, devido a aspetos como a rejeição da proposta de revisão constitucional e da lei de imprensa saídas da “ala liberal” (1971)63, a que se seguiram a reeleição de Américo Tomás como presidente da República (1972) e o abandono da Assembleia Nacional por dos dois deputados mais relevantes da referida fação, Sá Carneiro e Miller Guerra (janeiro e fevereiro de 1973) 64. Nesta legislatura, duas parlamentares, Luzia Beja65 e Raquel Ribeiro66 interessaram-se sobremaneira pela educação especial. A segunda também defendeu a melhoria da preparação dos médicos67 e aproveitou o facto de a UNESCO ter proclamado 1970 como o ano internacional da educação, para lançar um apelo: “Esta comemoração tem dois temas principais: a luta contra o analfabetismo e a educação permanente”, esperando que a família “não se demita da sua função principal - a de educadora. Que saiba salvaguardar os valores positivos de que ainda pode ser detentora a nossa sociedade, sem se fechar à mutação das 59 60 61
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CASTILHO, J. M. Tavares. Os Deputados da Assembleia Nacional […], p. 252. CASTILHO, J. M. Tavares. Marcello Caetano. Uma Biografia Política. Coimbra, Almedina, 2012, p. 548. FERNANDES, Tiago. Nem Ditadura, nem Revolução. A Ala Liberal e o Marcelismo (1968-1974). Lisboa, Assembleia da República, Dom Quixote, 2006; REIS, Joana. A Transição Impossível. A Ruptura de Francisco Sá Carneiro com Marcello Caetano. Alfragide, Casa das Letras, 2010; Idem, Melo e Castro. O Provedor que dizia Sim à Democracia. Alfragide, Casa das Letras, 2013, pp. 105-116. Fernando Rosas tem insistido, a meu ver com muita razão, no facto de que o marcelismo não poder ser visto como um “disfarce demagógico do salazarismo”, representando, pelo contrário, o “triunfo político de uma corrente reformista que vinha a manifestar-se no interior do Estado Novo desde o pós-guerra e que falhara, em 1958 e em 1961, as suas grandes oportunidades históricas de tomar o poder”. Cfr. ROSAS, Fernando. “Marcelismo, a liberalização tardia (1968-1974)” In O Estado Novo (1926-1974), coordenação de Fernando Rosas. Lisboa, Estampa, 1994, p. 546. Do mesmo autor, veja-se, também “O marcelismo ou a falência da política de transição no Estado Novo” In Do Marcelismo ao Fim do Império, coordenação de J. M. Brandão de Brito. Lisboa, Notícias, 1999, pp. 15-59 e “Marcelismo: ser ou não ser” In A Transição Falhada. O Marcelismo e o fim do Estado Novo (1968-1874), coordenação de Fernando Rosas e Pedro Aires de Oliveira. Lisboa, Notícias, 2004, pp. 9-26. O próprio Marcelo Caetano teve clara consciência que 1971 marcou uma cisão na Assembleia Nacional. Cfr. CAETANO, Marcelo. Depoimento. Rio de Janeiro, São Paulo, Record, 1974, p. 92. CASTILHO, J. M. Tavares. Marcello Caetano […], pp. 609-761, OLIVEIRA, Pedro Aires. “A última janela de oportunidade? Ensaio de ‘História contrafactual’ em torno de um cenário presidencial diferente em 1972” In O Eterno Retorno. Estudos em Homenagem a António Reis, coordenação de Maria Inácia Rezola e Pedro Aires Oliveira. Lisboa, Campo da Comunicação, 2013, pp. 563-584. Diário das Sessões, n.º 95, 23 de abril de 1971, pp. 1888-1889. Diário das Sessões, n.º 95, 23 de abril de 1971, pp. 1887-1888. Diário das Sessões, n.º 153, 27 de janeiro de 1972, pp. 3092-3093.
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condições sociais, ao progresso, ao diálogo com a juventude”. Por outro lado, os professores, “que não se limitem a ser "funcionários do ensino", mas os grandes cooperadores na formação da personalidade e no desenvolvimento integra dos seus alunos”68. Mais tarde, abordou questões relacionadas com a escolaridade obrigatória na região urbana de Lisboa69 e, em abril de 1970, teve ocasião de se referir à “democratização do ensino em Portugal”, considerando: “O Estado Social que defendemos exige que à Universidade seja dada uma missão social com toda a sua amplitude. E exige, por conseguinte, que se processem as condições e os modos necessários
a
promover
a
vida
cultural
de
todos,
mesmo
dos
desfavorecidos
economicamente”70. Aina em abril de 1970, três deputadas associaram-se a duas propostas de moção. Uma delas teve as assinaturas de Custódia Lopes e Sinclética Torres: “A Assembleia Nacional, ao encerrar-se o debate sobre o aviso prévio do Sr. Deputado Miller Guerra acerca das Universidades tradicionais e da sociedade moderna, manifesta o seu apreço por quantos, através da secular existência da Universidade em Portugal, procuraram cumprir os seus deveres de educadores, de estudiosos e de investigadores, formando o escol dirigente do País e enriquecendo a cultura nacional. Regista a necessidade de adequar o ensino superior português às condições da sociedade moderna, abrindo-o largamente a todos quantos, pela sua inteligência e qualidades de trabalho, devam ter acesso aos graus mais elevados do conhecimento científico. Nota com satisfação que o Governo inscreva no seu programa uma profunda reforma do ensino superior, para a qual encetou os trabalhos preparatórios e publicou já importantes providências legislativas. Confia em que o Governo prossiga na reforma com rapidez, atendendo quanto antes às mais graves carências evidenciadas e tendo em conta as sugestões produzidas pêlos diversos oradores no debate ora findo. Exprime a sua esperança de que para o esforço da reforma contribuam todos quantos, autorizada e utilmente, nela devam participar, movidos pelo alto intuito de melhorar as instituições escolares portuguesas e suas orientações, usos e métodos de trabalho, de modo que a escola, em todos os seus graus, seja um instrumento eficaz de renovação de mentalidades, dignificação moral e desenvolvimento económico do País”71. Raquel Ribeiro assinou a segunda proposta: “A Assembleia Nacional, considerando o debate do aviso prévio sobre "As Universidades tradicionais e a sociedade moderna" e
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Diário das Sessões, n.º 15, 24 de janeiro de 1970, pp. 267-268. Diário das Sessões, n.º 23, 18 de fevereiro de 1970, pp. 414-415. A 7 de abril de 1970, vieram as respostas (Diário das Sessões, n.º 30, 8 de abril de 1970, pp. 566-568). Diário das Sessões, n.º 35, 16 de abril de 1970, pp. 715-716. Diário das Sessões, n.º 39, 22 de abril de 1970, p. 814.
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manifestando o seu apoio à política do actual Governo relativamente à vida das instituições universitárias, delibera recomendar que se realize com urgência a reforma das Universidades existentes e que se proceda à fundação de novas Universidades de estrutura diversa, sugerindo as seguintes medidas imediatas: Aumento do número de docentes de todas as categorias, de modo a ser possível um ensino personalizado, indissociàvelmente ligado à investigação científica; Criação das condições indispensáveis ao exercício da docência em regime de tempo inteiro; Institucionalização do ensino pós-graduado; Alteração da constituição dos conselhos escolares, de forma que representem efectivamente todo o corpo docente e discente; Funcionamento normal das associações académicas; Elevação do quantitativo e aumento relevante do número de bolsas de estudo, integrados numa premente política de democratização do ensino; Criação da carreira de investigação científica; Integração das Universidades no processo de desenvolvimento económico, social e político da Nação; Reestruturação do Ministério da Educação Nacional, dotando-o de órgãos de estudo e de gestão modernos; Criação de uma comissão que elaborará um relatório sobre a reforma da Universidade, baseado nos textos recebidos das Universidades, sindicatos, ordens, sociedades científicas e culturais, empresas, corpos administrativos e de todas as pessoas e entidades interessadas, bem como na informação colhida nas experiências estrangeiras; Ampla discussão desse relatório, finda a qual, e consideradas eventuais alterações, será entregue ao Governo” 72. A primeira proposta foi aprovada, razão pela qual não se chegou a votar a segunda 73. Era o claro triunfo, na Assembleia Nacional, do setor mais conservador e menos permeável à mudança74. Em abril de 1973, Raquel Ribeiro usou da palavra a propósito da proposta de lei n.° 25/X sobre a reforma do sistema educativo75. Em seu entender, a educação deveria caber, em primeiro lugar, à família, depois, ao Estado, finalmente, à Igreja, cujo papel seria, em seu entender, “importante na promoção integral de todos os povos”, daí “o direito que lhe assiste a ministrar ensino religioso e profano”. Defendeu o ensino privado e salientou a relevância da
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Diário das Sessões, n.º 39, 22 de abril de 1970, p. 814. Diário das Sessões, n.º 39, 22 de abril de 1970, p. 814. RIAS, Ana Paula Lopes de Oliveira Andrade. A Universidade no Contexto da Reforma Veiga Simão (1971), vol. I, pp. 146-147. Sobre o debate desta na Assembleia Nacional, cfr. GRÁCIO, Rui. “Le débat a sujet de la ‘reforme Veiga Simão’ (proposition de loi n.º 25 / X) à l’ Assemblé Nationale” In id., Obra Completa. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, vol. I, pp. 625-697.
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educação pré-escolar, que “está na base de uma verdadeira mudança cultural de uma sociedade”, assim como “a diversificação e inter-relacionação ao nível do ensino superior”76. Luzia Beija defendeu, por duas vezes, a necessidade de aumentar do investimento público na educação especial77. E congratulou-se, em abril de 1973, pela criação, prevista na proposta de lei sobre a reforma do sistema educativo, da educação pré-escolar e do ensino especial, mas solicitou a inclusão da “formação familiar” e das “ciências domésticas”. Tudo isto porque se vinha verificando, nos últimos anos, “a alteração profunda no conceito de família”, nomeadamente porque a mulher “transpôs as fronteiras do lar, a que sempre estivera confinada, e juntou às suas funções tradicionais de dona de casa, mãe e educadora a sua participação nas tarefas da comunidade”, o que originou “um novo estilo de relações entre homens e mulheres, destinados, cada vez mais, a viveram lado a lado e a colaborar, em pé de igualdade, nos mesmos trabalhos”78. Se esta alocução de Luzia Beija espelha mudanças comportamentais visíveis no Portugal de 197379, o grosso das intervenções da mesma parlamentar, assim como de Raquel Ribeiro, a respeito de questões educativas, prendem-se com a importante obra levada a cabo pelo derradeiro ministro da Educação Nacional, José Veiga Simão, reforma tão profunda quanto a de Carneiro Pacheco, mas de sinal oposto. O objectivo era claro: tentar, através da educação, recuperar o grande atraso de Portugal face aos outros Países da Europa. Assim, o titular da pasta promulgou, em 1971, a lei orgânica do ministério que criou três direcções gerais do ensino (básico, secundário e superior) e uma dos assuntos culturais. No mesmo ano, reformou a Mocidade Portuguesa, que deixou de ser obrigatória, e aprovou a Universidade Católica Portuguesa. Em 1972, restabeleceu a co-educação no ensino primário e instituiu-a no ensino preparatório, criou a Obra Social do Ministério da Educação e o ensino secundário nocturno. Em 1973, decretou uma reforma completa do sistema de ensino: passaria a haver a educação pré-escolar, o ensino básico (que se subdividia em ensino primário e ensino preparatório, ambos obrigatórios), o ensino secundário, com dois ciclos, o ensino superior, e, finalmente, em paralelo, a formação profissional. Acrescente-se ainda que criou universidades – Nova de Lisboa, Braga, Aveiro e Évora (esta última, inicialmente com o estatuto de instituto universitário) – , faculdades – Economia de Coimbra – , institutos – Instituto Superior de 76 77
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Diário das Sessões, n.º 252, 14 de abril de 1973, pp. 5108-5111. Diário das Sessões, n.º 19, 31 de janeiro de 1970, pp. 342-344; n.º 79, 6 de fevereiro de 1971, pp. 16011602. Diário das Sessões, n.º 253, 25 de abril de 1973, pp. 5135-5136. GAMEIRO, José. “Uma nova visão da família e do casamento” In Portugal Contemporâneo, direção de António Reis. Lisboa, Alfa, 1989, vol. V, pp. 357-366; ALÃO, Ana Paula. “Amor e sexualidade: mudanças de comportamento” In ibidem, pp. 367-380; MÓNICA, Maria Filomena. “Trinta anos que mudaram Portugal. 1961-1991” In id., Cenas da Vida Portuguesa. Lisboa, Quetzal, 1999, pp. 13-55.
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Ciências do Trabalho e da Empresa – e diversas escolas politécnicas (que, contudo, só mais tarde viriam a funcionar), extinguiu os postos escolares, transformando-os em escolas primárias, e preocupou-se com a educação pré-escolar, tendo criado o conjunto escolar experimental Senhor da Serra (concelho de Miranda do Corvo) e duas escolas de formação educadores de infância. Nas vésperas do 25 de Abril, estavam preparados dois diplomas, que não chegaram a entrar em vigor, a lei da autonomia universitária e o estatuto da carreira docente não-superior. Apesar dos eventuais defeitos e limitações da sua política educativa, no tempo em que Veiga Simão esteve no governo deu-se um progresso inegável na educação, tendo muitas das suas ideias e projectos sido retomados depois de 197480. Os problemas do Ultramar continuaram, nesta legislatura, na ordem do dia. Em abril de 1970, Sinclética Torres dissertou sobre aspetos vários da Universidade de Luanda, desde cursos a números de docentes e alunos81. O mesmo fez Custódia Lopes, mas sobre o ensino superior em Moçambique82, sugerindo, numa outra intervenção, a criação, “nos próprios territórios extra-uropeus, escolas superiores de administração ultramarina, um pouco à semelhança do instituto existente em Lisboa”83. A derradeira legislatura do Estado Novo começou a 15 de novembro de 1973 e devia findar a 30 de abril de 1974. Esboce-se um enquadramento mais geral: desde que, em 1971, se verificara estar completamente bloqueada qualquer possibilidade, pelo menos a curto ou médio prazo, de mudança profunda do Estado Novo, a partir de dentro, pouco havia a esperar das eleições legislativas de novembro de 1973, classificadas por um dos deputados então 80
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CARVALHO, Rómulo de. História do Ensino em Portugal […]. pp. 807-813; STOER, Stephen R. “A reforma de Veiga Simão no ensino: projecto de desenvolvimento social ou ‘disfarce humanista’?”, In Análise Social. Lisboa, 1983, vol. XIX (77-78-79), n.º 3-4-5, pp. 793-822; RAMOS, Dulce Resende Coelho de Resende. A Reforma de Veiga Simão. Uma Oportunidade perdida de Modernização do Sistema Educativo Português na Década de 70, dissertação apresentada ao Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho para obtenção do grau de Mestre em Educação, especialidade de Desenvolvimento Curricular, exemplar mimeografado, Braga, 1998; PROENÇA, Maria Cândida. “A reforma educativa de Veiga Simão”, in A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (19681974), coordenação de Fernando Rosas e Pedro Aires de Almeida. Lisboa, Ed. Notícias, 2004, pp. 233261; ROSA, Daniel Augusto de Melo. Ensino Secundário Nocturno (1972-1997). Um Contributo para o Estudo da Criação e Evolução dos Cursos Complementares. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias para obtenção do grau de Mestre em Ciências da Educação, especialização em Educação, Desenvolvimento e Políticas Educativas, exemplar mimeografado, Lisboa, 2001; RIAS, Ana Paula Lopes de Oliveira Andrade. A Universidade no Contexto da Reforma Veiga Simão (1971), dissertação de doutoramento em História apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, exemplar mimeografado, Lisboa, 1997. Diário das Sessões, n.º 36, 17 de abril de 1970, pp. 742-744. Diário das Sessões, n.º 85, 19 de fevereiro de 1971, pp. 1716-1719 Diário das Sessões, n.º 256, 28 de abril de 1973, pp. 5268-5269. O estebelecimento a que Custódia Lopes se referia chamou-se, sucessivamente, Escola Colonial (1906-1927), Escola Superior Colonial (19271954), Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (1954-1962), Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (1962-1975) e, finalmente, desde 1975, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Em 1961 foi integrado na Universidade Técnica de Lisboa, fazendo partem desde 2013, da nova Universidade de Lisboa
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escolhidos, aliás, pessoa próxima de Marcelo Caetano, como um “melancólico ‘cumprir de calendário’ ”84. E, de facto, a oposição desistiu à boca das urnas, como havia sido costume antes de 1969. Neste “multidão de ilustres desconhecidos”, como chamou Tavares Castilho à derradeira câmara legislativa do Estado Novo, nove mulheres foram deputadas, número nunca anteriormente alcançado. Em termos gerais, a renovação então acontecida na Assembleia Nacional foi aparente e teve mais a ver com o aumento do número de deputados imposto pela revisão constitucional de 197185. As questões educativas interessaram diversas deputadas. Josefina Marvão defendeu, em fevereiro de 1974, a criação de estabelecimentos de educação pré-escolar, atendendo a que era cada vez maior o número de mulheres a trabalhar fora de casa86. Clementina de Vasconcelos, em abril do mesmo ano, referiu: “Entre as graves dificuldades que enfrenta a nossa batalha da educação (como lhe temos ouvido chamar), avultam três: as instalações e os equipamentos; os programas e os livros adequados; o recrutamento, preparação e situação dos professores87. Sobre a situação do corpo docente se pronunciou ainda Lurdes Oliveira, em fevereiro de 197488. Já Lia Lello, debruçou-se, já no mês em que caiu o Estado Novo, sobre a ocupação das instalações do Instituto Superior de Economia por alunos e a posterior reação do diretor, que recorreu ao uso da força, dizendo: “A subversão, a anarquia e a agressão constituem crimes punidos pelas nossas leis. Por isso me permito lavrar aqui o meu inequívoco e profundo protesto de repulsa, pedindo ainda às entidades competentes que estabeleçam medidas que evitem a repetição de tais e tão reprováveis actos” 89. Nesta legislatura, os assuntos relacionados com a educação no Ultramar mantiveramse na ordem do dia. Em fevereiro de 1974, Sinclética Torres referiu-se, uma vez mais, à urgência de adequar os períodos escolares praticados em Angola à realidade do território, devendo as aulas funcionar de abril a dezembro e não de outubro a junho90. Luísa Oliveira, depois de elogiar a ação de Veiga Simão e de salientar, quase em tom apocalíptico, a indispensabilidade de “bons e qualificados docentes, que formem os jovens e os preparem para a vida prática”, centrou a sua intervenção no caso específico de Angola, lamentando “as
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MELO, Manuel José Homem de. Meio Século de Observação. [Lisboa], Círculo de Leitores, 1996, p. 190. CASTILHO, J. M. Tavares. Os Deputados da Assembleia Nacional […], p. 253. Diário das Sessões, n.º 33, 22 de fevereiro de 1974, pp. 664-667. Diário das Sessões, n.º 49, 6 de abril de 1974, pp. 955-957. Diário das Sessões, n.º 33, 22 de fevereiro de 1974, pp. 660-663. Diário das Sessões, n.º 47, 4 de abril de 1974, pp. 928-929. Diário das Sessões, n.º 23, 6 de fevereiro de 1974, pp. 471-474.
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dificuldades tremendas e de toda a ordem no início do ano lectivo, que se avolumam de ano para ano e se esperam sejam ainda mais graves em 1974-1975”91. Em conclusão, refira-se que as questões educativas – assim como as políticias sociais – foi um dos principais interesses das 22 mulheres que, entre 1935 a 1974, integraram a Assembleia Nacional do Estado Novo92. Nos primeiros anos, ouvimos Domitila de Carvalho, Cândida Parreira, Maria Guardiola elogiarem as reformas de Carneiro Pacheco, para as quais acabaram mesmo por contribuir, nomeadamente no que tocou ao ensino de higiene e puericultura nos liceus ou à adoção dos livros únicos. Entre finais dos anos 40 e o ocaso do salazarismo, Virgínia Gersão, Leonor Botelho, Irene Costa, Margarida Craveiro Lopes, Custódia Lopes e Sinclética Torres congratularam-se pelas medidas levadas a cabo pelo governo. No fim do regime, Raquel Ribeiro, Luzia Beija, Josefina Marvão, Clementina de Vasconcelos e Luísa Oliveira aplaudiram as reformas de Veiga Simão. Nunca deixaram de chamar a atenção para aspetos que consideravam menos positivos – veja-se o caso de Virgínia Gersão, sempre crítica – ou de apelar para a necessidade de mais e melhores reformas – como Irene Costa, campeã do ensino especial. Todos os graus de ensino mereceram a atenção destas deputadas, sendo de relevar a defesa da educação pré-escolar, quando a mesma havia deixado de ser uma responsabilidade do ministério da Educação Nacional, primeiro por Virgínia Gersão, mais tarde por Irene Costa e Josefina Marvão. Temas como a especificidade da educação do sexo feminino, as organizações de juventude e a escolaridade no Ultramar não deixaram de ser abordados em diversas ocasiões, neste último caso, a partir do momento em que em São Bento passaram a existir deputadas africanas.
91 92
Diário das Sessões, n.º 33, 22 de fevereiro de 1974, pp. 660-663. Não difere muito do panorama espanhol dos anos de 1943-1975. Cfr. FRANCO RUBIO, Gloria A. “De la vida doméstica e la presencia pública: las mujeres en las Cortes franquistas” […].
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A biografia de Eliseu Visconti pela escrita de Frederico Barata Eliseu Visconti throught the lens of Barata Ana Heloisa Molina * Universidade Estadual de Londrina
Resumo
Abstract
Eliseu d’Angelo Visconti (1866-1944) foi um pintor italiano naturalizado brasileiro cujas obras marcaram as primeiras décadas do século XX. Intitulado como “impressionista” ou “pintor eclético” sua biografia redigida pelo crítico de arte Frederico Barata (1900-1962) adquire outro viés de abordagem. Esse artigo procura apresentar Eliseu Visconti enquanto homem de seu tempo, as linhas que cruzam os referenciais teóricos sobre o uso da biografia e sua escrita, no caso, sob o olhar de um crítico de arte e, por fim, o perfil do artista traçado por Barata em seu livro “Eliseu Visconti e seu tempo”.
Eliseu D'Angelo Visconti (1866-1944) was an italian painter who lived many years in Brazil. His works grew up on the first decades of the XX century, when was called by the main critics of art as "impressionistic" or "eclectic" paintings. His biography, written by Frederico Barata (1900-1962), however, presented new skills and details that reinvent the work. In this article, we present Eliseu Visconti through the lens of Barata, according to the book "Eliseu Visconti and his time", and also by the eye of the own time of the painter and his common criticals.
Palavras-chave: Eliseu Visconti; Frederico Barata; crítica de arte.
Keywords: Eliseu Visconti; Frederico Barata; art criticism.
● Enviado em: 17/05/2017 ● Aprovado em: 28/06/2017
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Departamento de História. Área de Metodologia e Prática de Ensino de História..
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As relações entre memória e história possuem fronteiras que envolvem distintas concepções de varias áreas das ciências humanas e como tal estabelecem parâmetros de aproximação e distanciamento; narram sobre a identidade e sobre o outro em pluralidades de entonações. Tais questões apontam também sobre os modos de escrever sobre uma pessoa singular em biografias cujas entrelinhas de escrituras envolvem deslocamentos afetivos, criticidade e exatidão de dados (ou não) em uma trama narrativa impressa e acessível ao público. E quando tal narrativa é entabulada por um crítico de arte como essa prática de escrita se configura? Este texto se propõe a apresentar a escrita da vida e obra de Eliseu Visconti (18661944) pintor italiano, naturalizado brasileiro, cuja trajetória artística abrange as primeiras décadas do século XX pela pena de Frederico Lopes Freire Barata (1900-1962) historiador, crítico de arte e amigo próximo do artista. Em um primeiro momento delineará Visconti e sua época. Época essa em transição política, social e cultural em uma escala não restrita ao Brasil, em que a chegada do século XX e as perspectivas de progresso e a crença da idéia de melhoria em geral eram a tônica dos debates e discussões. A seguir indicará as linhas teóricas e metodológicas sobre o uso da biografia na historiografia e em um terceiro momento, apresentará o livro “Eliseu Visconti e seu tempo”, escrito por Frederico Barata e publicado em 1944, ano do falecimento do pintor, onde selecionamos alguns trechos para análise de sua escrita. Esse crítico de arte traçará um perfil mesclando a vida, a obra e o tempo desse pintor. A especificidade desse tipo de escrita, a crítica de arte, será também pontuada.
1.
Visconti e sua época: linhas indicativas
Eliseu Visconti e sua época. Quem foi esse pintor? Qual seu tempo? Conhecer Visconti, como homem de um tempo em que as mudanças, em todos os níveis, processavam-se de forma rápida e atropelada é privilegiar um enfoque desses objetos em uma malha de relações, em que a tradição e o moderno, o progresso e o arcaísmo confrontam-se em uma arena de fixação de poderes e espaços. Visconti ganha maior projeção no cenário artístico brasileiro, quando executa o pano de boca do Teatro Municipal do Rio de Janeiro entre 1905 a 1908. Nesse momento, na transição do século XIX ao XX, temos a legitimação de outra ordem política não desvinculada de mecanismos de manutenção anteriores, mas, com brechas à subversão, em um território Revista Diálogos Mediterrânicos
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urbano não de todo definido, mas, reconfigurado e remodelado à custa de uma expansão capitalista e sob a permanência ideológica de um regime político a ser instaurado à custa de forças de coerção ainda latentes, mas, extremamente definidoras. As batalhas intelectuais, calcadas em instâncias institucionais, solidamente fincadas no Segundo Império, na verdade, promovem lentas reformas, tênues mudanças. Privilegiamos nesse momento, o IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e a AIBA (Academia Imperial de Belas Artes e depois da proclamação da República, Escola Nacional de Belas Artes ENBA), na condição de duas instituições fincadas no Segundo Império no intuito de perceber a malha de proposições e ações ocorridas durante essa transição: de tempo, de regime político, de anseios e expectativas perante o futuro. Aparentemente distintas, verificaremos que as relações entre o IHGB e a AIBA são extremamente próximas: pelo trânsito de seus membros, pela rede de relações sociopolíticas e culturais estabelecidas e principalmente pelos objetivos comuns a serem realizados, ou seja, delinear um projeto civilizatório, organizar uma história e geografia que atendam às expectativas geradas e construir uma imagem adequada de tais propósitos políticos e ideológicos. As lentas mudanças no interior dessas instituições promovem redirecionamentos, correções de rotas, avanços e recuos para atender às novas demandas colocadas pela velocidade e urgência do novo século, bem como, pela convergência de grupos sociais e políticos interessados em ocupar espaços de poder e ação. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro é criado em 1838, recebe reflexos de influências da Academia de Lisboa (quanto ao caráter acadêmico) e do Instituto Francês que inspira a criação de uma Revista Trimensal nos mesmos moldes. Com o objetivo de coletar documentos esparsos nas províncias e promover a construção de uma história nacional, o Instituto constrói um acervo precioso: além da biblioteca, organiza o arquivo, a pinacoteca e a mapoteca com documentos importantes para a compreensão da escrita visual e cartográfica do país. A finalidade do IHGB, segundo seus primeiros estatutos era coligir, metodizar e publicar (ou arquivar) os documentos para a história e a geografia do país, promover os conhecimentos desses dois ramos filológicos [sic] por meio de cursos, corresponder-se com as sociedades estrangeiras, publicar a Revista e ramificar-se nas províncias. A “Casa da Memória” como foi denominada organizou a partir da afirmação de suas finalidades e princípios ético-morais, uma estrutura de textos e discursos em seus relatos, relatórios e artigos publicados que, se em um primeiro momento, propôs-se ao desafio de Revista Diálogos Mediterrânicos
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sistematizar uma história e um conhecimento disperso pelo país em um crivo ideológico historicizante, por outro, coloca-se a escrever uma tradição e um passado, vivenciado em uma fase áurea de seu protetor, D.Pedro II, agora, em tempos de pessimismo de um novo momento, o republicano. A Academia Imperial de Belas Artes foi pensada a partir da chegada da Missão Artística Francesa em 1816, consolidando os princípios neoclássicos trazidos pelos seus integrantes. Foi inaugurada oficialmente em 1826, em sede projetada por Grandjean de Montigny. Na gestão de Félix Taunay (1834-1851), a Academia adquire sua estrutura de organização definitiva por intermédio da regulamentação dos cursos, a criação das Exposições Gerais de Belas Artes, a organização da pinacoteca e a instituição dos prêmios de viagem ao estrangeiro. As normas que compunham o pensionato no exterior determinavam o aperfeiçoamento com mestres consagrados do academismo.1 Após o período áureo, sob a direção de Araújo Porto Alegre (1854-1857), quando surgem artistas como Victor Meirelles (1832-1903) e Pedro Américo (1843-1905), evidenciase na década de 1880 uma crise, expressa pelo conflito entre “modernos” e “positivistas”, que culmina na criação do Ateliê Livre em 1888. Proclamada a República, ocorre a Reforma de Ensino em 1890 e a Academia Imperial é nomeada como Escola Nacional de Belas Artes. Além das transformações desses lugares institucionais, temos um grande movimento de reformulação do espaço urbano no Rio de Janeiro, empreitada por Pereira Passos (18361913), onde, destroem-se e criam-se outras referências e marcos de diferenciação social e cultural no redesenhamento da cidade, a partir de 1903. Visconti é o homem desse tempo de redefinições e será tomado dessa forma, como um pintor que viverá não só a transição política do regime de governo brasileiro, mas, como um artista que perpassa as mudanças institucionais da AIBA, a organização ou sua tentativa de elaborar uma crítica de arte que construirá outros referenciais e valores artísticos e influenciará 1
gostos
para
as
transformações
imagéticas
em
curso,
onde
O termo liga-se diretamente às academias e à arte aí produzida. Presentes na Europa desde 1562, com a criação da Academia de Desenho de Florença, disseminadas por diversos países durante o século XVIII, as academias de arte são responsáveis pelo estabelecimento de uma formação artística padronizada, ancorada em ensino prático - sobretudo em aulas de desenho de observação e cópias de moldes - e teórico, em que se articulam as ciências (geometria, anatomia e perspectiva) e as humanidades (história e filosofia). Ao defender a possibilidade de ensino de todo e qualquer aspecto da criação artística por meio de regras comunicáveis, essas instituições descartam a idéia de gênio, movido pela inspiração divina ou pela intuição e talento individuais. Rompem com a visão de arte como artesanato, e isso acarretam mudança radical no status do artista: não mais artesãos das guildas, eles passam a ser considerados teóricos e intelectuais. Além do ensino, as academias são responsáveis pela organização de exposições, concursos, prêmios, pinacotecas e coleções, o que significa o controle da atividade artística e a fixação rígida de padrões de gosto. ACADEMICISMO. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017.
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experimentará/absorverá estilos artísticos em mutação que ocorrem na Europa e de certa forma, ecoam no Brasil.
2. Biografia: uma abordagem teórica metodológica
Ao analisar a produção artística de um personagem, podemos incorrer no erro da “ilusão” de sua produção, tomando essa mesma produção como definitiva, verdadeira e extremamente refletora da “realidade”. Considerar e selecionar temas e objetos dessa produção é percorrer um trajeto que perpassa a necessidade de apresentar esse personagem em um percurso temporal orientado de certa forma, para dar não só uma inteligibilidade como também estabelecer relações que fujam à mera citação entendendo, porém, a noção de tempo como complexo, polimorfo, multifacetado em suas dimensões. Essa necessidade decorre do fato de perceber não a história de vida do artista, mas, a visão construída de sua obra e sua ação.
Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito” cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações. Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social [...]2.
Não se procura aqui a distinção do indivíduo concreto e o indivíduo construído, mas, os fragmentos de uma pessoa, um artista, de sua ação, influências, círculos sociais e culturais, o aprendizado em instituições, viagens ao exterior e o grau de influência de movimentos estéticos internacionais ou não na execução de suas obras, desvendando a rede de relações em que transita. Esse caldeirão de influências, em maior ou menor amplitude, desloca-se no espaço social e atua, em freqüências desiguais, na ação do homem e do artista. A trajetória que mescla biografia e crítica de arte sobre a produção artística de Eliseu Visconti aqui apresentada foi baseada na obra de Frederico Barata, editada em 1944, no mesmo ano de seu falecimento. 2
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: Usos e abusos da História Oral. 2a ed. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p.189.
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Faremos uso de certa “biografia” com uma noção estendida, pois, tomamos a obra de Frederico Barata, estudioso e crítico de arte que adota Visconti e a trajetória de sua vida e produção artística e que organiza um texto literário ao mesmo tempo em que mescla crítica artística. Para realizarmos esse intento, abordamos essa fonte por dois vieses: o primeiro utilizou os cuidados propostos pela biografia como uma problemática passível de ser reduzida à superficialidade, e o segundo, consideramos as reflexões acerca da micro-história como instrumento de análise das relações com o contexto circundante. Os perigos de um uso exclusivo da biografia colocam-se na perspectiva “naturalista determinista”, ou seja, prenuncia-se o herói e sua trajetória vitoriosa. Muitos têm utilizado a biografia como uma função sugestiva, como exploração preliminar do problema ou de forma ilustrativa para validar hipóteses teóricas estabelecidas graças a outros procedimentos de pesquisa. Marly Silva Motta comenta a dupla desqualificação sofrida pelo método biográfico perante os historiadores.
Em termos científicos, foi associado à imprecisão e à subjetividade. Situada na fronteira entre a literatura e a história, a biografia se caracterizaria pela “promiscuidade dos vulgarizadores de baixa categoria, dos escreventes de historietas”, voltada para um grande público ávido por intimidades e desatento à consistência científica. Em termos políticos, a acusação se voltou contra uma postura considerada elitista e conservadora, a qual, ao privilegiar o indivíduo à massa, desconheceria “as forças profundas da história”3.
As biografias foram tradicionalmente um gênero historiográfico por excelência do século XIX, ao aliar de um lado, o exercício de elogios aos heróis nacionais atrelados, na maioria das vezes, a um dos complexos organizativos do processo de construção de nações e de outro lado, alinhar-se à concepção da história como “mestra da vida”, pois as biografias seriam modelos exemplares a serem seguidos pela população. Essas posições nos colocam frente a duas questões necessárias para não incorrer em riscos excessivos: a não supervalorização do indivíduo como fator explicativo de uma época e desembaraçar-se das explicações monocausais e lineares, calcadas apenas no glorioso “destino final” do ator histórico.
3
MOTTA, Marly Silva da. “O relato biográfico como fonte para a história”. Vidya. Santa Maria, n.34, jul./dez 2000, p.109.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 Desatada das malhas do reducionismo e da simplificação, a biografia permitiria não só perceber as margens de liberdade e de constrangimento no interior das quais os indivíduos se moviam, como refletir sobre os limites da racionalidade do ator histórico4.
A relação entre a vida de uma pessoa e o contexto circundante era ponto de divergência entre os historiadores. O método biográfico, ao quebrar a noção de esquematismo simplista e ao possibilitar a leitura das inter-relações entre o indivíduo – e seus diversos graus de liberdade no agir – e a rede de relações históricas – e seus vários graus de atividades reguladoras – propõem um novo desafio ao historiador, ou seja, falar de um homem e de seu tempo na medida em que isto permita esclarecê-lo.
Conquanto a renovação historiográfica dos anos 80 tivesse enfraquecido as reações contrárias ao método biográfico, a resistência só se reduziria efetivamente na década seguinte. [...] A biografia confronta hoje o historiador com os problemas essenciais – porém clássicos – de seu ofício de um modo particularmente agudo e complexo5.
Essa relação não descarta o cuidado quanto à distinção da literatura, da liberdade ficcional que envolve determinados personagens com a história comprometida com o rigor documental. O confronto de diversas fontes é essencial para montar uma das possíveis imagens de uma personalidade, tomando o cuidado de não focalizar a apreensão da fonte6 como “texto” único e a percepção da realidade histórica como ilusão, propondo um relativismo ambiente: as formas expressivas desenvolvidas e os problemas de interpretação histórica e dessa forma, considerar a natureza descontínua e provisória do real, e não incorrer na armadilha da história cronológica, pois, utilizam-se desses eventos como pontos de contato de percepção da ação do indivíduo.
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MOTTA, Marly Silva da. “O relato biográfico como fonte para a história”. Vidya. Santa Maria, n.34, jul./dez 2000, p.109. MOTTA, Marly Silva da. “O relato biográfico como fonte para a história”. Vidya. Santa Maria, n.34, jul./dez 2000, p.110. Gribaudi cita como exemplo de uso de fontes, o trabalho de Giovanni Levi. “Por meio de uma reconstrução baseada em três fontes diferentes (os registros paroquiais, as listas de cobrança de impostos, os cadastros), Levi mostra que a composição das famílias, as formas de propriedade e de gestão das terras variam consideravelmente e de modo aparentemente aleatório. Essa constatação lhe sugere a hipótese de que existem laços que se criaram e solidificaram, para além do espaço das famílias e de suas terras, segundo mecanismos mais profundos de solidariedade e de troca.” Cf. GRIBAUDI, M.Escala,pertinencia,configuração. In. REVEL, J. (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998.p.133.
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A proposta de contextualização reconstitui um tecido social e cultural mais amplo e não pode ser tomada, exclusivamente, como homologação de uma amostra ou afirmação em busca de uma dada normalidade. A experiência de um indivíduo, em um dado espaço, permite perceber as adaptações, as readequações particulares ao impacto dos movimentos históricos globais em uma modulação particular. A proposta de uso de uma escala de análise em uma dimensão micro aponta a complexidade de distinguir o indivíduo e as redes de relações estabelecidas em várias instâncias. Privilegiar a experiência dos atores, segundo Revel, significa reconstruir em torno os contextos que lhe dão sentido e forma, percebendo melhor o embaralhamento das lógicas sociais. Resiste melhor, também, “(...) à tentação de uma reificação das ações e das relações entre elas, assim como das categorias que nos permitem pensá-las” 7. A história social atenta aos indivíduos percebidos em suas relações com outros indivíduos. Preocupado com a tendência de um relativismo do tipo culturalista no interior da história social, ou seja, a redução de uma complexa gama de relações sócio, política, econômica ao feixe da cultura na condição de fator explicativo de todo mecanismo social, Revel (1998), propõe a construção de identidades sociais plurais e plásticas que se opera por meio de uma rede cerrada de relações: de concorrência, de solidariedade, de alianças em um jogo de estratégias e interações em constante elaboração e redefinição. Gribaudi vê na variação de escala, um recurso que considera a estrutura folheada do social e seu cotejo em vários níveis.
No cerne da demonstração micro analítica, encontra-se efetivamente o indivíduo. No entanto, sua centralidade, assim como a do contexto, é instrumental. O indivíduo é importante, sobretudo enquanto lugar dessa atividade intensa e especificamente humana de leitura, de interpretação e de construção do “real”8.
O constante jogo de estratégias entre o individual e o social é espaço de conflitos, negociações, transações provisórias inseparáveis de representações do espaço relacional
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REVEL, Jacques. Apresentação. In. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p.13. GRIBAUDI, M. Escala,pertinencia,configuração. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 89.
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urbano, dos recursos que oferece e limitações que impõem aos atores sociais que se orientam e realizam suas escolhas. A proposta de micro análise redefine a noção de contexto. Propõe, assim, a constituir a pluralidade dos contextos que são necessários à compreensão dos comportamentos observados. Relacionar segmentos de vida e de experiência a fim de reconstruir a existência histórico-institucional de um determinado grupo social9 é reconstruir as redes de relações. Pela identificação de escolhas específicas (individuais ou coletivas) podem-se re-analisar o destino ambíguo do termo “estratégia” e suas possibilidades, as escolhas e reconstruções posteriores feitas por outros leitores: críticos e jornalistas, por exemplo, e a capacidade desse grupo se re-adequar, em outras relações, aos diversos momentos inflexores de mudança. Essa estratégia ambígua do indivíduo com o meio refere-se às redes de relações em vários níveis, em que se instalam “práticas sociais” e se detectam os vestígios ou as lógicas de práticas coletivas cuja notável pertinência simbólica permite caracterizar a significação visual e as instâncias de legitimação na cultura local. O ator social nessa trama é construído por muitos olhares. Por críticos de arte contemporâneos a Eliseu Visconti; outros, distantes em outras décadas, artistas coetâneos, entrevistas concedidas, exposições realizadas, atividades desenvolvidas, prêmios e homenagens recebidas, influências absorvidas e exercidas, entre outros vetores como é possível perceber em documentos como as críticas de arte publicadas em artigos de jornais da época por Gonzaga Duque (1863-1911), a entrevista concedida a Angyone Costa (18881954)10 e o perfil traçado por Frederico Barata. Veremos agora como Eliseu Visconti será apreendido por Frederico Barata, crítico de arte e amigo do pintor que ao escrever essa “biografia” proporcionou o retrato de um pintor que transitou do final do século XIX à década de quarenta do século XX entre correntes diversas de vanguardas artísticas imprimindo um estilo único e pessoal a seu trabalho.
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GRENDI, Edoardo. Repensar a micro história? In. Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998, p. 253. Para maiores detalhes ver: COSTA, Angyone. A Inquietação das abelhas: o que pensam e o que dizem os nossos pintores, esculptores, architectos e gravadores, sobre as artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello e Cia, 1927 e GONZAGA DUQUE. Contemporâneos: Pintores e Esculptores. Rio de Janeiro: Typ. Benedicto de Souza, 1929.
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3. “Eliseu Visconti e seu tempo” por Frederico Barata
O uso exclusivo da biografia induz também ao cuidado com o filtro proposto pelo biógrafo. O registro de sua vida foi realizado, não por ele, mas, por um crítico de arte e amigo e o que podemos chamar de biografia foi lançado após sua morte, o que não possibilita reconsiderações por parte do biografado. Eivado de uma postura pessoal e afetiva, coloca-se o autor e o biografado, o que não significa que Barata se mantenha isento de colocações mais firmes e duras. Podemos perceber em textos ao longo do século XX, assertivas favoráveis ao texto de Frederico Barata e mesmo durante o lançamento desse livro. Ao analisar esse livro, Agripino Grieco (1888-1973), jornalista freqüentador dos meios intelectuais e boêmios do Rio de Janeiro, que concentrou sua atividade intelectual na crítica literária e temido pela verve panfletária e o espírito satírico, por exemplo, aplaude o testemunho do biografado e a isenção do autor no registro das informações essenciais. Lamenta, porém, o recolhimento de momentos mais “simpáticos”, sem considerar os percalços e problemáticas da produção do pintor.
Frederico Barata, procurando sempre o essencial, o definitivo, folga no caso o artista da sua maior intimidade, mas o faz sem expressões blandiciosas. Amigo e não fâmulo. Foi a testemunha de uma nobre atividade e depõe sem extremos de lisonja ou de depreciação. Seus conceitos jamais se afogam em louvores supérfluos. Nem o movem nenhum intento de polêmica, percebendo-se-lhe até relativa benignidade diante de alguns malfeitores do modernismo. A afetividade não exclue a crítica nesse confidente do velho mestre embora o biógrafo preferisse recolher os momentos mais simpáticos do artista da “Dansa das Oréades” [sic].11
A “biografia” de Eliseu Visconti foi escrita por Frederico Barata (1906-1961) e lançada em 1944, ano da morte do pintor, pela Editora Zélio Valverde (Rio de Janeiro). Contêm fotografia de Norberto Strasser, Carlos Moscovics, com 222 páginas, ilustrações em preto e branco e apresentando 08 lâminas. É dividido em treze sub-títulos, respectivamente: a) Formação, b) Meio, c) Revolta dos modernos – 1888, d) Europa: primeiras influências, e) Marcos divisórios, f) O pintor da 11
Texto jornalístico em relação ao qual não foi possível identificar a procedência do jornal e sua data. Deduz-se que data de época imediatamente posterior ao lançamento do livro de Frederico Barata, em 1944. Muitos textos jornalísticos foram obtidos sob a forma de fotocópia nas bibliotecas da Funarte e MNBA. Esses textos haviam sido freqüentemente recortados de páginas de jornais e não continham as devidas informações de localização.
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família,g) Seus retratos h) Suas paisagens, i) O pano de boca do Municipal, j)A obra prima: “o foyer”, k) O magistério, l) Arte decorativa, m) Tempos modernos. O livro denota as relações de amizade entre o biografado e o biógrafo, conforme o comentário de Mario Barata sobrinho de Frederico Barata, em texto publicado no catálogo da Exposição Eliseu Visconti12 sobre a amizade entre o tio e Visconti, amizade essa que remontava aos anos 1920. “Participei assim, de longe, do final dessa trajetória rara, na arte de nosso país. Carreira tranqüila, malgrado Frederico haver testemunhado sobre a inquietação e o descontentamento artísticos em que vivera Eliseu.” A estrutura do livro permite-nos perceber a adoção de um esquema formal de narração, não fugindo às regras de vida e morte de um biografado: vida, formação, influências e marcos e tempos modernos, destacando nessa trajetória as principais obras do artista. Analisaremos alguns sub itens desse livro na perspectiva de pensar a escrita tecida sobre o artista. Ao indicar os dados pessoais de Eliseu d’Ângelo Visconti, Barata incorre em um equívoco ao indicar o ano do nascimento em 30 de julho de 1867, na Itália [Salerno], quando, em 1967, às vésperas da exposição em comemoração ao centenário do pintor, descobre-se documentos (no caso a certidão de batismo do pintor e sua respectiva tradução do italiano) fornecidos por Henrique Cavalleiro, seu genro, com a data de 1866. Tendo chegado ao Brasil com menos de um ano, em companhia dos pais, a princípio desejou ser músico, mas, incentivado por sua madrinha, a baronesa de Guararema ingressa no Liceu (antiga Sociedade Propagadora das Belas Artes) em 1883, tendo entre seus professores Vitor Meirelles, Júlio de Medeiros, Pedro Peres. É aluno também de Estevão Silva, professor de ornatos. Sob o título “Meio”, Frederico Barata procura demonstrar as características da sociedade da época quanto à arte, em que se coloca como “invariável, de acatamento e respeito ao academismo”13. Para o autor, “a arte naquele período seria um fenômeno puramente estético, sem julgamento sob os prismas sociais ou políticos” e o “bom artista era aquele considerado por sua perfeição da técnica acadêmica por intermédio da qual revelava e afirmava sua personalidade”14. E prossegue:
12 13 14
CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO ELISEU VISCONTI. MNBA, Rio de Janeiro, 1967. BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Valverde, 1944, p. 21. BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Valverde, 1944, p. 21.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 Destacava-se quem, dentro de fórmulas mais ou menos rígidas, melhor se subordinava aos cânones oficiais e o padrão inalterável para o aferimento da capacidade do pintor era aquele instituído pela Missão Francesa e o aperfeiçoamento era visto com ligeiras e superficiais variantes pelo ensino da Academia Imperial de Belas Artes, apoiado e estimulado pelo mecenato de D. Pedro II.
As referências à Paris em artigos, rodas e exposições eram constantes e um grande elogio seria a crítica e o público considerarem um quadro como "parece pintura francesa". Barata considera a crítica realizada em jornais e revistas como “padronizada, com citações de Ruskin e de Taine e comparações eruditas entre os nossos e os mestres do passado e do presente da França imortal, valendo pela erudição que demonstrava ao expor as teorias científicas de Chevreul15 (1786-1889), Veron e Charles Blanc16 (1813-1882). No tocante a Visconti, Barata comenta o início de seus estudos como “influenciado pelo ambiente (Pedro Américo, Vitor Meirelles), em seus primeiros trabalhos a não ser pelas hesitações da fatura ou pelos lampejos de talento, em quase nada se distinguem dos que faziam os outros alunos da Academia e mesmo professores”17. Frederico Barata ao invés de “catalogar” as referências estilísticas de Visconti, opta por dividir o trabalho em “duas grandes fases: a anterior e a posterior ao casamento, tendo a esposa como inspiradora”18 sob o título número seis “O pintor da família”. Relata o casamento,
Casa-se em 1902 com a francesa Louise Palombe e vive nos arredores de Paris, Saint Hubert [e os filhos de um lar harmonioso em uma esfera artística]. Em um lar venturoso, tiveram três filhos: Ivone, (dedicou-se a posteriori à pintura e casada com o festejado pintor Henrique Cavalleiro, discípulo de Visconti), Tobias (engenheiro civil) e Afonso (arquiteto)19.
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Químico que ao pesquisar os problemas de tinturas e pigmentos, percebeu a influência ótica dos tons intermediários e a harmonia dos contrastes. Seu trabalho influenciou os movimentos impressionista, pós-impressionista e cubista. Crítico de arte. Seus textos influenciaram a teoria da cor na segunda metade do século XIX e lidos por artistas como Gauguin, Seurat e van Gogh. BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Valverde, 1944, p. 28. Em artigo assinado por CDA e publicado em jornal cuja identificação não foi possível, temos, na coluna “Imagens de arte”, intitulado “A musa de Visconti”, o seguinte trecho, que viria a reafirmar a citação de Barata, contemplado com vários trechos transcritos de seu livro: “[...] sua beleza se podia acrescentar que resultava não só de uma composição feliz de traços físicos, senão também do prestígio que a esses traços infundia a iluminação interior. Na verdade aquela senhora era musa e musa de um grande artista, o finado Elyseu Visconti. [...] Mas, no seu caso, todos sabemos que ela continuará viva e doce, nos museus e coleções onde haja um bom Visconti.” Cabe acrescentar que Louise Visconti era exímia aquarelista e participou de várias exposições. BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Valverde, 1944, p. 82.
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Aludindo à esposa e filha como fruto de um rico ambiente artístico comenta. “D. Louise, depois especializa-se em aquarelas conquistando (e a filha também) várias premiações”20. Ao dividir a produção pictórica de Visconti em antes e depois do casamento e ressaltar o pintor de retratos e da família, indagamos se não seria uma forma de “rotular” em meio a própria diversidade de estilos da obra do pintor, pois, possivelmente o uso da palavra “eclética” no período, seja passível de não valorativa ou desqualificativa justamente pela falta de uma filiação artística mais definitiva e definidora feita pelo próprio Visconti. De qualquer forma, esse artifício isentaria Barata de posicionar-se mais criticamente e por outro lado, circunscreve o trabalho de Visconti aos entes familiares e aos mais próximos. Essa distinção familiar está traduzida no seguinte trecho:
Na primeira fase, realiza uma obra de imaginação, simbolista, já poderosa, mas, ainda sem uma personalidade definitivamente estabelecida que vemos refletida nas Oreadas, S. Sebastião e Gioventù. Na segunda, que tem a família como centro, utilizando a esposa e os filhos como modelos e pintando-os e repintando-os a todos os momentos e em todas as idades, liberta-se de numerosas influências imitativas e torna-se mais senhor da própria técnica até atingir a plena maturidade21.
O aspecto familiar está inscrito na utilização da família como modelo nas decorações do Conselho Municipal, em anjos (face da esposa), rostos de garotos (os filhos); na inserção de figuras de seus familiares nas paisagens, como, os arredores domésticos: Saint Hubert (França), atelier da Av. Mem de Sá, em Copacabana ou Teresópolis (onde a família possuía uma casa de veraneio). Normalmente os retratos eram relacionados aos parentes, executando também autoretratos numerosos ou de pessoas íntimas de amizade, que se ligam ao lar e à vida familiar. O gênero retrato será analisado por Barata no item específico a esse de número sete “Seus Retratos”. Lembremos que o gênero retrato, freqüente desde o século XVI, encaminhou do oficial ao particular em movimentos de re-configurações sócio-político-econômico-cultural e recuperado por seus artistas neste processo de adequações. Na ascensão burguesa do século XIX/XX o retrato terá um cuidado maior quanto à veracidade física e moral, onde a personalização do modelo evidencia-se nas singularidades de sua personalidade, caráter e temperamento. 20 21
BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Valverde, 1944, p. 82. BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Valverde, 1944, p. 83.
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O retrato recriará pela arte de sugestão do pintor, o clima, a pausa e a expressão inseparáveis de sua época. Visconti realiza diversos auto-retratos ao longo de sua carreira, atitude incomum na pintura brasileira. Executa muitos retratos, mas, raríssima vez, nesse gênero trabalhou por encomenda. O motivo é explicado pelo biógrafo no sentido perfeccionista de execução pelo pintor:
Porque, para montar um retrato, parecia-lhe indispensável conhecer o modelo, estimando-o, admirando-o ou encontrando nele motivos de interesse pictórico. Não iniciava um retrato com a prévia certeza de lograr a interpretação desejada, sobretudo do caráter do modelo. [...] que necessitava de uma grande [...] Paciência dos modelos para posar tantas vezes quanto necessário, [utilizando uma] integral liberdade, não obrigando à exclusiva procura de banais semelhanças fotográficas22.
Os alvos desse gênero de pintura, continua Barata, eram os “Amigos diletos que respeitava como a Pereira Passos (1911), estimava como Gonzaga Duque (1910) e Nicolina Vaz de Assis (1906) ou admirava como a Alberto Nepomuceno (1894) e Manoel Cícero Peregrino (1943), [e mesmo assim] o pintor não renunciou ao direito de pintar como sentia”23. A preocupação do pintor quanto à expectativa e recepção do retrato pelo retratado é considerada abaixo:
Sabendo de um retrato que não agradou ao retratado por falta de certos requisitos comumente exigidos de parecença, entabula o diálogo. "O que acha você da Gioconda"? - perguntou-lhe Visconti ao saber da restrição. "É um sonho", respondeu-lhe o interlocutor. "E você tem certeza - indagou ainda - que Da Vinci reproduzia fotograficamente a Mona Lisa? E se o tivesse feito, o que nos importaria hoje e em que isso influiria na apreciação dessa obra-prima"? O retrato permaneceu no atelier do artista24.
Essa preocupação é oriunda de uma personalidade minuciosa, preocupada em transpor traços da personalidade do retratado e não somente uma cópia, em termos fotográficos, comuns naquele momento. Demonstra também a insatisfação com os resultados e ao mesmo tempo, certa insegurança no tocante às críticas.
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BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Valverde, 1944, p. 89-91. BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Valverde, 1944, p. 92. BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Valverde, 1944, p. 92-93.
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Pela lista de retratos dos amigos executados por Visconti, podemos entrever a rede de relações explícitas nesse contexto. É perceptível tal trama social em alguns pontos: o primeiro pela preocupação de dar uma personalidade ao retratado, recuperando uma aura artística postergada e banalizada pela fotografia; e segundo, pela significação das personalidades retratadas. Lembremos que Pereira Passos (1836-1913) era o prefeito do Rio de Janeiro (no período de 1902-1906), responsável pela reorganização urbanística da cidade, e que de certa forma, influenciou na escolha do nome de Visconti para as obras do Teatro Municipal; Gonzaga Duque (1863-1911), crítico de arte profissional com um amplo círculo social e cultural de relações, o autor da primeira exposição sistemática sobre a arte no Brasil no seu livro "Arte Brasileira", atuando na imprensa e em exposições redigirá artigo sobre o pintor em importante jornal de circulação; Nicolina Vaz de Assis (1874-1941), escultora paulista inscrita em circuito social e artístico mais amplo e figura próxima a Visconti; Alberto Nepomuceno (1864-1920), maestro famoso no período, com um vasto círculo de amizades nas áreas culturais e políticas no Brasil e no exterior e Manoel Cícero Peregrino (1866-1956), diretor da Biblioteca Nacional em 1903, local que exibe os quadros “Instrução” e “Solidariedade Humana” executados por Visconti entre outras obras de pintores daquele período. Barata procura por um território neutro para sua crítica, ou seja, ao entreolhar a trajetória percorrida pelas correntes de vanguardas da década de 1940 quando escreve seu livro, situa Visconti a meio caminho entre a introdução de “novidades” estranhas e estrangeiras e a personalidade desse pintor na procura de novos significados para a Arte. A análise do texto de Frederico Barata indicou os critérios adotados por esse crítico ao lidar com a trajetória de vida e obra de um artista, fornecendo elementos que serão reproduzidos por muito tempo por críticos e jornalistas nas décadas subseqüentes sem que haja uma contextualização maior, o que de certa forma, auxilia no rótulo de Visconti como pintor impressionista. Podemos pensar o lugar do crítico como aquele que pela escrita está imbuído de subjetividade, inextricável de pulsões de desejo e ideologia, marca de individualidade, pelo ato de sua interpretação, decodifica e estabelece relações de intermediação entre o objeto (obra de arte, exposição, texto) e o receptor, seja o leitor receptor leigo ou aquele especializado (marchands e colecionadores, por exemplo). Fiorin comenta o papel do crítico a partir da palavra interpretação:
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 [...] O crítico é, pois, um intérprete. Vale a pena recordar a etimologia do verbo interpretar, que vem do latim interpretari, o fazer do interpres. O significado inicial de interpres é ‘intermediário’, ‘negociante’, ‘o que barganha preço’. Daí provém o significado atual de ‘intérprete’, ou seja, ‘aquele que explica’. Tem a função de realizar a apreciação da obra de arte e de explicá-la ao receptor, mostrando-lhe as qualidades que fazem de um objeto uma obra de arte. Dessa forma, ele julga, seleciona, destaca, reprova, aponta. Ao analisar a crítica de arte, analisam-se os críticos, cujo perfil está inscrito no texto, por meio do que aceitam ou recusam, do que louvam ou condenam25.
Para Maria Elizabeth Chaves de Mello, a escrita da crítica é “impura”, pois, é “[...] constituída pela alternância constante entre narrativização (portanto próximo da ficção) e exame lógico dos seus dados (portanto próximo da ciência) e vice-versa”26. Essa colocação é importante e necessária ao lidar com textos críticos, especialmente aos ligados à cultura, e em especial à arte, pois a descrição ou narrativização de uma obra pode levar a uma excessiva inferência subjetiva, ou por outro lado, o uso somente de um vocabulário tecnicista que engessaria os referenciais de análise. A escrita da crítica de arte coloca, de certa forma, o lugar de intérprete do crítico, que provoca uma projeção ideológica em duas mãos: os leitores pressupõem um cabedal de conhecimentos legitimado nesse discurso e acatam e assimilam as opiniões emitidas. Por outro lado essa escrita envolve a situação de mercado consumidor.
[...] o discurso da crítica constrói-se na tensão dos valores estéticos e de mercado, pois, descreve o objeto plástico do ponto de vista dessas duas ordens de valores. Ao mesmo tempo que, chancela a qualidade estética da obra, serve como guia de investimento, ou seja, referenda o valor estético de uma obra para confirmar ou produzir seu valor de mercado. O crítico promove “reputações e negócios”27.
O consumo promove uma distinção sociocultural entre os leitores e o uso desse objeto cultural como símbolo dessa distinção legitima as diferenças sociais, conforme os comentários de Bourdieu nesta passagem: “[...] a arte e o consumo da arte são predispostos a preencher, quer se queira ou não, quer se saiba ou não, uma função social de legitimação das diferenças sociais”28.
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FIORIN apud TEIXEIRA, Lucia. As cores do discurso: análise do discurso da crítica de arte. Rio de Janeiro: Ed UFF, 1996, p. 10. MELLO, Maria Elizabeth Chaves de. Lições de crítica: conceitos europeus, crítica literária e literatura crítica no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: EDUFF, 1997, p.10. TEIXEIRA, Lucia. As cores do discurso: análise do discurso da crítica de arte. Rio de Janeiro: Ed UFF, 1996, p. 10. BORDIEU. La distinction: critique sociale du jugement. Paris: Editions de Minuit, 1979.
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Por outro lado, o ver e o dizer sobre um objeto transformam-se em qualificar e expressar o visual e o visível em um discurso escrito repleto de recursos enunciativos representativos e com poder de persuasão adequado. Elabora-se uma estrutura enunciativa, em uma moldura descritiva, ao expressar uma cena, por exemplo, contextualizando os dados e argumentando suas características positivas ou negativas.
Também na produção e na recepção dos textos verbais, aquilo que está mais aparentemente dado passa a identificar a natureza e a singularidade dos objetos. É essa camada mais superficial da compreensão que reúne autores em estilos de época com características exaustivamente enumeradas nos compêndios destinados ao ensino de literatura, ou que amarra os escritores aos temas que tratam; Castro Alves é o ‘poeta dos escravos’ [...]. Mas se a superficialidade da observação pode reduzir o deleite de ver ou o prazer de ler, pode, por outro lado, conduzir o expectador e o leitor a, identificando o imediatamente perceptível, encontrar, no patamar mais superficial dos textos (seja textos verbais, ou pinturas, ou quaisquer outros objetos semióticos), as redes de relações que concretizam os eixos semânticos em torno dos quais circulam as categorias fundamentais, as estruturas narrativas e os procedimentos discursivos geradores do sentido dos textos29.
A especificidade dos escritos de crítica de arte parte de pressupostos: do lugar da fala, o receptor a que se dirige, a situação específica representada e o efeito do sentido pretendido. Ao contextualizar a produção da obra de arte, o crítico utiliza os “discursos diretos ou indiretos do pintor”, incorporando muitas vezes essa fala à fala do enunciador. Ao voltar-se para um público leigo, o crítico, avalia esteticamente a obra e cita outros críticos, artistas e escritores em uma demonstração de erudição e competência, legitimando sua escrita. Ao acrescentar citações de marchands e colecionadores diluídos em seu enunciado, o crítico promove a avaliação e oscilações do mercado de arte, ao confirmar ou não a aceitação da obra e elaborar seu juízo positivo ou negativo. Outro dado a apontar seria como os aspectos da fala podem ser indicadores da presença de emoções e como essas emoções são norteadoras de estados de ânimo a serem produzidos e sensibilizados ao público leitor.
29
TEIXEIRA, Lucia. As cores do discurso: análise do discurso da crítica de arte. Rio de Janeiro: Ed UFF, 1996, p. 179.
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Assim ao escolher palavras que proporcionam “emoções”, “paixões”, “afetos”, “sentimentos e/ou estados de ânimo”30 o crítico conduz não só uma leitura e apreciação da obra, mas, a criação de um estado receptivo, favorável ou não, à essa mesma obra. Por outro lado, devemos considerar as formas de cânones de interpretação de obras de arte, seja em padrões de leituras, seja em padrões de observação e como os críticos de arte exercem e exercitam tais padrões e reorganizam as apreensões em seus textos. Uma observação a que não podemos fugir é a questão das ideologias que formaram a crítica literária no país, no que se refere a formar e não somente informar seus leitores e que por sua vez deveriam formar a nação. Está incutida a idéia pedagógica de civilizar pelo Belo e educar o olhar. Não é omissão, não é a regra, mas, a instrução e a crença na capacidade de formar um olhar, uma sensibilidade e direcionar os apontamentos dessa leitura dentre outras possíveis. Dessa forma temos a escrita de Frederico Barata sobre a vida e obra de um pintor nas primeiras quatro décadas do século XX permeado por mudanças: institucionais, ideológicas, espaciais. “Eliseu Visconti e seu tempo” pautará catálogos de exposição posteriores e norteará referências de críticos de artes que preservarão a diretriz proposta por Frederico Barata. Os cuidados tomados pela historiografia no tocante ao uso das biografias para sua escrita são necessários e extremamente mais atentos devido às relações pessoais empreendidas, incorporando, nesse caso, os recursos proporcionados pela micro história. Esse artigo propôs retomar tal situação sob uma lente mais acurada, dessa vez ao perceber a escrita da crítica de arte e sua persuasão com os procedimentos discursivos geradores de sentido dos textos construindo, positivamente ou não, reputações. Tal zelo é procedente, pois, perceber um artista e sua época é dialogar com outras teias e redes de emaranhamento social em um recorte de tempo e espaço.
30
ENGELMANN, Arno. Os estados subjetivos: uma tentativa de classificação de seus relatos verbais. São Paulo: Ática, 1978.
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ARTIGOS
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Moçárabes e o Saber Médico em Al-Andalus entre os séculos VIII e X Mozarabs and Medical Knowledge in al-Andalus between VIIIth and Xth centuries António Rei * IEM / FCSH – Universidade Nova de Lisboa
Resumo
Abstract
Os Moçárabes e o Saber Médico em al- Andalus entre os séculos VIII e X. Os muçulmanos chegaram à Península Ibérica em 711. Os primeiros trabalhos conhecidos da medicina árabe produzidos em al-Andalus surgiram só no século X. Desde sempre houve pessoas doentes e tiveram de haver médicos para tratá-los. O que aconteceu nesse meio tempo? Entre os séculos VIII e X o conhecimento médico na Península Ibérica foi o que permaneceu da medicina grega e romana. Não existiam muitos tratados médicos nas bibliotecas, e o conhecimento sobre as plantas e outras substâncias era também escasso.Os médicos cristãos fizeram uma espécie de ponte entre o passado romano-gótico e os novos tempos, e durante o século VIII e a primeira metade do século IX, alguns textos médicos latinos foram traduzidos para o árabe. Tudo mudou no início do Califado Omíada em alAndalus, com a tradução do Livro de Dioscórides, do grego para o árabe e verdadeiro ponto de partida da medicina do al-Andalus.
Mozarabs and Medical Knowledge in al-Andalus between VIIIth and Xth centuries Muslims came to the Iberian Peninsula in 711. The earliest known works of Arab medicine produced in al- Andalus are only from the Xth century. Since there was always sick people and had to be doctors to treat them. What happened in the meantime? Between the VIIIth and the Xth centuries the medical knowledge in the Iberian Peninsula was what remained from the Greek and Roman medicine. No much medical treaties in the libraries and a short knowledge about plants and other substances. Christian doctors made a kind of bridge from the roman-gothic past to new times, and during the VIIIth century and the first half of IXth century, some Latin medical texts were translated to Arabic. All changed in the beginning of the Umayyad Caliphate in al-Andalus and with the translation of Dioscorides Book from the Greek to Arabic, and real start point of the Andalusian medicine.
Palavras-chave: moçárabes; medicina; alAndalus
Keywords: Mozarabs; Medicine; al- Andalus.
● Enviado em: 07/10/2016 ● Aprovado em: 28/06/2017
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Doutor em História da Cultura e das Mentalidades Medievais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, (FCSH – UNL). Investigador Integrado do Instituto de Estudos Medievais, Universidade Nova de Lisboa.Investigador na Escuela de Estudios Arabes de Granada, CSIC (Granada), com Bolsa BPD - FCT / POCH, Lisboa.
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1 - Introdução Os muçulmanos chegaram à Península Ibérica em 711, mas as primeiras obras conhecidas da medicina hispano-árabe que surgiram no al-Andalus datam apenas do século X. Já que sempre houve doentes e que teria de haver médicos para os tratar, o que se terá passado, pois, entretanto, durante cerca de dois séculos? Que medicina haveria então, e quem terão sido os seus praticantes? Procuramos, assim, contribuir para colmatar a lacuna relativa à Alta Idade Média hispânica, e do al-Andalus em particular, através de uma abordagem de síntese sobre este período e conhecimentos.
2 - Conhecimentos médicos entre os hispano-godos (sécs. VI-VII)
A cultura hispano-goda tinha ainda à sua disposição algumas obras da Antiguidade que versavam sobre questões médico-sanitárias. Isidoro de Sevilha, na introdução ao «Livro da Medicina», que integra as suas famosas «Etimologias», cita várias vezes Hipócrates e Galeno, duas das grandes autoridades da medicina grega da Antiguidade. Mais adiante, na parte em que o Bispo de Sevilha faz referência a alguns «Livros Médicos», fala dos «Aforismos» e dos «Prognósticos», duas das obras da autoria de Hipócrates. Fala ainda também de uma obra intitulada «Dinamidia», e na qual seriam tratadas drogas vegetais. Tratar-se-ia, muito possivelmente, de um receituário ou formulário de compostos vegetais, por contraponto com a obra que aparece em quarto e último lugar naquele elenco, um «Botanicum herbarium», o qual seria, portanto, uma listagem de plantas (os chamados «simples») e respetivas informações correlativas. Seria assim, e como a própria titulatura evidencia, um herbário1. No «Livro da Casa e dos Instrumentos Domésticos» Isidoro diz ainda «Entre os médicos, alguns houve que escreveram sobre a natureza humana, em especial Galeno nos seus livros»2. No entanto, e apesar das referências explícitas àquelas duas grandes autoridades nos conhecimentos médicos, o contacto de Isidoro de Sevilha com os escritos de Hipócrates e de Galeno terá sido por via indireta, pois na verdade, para escrever o quarto livro das Etimologias, o atrás mencionado «Livro da Medicina», o Bispo de Sevilha ter-se-á servido 1
2
SEVILHA, Isidoro de, Etimologias (org. José Oroz Reta), Madrid, Editorial Católica S.A., 1982, Livro IV, X, 1-4. SEVILHA, Isidoro de, Etimologias, Livro XX, 2, 37.
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principalmente de compêndios ou súmulas sobre aquelas temáticas, da autoria de dois autores norte-africanos, concretamente Célio Aureliano e Cássio Felix3, aos quais se limitou, por norma, a copiar de forma integral. Atendendo ao que surge na obra do Bispo de Sevilha, não se trataria, portanto, para o período germânico, de um horizonte médico muito amplo, quer no respeitante ao reduzido suporte bibliográfico, quer quanto à quantidade de substâncias que então seriam conhecidas e utilizadas. Aquele conjunto de conhecimentos, entre empíricos e passados a escrito, passou aos cristãos moçárabes, que ficaram detentores de uma herança «científica» que vinha do passado greco-romano, e que, especificamente no campo das matérias médicas, era muito mais grego do que romano.
3 - Memórias da medicina entre os moçárabes
Tendo em conta que o mundo literário moçárabe primou pelo anonimato dos seus autores, será que algo de semelhante se passou no relativo ao campo das artes médicas ? A principal fonte para este aspeto da medicina moçárabe, ou, mais exatamente, da medicina entre os moçárabes, entre a chegada dos muçulmanos (711) e o surgimento do Califado (929) é a obra de Ibn Juljul Ṭabaqât al-Aṭṭibâ’ wa-l-Hukamâ’ (Gerações de Médicos e de Sábios). De seu nome completo Abû Dâwûd Sulaymân ibn Ḥassân Ibn Juljul foi um médico andalusi do século X (Córdova, c. 943 – idem, c. 993) que exerceu na corte Omíada de ‘Abd alRahmân III, de al-Hakam II e de Hishâm II4. Voltaremos adiante a referir a trajetória de Ibn Juljul. O livro de Ibn Juljul, apesar de redigido no século X, apenas começou a ser divulgado e conhecido em al-Andalus no século XI. No entanto, foi especialmente a partir da obra de Ibn Abî Usaybi‛a, um médico que viveu em Damasco no século XIII, que tendo usado a obra de Ibn Juljul na composição da sua enciclopédia médica, se começaram a propagar informações
3
4
Sobre estes dois compendiadores da Antiguidade Tardia, v. LE COZ, Raymond «Les Mozarabes et les debuts de la medecine dans al-Andalus», cehMaxtoulouse.free.fr/fichier/T405.doc [pdf], visto em 5-32015. Ibn Juljul, nasceu em Córdova em 943, faleceu na mesma cidade depois de 993. Consagrou-se à medicina desde a idade de 14 anos. Foi discípulo de Hasdai ibn Shaprut, e mais tarde foi o médico pessoal do Califa al-Hishâm II (976-1013). A sua Tabaqât al-atibbâ' wa l-hukamâ' (História dos Médicos e dos Sábios) data de 987. Usamos a éd. SAYYID, Fu'âd, Cairo, 1955. V. ainda «Ibn Djuldjul», in Encyclopaedia of Islam, 2ª ed. (1960-2005), Leiden / Paris, E.J.Brill / Maisonneuve et Larose, (EI 2), III, pp. 755-756.
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relativas à existência de médicos moçárabes que tinham tido um papel de importância nos conhecimentos e na prática médica na Península Ibérica5. Na sua obra, Ibn Juljul propôs-se traçar a história da medicina e dos médicos desde a Antiguidade, e nela forneceu informações preciosas sobre os primeiros tempos da medicina no al-Andalus, ou seja entre os séculos VIII e X. Uma das suas fontes foi a obra de Ishâq ibn Hunayn, intitulada Ta’rîkh al-ATTibâ’ wa-l-Hukamâ’ (História dos Médicos e dos Sábios), e na qual transmitiu algumas informações sobre médicos que viveram em períodos anteriores ao surgimento do Islão6. Assim, foi possível a Ibn Juljul transmitir-nos, por exemplo, que no alAndalus houve, naquele período entre os séculos VIII e X, traduções de textos médicos latinos para o idioma árabe. Ibn Juljul diz também que até à época do emir ‛Abd al-Rahmân II (822-852) não havia em al-Andalus mais do que médicos cristãos, os quais apoiavam o seu saber na tradução dum livro cristão intitulado «Al-Abrîsim», e que significaria “recolha”. Esta última informação coloca, ao menos, duas questões. Uma relativa à titulatura arabizada, e outra à obra em si mesma. Dizemos que é um título “arabizado”, porque se trata, de facto, da modulação fonética árabe de um título original em outro idioma. Tratar-se-á, neste caso, dos «Aforismos» de Hipócrates, uma das obras médicas que, como já vimos, Isidoro de Sevilha já referira nas suas «Etimologias». Aventamos aqui a possibilidade de que um manuscrito da obra de Ibn Juljul tenha sido, posteriormente, copiado no Oriente, e terá sido a partir dessa cópia oriental que foi feita a edição. O sinal deste percurso é a leitura equivocada de um “fâ”, que tinha, e tem, na caligrafia andalusi - maghribi um ponto diacrítico abaixo do corpo da letra, e que foi entendido, por um oriental, como tratando-se de um “bâ”, letra com que se poderá realmente confundir, pelo fato de também esta letra ter um ponto abaixo. No Oriente o “fâ” tem um ponto, no entanto por cima do corpo da letra. Tomando tudo isto em consideração, e substituindo o “bâ” pelo “fâ”, 5
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USAYBI’A, Ibn Abî, de seu nome completo Muʾaffaq al-Dîn Abû al-ʿAbbâs Aḥmad Ibn Al-Qâsim Ibn Khalîfa al-Khazrajî, nasceu e faleceu em Damasco, e a sua vida decorreu entre cerca de 1194 e 1270. A única obra que dele sobreviveu ‛Uyûn al-anbâ' fî tabaqât al-atibbâ' (Fontes de Notícias sobre Gerações de Médicos) (ed. Nazar Rida), Cairo, 1965 ; trad. ingl. de Lothar Kopf, 1971 (in Tertullian.org., visto em 12/3/16). V. ainda «Ibn Abî Usaybi‛a», in Encyclopaedia of Islam, 2ª ed. (1960-2005), Leiden / Paris, E.J.Brill / Maisonneuve et Larose, (EI2), III, pp. 693-694. HUNAYN, Ishâq ibn, Ta’rîkh al-Atibbâ’ wa-l-Hukamâ’ (Históra dos Médicos e dos Sábios), (ed. Franz Rosenthal) in revista Oriens, t. VII, 1954. Este autor, um médico nestoriano de Bagdad, morreu em 910, e foi filho do célebre Hunayn ibn Ishâq, tradutor, autor e médico de sucesso. V. «Ishak b. Hunayn», in Encyclopaedia of Islam, 2ª ed. (1960-2005), Leiden / Paris, E.J.Brill / Maisonneuve et Larose, (EI 2), IV, p. 110.
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leremos “al-Afrîsim” (Os Aforismos), muito mais próximo da forma latina que terá estado na origem do termo arabizado. Quanto à obra, o facto de a definir como “recolha”, como se tal fosse o significado do título, e não uma forma de subtítulo, permite-nos supor que se trataria na realidade de uma das atrás citadas “súmulas” ou “compêndios” (e daí o termo “recolha”) que na Antiguidade Tardia tinham sido compostas no Norte de África, e que vieram a servir, no século VII, como fontes para que Isidoro de Sevilha redigisse nas Etimologias tudo o que se relacionava com questões médico-sanitárias.
4 - A medicina entre os moçárabes
Como podemos concluir em função do que já dito atrás, não há muita informação sobre a medicina e os médicos na Hispânia romano-goda no período que precede a chegada do Islão. As passagens da obra enciclopédica de Isidoro de Sevilha, dedicados à área médica, permitem-nos ter uma ideia global sobre o estado destes conhecimentos na sua época, sem que, no entanto, ele refira algum trabalho que se deva a um dos seus contemporâneos, nem nos dá o nome de um só deles. Para o início do período árabe, sabemos que os monges, depositários em muitos casos destes saberes, estavam a salvo de abusos porque foram cometidos para cuidar dos muçulmanos que estavam de passagem. Podemos, por exemplo, citar a famosa Igreja dos Corvos, no Cabo de S. Vicente, onde os saberes médico-farmacêuticos também eram cultivados, praticados e eventualmente mesmo ensinados, pelos monges que lá residiam7. Qual exceção que confirma a regra, por volta de 860, o chefe da comunidade cristã de Córdova, o Qumis (Conde) moçárabe de seu nome Romano, é documentado como tratando-se de um bom médico8.
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Sobre a transmissão “internacional” de conhecimentos médico-farmacêuticos na época, v. o excerto seguinte: «[…] Vi muito desta planta (shajarat al-faras: árvore ou arbusto do cavalo) próximo da Igreja do Corvo. Informou-me um dos monges que estavam na Igreja de que chegara até eles um cristão de Constantinopla, que falou com ele acerca desta planta e colheu algumas delas. E disse: “Isto é conhecido, entre nós, por “limpa-dentes do Senhor” (siwâk al-sayyîd), - referindo-se a Jesus, a Paz seja sobre ele - , e com ele limpam os dentes os mais virtuosos entre nós. […]» in REI, António, O Gharb al-Andalus al-Aqsâ na Geografia Árabe (Sécs. III h. / IX d.C. – XI h. /
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XVII d.C.) – apresentação, tradução e estudo, IEM / FCSH – UNL e FCT, 2012, p. 143. DUFOURCQ, CH.-E., La vie quotidienne dans l'Europe médiévale sous domination arabe, Paris, 1981, p. 48.
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Quanto à nossa principal fonte, a obra de Ibn Juljul, a mesma foi posteriormente usada por outros historiadores, que na maior parte das vezes se limitavam a copiar integralmente o texto daquele. Entre cerca de duas dezenas e meia de notas referentes a médicos anteriores ou contemporâneos, seis notas referem-se a médicos moçárabes. Tratam-se de dados mais prosopográficos, que propriamente biográficos, pois a maioria não passam de breves notas, que pouco dizem do indivíduo, e que se limitam, por vezes a atribuir aquele indivíduo a redação de uma obra ou a produção de uma determinado medicamento.
5 - Médicos moçárabes
«Jawâd, o médico cristão9: Viveu no período do reinado do Emir Muhammad (852-886). Há um electuário que leva o seu nome. Deve-selhe ainda o chamado “medicamento do eremita”, e um xarope, ao qual também ficou associado o seu nome». «Khâlid ibn Yazîd ibn Rûmân, o cristão10: Era um excelente médico, e foi importante na sua época. Morava próximo da Igreja de Santo Acisclo e a sua casa era conhecida sob o nome de casa de Ibn Satkhîrî, o poeta. Na sua prática da medicina acumulou riquezas e honras, e fez construir os banhos (hammam) que levam o seu nome, e que ficam próximos da sua casa. Trabalhava ele mesmo com as suas mãos, sendo um especialista na produção de medicamentos à base de plantas, e os quais se encontram hoje conhecidos em todo o al-Andalus. O monge copta e médico egipcio Nistâs (Anastácio) ibn Juraîj, com quem se correspondia, escreveu e enviou-lhe um texto (risâla) sobre a urina. Khâlid teve um filho, Yazîd, também médico, mas que não teve, no entanto, o mesmo talento para a medicina do que o seu pai.» «Ibn Malûka, o cristão11: Vivia na casa conhecida como Casa de Khalafa, o Chefe dos Correios, e que se encontra em Jurfa. Deixou notícia durante o fim do reinado do Emir ‛Abd Allâh (888-912) e no início do de ‛Abd alRahmân III (912-961). Era cirurgião e um bom sangrador. À porta da sua casa havia um conjunto de trinta cadeiras em que esperavam os seus pacientes.» «Ishâq o médico12: Era o pai do vizir Ibn Ishâq, e era de fé cristã. Era um hábil cirurgião, acerca de quem se contavam curas maravilhosas e surpreendentes. A sua experiência permitiu-lhe ultrapassar os outros médicos do su tempo. Viveu no reinado do Emir ‛Abd Allah (888-912). 9
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JULJUL, Ibn, p. 93-94; USAYBI’A, Ibn Abî, ed. : II, p. 41; trad. ingl. p. 620; MEYERHOF, Max, “Esquisse d'histoire de la pharmacologie et de la botanique chez les musulmans d'Espagne”, Al-Andalus 3 (1935), pp. 1- 41, p. 5. JULJUL, Ibn, p. 96; USAYBI’A, Ibn Abî, ed. : II, p. 11; trad. ingl. pp. 620-621; MEYERHOF, Max, ibidem. JULJUL, Ibn, p. 97; USAYBI’A, Ibn Abî, ed. : II, p. 41; trad. ingl. p. 621. JULJUL, Ibn, p. 97-98; USAYBI’A, Ibn Abî, ed. : II, p. 42-43; trad. ingl. p. 624.
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«Yahya ibn Ishâq13 era um médico inteligente e erudito, hábil de mãos e que viveu durante o reinado de 'Abd al-Rahman III, do qual foi vizir. Yahyâ era originário de família cristã, mas converteu-se ao Islão em algum momento da sua vida14. Ocupou altos cargos e tornou-se governador de Badajoz durante algum tempo. Era próximo de 'Abd alRahman e tinha toda a sua confiança, cuidando-lhe das mulheres favoritas e as do harém. Yahya foi o autor de um substancial tratado médico em cinco volumes, escritos à maneira dos cristãos bizantinos, e que teve o título de «alAbrîsim»15.
Vejamos em seguida dois episódios envolvendo Yahya ibn Ishâq, recolhidos por Ibn Juljul e transmitidos por Ibn Abî Usaibi’a.
"Um homem de confiança contou-me [a Ibn Juljul] uma história que lhe tinha sido relatada por um jovem escravo que pertencera ao Hâjib Mûsâ ou ao Vizir 'Abd al-Malik16. O escravo dissera-lhe: "O meu amo mandoume levar-lhe uma carta. Eu estava sentado à porta de sua casa perto da Porta das Nogueiras (Bâb al-Jawz) e eis que chega gritando um homem do campo montado num jumento. Ele avançou até à porta da casa e começou a implorar, dizendo : "Ajudem-me e falai do meu estado ao vizir". Este saiu ao ouvir seus gritos, enquanto me deu a resposta à carta que eu tinha trazido. E perguntou-lhe: "Ei, homem, o que tens?". Ele respondeu: "Oh, Vizir, eu tenho um tumor no orifício do pénis que me impede de urinar desde há muitos dias, e eu estou a morrer." Yahya disse-lhe: "Mostra-me o teu pénis". O homem mostrou-lho e de facto o seu buraco estava inchado. Ele pediu a alguém que acompanhava o paciente para buscar uma pedra lisa. Encontrou uma e trouxe-a. O Vizir disse ao paciente: "Coloca a pedra na palma da tua mão e coloca a tua verga encima." O meu informante disse-me que de acordo ao que o escravo contara, assim que a verga ficou sobre a pedra, o Vizir fechou o punho e bateu-lhe com força, tendo o homem perdido a consciência, e o pus começado a fluir. O fluxo de pus não terminara ainda quando ele recuperou a consciência e começou a urinar imediatamente. Quando abriu os olhos, Yahya disse-lhe: "Vai-te embora, o teu mal está curado, mas tu continuas a ser um homem sem moral. Sodomizaste um animal e um grão de cevada da sua ração tapou a extremidade da tua verga, daí o inchaço. O grão saiu com o pus." O homem reconheceu que fora realmente assim que acontecera." Esta história é prova de uma verdadeira inteligência, e de uma natureza pura, boa, nobre e iluminada.
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JULJUL, Ibn, p. 100-102; USAYBI’A, Ibn Abî, ed. : II, pp. 42-43; trad. ingl. pp. 624-626; MEYERHOF, Max, “Esquisse d'histoire de la pharmacologie et de la botanique chez les musulmans d'Espagne”, p. 6. Ibn Abî Usaybi‛a diz (apesar de não se encontrar em Ibn Jujul), que Yahya ibn Ishâq se converteu ao Islão, apesar de seu pai ser cristão. V. trad. ing. p. 624. V. supra “2 - Memórias da medicina entre os moçárabes”, o que adiantámos relativamente a este título de obra. Os títulos aqui reportados, Hâjib (mordomo-mor do palácio, equivalente a primeiro-ministro) e Vizir (ministro), foram usados na administração Omíada de Córdova (Sobre estes títulos e respetivos cargos, v. ARIÉ, Rachel (1984), España Musulmana (siglos VIII-XV), III vol. da História de España (dir. M. Tuñón de Lara), Barcelona, Ed. Labor, pp. 60-65).
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 Um outro tratamento, também eficaz, e neste caso aplicado ao próprio soberano 'Abd al-Rahman III permaneceu na memória. Este príncipe teve uma dor de ouvido, na altura em que o Vizir foi governador de Badajoz. Tendo sido tratado sem sucesso, ordenou que fossem procurar Yahya. O mensageiro foi com a missão de trazer o tratamento. O médico deu-lhe as boasvindas e perguntou sobre o motivo de sua visita. Ele disse que o Príncipe dos Crentes tinha uma dor de ouvido e que os médicos tinham falhado. Yahya, ao longo do caminho, parou num mosteiro cristão e pediu para ver um sábio que lá estava. Era um homem muito velho, e ele perguntou-lhe: "Tens um remédio para dor de ouvido? ". O velho monge respondeu: "O sangue quente de um pombo." Yahya chegou junto do Príncipe dos Crentes17, e tratou-o com o sangue quente que corria de um pombo, e assim o curou»18.
Ibn Juljul diz-nos também que a primeira obra médica que foi redigida em árabe em alAndalus, datava do século X. Na mesma época entraram na Península tratados médicos vindos do Oriente islâmico. Várias vezes aquele autor usou, na sua obra e em relação a alguns médicos, a expressão “trabalhava com as suas mãos”. Atendendo aos contextos das notícias, há casos em que a expressão em causa aponta para ações médicas, como as sangrias ou outras intervenções cirúrgicas; embora em outras, a mesma expressão surge correlacionável com a produção, pelo próprio, de medicamentos, sem deixar este aspeto entregue a terceiros, a boticários.
5 - A tradução da obra de Dioscórides em Córdova – o ponto de viragem
A medicina de al-Andalus teve um momento, que não apenas foi importante pelo facto em si, as também pelas pessoas que nele estiveram congregadas. Tratou-se da tradução de grego para árabe da obre médica de Dioscórides. E a equipa que foi organizada para trabalhar nessa empresa foi chefiada por três homens, que além de médicos tiveram várias outras funções na corte omíada de ‘Abd al-Rahmân III. Além da muita e variada experiência que tinham, na vida diplomática e intelectual, já que eram poliglotas, acresce o facto importante, porque também simbólico, de que cada um dos três era de diferente religião: Recemundo, também conhecido como Rabî’ ibn Zayd, bispo de Elvira, cristão19; Hasdai ibn Shaprut, judeu20; e o nosso já conhecido Sulaymân Ibn Juljul, muçulmano. 17
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O facto médico reportado ocorreu depois do ano de 929, já que foi nesta data que ‛Abd al-Rahmân III assumiu a condição e a titulatura de Califa e de Príncipe dos Crentes (Amîr al-mu'minîn), e foi desta última forma que ele surge designado no relato. JULJUL, Ibn, p. 100-102; USAYBI’A, Ibn Abî, ed. : II, pp. 42-43; trad. ingl. pp. 624-626. Recemundo, ou Rabî‛ ibn Zayd, letrado, diplomata e médico, é um dos autores do chamado Calendário de Córdova para o ano 961, de facto intitulado Kitâb al-anouâ’ (Livro das Divisões). Este calendário agrícola,
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Deixemos que seja Ibn Juljul a informar-nos sobre a empresa literária em volta da obra de Dioscórides, mais exatamente a partir de alguns excertos da introdução ao seu Tafsîr anwâ' al-adwiya al-mufrada min kitâb Diyuskûrîdûs (Comentário sobre as Variedades dos Simples no Livro de Dioscórides), obra que foi escrita em 982.
«Este livro chegou a al-Andalus […] ao tempo em que 'Abd al-Rahman III reinou em al-Andalus, quando o imperador de Constantinopla Constantino VII21 mandou no ano de 337 [949 d.C.], uma missiva junto com os presentes valiosos. Entre eles havia o livro de Dioscórides, ilustrado com belas miniaturas de plantas gregas. O livro foi escrito em grego (ighrîqî), que é a antiga língua jónica (yunânî). Este envio também incluía um extraordinário livro da História de Orosio, onde há informações sobre séculos passados e a história dos primeiros reis e mais factos importantes. O Imperador dizia mesmo na sua correspondência: "Não poderás tirar proveito de Dioscórides, a menos que seja encontrado um tradutor que saiba perfeitamente o grego e o árabe, e conheça as propriedades destes medicamentos. Se no teu país há um homem que preencha essas condições, encontrarás a maior utilidade neste livro. Quanto ao livro de Orosio tu tens no teu reino quem leia o texto latino no original. Se lho encarregares, eles traduzi-loão para ti." 22 Ibn Juljul continua: "Não havia então em Córdoba nenhum cristão que fosse capaz de ler grego, que é o jónico antigo. O livro de Dioscórides manteve-se, portanto, na biblioteca de 'Abd al-Rahman, na sua versão grega, e sem ser traduzido para o árabe. Era possível encontrar a obra em al-Andalus, mas as pessoas apenas tinham à sua disposição a versão de Istafan ibn Basil (Stephanos Basilos) importada da Bagdad23. Assim, e em resposta à carta, 'Abd al-Rahman pediu ao imperador para enviar um homem que soubesse grego e latim para ensinar os que se pudessem tornar tradutores. Constantino VII enviou um monge chamado Nicolau, que chegou a Córdoba em 340 [952 d.C.]. Havia então na cidade um grupo de médicos que estavam, avidamente, à procura, do equivalente, desconhecido em árabe, de medicamentos que aparecem em
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no qual também se encontram informações de tipo médico, foi publicado por DOZY, Reinhardt, Le calendrier de Cordoue, Leiden, 1873. O texto árabe é acompanhado por uma tradução francesa de Charles Pellat, e pela tradução latina medieval. Ainda sobre Recemundo, v. SIMONET, F.J., Historia de los Mozarabes de España, Madrid, Real Academia de la Historia, 1897-1903, p. 351. Sobre Hasdai ibn Shaprut, entre outros, v. ARIÉ, Rachel, España Musulmana …, pp. 71, 163, 202-204 e 416. No texto consta o nome do imperador Romano I, que tinha sido deposto em 945. Este engano na identificação tem sido, desde há muito tratada por quem tem estudado o envio da obra de Orósio e a sua tradução em meio califal. (v. MOLINA MARTÍNEZ, Luis, « Orosio y los Geografos Hispanomusulmanes », Al-Qantara V (1984), pp. 63-92 ; e PENELAS, Mayte, (ed. e estudo) Kitâb Hurûshiyûsh (Traducción Árabe de las Historae adversus Paganos de Orosio), Madrid, CSIC, 2001. Quer a obra que tenha sido traduzida de latim para árabe tenha sido a partir do manuscrito enviado de Constantinopla, ou a partir de um manuscrito já existente localmente, a tradução existiu de facto e foi levada a cabo pelo Qumis (Chefe da comunidade) dos mçárabes de Córdova, Hafs ibn Albar. Sobre a tradução e o tradutor, v. PENELAS, Mayte, (ed. e estudo) Kitâb Hurûshiyûsh (Traducción Árabe de las Historae adversus Paganos de Orosio), Madrid, CSIC, 2001. Istafan ibn Basil, ou mais exatamente Stephanos Basilos foi um grego que trabalhou para Hunayn ibn Ishaq em Bagdad, nas traduções de obras científicas gregas para árabe. V. PRIORESCHI, Plinio, A History of Medicine, vol. IV : Byzantine and Islamic Medicine, Horatius Press, Omaha, 2001, p. 207.
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Revista Diálogos Mediterrânicos www.dialogosmediterranicos.com.br Número 12 – Junho/2017 Dioscórides. Sendo que o mais ansioso a prosseguir esta investigação, e para ganhar o favor do príncipe, era o judeu Hasdai ibn Shaprut. O monge Nicolau tornou-se seu amigo e ele foi capaz de explicar os nomes simples que permaneciam desconhecidos. Ele foi o primeiro a conseguir produzir em Cordóva a teriaga Faruq, ao determinar exatamente as plantas que faziam parte da sua composição. Entre os médicos e ervanários que então procuravam descobrir os nomes dos simples citados na «Matéria Médica» de Dioscórides e identificar as suas propriedades, encontravam-se Muhammad, chamado o ervanário; um outro homem conhecido como al-Basbâsî24; Abû ‘Uthmân al-Hazzâz, conhecido como al-Yabisa25 ; e Muhammad ibn Sa'id, médico ; 'Abd alRahman ibn Ishaq al-Haytham26 ; e Abû 'Abd Allah, siciliano que falava grego e conhecia as propriedades das drogas27. Ibn Juljul acrescenta: "Conheci-os todos, e também a Nicolau, e fui amigo deles durante o reinado do califa al-Hakam II (961-976). Nicolau morreu durante este reinado. Com todo este grupo de investigadores foi possível determinar, em Córdoba, no al-Andalus, quais os simples do Livro de Dioscórides e em conhecer as suas propriedades. Nunca mais tivemos nenhuma dúvida acerca deste assunto, pois sabíamos exatamente quais eram as plantas e as suas propriedades, e como deviam ser designadas, à exceção de um pequeno número, uma dezena talvez, o que não tinha importância nem causava perigo»28.
Uma descrição parcial, porque produzida apenas por um dos participantes na empresa, mas muito significativa, pois tratou-se de um processo de tradução feito a muitas mãos. Não apenas em função do idioma da redação do texto a traduzir, mas também eventualmente das diferentes comunidades que dele poderiam vir a obter proveito, a partir das informações nele contidas. Não apenas foram tidos em conta diferentes os saberes médicos, mas também as especialidades dos diferentes componentes da equipa. Esta tarefa conjunta não terá sido, no entanto, uma nova e integral tradução da obra de Dioscórides. Ter-se-á tratado do precisar e identificar da nomenclatura botânica utilizada em grego e eventualmente em árabe oriental, para os termos sinónimos árabes, romances e talvez também berberes, usados no mundo islâmico ocidental de então.
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Outro ervanário, que seria um especialista no funcho, o seu nome Basbâsî = o funcheiro, de basbâs = funcho. Hazzâz quer dizer «recoletor de liquenes». Era, pois, outro ervanário. Yâbis pode significar «o que seca as plantas». Vários autores entendem que o apodo “al-Yâbisa” significaria que ele era natural da ilha de Ibiza. Al-Haytham, médico de Córdova, era, de acordo a Ibn Abî Usaybi‛a o autor de uma obra sobre purgativos e vomitivos, e de uma crítica ao seu colega de Qairawan, Ibn al-Jazzâr, sobre a sua obra Zâd al-musâfir wa-qût al-hâdir (Provisões do Viajante e Alimentos do Sedentário); v. MEYERHOF, Max, ob.cit., p. 12. Atendendo às suas capacidades, este elemento deverá ter-se juntado mais tarde à equipa, pois inicialmente havia falta de helenistas em Córdova, o que motivou o pedido do Califa ao Imperador. Na Sicília, antiga possessão bizantina, até tarde falou-se o grego. Recordemos a corte letrada e poliglota do imperador Frederico II no século XIII onde o grego era lingua falada, também pelo próprio monarca. Relato idênctico também recolhido em MEYERHOF, Max, ob.cit., pp. 9-11.
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O facto de a mesma empresa ter tido uma equipa multicultural e multiconfessional é um sinal de como o que realmente importa ao ser humano é, de facto, para todos. E tal continua a ser válido, mesmo nos dias de hoje.
6 – Conclusões
No relativo ao que os moçárabes transmitiram, praticaram e inovaram dentro da medicina na Península Ibérica, entre os séculos VIII e X, identificamos uma bibliografia algo escassa e um número muito reduzido de nomes de indivíduos que então sobressaíram em virtude dos seus saberes médicos. Curiosamente, e apesar da pequena lista que foi possível reunir, podemos constatar uma tendência para a transmissão da profissão dentro da família, passando a função médica de pai para filho. E também o facto de que os que deixaram mais informação, quer científica quer biográfica, foram os que estiveram mais perto do poder, literalmente dos detentores desse poder, os próprios Emires e ou Califas. Ainda assim temos um cenário de mais de um século, entre 711 e cerca de 840 em que o que permaneceu dos saberes médicos hispano-godos foi o que funcionou efetivamente nos cuidados sanitários no Al-Andalus. Entre meados do século IX e meados do século X houve dois fenômenos. Um de “islamização”, e um de “arabização” da medicina. Em relação ao primeiro fator, encontramos médicos que tendo sido filhos de cristãos e eles também cristãos, se foram convertendo ao Islão; e o segundo fator, foi-se produzindo, primeiro com a tradução de textos médicos latinos para árabe, e mais tarde, no ponto onde nos detivémos, com a tradução, parcial e onomástica, de grego para árabe da obra de Dioscórides. Constata-se assim que na segunda metade do século X a medicina andalusi se autonomizara, bibliográfica e cientificamente. Num futuro, desejavelmente próximo, será de promover um estudo sistemático dos textos moçárabes, em busca de mais informações sobre este tema. Sejam textos em latim ou em árabe, tenham um carater mais ou menos geral; ou tenham, especialmente, um cariz mais ou menos científico, e que tenham surgido ao longo de todo o período entre os séculos VIII e XII.
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Dois possíveis e incontornáveis pontos de partida, a nível de conteúdos e de metodologia, são as obras, ainda muito válidas, apesar da idade: Glosario de voces ibéricas y latinas usadas entre los mozárabes: precedido de un estudio sobre el dialecto hispano-mozárabe, de Francisco Javier Simonet (1888), e Glosario de voces romances: registradas par un botánico anónimo hispano-musulmán (siglos XI-XII), de Miguel Asín Palacios (1943).29 Cremos que, dessa forma, será possível alargar o âmbito do que se conhece sobre a contribuição dos cristãos arabizados para a medicina hispânica em particular, e para toda a medicina europeia, e talvez não só, em geral.
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SIMONET, Francisco Javier, Glosario de voces ibéricas y latinas usadas entre los mozárabes: precedido de un estudio sobre el dialecto hispano-mozárabe, Madrid, Est. Tip. Fortanet, 1888; ASÍN PALACIOS, Miguel, Glosario de voces romances: registradas par un botánico anónimo hispano-musulmán (siglos XI-XII), de Miguel Asín Palacios, Madrid, CSIC, 1943 (2ª.ed. fac-sim., Institución “Fernando el Católico”, Universidad de Zaragoza, 1994).
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Los garantes de la ortodoxia. La estructura de la inquisición en el reino de Mallorca en el siglo XVII The warranties of orthodoxy. The structure of inquisition in the kingdom of Mallorca in the 17th century Antoni Picazo Muntaner * Universitat de les Illes Balears
Resumen
Abstract
La Inquisición fue un instrumento de control social e ideológico que abarcó casi por completo toda la geografía de la monarquía hispánica. Su estructura centralizada y sus tribunales de distrito le permitieron ser los garantes de la ortodoxia a todos los niveles, desde los sociales a los territoriales. El presente artículo se centra en el estudio de la estructura de dicha institución en el reino de Mallorca y los desencuentros generados entre los diferentes órganos de poder y la intervención de la Corona en ellos.
The Inquisition was an instrument of social and ideological control that covered almost completely the entire geographical span of the Spanish Monarchy. It was entrally structured and allowed district courts to be the guarantors of orthodoxy at all levels (from social to territorial). This article focuses on the study of the structure of the institution in the kingdom of Mallorca and the disagreements that arose between its different organs of power as well as the intervention of the Crown.
Palabras clave: Inquisición; siglo XVII; Monarquía Hispánica; reino de Mallorca; control social.
Keywords: Inquisition; the seventeenth century;
Spanish monarchy; the kingdom of Mallorca; social control.
● Enviado em: 20/01/2017 ● Aprovado em: 28/06/2017
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Doctor en Historia, profesor de la Universidad de las Islas Baleares, área de Historia Moderna. Autor de varios libros y artículos en revistas especializadas internacionales y nacionales.
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1-Introducción.
La Inquisición, como explicaron Bennassar y Escandell1, fue un instrumento de control social –e incluso como afirman varios autores, entre ellos Pinto Crespo2, de control ideológicoque abarcó casi por completo toda la geografía de la monarquía hispánica. Su estructura centralizada y sus tribunales de distrito le permitieron ser los garantes de la ortodoxia a todos los niveles, desde los sociales a los territoriales3. Todos y cada uno de estos tribunales poseían una estructura similar, con un inquisidor como cabeza visible del Santo Oficio 4 y un número variable de personal al servicio de la institución misma. En ese aspecto Martínez Millán5 explica como “... La complejidad orgánica de la Inquisición, derivada de su diversidad de funciones y su dispersión geográfica, dio lugar a una organización especialmente multiforme...”. El caso del reino de Mallorca no fue una excepción. El Santo Oficio persiguió no solo los delitos de herejía, sino todos aquellos que afectaban a la sociedad y que debían ser extirpados para evitar el contagio social, tales como hechicería, superstición, prácticas mosaicas o islámicas, blasfemia, actitudes amorales,... Y todo ello en un campo donde los conflictos institucionales para mantener la homogeneidad y la conducta moral y religiosa de los súbditos eran muy comunes y complejos. A pesar de ello el Santo Oficio prevaleció como el máximo organismo6 encargado de la referida vigilancia, control y, por supuesto, extirpación.
1
2 3
4
5 6
BENNASSAR, Bartolomé Inquisición española: poder político y control social, Barcelona, Crítica, 1981. ESCANDELL, Bartolomé ‘El control social’, en J. Pérez Villanueva y B. Escandell Bonet, Historia de la Inquisición en España y América, Madrid, C.E.I., 1984, pp. 220-249. PINTO CRESPO, Virgilio Inquisición y control ideológico en la España del siglo XVI, Madrid, Taurus, 1981. Archivo Histórico Nacional, Madrid, (en adelante AHN) Inquisición, L-817, fols. 131 y ss. Un ejemplo fueron los exhaustivos controles que el inquisidor de Mallorca realizó sobre los diferentes manuscritos y memoriales que llegaron al reino durante la guerra de Secesión de Cataluña GRACIA,R. Los fundamentos de la Inquisición española (su organización, sistemas y procedimiento), Valladolid, Quirón, 1997. MARTÍNEZ MILLÁN, José La Inquisición Española, Madrid, Alianza, 2007, p. 154. AHN, Inquisición, 1717, Exp. 7 “Pleito de competencias entre el Tribunal de la Inquisición de Mallorca y la jurisdicción eclesiástica en el proceso criminal de Gabriel Montañer, juez de bienes confiscados y calificador del Santo Oficio, y rector de la iglesia parroquial de Santa Eulalia en Mallorca, a instancias de Juan de Santander, obispo de Mallorca, del vicario y beneficiados de la referida parroquia, y de Jaime Planes, presbítero, por diferentes delitos: conducta escandalosa y amancebamiento con Ana Poquet; usurpación de dinero de obras pías; agravios y ofensas contra los vicarios, clérigos y beneficiados de la referida parroquia, y por abandonar la parroquia sin licencia, contraviniendo los decretos del Concilio de Trento que establecían la residencia obligatoria de los párrocos, 1632”. O también el que enfrentó al Obispado con el tribunal, AHN, Inquisición, 1717, Exp. 23 “Pleito de competencia entre el Tribunal de la Inquisición de Mallorca y la jurisdicción eclesiástica sobre los edictos publicados por el obispo de Mallorca por los cuales se conminaba a todas las personas a que, bajo pena de excomunión, denunciasen a brujas o a quienes utilizasen sortilegios, a herejes o a personas que practicasen ceremonias judaicas o de la secta de Mahoma, a quienes tuviesen libros prohibidos, así como a blasfemos, 1580”.
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En ese sentido, García Cárcel7 narra como en la Inquisición apareció una triple jerarquía: la de los títulos otorgados por el Inquisidor General (fiscal, juez de bienes confiscados, alguacil, carcelero, nuncio, escribano…); la de los oficios extraordinarios dados localmente por el inquisidor (letrados de presos, alguacil, cirujano…) y, finalmente, la estructura de base (consultores…). En 1600 el Inquisidor de Mallorca Francisco Desquivel8, que había sido nombrado en 1595, envió a la Corte un extenso documento que recogía todos y cada uno de los miembros del Santo Oficio del reino, su nombre, estatus, edad, profesión, salario –en algunos de los casos- y renta disponible (en ducados9).
Desquivel dividió el documento en apartados,
iniciándolo con los dirigentes y personal adscrito al propio tribunal, para continuar con los calificadores, consultores, oficios particulares y familiares de todo el reino. Este documento nos permite una mejor comprensión de esa institución, su representación en la ciudad, en la zona rural y en cada una de las islas. Al mismo tiempo clarifica cual fue la extracción social de sus miembros y la calificación moral que el Santo Oficio tenía de cada uno de ellos. Kamen10 afirma que la Inquisición primó la extracción social de los familiares de los círculos más altos, en cambio los estudios aportados por otros autores, y del análisis del reino de Mallorca, demuestra más bien lo contrario. Cierto que en determinadas esferas hallamos una representación de las elites y la oligarquía local, pero también de otros estamentos. La extracción social de los familiares provenía, básicamente, de las zonas rurales y mayormente de labradores. Los documentos que sobre el mismo tema se enviaron en años posteriores no fueron tan completos, ni de lejos, como el confeccionado por el inquisidor. Incluso tras el requerimiento de la Suprema para que informaran del número de familiares del reino de Mallorca en 1619 la respuesta del Santo Oficio fue bastante confusa. En primera instancia se contestó que no se tenía ni la más remota idea de ello, ni tan siquiera de los que pudieran existir en la capital. Meses después se remitió un documento, bastante más simple, en el que se recogía el número requerido, aunque sin la minuciosidad y extensión que el de 1600.
7
8
9 10
GARCÍA CÁRCEL, Ricardo Herejía y sociedad en el siglo XVI: La Inquisición en Valencia, 1530-1609, Barcelona, Península, 1980. Francisco Desquivel o de Esquivel (en este caso respetamos la grafía original del documento “Desquivel”) nació en Vitoria, Felipe II le nombró inquisidor de Mallorca en 1595. Posteriormente, en 1604, Felipe III le nombró obispo de Cagliari (Cerdeña). Un ducado castellano equivalía a, aproximadamente, 1’5 libras mallorquinas. KAMEN, Henry La Inquisición Española: una revisión histórica, Barcelona, Crítica, 2005.
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2- La visita de 1569 y la reestructuración del tribunal.
En 1569, y como consecuencia de una petición formulada por las autoridades civiles del reino a la Corte, Felipe II dispuso que se enviara inmediatamente un visitador inquisitorial para depurar las posibles irregularidades que se denunciaron, y que al parecer no eran pocas. Ese mismo año Andrés Santos de Herrera comenzó un largo análisis, que años más tarde acabaría con múltiples procesos, para verificar la dinámica de todo el distrito, desde la pirámide de poder a la base, desde los inquisidores a los familiares. Lo que halló en sus pesquisas precipitaron un cambio drástico en toda su estructura puesto que el incumplimiento de las directrices emanadas desde la Suprema, la omisión de las diligencias prescriptivas en los actos judiciales, la corrupción económica y moral de todos y cada uno de los componentes lo hizo más que necesario. La primera de las consecuencias de esa visita fue el cese inmediato de todo el personal al servicio del Santo Oficio y el inicio de una nueva dinámica y un nuevo proceso selectivo. Así, la primera consecuencia fue que los inquisidores no volverían a ser naturales del reino hasta la década de 1650; la segunda, la prolongación de las investigaciones de carácter personal y moral de los futuros miembros del Santo Oficio isleño. Esas labores las inició el nuevo inquisidor, Félix Hevia de Oviedo y las continuaron sus sucesores. Durante esos primeros años se eligieron a los que formarían parte del personal del tribunal, jueces, fiscales, consultores...Pero no sería hasta la llegada de Francisco Desquivel que se intentaría reformar a los familiares, en todos sus aspectos, desde su moralidad a su número.
3-El vértice de la pirámide: Inquisidores, fiscales y calificadores.
Retomando el documento emitido por Desquivel, por debajo del propio inquisidor hallamos a la que sería la superestructura organizativa del tribunal del reino. Los datos que obran sobre los mismos incluyen el año de toma de posesión del cargo, el salario y la ayuda de costa, si la tenía.
Nombre
Oficio
Año de posesión Salario Ayuda de costa
Francisco Desquivel Inquisidor
1595
400
100
Francisco Ferrer
Fiscal
1582
0
50
Juan Simonet
Receptor
1580
74
50
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Hernando Harto
Alguacil
1578
130
50
Sancho Ortiz
Secretario (pbro.)
1593
134
50
Damián García
Secretario (pbro.) 1596
0
50
Juan Llodrá
Alcaide cárceles
1597
30
30
Antonio Felipe
Nuncio11
1570
0
0
En el segundo nivel de esa pirámide tremendamente jerarquizada que era el Santo Oficio hallamos a los Calificadores, verdaderos garantes, morales e ideológicos del corpus social del reino, que debían examinar cualquier actividad cultural o intelectual para que se ajustara a la ortodoxia y al canon. En ocasiones eran los propios religiosos quienes enviaban sus obras a calificar, veamos un claro ejemplo de una situación que el propio interesado creía era muy peligrosa, dado el tema a tratar. En 1684 el padre Sebastián Sabater, de la Compañía de Jesús, escribió una obra teológica sobre la Inmaculada Concepción y “....por ser esta materia tan vidriosa y peligrosa pido a V.I. mande la vean y conformen los Calificadores de este Santo Oficio y si hay cosa digna de corregir…”. En otras, debido a las denuncias formuladas, los escritos se repasaban meticulosamente. En 1681 se representó una comedia en Ibiza, corriendo a cargo de la Compañía de Jesús, y a ella acudió la mayoría de la población por ser “cosa tan novedosa”. Esta comedia fue denunciada ante la Inquisición por fray Pedro Balenzart pues “era un escarnio y vilipendio a nuestra sagrada religión”, por lo que fue calificada con detenimiento. Por todo ello, para ser calificador se debían cumplir dos requisitos básicos: un nivel intelectual aceptable y una ascendencia genealógica no contaminada. A estos se le añadieron otros dos de carácter menor, el calificador debía poseer buenas costumbres y fama. Así, en 1600 hallamos los siguientes:
Nombre
Oficio/Orden
Rafael Albertí Canónigo Rafael Serra
11
Años Riqueza 50
1,000
Orden S. Francisco 70
0
Antonio Creus Orden S. Domingo 70
0
Ser descendiente de un cargo del Santo Oficio podía abrir las puertas de oficios del mismo. Tenemos el caso de Gabriel Palou, tejedor de lino, hijo de Baltasar Palou, también tejedor de lino y nuncio del Santo Oficio. En 1640 Baltasar Palou, argumentando las labores realizadas por su padre, solicitó el puesto de portero, previa presentación de su genealogía y la de su esposa, Catalina Barceló.
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Onofre Mir
Orden S. Francisco 55
0
Antonio Reus Orden S. Francisco 46
0
En cambio, en menos de veinte años los calificadores habían aumentado notoriamente de número, pasando de cinco a catorce, la mayoría perteneciente a las órdenes existentes en la ciudad. La relación presentada en 1620 fue la que sigue a continuación:
Nombre
Oficio/Orden
Rafael Albertí
Canónigo
Juan Torrens
Cia. Jesús
Bartolomé Pizá O. S. Domingo Pedro Febrer
O. S. Domingo
Jaime Mas
O.S. Francisco Paula
Juan Figuerola
O. S. Francisco
Guillem Salas
O. S. Francisco
Rafel Burguera Provincial O. S. Francisco Melchor Melis
O. S. Agustín
Jaime Roig
O. S. Domingo
Francisco Quint O. S. Domingo Pedro Bisbal
O. N. S. Carmen
Antonio Gual
Arcediano y canónigo
Ignacio García
O. S. Francisco
4-Abogados, oficios particulares y consultores.
La disposición que tenía el tribunal de abogados para los presos y acusados en 1600 estaba compuesta por las siguientes personas: Revista Diálogos Mediterrânicos
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Nombre
Estado
Años Observaciones
Guillem Ferrer
Caballero 33
Bernardo Luis Cotoner Caballero -
Salario
Hijo de Familiar
30 d. ayuda de costa
-
0
Entre los denominados oficios particulares, la mayoría sin salario y en algunos casos meramente formales, hallamos al siguiente personal:
Nombre
Cargo
Oficio/Estado Año de
Renta
posesión Onofre Quiles
Nuncio
Gaspar Morlá
Médico
Médico
1595
Antonio Doménech12
Procurador del fisco Notario
1589
Juan Antonio Serralta
Familiar S.O.
Caballero
60,000
Muchos más numerosos fueron los consultores13 y comisarios del Santo Oficio. Entre las atribuciones de los consultores estaban las de asistir a los calificadores en algunas tareas. En 1640 se ordenó que un consultor y un calificador visitasen las librerías públicas y privadas de la ciudad y villas de Mallorca a efectos de expurgar libros14. Del examen realizado se requisaron diferentes obras, entre ellas varias de Erasmo y se relacionaron los cuadros que muchas familias tenían de beatos y beatas, entre ellos de Ramón Llull.
12
13 14
AHN, Inquisición, 1185, Exp. 5 “Informaciones genealógicas de Antonio Doménech Niella, notario, natural de Inca (Mallorca, Baleares), pretendiente a oficial del Tribunal de la Inquisición de Mallorca, y de su mujer, Leonor Bordoy Prats, natural de Mallorca, 1600”. Biblioteca Bartomeu March, Palma de Mallorca, (en adelante BBM), MF-12 “Cartas de la Inquisición”. En 1620 hallamos la relación de libros existentes en el denominado “secreto”. Libros, en definitiva, perseguidos o, cuando menos, con un claro control sobre sus posibles lectores. Entre ellos, por ejemplo, Una “Biblia en lengua inglesa”, publicada en Londres en 1606; un gran número de obras de Erasmo (“Espítola erasmi”, “De librero Arbitrio”, “Docta Moralia”...); otros de literatura ‘preocupante’, como “Calixto y Melibea” o “La Divina Comedia”. Finalmente una serie de libros sobre artes mágicas o perseguidas, como “Della Geomancia” publicado en Venecia en 1559.
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Nombre
Oficio/Estado Años Cargo
Renta
Ramón de Veri
Noble
45
Real Audiencia
25,000
Miguel Miralles
Caballero
50
Real Audiencia
12,000
Antonio Nadal
8,000
Pedro Moll
Caballero
48
Luciano Nadal
Canónigo
40
1,300
Jaime Juan de Deza Ciudadano
15
20,000
Jaime Valentí
Caballero
50
30,000
Oliver de Termens
Ciudadano
70
30,000
Francisco Pizá
Pelaire
48
1,000
Nicolás Armengol
Ciudadano
32
12,000
Francisco García
Ciudadano
37
8,000
Pedro Vallés
Mercader
46
25,000
Jerónimo Llodrá
Platero
40
15,000
Pedro Vivot
Caballero
52
40,000
Antonio Cifré
Mercader
34
8,000
Albertín Dameto
Caballero
70
12,000
Joan Armengol
Caballero
30
1,500
Gabriel Ferragut
Mercader
58
50,000
Juan Puigdorfila
Caballero
34
10,000
Pedro Togores
Carpintero
76
200
Felipe Valeman
Caballero
70
Depositario Santo Oficio
14,000
Jorge Vich
Noble
28
Almirante Santo Oficio15
40,000
Pedro Llabrés
Mercader
59
Teniente Almirante S. Oficio 24,000
La visita de los navíos que llegaban al puerto la realizaba el almirante del Santo Oficio que siempre lo fue de entre el estamento de caballeros, acompañado por el notario de los secuestros.
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Algunos de los cargos citados anteriormente también tuvieron una representación en las demás islas. En Ibiza, por ejemplo, en 1600 solo había dos miembros del Santo Oficio, Marcos Bened Arabí, médico de 45 años que era el almirante del tribunal en la ciudad de Ibiza, con una riqueza valorada en 1.500 ducados y Antonio Pablo Salerno, ciudadano de 42 años, con una renta tasada en 1.600 ducados. En Menorca el personal era mucho más numeroso, tanto el de la estructura superior como los mismos familiares, la mayoría ubicados en Ciutadella. Las plazas de gestión y gobierno de la Inquisición en Ciutadella (Menorca) fueron los siguientes:
Nombre
Oficio/Estado Cargo
Años Renta
Onofre Martín
Ciudadano
Receptor
64
Marcos Martín
Paborde
Comisario
20
Jorge Boscán
Ciudadano
Comisario
85
2.,000
200
Gabriel Esquells Caballero
Capitán de Familiares 50
5,000
Gil Martorell
Almirante S. Oficio
50
1,000
Nicolás Xalpes
Escribano S. Oficio
40
1,000
Pedro Juan Oliva Ciudadano
Alguacil S. Oficio
45
1,200
Miguel Ros
Comisario
52
1,000
Blas Terrón
Nuncio S. Oficio
44
Caballero
5-La red de familiares del Santo Oficio.
La existencia en los distintos reinos que conformaban la monarquía hispánica de un elevado número de familiares generó muchos problemas, desencuentros y conflictos entre las diferentes instituciones (laicas y religiosas), hecho muy documentado por G. Cerrillo16. Estos desencuentros también surgieron entre la misma Inquisición y la Corona 17 por las
16
17
CERRILLO CRUZ, Gonzalo Los familiares de la Inquisición Española, Valladolid, Junta de Castilla-León, 2000. AHN, Inquisición,1717, Exp.21, “Pleito de competencias entre el Tribunal de la Inquisición de Mallorca y la jurisdicción ordinaria sobre el secuestro de bienes pertenecientes a Pedro Llebes, almirante y oficial del Santo Oficio, a Bernardo Nadal, consultor del Santo Oficio, y a Leonardo Forteza, depositario del
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consecuencias y los problemas que derivaban del incremento, en determinadas épocas, del número de familiaturas, tema que se intentó solventar con las Concordias18 que se dictaron a tal efecto. Las actuaciones de los familiares tanto en los conflictos internos derivados del enfrentamiento de redes de poder local19, en los choques institucionales por la demanda y/o ejecución de privilegios institucionales, espirituales, familiares, económicos y sociales o de sus mismas funciones, alteraron la vida y la dinámica en muchas áreas de la monarquía, y el reino de Mallorca no fue una excepción. Solo en 1661 tuvieron pleitos civiles en la Curia del Santo Oficio 23 familiares, entre ellos Pedro Juan Villalonga un asiduo de la Curia que tenía un elevado número de pleitos. La mayoría de los caballeros, a tenor de la Real Audiencia, entraban en la familiatura para “librarse de la justicia y actuar con libertad y desahogo sin tener castigo por el motivo que la Inquisición no se atreven con ellos y otros por estar llenos de deudas”20. En la distribución de familiares hallamos como Mallorca tenía un número significativamente mucho mayor.
Isla
Total familiares
Mallorca
225
Menorca
19
Ibiza
2
En cuanto a Mallorca, la diferencia de miembros del tribunal entre lo que era la capital del reino y su zona rural (Part Forana) fue determinante:
18
19
20
Santo Oficio, por parte de Pedro Juan Ortola, visitador general de las administraciones de las rentas públicas, como pago de las rentas que deben a la universidad, 1615”. Recopilación de las ordenanças de la Real Audiencia y Chancilleria de su Majestad, Francisco Fernández de Córdoba: 1566, fol. 15. La normativa sobre el límite de los familiares en cada una de las localidades de la Monarquía fue muy extensa, un ejemplo de ello: “En los pueblos de hasta mil vezinos seys Familiares, y en los de hasta quinientos vezinos quatro Familiares y en los lugares de menos de quinientos vezinos donde paresciere a los Inquisidores que ay dello necessidad dos, y si fuere puerto de mar y lugar de quinientos vezinos a baxo u otro lugar de frontera aya quatro familiares”. BALANCY, E. Violencia civil en la Andalucía moderna (ss. XVI-XVII): familiares de la Inquisición y banderías locales, Sevilla, Universidad de Sevilla, 1999. BBM MS-3 (12) “Memorial al rey de la Audiencia de Mallorca sobre asuntos y prerrogativas de la Inquisición”.
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Área
Número
%
Ciutat
23
10’22
Part Forana
202
89’78
Además de esa distribución por todas las islas, especialmente en Mallorca, el tribunal también asignó a algunos de sus familiares una serie de labores de auxilio a la institución, como el caso de los tenientes de alguacil. Estos se situaron en dos líneas que intentaban controlar toda la geografía de Mallorca: una ubicada en el oeste de la isla y otra en el este. En este sentido también hallamos a un escribano del Santo Oficio en la villa de Inca, en el centro de la isla. Finalmente, en esa tupida red que conformaron los familiares de la Inquisición en el reino hallamos, al menos en 1600, pocas casas vinculadas al tribunal con más de un miembro. Tan solo encontramos dos casos: los dos únicos familiares de la villa de Campos eran padre e hijo, concretamente Damián Fullana, labrador de 69 años, y su hijo Melchor Fullana, este de 42. En Manacor, de los 17 familiares de la relación de 1600 vuelven a aparecer un padre y un hijo, ambos notarios, concretamente Nicolás Gili (mayor) de 75 años y su hijo Nicolás Gili (menor) de 45 años. Si bien, y como ya hicimos referencia anteriormente, la lista que presentó Desquivel en 1600 de los miembros de la Inquisición es muy completa y exhaustiva, no lo es la de 1620. La misma evolución la hallamos al final de la centuria. En 1680 una carta aclaraba a la Suprema las familiaturas (incluso de vecindad) que había en todo el distrito. Así, para un total de 25.250 vecinos existían 339 números inquisitoriales. El número de ministros de la capital era de 89, de ellos 6 consultores, 12 calificadores, 2 personas honestas y los demás eran familiares, con la excepción de un notario extraordinario. Si examinamos los datos proporcionados por el Santo Oficio, del número de familiaturas posibles en cada una de los pueblos del reino y de existentes, podremos observar como, a pesar del fuerte incremento en su cómputo total, estos no alcanzan al general permitido por las disposiciones vigentes en 1620.
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Villa
1600 1620
Lluchmajor
8
8
Campos
2
5
Santanyí
5
4
Montuiri
4
7
Porreres
7
5
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9
4
Manacor
17
12
Felanitx
20
7
Petra
6
7
Artá
4
5
Capdepera
0
3
Muro
10
8
S. Margarita 7
6
Sineu
8
8
S. María
3
3
Selva
6
9
Campanet
4
6
Inca
11
10
Escorca
1
2
Sencelles
6
3
Alcudia
8
11
Pollença
7
7
Valldemossa 5
3
Esporlas
3
4
Bunyola
3
6
Sóller
0
10
Alaró
12
0
Binissalem
6
4
Marratxí
2
1
Andratx
4
3
Calvia
2
4
Sant Joan
0
4
Deiá
0
4
Sa Pobla
0
6
Puigpuyent
12
0
Palma
23
64
Total
225
253
Al contrario, en sendos expedientes aparece una distribución muy similar, aunque en algunas villas faltaba una cifra significativa para cubrir las posibilidades administrativas. Tan solo en algunos casos muy puntuales, y pocos dentro de todo el conjunto del reino, los familiares superan levemente al de los legalmente permitidos21. 21
AHN, Inquisición, Libro 857 “Cartas”, fol. 113.
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En la comparación de las dos relaciones observamos un aumento en conjunto muy importante de 1620 respeto a 1600. La explicación de ese incremento general vino motivada, básicamente, por la extensión de familiaturas a toda la geografía insular, especialmente en villas en donde previamente no existían, como los casos de Sant Joan, Deiá o Sa Pobla que de no tener ninguno en 1600 pasaron a tener cuatro en cada una de ellas. 6-La sociología de los familiares.
En el estudio de los familiares existen dos factores que cabría tener en cuenta para poder comprender, más fácilmente, como estaba estructurado el Santo Oficio. El primero de ellos es el análisis de los oficios y condición social, y sus marcadas diferencias entre la ciudad y la zona rural (lógicamente determinadas por la dinámica económica desempeñada en cada una de ellas, complementándose una a otra). En segundo lugar, y en referencia al primer punto, la acumulación de riqueza que estos familiares llegaron a alcanzar y que la misma Inquisición tenía controlada. Esto nos facilita poder situar dentro de la pirámide social del Antiguo Régimen la ubicación de los mismos, tanto en el aspecto de su renta como en el del estatus que poseían y/u oficio que desempañaban. Las disparidades más notables, sin duda, se hallan en la propia diferenciación estructural derivada básicamente de la dinámica económica y social de la capital por una parte (vinculada a la producción artesanal, comercio y como sede de las principales instituciones del reino), y de la zona rural por otra (de una marcado carácter agrícola, pero que en el siglo XVII comienzan a aparecer pequeños talleres de productores artesanales vinculados con el comercio regional). Así pues, en la ciudad hallamos un conjunto variado de profesiones, al igual que una mayor diferenciación del estatus de los familiares. Una comparativa de los porcentajes nos lo evidencia: un 34’78 por ciento eran caballeros; un 30’43 eran notarios y mercaderes. El resto correspondían a actividades productivas de menestrales (boteros, pelaires, carpinteros, sastres...). Un análisis de la renta de los familiares, en especial en la ciudad, nos lleva a la conclusión que la mitad de ellos eran pequeños propietarios, con una riqueza inferior a los 3.000 ducados. De ellos, la mayor parte disponían de rentas inferiores a los 1.500 ducados. Este hecho reafirma la tesis que, a falta de un título nobiliario, muchos individuos buscaban el prestigio y el honor mediante la pertenencia a una institución exclusivista como era la
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Inquisición. Efectivamente, como afirma L. F. Pellicer22 en el Antiguo Régimen el honor siempre estaba adscrito al nacimiento. De ahí que la admisión en la familiatura no solo incrementara el prestigio del individuo, sino también a toda su casa por extensión. En cambio, en la zona rural del reino, la inmensa mayoría, un 84 por ciento, fueron labradores. Un porcentaje mucho menor fueron los caballeros que tenían su residencia habitual en dicha zona, 5’44 por ciento. Con una participación similar hallamos a notarios, médicos, escribanos y mercaderes, casi con un 7 por ciento. El resto pertenecían a un variado conjunto de oficios diversos vinculados a la producción artesanal. La diferencia más acusada de la tenencia de riqueza entre la zona rural y la capital fue muy notable, sí en la ciudad un 50 por ciento de los familiares eran pequeños propietarios, en el conjunto de pueblos y villas de Mallorca este porcentaje creció hasta el 75 por ciento. La distribución en Ibiza fue totalmente diferente a la de Mallorca fruto, en definitiva, del escaso número de familiares. De los dos que existían en la ciudad de Ibiza uno era médico y otro ciudadano, ambos pequeños propietarios con rentas inferiores a los 3.000 ducados. En cambio, en Menorca de los 19 familiares de toda la isla, el 63 por ciento residían en Ciutadella; un 21 por ciento a Maó y, finalmente, un 15 por ciento al pueblo de Alaior. De todos ellos un 52 por ciento pertenecen al grupo de labradores, donde podemos hallar la mitad de los mismos en Ciutadella y el resto, a partes iguales, en los dos otros núcleos urbanos. En Ciutadella también cabe destacar un notable 15 por ciento incluidos en el grupo de ciudadanos. Todos los miembros inquisitoriales de esta isla se hallan enmarcados en el segmento de los pequeños propietarios, si bien la mayoría pertenecían a la franja más baja , con rentas inferiores a los 1.500 ducados.
7-Conclusiones.
A lo largo del siglo XVII el tribunal inquisitorial del reino de Mallorca presentó una dinámica y características similares e idénticas a otras zonas de la monarquía. Su estructura fue tremendamente jerarquizada y controlada con criterios no tanto de pertenencia a una sociedad determinada, como era la hispánica, sino de exclusión del ‘otro’. Efectivamente, los expedientes consultados sobre la inserción de individuos en los cargos y oficios del Santo Oficio, incluso en la de los familiares, evidencia claramente un cuidadoso control sobre el 22
PELLICER, Luis Felipe Entre el honor y la pasión, Caracas, Fondo Ed. Humanidades, 2005.
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propio sujeto y también de su familia y antepasados. Cierto es que hubo épocas dentro de esa larga centuria en que la entrada en la familiatura fue más laxa y permisiva que en otros momentos, dependiendo siempre de la meticulosidad del inquisidor y de sus allegados. Pero también lo es que la Inquisición se caracterizó por ser una institución eminentemente exclusivista y diferenciadora. La propia configuración del reino de Mallorca, como en muchos otros de la monarquía compuesta de los Austrias, también provocó conflictos competenciales entre las principales estructuras del poder, ya de por si muy atomizado. La lucha por el control de esferas de poder, sobre todo derivadas del intento de mantener ciertos privilegios, se manifestaron en todas las categorías institucionales: comunitariamente con la Universidad del reino; con el propio virrey; con la curia eclesiástica y con el obispo. Profundizando en los familiares del Santo Oficio cabe aclarar que su distribución fue bastante uniforme, especialmente en la islas mayores, Mallorca y Menorca. No fue el caso de Ibiza, explicable en su caso por tener una población muy dispersa, con solo un núcleo urbano de importancia, la propia ciudad de Ibiza, aunque con un número muy limitado de familiares. La sociología del familiar del reino de Mallorca constata un claro protagonismo de los labradores, pequeños propietarios asentados mayoritariamente en la zona rural. Pertenecer a una ‘red’, a una ‘elite’ con unos privilegios, aunque limitados, era una forma de prestigio, de poder, pero también de ‘expresividad’ familiar, en tanto y cuanto para ser miembro de la misma la evaluación aplicable a los pretendientes era exhaustiva y muy completa.
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RESENHAS
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RESENHA VEYNE, Paul. Sêneca e o estoicismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015, 279p.
Cesar Luiz Jerce da Costa Junior * Mestrando em História Universidade Federal do Paraná ● Enviado em: 14/10/2016 ● Aprovado em: 29/06/2017 Em Sêneca e o estoicismo, Paul Veyne disserta sobre a contribuição e a originalidade do pensamento de Lúcio Aneu Sêneca, o eminente intelectual romano do primeiro século da Era Cristã (1 a 65 d.C.), para a formação de uma das mais importantes correntes filosóficas do período helenístico-romano, o estoicismo. A presente tradução, recém-lançada pela editora Três Estrelas (2015), chegou até nós na melhor ocasião. O texto original francês, Séneque: Entretiens Lettres a Lucilius, publicado em 1993 por Veyne, ainda não possuía versão para língua portuguesa. Eis o primeiríssimo mérito da atual tradução: sanar uma lacuna há muito existente entre os leitores e intérpretes de Sêneca nos países lusófonos. De fato, Sêneca e o estoicismo é, sem dúvida alguma, uma das obras de maior referência no assunto, bibliografia obrigatória para todos os trabalhos relativos ao pensamento de Sêneca. O livro de Veyne é dividido em três partes. A primeira, o prólogo, descreve brevemente a trajetória de Sêneca, desde seu nascimento e origens provinciais hispânicas, até sua rápida ascensão aos círculos políticos de Roma, passando pelo exílio e, por fim, pela regência do jovem imperador Nero (36 a 68 d.C.). Após o prólogo, encontramos a parte dura do texto, a análise do estoicismo propriamente dito, assim como as contribuições de Sêneca na formação de seu corpo doutrinal. Esta é, de longe, a parte mais interessante e, ao mesmo tempo, densa em ideias da obra. Ao final, encontramos um breve epílogo, que acompanha os três últimos anos de vida do filósofo até a condenação ao suicídio (63 d.C a 65 d.C.). Inicialmente, no prólogo, Veyne conduz o leitor pelo contexto sociopolítico no qual Sêneca se insere. O filósofo nasceu na cidade de Córdoba, na província da Hispania Baetica, no seio de uma tradicional família hispano-romana. Ainda muito jovem, foi levado para Roma por *
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Membro discente do Núcleo de Estudos Mediterrânicos da UFPR (NEMED). Bolsista CAPES.
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seu pai a fim de receber uma rigorosa educação na arte da retórica que só poderia ser encontrada na capital do Império. Contudo, para certa decepção de seu pai (Sêneca, o velho), que não apreciava os filósofos, Sêneca optou pela conversão à filosofia, inicialmente por meio de seu professor, Átalo, um estoico oriundo de Alexandria e que lhe deixou uma profunda marca, a transmissão de uma “chama ética”, nas palavras de Veyne (p. 11), que indica o aprendizado de um modo de vida filosófico, característica fundamental das seitas filosóficas helenísticas. A formação de Sêneca se deu, assim, concomitantemente à sua entrada na vida pública romana, um pouco tardia, mas de rápida ascensão. Logo, Sêneca entrou nos círculos mais íntimos do poder imperial, fazendo-se ouvido pelas irmãs do imperador Calígula (12 a 41 d.C.), em especial Agripina, que muitos anos mais tarde lhe confiaria a tutela de seu filho, o imperador Nero. Tal proximidade com o poder, porém, teve seu preço: Veyne narra as sucessivas desventuras de Sêneca sob Cláudio, ao ser condenado ao exílio na ilha de Córsega por adultério. Por fim, retorna à cena política romana com o jovem Nero, assumindo ao seu lado a governança efetiva do Império, como um dos amici principis. Quando Nero, porém, começa a se tornar despótico e os assassinatos na corte se multiplicam, Sêneca percebe que sua única alternativa é o retiramento. Porém, como fazêlo sem se tornar suspeito diante do tirano? O filósofo está preso à eminência do cargo que ocupa, o que torna sua posição de extrema complexidade. Os últimos anos da vida do filósofo e as dificuldades que passou serão retomadas na última parte do livro, no epílogo. Seguiremos passo a passo, neste texto, a ordem de exposição estabelecida por Veyne. A preocupação de Veyne não é, porém a de redigir apenas um relato biográfico, mas aprofundar habilidosamente seus estudos acerca da sociedade e do pensamento romano a partir da trajetória de Sêneca. Filósofo e tradição filosófica são caminhos para conhecermos o mundo romano em sua profunda complexidade. As relações de clientela, as vicissitudes do poder e até mesmo as práticas econômicas da aristocracia romana são brilhantemente exploradas por Veyne. Tudo por meio de uma linguagem prosaica (mas não simplista), que transita entre a seriedade exigida do ofício de historiador e a jocosidade irônica, o que confere à leitura um caráter fluido e prazeroso. Veyne sente-se, assim, aberto para falar ao leitor em um estilo de redação muito livre. Não seria equivocado dizer que na obra de Veyne, por meio da história de um filósofo, conhecemos igualmente a história de um império. A parte mais interessante, contudo, tem início na página quarenta e seis, com a análise propriamente filosófica em relação à doutrina estoica. O texto de Veyne possui valor fundamental para aqueles que estudam os filósofos estoicos do Império Romano. De fato, abordaremos aqui apenas alguns aspectos, já que a obra tem muito mais a oferecer. Dentre os Revista Diálogos Mediterrânicos
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assuntos extensivamente explorados por Veyne, destacamos, em especial, a concepção de natureza (natura) nos textos de Sêneca. Conceito de suma importância no conjunto da doutrina do filósofo, que a entende como uma potência divina providencial que tudo organiza na terra, ou seja, natureza é, essencialmente, um princípio ordenador entendido com deus, na mesma medida. Para o filósofo, a ordem do cosmo e suas regularidades, exemplificada pela precisa movimentação dos corpos celestes, demonstra haver na natureza uma intenção organizadora, que também se estende para o âmbito da vida humana, ao nos possibilitar o necessário para que alcancemos a felicidade. Veyne, assim, destaca a profunda distinção entre a concepção de Sêneca, que via na natureza uma potência provedora, portanto boa, da moderna, oriunda do pensamento moderno do século XIX e que tomava a natureza como má e assassina, devendo, pois, ser contida pela atividade racional dos seres humanos. Para Sêneca, até mesmo o que a natureza tinha de maléfica, como uma praga, por exemplo, trazia consigo algum benefício para nós. Se o cosmo é regido pela natureza providencial que beneficia toda a humanidade, logo todo estoico é um cosmopolita, um cidadão do mundo inteiro por excelência. Mais importante ainda, viver em concordância com os ditames da natureza é conduzir a si mesmo para uma vida feliz. Veyne, então, enuncia a maior originalidade do estoicismo, a associação entre uma filosofia da natureza com uma arte de viver. Felicidade é outro aspecto de extrema importância para Sêneca e tema amplamente exaustivamente estudado por Veyne. Viver uma vida feliz não está para os antigos do mesmo modo como está para nós, contemporâneos, que a associamos a um simples e passageiro estado subjetivo de euforia. Para os gregos, felicidade era uma instância da vida não dissociada de seus aspectos sociais, não devendo ser medida antes do último dia de vida de um homem, pois o destino ainda lhe pode ser imprevisível e ele poderá sofrer com o inesperado. Veyne acrescenta, ainda, que tal concepção de felicidade é refletida, pois os demais, coletivamente, proclamam a felicidade daquele que viveu de forma a torná-lo exemplo de conduta moral, de virtuosidade. A busca por uma vida feliz, motivação inerente a qualquer ser humano, para os antigos, é para Sêneca também um ato refletido. Para alcançála, torna-se necessário seguir uma filosofia da felicidade, pois toma por pressuposto a necessidade de se alcançar uma segurança absoluta, não se deixando levar pelas marés das adversidades que tanto infligem sofrimento ao homem. Eis a proposta de Sêneca, no ponto de vista de Veyne: transfigurar a si mesmo, ao combater e corrigir os vícios (entendidos como maus hábitos) que, lentamente, nos desviam do caminho da natureza. A razão aqui é o elemento central, pois, dada a nós pela própria natureza, nos permite julgar (a razão como
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uma espécie de tribunal é a metáfora usual de Veyne) o que nos é vantajoso e o que não é, devendo ela constituir uma fortaleza, que nos protegerá das piores adversidades. Se felicidade é segurança, é transformação do próprio homem, então agir corretamente, dentro daquilo que a doutrina recomenda, é o elemento central da ética proposta pelos estoicos. A fortaleza da razão deve ser constituída com solidez, por meio da virtus, a virtude, outro aspecto de fundamental importância no pensamento senequiano. Viver virtuosamente é prerrogativa necessária para a felicidade, mas ela exige do indivíduo uma gigantesca autodisciplina, um constante exercício (uma meditação, a exemplo da obra do imperador Marco Aurélio), que exclui totalmente, por exemplo, os prazeres sensíveis, ou o uso moderado das paixões da alma (entendidas por Veyne como afetos), patologias perigosas, seguindo o gosto de Sêneca pelo vocabulário médico, que tornam o indivíduo hesitante no enfrentamento dos males que lhe recaem. Segundo Veyne, viver como um estoico é racionalizar absolutamente qualquer ato do cotidiano, ao tomar os medos e apreensões como um mau julgamento da razão. A felicidade, assim, exige treinamento, prática cotidiana constante. O tempo é algo essencial, porém paradoxal: nenhum instante deve ser perdido na prática do exercício meditativo, mas o quando, o tempo requerido para se tornar efetivamente sábio, não é relevante. Mais importante do que tudo, para Sêneca, são os progressos diários, examinados dia-a-dia pela consciência. A sabedoria, portanto, consiste justamente na progressão, no tornar-se um sábio, mesmo que o próprio ideal do homem sábio seja praticamente inalcançável. Veyne aqui aponta para mais um paradoxo do estoicismo, a existência da doutrina em si, mas não de sábios estoicos. Estes são raríssimos, reduzem-se a figuras como Sócrates, Sólon e Catão. Os adeptos do estoicismo, Sêneca incluso, não se julgam como tal. Veyne é um autor sem medo de estabelecer paralelos, de entrecruzar estoicismo com leituras de outros autores e tradições de pensamento, de Aristóteles a Hegel. Quando o faz, o resultado é fantástico, realmente instigante. Estoicismo e utopia marxista são, dessa maneira, iguais em busca de um ideal inatingível, mas que propõe a progressão do indivíduo rumo ao devir que lhe é próprio. Além destas considerações, riquíssimas, Veyne também aborda o problema do suicídio, do bem morrer, uma saída válida para Sêneca e os demais estoicos, pois o enfrentamento da morte também é parte inerente ao processo de tornar-se um sábio. Cabe ao indivíduo estar preparado para morrer, e escolher tal opção em caso de necessidade, quando o viver não lhe permitir mais a prática da virtude. A terceira e última parte do livro, o epílogo, traz consigo o fio narrativo suspenso no prólogo, fechando, dessa maneira, o conjunto do trabalho de Veyne. Sêneca, custosamente, obtém sua liberação da corte e vive seus últimos anos em retiro, em meio à escrita e aos Revista Diálogos Mediterrânicos
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exercícios de meditação, no otium contemplativo que tanto recomenda aos amigos, a exemplo de Lucílio. Não deixou de ser suspeito aos olhos de Nero e não escapou, igualmente, das atribulações que são parte do regime neroniano. Em 65 d.C. um complô para assassinar Nero é descoberto, cuja finalidade era elevar ao Principado um aristocrata moderado, Caio Pisão. Sêneca, implicado na conspiração, delatado pelos acusados que tentaram trazê-lo para junto de sua iniciativa, foi condenado ao suicídio na intensa repressão que se seguiu. O tema da morte libertadora é central para Veyne nesse aspecto. O problema do suicídio, também analisado na segunda parte, volta a ser de suma importância, porém não mais como aconselhamento ao outro, mas como algo a ser enfrentado, como toda a dignidade necessária, pelo próprio filósofo. Veyne recorre à narrativa de Tácito, que nos relata os últimos momentos de Sêneca, que aceita sua condenação e tira a própria vida sem hesitação. A morte de Sêneca é, para Veyne, um exemplo prático de estoicismo, de crença verdadeira nas doutrinas que tanto aconselhava aos amigos e leitores. Morrer é pedagógico, pois a instrução se dá justamente pelo exemplo.Morte que, em última instância, consagrou o seu trabalho. Nero encontrou seu final, três anos depois, de modo completamente adverso e de forma ignominiosa, ou seja, o exemplo contrário, de covardia e desonra. Ironia da história, tão bem explorada por Veyne, autor igualmente irônico e de grande sagacidade no trato com os textos antigos, realmente à altura em erudição do filósofo que se propõe estudar. Leitura mais do que recomendada a todos os interessados no intelectualismo estoico e em seus profundos desdobramentos na história do pensamento ocidental.
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RESENHA RODRÍGUEZ, Gerardo Fabián. Frontera, Cautiverio y Devoción Mariana (Península Ibérica, fines del s. XIV – principios del XVII). Sevilla: Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 2012, 305p.
André Rocha Cordeiro* Mestrando em História Universidade Estadual de Maringá ● Enviado em: 14/10/2016 ● Aprovado em: 29/06/2017 Os discursos e as práticas religiosas construídas em regiões de cativeiro, próprios de zonas de fronteira entre Cristãos e Islâmicos, é o tema norteador da discussão realizada por Gerardo Fabián Rodríguez no livro Frontera, Cautiverio y Devoción Mariana (Península Ibérica, fines del s. XIV – princípios del XVII)1, publicado no ano de 2012, pela Universidad de Mar del Plata, na Argentina. Além de especialista em História Medieval, área no qual possui extensa produção de livros e artigos científicos, Rodríguez é investigador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), diretor do Centro de Estudios e Investigaciones de las Culturas Antigua y Medieval (CEICAM) e professor universitário. O referido livro tem como recorte espaço-temporal a Península Ibérica entre os séculos XIV e XVII. O corpus documental analisado são os códices de Los Milagros de Guadalupe e o Tratado de la Redención de Cautivos2, conservados no Arquivo do Real Monastério de Guadalupe, na Espanha, que na perspectiva do autor apresentam relatos que permitem a compreensão de práticas e crenças religiosas e o estabelecimento de vinculações com o contexto social, cultural e político do período. Desse modo, o livro é composto por quatro capítulos, introdução, conclusão e referências bibliográficas.
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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Integrante do Laboratório de Estudos em Religiões e Religiosidades (LERR/UEM). Bolsista CAPES. O livro Frontera, Cautiverio y Devoción Mariana é uma versão atualizada da Tese de Doutorado de Rodríguez apresentada à Faculdade de Humanidades da Universidade Nacional de Mar del Plata, em 20 de agosto de 2008. Título completo: Tratado de la redención de cautivos en que se cuentan las grandes miserias que padecen los cristianos que están en poder de infieles, y cuán santa obra sea la de su rescate (1603).
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A descrição, os conteúdos e os autores das fontes são a temática norteadora do primeiro capítulo intitulado Marco Documental. A primeira fonte apresentada são Los Milagros de Guadalupe, conjuntos de textos inéditos que abarcam os séculos XV e XVIII e que trazem informações acerca do período em que os cristãos se tornaram cativos dos muçulmanos. Esta documentação apresenta uma sistematicidade nos escritos e narram milagres intercedidos pela Virgem de Guadalupe em diversas situações do cativeiro. Textualmente são estruturados da seguinte forma: encabeçamento, dados dos peregrinos, relatos do cativeiro, invocação da Virgem, relatos de redenção e a fórmula final. A segunda fonte, Tratado de la Redención de Cautivos, do carmelita descalço Jerónimo Gracián de la Madre de Dios3 (1545-1614), aborda o cativeiro de cristãos na região de Túnez e elenca os trabalhos, as penalidades e questões dos cativos, das redenções e religiosidades vivenciadas nesse ambiente. No que concerne aos alcances e limites da documentação eleita como fonte história Rodríguez4 aponta que Los Milagros de Guadalupe podem ser considerados uma “hagiografia de fronteira”, constituidora de uma “pedagogia da fé”, e que devido seus detalhes possibilitam a reconstituição de facetas e aspectos – tanto material como espiritual – da vida no cativeiro. Já o Tratado de la Redención de Cautivos tem por característica possuir o autor enquanto contemporâneo dos fatos descritos, podendo inclusive participar desses acontecimentos. De acordo com Gerardo Rodríguez na tipologia textual do tratado o individual e o coletivo se fundem na narrativa construída. No segundo capítulo, Propuestas teóricas y analíticas de las fuentes selecionadas, a discussão gira em torno das possibilidades de análises que o corpus documental oferece. Segundo Gerardo Rodríguez5 a documentação apresenta uma realidade particular e que justificam alguns valores e comportamentos compartilhados pela sociedade cristã cativa. Além disso, a narrativa milagrosa, bem como os recursos teatrais, são instrumentos de difusão de devoções e de discursos religiosos, desse modo, o autor considera de suma importância o estudo do discurso enquanto ferramenta metodológica de análise. O estudo do discurso adquire uma importância fundamental para a compreensão do corpo textual selecionado. Os conceitos ali recolhidos expressam discursos que remetem – tanto que modelam – a práticas 3
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Jerónimo Gracián de la Madre de Dios nasceu em 06 de junho de 1545 e faleceu em 21 de setembro de 1614, na cidade de Bruxelas. Abraçou a vida religiosa no ano de 1572, consagrando-se a Ordem dos Carmelitas Descalços. RODRÍGUEZ, Gerardo Fabián. Frontera, Cautiverio y Devoción Mariana (Península Ibérica, fines del s. XIV – principios del XVII). Sevilla: Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 2012, p. 35-40. Ibidem, p.40. Ibidem, p. 53.
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sociais e sistemas ideológicos hegemônicos6”. Novos enfoques e novas temáticas tem permitido desencovar valiosos testemunhos de “homílias e sermões, interrogatórios e manuais para confessores, catecismos em língua vulgar, textos devocionais e relatos milagrosos, testamentos e votos/promessas diversas7”. Enquanto aporte teórico, Gerardo Fabián Rodríguez parte das discussões conceituais de habitus, campo e capital simbólico do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002). O autor compreende a religião como uma linguagem, ferramenta tanto do conhecimento como da comunicação, de modo, a ser um meio simbólico estruturado e estruturante construído por um corpo de especialistas. Na perspectiva de Rodríguez o corpus documental escolhido é um produto de membros de ordens religiosas (jerônimos e carmelitas descalços) e apresenta as ações racionais, sistemática e burocrática da ordem religiosa, em especial a ideia de produção, reprodução e difusão de bens religiosos. As mensagens apresentadas nas narrativas milagrosas estão associadas com a cultura e a sociedade que as produz, sendo que a linguagem exprime a concepção que os jerônimos e os carmelitas descalços possuíam sobre a doutrina cristã. De acordo com o autor, as narrativas milagrosas, presentes no cotidiano do imaginário religioso medieval, possibilitaram à Igreja Católica mediar e estabelecer o controle do culto à figura de Maria8. O capítulo intitulado Contexto Histórico y Cultural é aberto com a explanação acerca do debate historiográfico em torno dos termos “reconquistar”, “repovoar” e “fronteira” para pensar o processo de desenvolvimento da Espanha. Para Rodríguez9 o mais adequado é pensar a região analisada enquanto uma área de “fronteiras”, no plural, pois abarca questões que ultrapassam o âmbito geográfico-político, como: “fronteiras culturais”, “fronteiras sociais” e “fronteiras psicológicas”. Com relação a discussão sobre o referido termo são elencadas as reflexões e contribuições de Frederick Turner (historiador), Marvin Mikesell (geógrafo), Owen Lattimore (antropólogo) e Jack Forbes (etnohistoriador) que recordam que uma “fronteira” representa tanto um espaço geográfico como um entorno humano. “Já não se considera a fronteira como uma linha entre civilização e a barbárie senão como uma interação entre duas culturas
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“El estudio del discurso adquiere una importancia fundamental para la comprensión [d]el cuerpo textual seleccionado. Los conceptos allí recogidos expresan discursos que remiten – a la vez que modelan – a prácticas sociales y sistemas ideológicos hegemónicos”. Ibidem, p. 63. “[…] homilías y sermones, interrogatorios y manuales para uso de confesores, catecismos para el vulgo, textos devocionales y relatos milagrosos, testamentos y mandas varias”. Ibidem, p. 64. Ibidem, p.76-78. Ibidem, p.90-91.
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diferentes, no qual as naturezas destas culturas interativas se combinam com o entorno físico para produzir uma dinâmica que é única no tempo e no espaço10”. Entre os séculos XV e XVI a parte ocidental do Mar Mediterrânico se tornou cenário de contínuas batalhas entre o rei católico e o sultão, sendo que, escritos foram produzidos expressando as discrepâncias entre cristãos e muçulmanos. Essa documentação produzida oferece códigos de procedimentos, marcando condutas a serem seguidas e atitudes a serem execradas11. Neste ambiente surgiram estereótipos do “outro muçulmano”, de forte carga negativa e de condenação a questões morais e dogmáticas. Segundo Gerardo Rodríguez “as imagens de si e do outro que cria e recria cada sociedade estão intimamente vinculadas a objetos, atos ou ações às quais se contemplam determinados valores – também não valores – e sentidos12”, no referido caso os cristãos edificaram imagens dos muçulmanos, a partir dos referenciais e das suas próprias concepções de mundo. A realidade de “fronteira” (mentais, espaciais e temporais) vivenciada possibilitaram essa construção do outro, de modos de vidas particulares e o surgimento de um novo tipo de ator social: o cativo13. O autor conclui o terceiro capítulo abordando questões, como: as condições de vida no cativeiro, os trabalhos que eram realizados, e as crenças e as manifestações de cunho religioso. O “universo das crenças”, especialmente a mariana, é a temática norteadora do capítulo Religiosidad Cristiana y Devoción Mariana. Gerardo Rodríguez destaca que entre os séculos XIV e XV verifica-se uma proliferação de milagres e aparições marianas, o que permitiu os registros de tais eventos religiosos e a disseminação de cultos à Maria em âmbitos regionais e locais14. A instituição católica, percebendo a difusão dos cultos marianos atuou, por meio do seu corpo de especialistas, na perspectiva de estabelecer os limites e fixar conteúdos e doutrinas acerca desta crença. Tal assertiva pode ser observada por meio do estabelecimento das festas dedicadas à Maria, que foram aprovadas pelos epíscopos reunidos nos Sínodos de Toledo (1333) e Badajoz (1501): Purificação ou Candelária (02/02); Anunciação
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“Ya no se considera la frontera como una línea entre la civilización y la barbarie sino como una interacción entre dos culturas diferentes, en la cual las naturalezas de estas culturas interactivas se combinan con el entorno físico para producir una dinámica que es única en el tiempo y en el espacio” Ibidem, p. 100. Ibidem, p.139. “Las imagines de sí y del otro que crea y recrea cada sociedad están íntimamente vinculadas a objetos, actos o acciones a las cuales se adjudican determinados valores – también disvalores – y sentidos”. Ibidem, p. 160-161. Ibidem, p.164-171. Ibidem, p.200-201.
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(21/03);Assunção (15/08); Natividade (08/09); e Expectação ou Visita do Anjo à Maria (18/12)15. Analisando o corpus documental, Rodríguez observa alguns elementos que compõe a narrativa milagrosa, como: os sonhos e as visões (de caráter premonitório), presença de trechos bíblicos e de textos doutrinais cristãos, a exposição de sacramentos da Igreja Católica (batismo, confissão, matrimônio e extrema unção) e a presença de símbolos cristãos (leão e números)16. Do mais, o autor enfatiza as marcas de uma Imitatio Christi nas narrativas dos documentos analisados, no qual um paralelismo é traçado entre o sofrimento de Jesus Cristo e os sofrimentos dos cristãos cativos17. Nas Conclusões Gerardo Fabián Rodríguez destaca o território mediterrânico como uma zona de confluência e fronteira, de modo, que textos foram produzidos e discursos foram gerados apresentando práticas sociais, políticas e culturais que modelaram as sociedades desse espaço circunscrito. Os discursos e práticas difundidos pelos especialistas de um determinado campo religioso estabelecem os modos de vida do ser cristão, de modo que, na hipótese defendida pelo autor, os “monges jerônimos ou carmelitas ao redigir seus textos, implementaram diversas estratégias e práticas discursivas tendentes a expurgar dos relatos toda conotação heterodoxa, alheia à ortodoxia cristã da época18”. Em suma, o livro Frontera, Cautiverio y Devoción Mariana, de Gerardo Fabián Rodríguez, apresenta uma discussão muito interessante sobre as possibilidades de pesquisas e investigações pautadas em textos com narrativas milagrosas e hagiográficas na perspectiva de compreender o contexto social, político e cultural de uma dada sociedade. Do mais, Rodríguez nos convida a refletir sobre a realidade de fronteira vivenciada pelos cristãos ibéricos, entre os séculos XIV e XVII, e entrever a cosmovisão, visões de mundo, os comportamentos e os valores partilhados pelo referido grupo.
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Ibidem, p. 203. Ibidem, p.206-244. Ibidem, p. 226-232. “[...]monjes jerónimos o carmelitas al redactar sus textos, implementaron diversas estrategias y prácticas discursivas tendientes a expurgar de los relatos toda connotación heterodoxa, ajena a la ortodoxia cristiana de la época”. Ibidem, p. 247.
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A Revista Diálogos Mediterrânicos, publicação acadêmica vinculada ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos da Universidade Federal do Paraná, se estrutura em dossiê, artigos isolados, resenhas e entrevistas. Os trabalhos enviados devem obedecer à seguinte normativa: SEÇÃO Dossiê Artigos Resenhas
TITULAÇÃO Doutores; Doutores com co-autoria de Doutorandos. Doutores; Doutores com co-autoria de Doutorandos. Doutores; Doutorandos; Mestres; Mestrandos.
1. Extensão: os artigos devem ter no máximo 20 páginas e as resenhas (de livros publicados nos últimos 07 [sete] anos) devem ter até 5 páginas. 2. Todos os textos devem ser digitados em Word for Windows. Margens: 2 cm. Fonte e espaçamento: Times New Roman, tamanho 12, com entrelinhas 1 ½. Para citações com mais de 3 linhas, destacar o texto e utilizar recuo de 4 cm, fonte tamanho 11, espaçamento entre linhas simples. 3. Resumo e palavras-chave: os artigos devem apresentar obrigatoriamente um resumo com, no máximo, 200 palavras, acompanhado de sua versão em Inglês (Abstract), ou em Francês (Résumé), ou em Espanhol (Resumen) ou Italiano (Sintesi) e de três palavras-chave, em Português e na língua escolhida para a tradução do resumo. Nos casos de artigos não escritos em Português, os resumos e palavras-chaves devem ser escritos em uma das opções de língua citadas, diferente da utilizada no artigo. Só serão aceitas resenhas escritas em Português. 4. Título: também traduzido para o Inglês, ou Francês, Italiano ou Espanhol. Centralizado, fonte tamanho 16, em negrito. 5. Caso a pesquisa tenha apoio financeiro de alguma instituição, esta deve ser mencionada em nota de rodapé. 6. Citações e notas de rodapé: devem ser apresentadas em fonte Times New Roman corpo 10 e de acordo com as normas seguintes e em rodapé: Citação de Livros: SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico. Edição. Cidade, Editora, ano, p. ou pp. Citação de artigos de revistas ou capítulos de livros: SOBRENOME, Nome. “Título do Artigo” In Título do Periódico em itálico. Cidade, Editora, Ano, Vol., nº, p. ou pp. A primeira nota deverá conter informações sobre o autor do texto, para conhecimento do editor, sendo suprimida na versão para os avaliadores. 7. Não serão aceitas bibliografias. 8. Os trabalhos deverão, obrigatoriamente, apresentar todos os itens acima. 9. Toda correspondência referente à Revista Diálogos Mediterrânicos deve ser encaminhada de forma eletrônica, pelo seguinte email:
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ISSN 2237-6585
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