ROGÉRIO SANTOS DOS PRAZERES
A TEORIA PRAGMÁTICO-TRANSCENDENTAL DA VERDADE DE KARL-OTTO APEL
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Filosofia – Mestrado; Área de concentração em Filosofia; Linha de Pesquisa em Ética e Filosofia Política, Universidade de Brasília – UnB, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia.
Orientador Prof. Dr. Alexandre Hahn.
Brasília 2016
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SP895t
Santos dos Prazeres, Rogério. A Teoria Pragmático-Transcendental da Verdade de Karl-Otto Apel / Rogério Santos dos Prazeres; orientador Alexandre Hahn. -- Brasília, 2016. 119 p. Dissertação (Mestrado - Mestrado em Filosofia) -Universidade de Brasília, 2016. 1. Verdade. 2. Linguagem. 3. Pragmática Transcendental. 4. Razão dialógica. 5. Consenso. I. Hahn, Alexandre, orient. II. Título.
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ROGÉRIO SANTOS DOS PRAZERES
A TEORIA PRAGMÁTICO-TRANSCENDENTAL DA VERDADE DE KARL OTTO-APEL
Esta dissertação foi submetida ao progrma de Pós-Graduação em Filosofia – Mestrado; Área de concentração em Filosofia; Linha de Pesquisa em Ética e Filosofia Política, Universidade de Brasília – UnB, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Hahn (UnB – Orientador) ________________________________________________ Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes – (UnB – Membro Interno) ________________________________________________ Prof. Dr. Gilmário Guerreiro da Costa (UCB – Membro Externo) ________________________________________________ Prof. Dr. Marcio Gimenes de Paula (UnB - Membro Suplente)
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Meu mundo deve fundar-se de novo, e, a partir dele, o projeto de meu ser-no-mundo. Karl-Otto Apel (1922-)
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Este
trabalho
professores
é
Selmiro
dedicado Benedito
aos da
Silva, e Barbara Ann Newman (in memoriam).
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AGRADECIMENTOS
Aos professores do Departamento de Filosofia que tive a felicidade de conhecer. Agradeço especialmente aos professores Erick Calheiros de Lima, Herivelto Pereira de Souza e à professora Priscila Rossinetti Rufinoni pela atenção, pela disponibilidade, pelas contribuições memoráveis à minha jornada de estudos, pelas inspirações e questionamentos que despertaram em mim o desejo de retornar ao ponto de partida. Aos professores Gilmário Guerreiro da Costa e Marcos Aurélio Fernandes por terem aceitado o convite para participar da banca e todas as colaborações para a melhoria dos meus estudos. Ao meu amigo e indelével professor José Moacir de Aquino, cujas partilhas deflagraram as mudanças mais inimagináveis em minha vida nos últimos anos. Ao professor Sirley Benedito pelo debate crítico, pelo ceticismo e pelas preocupações, o qual, sem o respeito pelo meu trabalho e sua amizade solidária, a continuidade dos meus estudos seria inevitavelmente interrompida. Ao professor Osmilto Moreira da Silva. Em poucas palavras, foi inestimável companhia de todas as horas; e ao meu colega de curso Michael Morganti, a quem devo a generosa leitura deste texto e salutares conversas sobre as nossas etapas. Meus agradecimentos aos membros da família Lustosa, pela respeitosa acolhida e fraternal apoio. À minha querida Alciene Luiz da Silva, a quem devo muito carinho, atenção e tempo, sobretudo a suscitação de novas auroras. Mormente, ao professor Alexandre Hahn, pela primazia das melhores condições desta pesquisa e exemplar liberdade de autocrítica e dedicação que levarei adiante comigo.
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RESUMO Este texto trata da teoria consensual da verdade na linha do pensamento pragmáticotranscendental de Karl-Otto Apel. Para o filósofo, a verdade é uma ideia reguladora consensualmente evidente e integradora de critérios de verdade. De tal forma, linguagem e verdade são indissociáveis no atual interesse da filosofia contemporânea, e que, em relevo, tematiza o conceito transcendental-hermenêutico de linguagem e a fundamentação filosófica. Sob este aspecto, a pesquisa expõe a prática comunicativa assegurada pela fundamentação racional já pressuposta em todo discurso argumentativo para afirmar a verdade. Coerentemente, significa explicitar como Apel intenta uma pragmática com base na reviravolta linguística. Em específico, a proposta que se delineia é uma reflexão sobre a verdade e a validade de sentido para o ser humano face às relações comunitárias. O intento é apresentar ao leitor como Apel recoloca criticamente o debate da razão humana no quadro filosófico do século XX, que se prolonga neste início de século.
Palavras-chave: Verdade. Linguagem. Pragmática-transcendental. Razão dialógica. Consenso.
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ABSTRACT The present work deals with consensual theory of the truth in the line of pragmatictranscendental thought of Karl-Otto Apel. According to this philosopher, the truth is an evident consensus possible by regulatory idea integrator of truths criteria. Language and truth are inseparable in the current concern of contemporary philosophy, and, that in relief thematises the transcendental-hermeneutic concept of language and philosophical foundation. Under this aspect, the research exposes a communicative practice ensured by rational foundation already presupposed in all argumentative discourse to affirm the truth. Coherently, it means explain how Apel attempts a pragmatic based on linguistic turn, especially about the reflection investigating the truth and validity of meaning to the human face to the scrutiny of community relations. The intent is to show the reader how Apel critically restores the discussion of human reason in twentieth century philosophical context and extending to the beginning of this century.
Keywords: Truth. Language. Pragmatic-transcendental. Dialogic reason. Consensus.
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SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................919 1. O CONFRONTO COM A TRADIÇÃO E O SEU CONCEITO DE LINGUAGEM 25 1.1. O Problema de um conceito filosófico de linguagem........................................15 27 1.1.1. Concepção tradicional de linguagem: origem..............................................17 36 1.1.2. Concepção tradicional de linguagem: reconstrução......................................26 39 1.2. A linguagem como tema e meio da reflexão transcendental..............................29 45 1.3. O conceito transcendental-hermenêutico de linguagem.....................................35
2. A PRAGMÁTICA TRANSCENDENTAL DE KARL-OTTO APEL 53 2.1. A transformação da filosofia: de Kant a Peirce..................................................41 54 2.2. A transformação de Kant por Peirce...................................................................43 58 2.3. O a priori da comunidade de comunicação........................................................47 62 2.4. A transformação semiótica de Kant por Peirce..................................................51 67 2.4.1. Pressupostos da fundamentação última.........................................................56 75 2.4.2. A fundamentação última apeliana.................................................................63
3. A TEORIA CONSENSUAL DA VERDADE DE KARL-OTTO APEL 81 3.1. A verdade como consenso...................................................................................70 84 3.1.2. A reconstrução apeliana do factum da razão.................................................73 87 3.1.3. A verdade como ideia reguladora..................................................................77 90 3.2. Crítica à interpretação cientificista de Peirce……..............................................79 94 3.2.1. Verdade e crença............................................................................................83 95 3.2.2. Falibilismo e verdade.....................................................................................84 97 3.3. Considerações sobre a fenomenologia hermenêutica..........................................86 101 3.4. O conceito de consenso em Apel.........................................................................90 104 3.4.1. Evidência de correspondência.......................................................................93 106 3.5. A verdade como o caso especial da validez.........................................................96 111
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................101
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REFERÊNCIAS..........................................................................................................106
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INTRODUÇÃO
Em 1973, Karl-Otto Apel publica a obra Transformação da Filosofia em dois volumes. Nesta obra é inaugurado um projeto próprio formulado como pragmática transcendental, um trabalho composto de ensaios e artigos compilados que marcam a trajetória de seu pensamento, entrecruzando com e contra as mais importantes tradições filosóficas do século XX. Por meio desta obra, seu programa de filosofia não ganha reputação apenas por questões acadêmicas, mas também pelo viés de superação da experiência de vida enfileirada no nazismo. Especificamente, o texto destaca as guinadas do pensamento filosófico, no desvelar de respostas para os problemas da humanidade. Revolvido por motivações humanistas e históricas, o texto está pautado pelo diálogo inter-humano. Ao não distinguir entre teoria e prática, a obra é uma tentativa de evitar o ocultamento dos interesses e da dominação. Enfaticamente, o texto alça o envolvimento histórico da filosofia em prol do ser de linguagem nas multifacetadas perspectivas da existência humana, cujos efeitos das relações políticas dirigem-se ao meio comunitário, público. Muito embora o egoísmo, o totalitarismo, e a ideologia sejam desafios difíceis de serem superados, não há como a sociedade se furtar dessa tarefa em um mundo comum. Apel, por esta razão, sente-se responsável por rediscutir o problema da verdade, e isso o coloca frente à exigência de pensar o papel da filosofia na contemporaneidade. E, no contexto de um mundo globalizado, sob o paradigma da relativização técnicocientífico do argumento e da identidade do sujeito das relações interpessoais este é um problema que não se pode menosprezar ou ignorá-lo. Para Apel, diante do risco da experimentação do controle e vazio existencial, bem como a ameaça nuclear e ainda a alienação total, a filosofia não pode deixar tudo como está. O desafio que se põe à proposta de Apel é justamente o discurso de morte do conhecimento filosófico, decorrente do juízo de que, na era da ciência, nos encontramos com a “agonia da filosofia”, uma crítica que coloca a filosofia como conhecimento impotente
para
solucionar
problemas
sociais-práticos.
Em
contraponto
ao
posicionamento que atribui inutilidade à filosofia, Apel sustenta a especificidade do método e critérios da reflexão filosófica. Trata-se, portanto, de um conhecimento que se opõe à legitimação do dogmatismo e a instauração da barbárie.
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O posicionamento pragmático-transcendental está por isso mesmo concebido no enfrentamento do paradigma da lógica científica. Este paradigma opera a substituição do problema tradicional da verdade. Ora, uma inconsistência do suposto monopólio da ciência que assegura a explicitação da verdade como uma decisão estritamente moral. O caso é que, para Apel, a filosofia consiste propriamente na fundamentação da teoria e da prática. E mais, capaz de dar conta do discurso teórico no interior da filosofia, organizálo e redirecioná-lo com relevância à efetivação política para tratar dos problemas que a humanidade enfrenta. É neste confronto com a ciência, portanto, que o problema mais caro à filosofia é retomado por Apel. A verdade, caracterizada como tarefa histórica da reflexão filosófica segundo o nosso autor, só pode ser consensual e se distingue pelos critérios e relevância dialogicamente mediadas, e, assim, trata-se de um metacritério integrador de outras teorias da verdade. Karl-Otto Apel nasceu em Düsseldorf no dia 15 de março de 1922. Nas suas áreas de atuação, os temas centrais são a ética, a filosofia da linguagem e as ciências humanas. “Apel foi estudante de História, especializou-se em Literatura, mas no final dedicou-se à Filosofia”. 1 Quanto ao referencial teórico que o guiou em suas pesquisas, foi relevante a “descoberta de Charles Sanders Peirce, que teve importância decisiva em toda sua obra, o que, por conseguinte, permitiu a crítica do solipsismo de Kant”.2 Atualmente é professor emérito de Filosofia da Universidade de Frankfurt. Os eixos de investigações mais conhecidos na sua trajetória são os estudos da linguagem e da ética, mais especificamente a ética do discurso. Sem dúvida, Karl-Otto Apel é um pensador original que capta diversos níveis de uma transformação da filosofia contemporânea. Sua traumática experiência – voluntário aos 18 anos, em 1940, no exército nazista (quando Emanuel Lévinas estava no campo de concentração [Stammlager] durante os mesmos cinco anos) – fez dele um racionalista decidido, e um ético sensível, não rigorista, com alta responsabilidade histórica.3
1
Apel dedica-se ao “tema da filosofia da linguagem a partir de um horizonte antropológico. Segue seu itinerário em uma posição hermenêutica heideggeriano-gadameriana, concilia a acrítica à metafísica de Wittgenstein e do próprio Heidegger. DUSSEL, Henrique. Ética da Libertação: Na idade da Globalização e da Exclusão. Editora Vozes: Petrópolis, 1998. p. 182. 2 Idem. 3 Neste excerto do texto de Dussel, exclarecemos que o termo campo de concentração, em alemão, é “Konzentrationslager”. “Stammlager” é o diminutivo de “Kriegsgefangenen-Mannschafts-Stammlager”, ou seja, campos de prisioneiros de guerra. No primeiro, eram enviados civis judeus, ciganos, gays, negros, poloneses, etc. No segundo, os soldados e oficiais inimigos capturados em combate. DUSSEL, Henrique. Ética da Libertação: Na idade da Globalização e da Exclusão. Editora Vozes: Petrópolis, 1998. p. 182.
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Após o término da guerra lançou-se aos estudos, deixando para trás seu papel na campanha da Rússia como oficial de comunicações. Em 1950 doutorou-se em Filosofia em Bonn com a tese “O Dasein e o conhecer: uma interpretação teórico-cognitiva da filosofia de Martin Heidegger”, sob orientação de Erich Rothaker, de quem foi também assistente. Conheceu Jürgen Habermas em 1956, quando eram alunos do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, e por quem nutre profunda amizade. Neste período desenvolveu uma consciência do entrelaçamento crucial e interdependente entre filosofia e política, reavaliando o seu próprio posicionamento filosófico. O desenvolvimento de uma transformação radical da filosofia é levado a termo. O ponto de partida é a reunião da filosofia transcendental clássica com a reviravolta linguística e pragmática a começar da filosofia de Wittgenstein até os posicionamentos de Austin e Searle. Quanto a este desenvolvimento, foi por intermédio de Rothacker que Apel conheceu a fenomenologia hermenêutica de Heidegger, aprofundando-se com Gadamer. Nesta época, aliado à apreciação da teoria dos atos de fala de Austin, o intento produziu uma reinterpretação da filosofia de Kant. Concernente à experiência na escola de Frankfurt, ela significou proceder de maneira crítico-social e ao mesmo tempo estabelecer diálogo ao postular as reconstruções das fontes que o inspiraram. Torna-se então substancial o problema das regras em que se enquadram a linguagem e a sua instrumentalização. A dedicação excepcional ao preambular estudo do sentido (semântica) leva-o a considerar a convergência da verdade do mundo na linguagem (pragmática), ou melhor, no construto do pensamento linguístico discursivo (logos) da verdade. Isso leva o filósofo a desenvolver uma complementação da dimensão interpretativa (consciência) para sustentar uma semiótica transcendental. É nesse aspecto que a teoria da verdade apeliana nasce do confronto de teorias e adequações dos posicionamentos filosóficos paralelos, isto é, ele delimita sua proposta tanto na refutação de teorias díspares quanto na aderência a elas, sobretudo quanto à influência da avaliação da filosofia de Kant por Peirce. Nisso, o itinerário investigativo está voltado para a autocrítica patente à relação entre verdade e consenso. A filosofia como tal, para Apel consequentemente tem o seu teor crítico da verdade potencializado pelo sentido intersubjetivo crítico das interpretações. Quanto à iniciativa de uma teoria consensual, a publicação completa acontece somente em 1991, Teoria da Verdade e Ética do Discurso,4 composta também de textos 4
Inicialmente o texto foi publicado em 1987 com o título de Fallibilismus, Konsenstheorie der Wahrheit und Letztbegründung, e posteriormente traduzido para a língua espanhola no ano de 1991.
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anteriores para atar a ideia de verdade à ética. De acordo com Apel, a filosofia se vê frente ao problema incontornável de uma exigência sempre latente, ou seja, a adoção de critérios para se validar as interpretações, distinguindo-as no panorama da epistemologia. O ensejo é uma teoria integradora de verdades perfazendo diálogo entre os principais temas contemporâneos da filosofia, com retomadas às tradições. Todavia, o intuito é postular uma fundamentação última especificamente filosófica. Para o filósofo alemão, o discurso é a forma reflexivamente intransponível de todo pensar, e, por isso, trata-se da instância filosófica última. Nem mesmo a ciência ou a política podem dar conta dela. Porém, o ser dotado de linguagem humana pode e está apto a justificar a própria responsabilidade pelo próprio pensar e agir. A aposta está na fundamentação semiótico-transcendental para alcançar a validez intersubjetiva do consenso, acerca da interpretação do mundo e dos sujeitos. Apel parte do “conhecimento e sua autorreflexão interna” contanto que se diferenciem as condições de possibilidade não apenas de um mundo manifesto, mas explicável e compreensível, aliás, enquanto explícita diferença entre experiência empírica e princípios filosóficos. Consoante ao método, a linguagem elevada à condição transcendental revela a garantia da universalidade e necessidade dos argumentos. Se for pela linguagem que conhecemos o mundo e nele verificamos a ocorrência de verdades, é criteriologicamente pela contradição performativa entre o que se pensa e o agir que ela denota sua relevância. E justamente porque a verdade, se for verdade em sentido pragmático transcendental, deve ser postulada sem contradições e tendo-se antes “o saber” das consequências dela para todos. De acordo com Apel, sustentam-se na linguagem pretensões universais de sentido e validade. Por esta razão, é possível testar os argumentos na situação do discurso, tomar posição consensual a respeito de uma decisão e dar efetividade às ações. Por especial atenção, refiro-me à teoria defendida por Apel como teoria pragmático-transcendental da verdade. A intenção não só é destacar o consenso, mas também a crítica radical da razão que se destina aos atos. Ao mesmo tempo, linguagem e realidade se confirmam como potencializadas pela “autoverificação” e pela intersubjetividade aferida pelos sujeitos. Notadamente, na obra apeliana a ideia de linguagem é central. Por isso tentarei expor no primeiro capítulo a contextualização reconstrutiva do conceito de linguagem da Tradição e sua transformação em conceito transcendental-hermenêutico de linguagem. Este é o conceito que proporciona uma aproximação assintótica entre o ideal
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e o factual. Concebido assim, o conceito permite que o ser humano se encontre com o mundo e o signifique, interprete o próprio envolvimento, e justifique suas précompreensões na comunidade de comunicação. Isso inclui considerar o giro linguístico como um hin und her (para lá e para cá) argumentativo na história da linguagem. Neste primeiro momento, o objetivo é explicitar os aspectos que constituem o sentido da hermenêutica-transcendental para Apel, já que, para ele, estamos envolvidos historicamente no diálogo da existência humana. Com isso, nota-se que a transformação da filosofia efetuada por Apel pretende solucionar o problema da parcialidade dos conceitos de linguagem na história da filosofia, o que significa que a transformação da filosofia começa pela transformação do conceito de linguagem e no destaque do quão importante a linguagem é para a reflexão transcendental, incluindo-se a linguagem na relação sujeito-objeto e o consenso como referência na constituição do sentido do mundo. No segundo capítulo buscarei mostrar como Apel compreende a transformação semiótica da filosofia de Kant, pela via peirceana, em pragmática transcendental. Dada a correspondência entre jogo de linguagem e tridimensionalidade significa. Segundo Apel, há um jogo transcendental que preconiza o a priori da comunicação. Nele o ser humano afirma seu engajamento no mundo da vida. Trata-se de um ser semiótico que antecipa suas verdades de maneira fundamentada, não obstante, para uma comunidade de comunicação ilimitada. Feita a passagem da subjetividade para intersubjetividade, convém nesta parte pôr diferenciadas as ideias de fundamentação propostas por Apel e Karl Popper. Veremos, portanto, que reflexão e práxis comportamental não se dissociam na filosofia apeliana. Logo, o processo cognitivo é dialético, evidenciado por Apel num engajamento social de co-sujeitos num corpo histórico cuja exigência é a responsabilidade de interpretar os signos do mundo e o assumir coletivo das consequências, consensualmente. Por fim, apresento uma síntese do exposto em que aponto os principais elementos que aparecem significativos na teoria da verdade de Apel, consequentes com da pragmática transcendental e o medium de todo o conhecimento, a linguagem. Portanto, nesta parte faz-se necessário o esclarecimento da tese de transformação do factum da razão, primado dialógico em Apel. Esta é a razão que configura a verdade sob a caracterização dos conceitos “evidência” e “consenso”, possibilitando afirmar a fundamentação como o ato racional de justificação.
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Em suma, o presente texto aborda a obra de Apel no sentido de esclarecer a perspectiva pela qual se entende que a verdade é um caso especial de validez. A proposta é contextualizar a reflexão apeliana e indicar os principais pontos de referência da concepção de verdade na pragmática transcendental. Em virtude do acesso a concepção de filosofia defendida por Apel, no tocante ao “enlace” de tantos pensadores, a discussão corrobora a perspectiva apresentada com base em comentadores que o defendem e situam sua obra como uma contribuição coerente e audaz.
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CAPÍTULO I O CONFRONTO COM A TRADIÇÃO E O SEU CONCEITO DE LINGUAGEM
1.1 O problema de um conceito filosófico de linguagem Ao procurarmos olhar pela ótica de Apel, há duas constatações que guiam nossas reflexões ao ler a Transformação da Filosofia. A primeira é que a linguagem tornou-se uma preocupação incontornável na contemporaneidade tanto nas ciências humanas como na filosofia, e a segunda é que, por isso, discuti-la significa rever os mais diversos aspectos de abordagem. Apel as enfatiza ao afirmar que jamais na história da humanidade houve tantas reflexões sobre a linguagem e sobre a importância dela para o conhecimento científico e filosófico, e, a respeito dessa importância, nem houve tamanha aceitação de que a linguagem seja postulada como fundamento para ambos os conhecimentos. Para Karl-Otto Apel, estas constatações, ainda que de forma geral, são decisivas na história do pensamento filosófico e se caracterizam pela redescoberta dos aspectos linguísticos e objetais, sobretudo, para as metodologias científicas. O filósofo nascido em Düsseldorf, assim, nos expõe a necessidade de um conceito de linguagem adequado à filosofia, e propõe explorar o campo da linguagem mais intimamente. Ele nos convida a reconsiderar nossas perspectivas sobre a razão humana, discutir esta temática e interpelar sobre a sua viabilidade no cerne das tradições que, com apreço, admitimos como epistemologicamente relevantes. Como podemos notar, o pensamento de Apel está instalado no interior da reviravolta linguística. Uma posição difícil para o filósofo, uma vez que a convergência de tematizações acerca do problema da linguagem só foi discutida parcialmente, e, como problema, foi levado adiante somente pelas ciências que se ocupam da linguagem. Investigar o pensamento de Apel, portanto, é investigar uma transformação da filosofia que perpassa a transformação do conceito de linguagem. E, neste aspecto, a tarefa é situar a profundidade do sentido filosófico de linguagem que deflagra tal transformação. Apel está ciente então que, em face da tematização de um conceito filosófico de linguagem, o fenômeno e o problema da linguagem já se encontram transformados por temas de pesquisas científicas. Deste modo, a situação o leva a empreender uma
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reavaliação da função designativa instrumental contraposta à afirmação heraclitiana “razão é linguagem”5 para ir mais além de um mero conceito de linguagem. Aliando-se a uma tal linguagem que ainda não se firmou conceitualmente, Heidegger, por exemplo, procura transcender as determinações “ônticas” da linguagem na filosofia e na ciência modernas, em especial as determinações concebidas a partir das conquistas intencionais do sujeito, e os faz através do discurso da linguagem como “morada do ser” e “habitação da essência do ser humano”. O preço a se pagar por tais possibilidades de uma reunião sugestiva da totalidade do sentido filosófico profundo de linguagem consiste, entretanto, em um grave estranhamento entre a filosofia e as ciências que se ocupam da linguagem. 6
Nesse sentido, a reflexão apeliana está situada no âmbito em que a filosofia é muito mais que teoria da ciência, ou aclaramento linguístico. Neste aspecto, Apel ultrapassará a suposta legitimidade da ciência para dizer o que é linguagem e natureza (orgânica e inorgânica). Para Apel, portanto, “a interpretação linguística dos conceitos fundamentais reconduz à filosofia. Então é evidente que a filosofia (como filosofia da ciência, justamente) não pode confiar à tematização da linguagem às ciências particulares”. 7 Não que a filosofia venha a ignorar os resultados e avanços científicos, mas que, de acordo com Apel, deve independente fundamentar os próprios enunciados teóricos e conceitos inerentes. A proposta filosófica de um conceito de linguagem comprova a linguagem, nas palavras de Apel, como “uma grandeza transcendental em sentido kantiano; e mais exatamente de uma condição de possibilidade e de validade do acordo mútuo e do acordo consigo mesmo”.8 O problema então situa um giro argumentativo concernente ao pensamento conceitual, a cognição objetual e a pretensão de agir com sentido. Consequentemente, o conceito filosófico de linguagem adequado à filosofia é pretendido como um conceito transcendental-hermenêutico de linguagem, que Apel acredita ser pertinente para cumprir duas condições:9
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APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 377. 6 Apel considera nesta iniciativa uma aproximação de que o problema da linguagem é um problema da existência humana, já que “nós somos um diálogo”. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 377; 112-13; 138. HEIDEGGER, Martin. Approche de Hölderlin. Gallimard: Paris, 1973, p. 48. 7 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 379. 8 Idem. 9 Idem.
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A primeira condição é avaliar a destruição e postular a reconstrução crítica do conceito de linguagem para a filosofia, já que as determinações conceituais anteriores mostram-se insuficientes. Estas propostas, segundo o autor, se pautaram pela designação e comunicação. A segunda condição é a de reconstruir a ideia de filosofia transcendental. A proposta perfaz a superação da diferença entre teoria e prática. Para Apel, isso é possível mediante a transformação do conceito tradicional de linguagem para tornar possível tratar da correção do vínculo entre razão e linguagem.
1.1.1 Concepção tradicional de linguagem: origem No texto da Transformação da Filosofia (vol. II), ao apresentar a concepção de linguagem da Tradição para introduzir o conceito apropriado, Apel faz uma breve consideração do logos em Heráclito (550 a.C. - 480 a.C.). Ele destaca no logos heraclitiano a união dos termos: “razão e linguagem ou discurso”. Em outras palavras, “tanto a expressão do pensamento humano quanto o princípio que determina o devenir cósmico”.10 Ao ressaltar a origem do conceito de logos, Apel explicita o quanto se operou a desvalorização da concepção heraclitiana do devir, da instabilidade das coisas. Interessante é que Apel também destaca que se operou a partir daí uma recusa da concepção de logos proveniente de Heráclito, e, a partir daí, deu-se a substituição que privilegia o paradigma semântico da “apreensão de significados”. Este, como podemos ver, consistindo na separação radical entre o que se pensa e a linguagem utilizada. Substituído o conceito de logos enquanto argumento verificável11 não só o conceito perde prestígio, mas também é rejeitado, enfim esquecido. A recondução do problema da linguagem, para Apel, é efetuada por Platão (427 a.C. - 347 a.C.) e Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.). Eles são as referências iniciais do paradigma da apreensão de significados. Ambos afirmam a expressão do pensamento por meio da linguagem. Prezando-se a “ipseidade” da razão, com eles a preocupação tradicional se firmou como a intencionalidade objetiva do juízo. Tradicionalmente, então ficou consolidado que a verdade do enunciado sobre algo é verificável por princípios lógicos de identidade. E deste modo, os significados linguísticos que o mediatizam são ignorados. 10 11
AUROUX, Silvain. A Filosofia da Linguagem. Editora da Unicamp: Campinas, 1998, p. 34. APEL, Karl-Otto. Le Logos Propre au Langage Humain. Éditions de L’Éclat: Paris, 1994a, p. 12-3.
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Na filosofia apeliana, falar de concepção tradicional de linguagem é falar da maneira como a linguagem era compreendida pela filosofia. Especialmente desde o Crátilo de Platão, escrito presumido ser do ano de 388 a.C., leva o nome de seu primeiro preceptor. Neste escrito, a linguagem não passava de um instrumento secundário, cuja função era designativa, isto é, de nomear, comunicar um conhecimento. De tal maneira, conforme Manfredo Oliveira, “a linguagem sempre foi vista pela Tradição como uma mediação necessária”, 12 um meio de expressão do pensamento, um resultado. De acordo com Apel, a função designativa estava em favor das ideias, como entidades extras e supralinguísticas. O conhecimento, portanto, era possível a partir da descoberta da essência oculta no significado. E também tradicionalmente é assim quanto à diversidade de expressões linguísticas, implicadas à análise e elucidação do percebido.13 Apel não quer seguir o paradigma da Tradição. Ao contrário, ele quer pôr termo ao conceito de linguagem objetual ainda hoje recorrente, oriundo da filosofia antiga, cuja preocupação é a essência, assumido como o senso comum da linguagem no Ocidente. Então, Apel retorna à origem do conceito de logos, e intenta reconstruir o conceito de filosófico de linguagem. No senso comum, a linguagem visava a manifestação aparente do real e explicação da ordem que há no conhecimento. A linguagem, então, apenas reproduz essa ordem consequente com a essência das coisas no mundo. Atualmente insuficiente, o senso comum permanece registrado na filosofia, portanto, como transmissão do conhecimento assegurado pela essência em pertinente correspondência com a essência das coisas. Segundo Apel, para Platão o lugar do logos está na conversação.14 No Crátilo, mais antigo texto legado da Tradição instrumentalista, o termo logos aplica-se à diversidade de línguas e a importância dos significados em um mundo comum a todos os homens. Um mundo acobertado pelo fenômeno da linguagem. Daí que,
12
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. Loyola: São Paulo, 1996, p. 119. 13 Desde o Crátilo de Platão entende-se que o problema da linguagem se verifica como problema do conhecimento da verdade. PLATÃO. Diálogos. Volume IX. Teeteto – Crátilo. Coleção Amazônica. Universidade Federal do Pará: Pará, 1973, (387d); (390e); APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 380-1; Manfredo Oliveira A. de. Op. Cit., 1996 , p. 19. 14 APEL, Karl-Otto. Le Logos Propre au Langage Humain. Éditions de L’Éclat: Paris, 1994a, p. 12.
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primordialmente, se verifica uma concepção linguística. Concepção que é defendida como alternativa entremeio às teses do Naturalismo e Convencionalismo da linguagem. O Crátilo, redigido em forma de diálogo, traço característico da escrita de Platão, tem três personagens: Crátilo, defensor da tese Naturalista que é versada no costume popular ou hábito do usuário, em que o sentido é sempre o mesmo, invariável, afirma que “quem conhece os nomes conhece também as coisas”;15 Hermógenes, de tese Convencionalista, refere-se ao acordo tácito ou expresso, passível de variação circunstancial; e Sócrates, o principal articulador de argumentações e questionamentos. De acordo com Manfredo Oliveira, no texto de Platão há a indicação de que o consenso dialógico não é necessário sobre as regras ou o uso das palavras. Isso se deve pela posição tomada em vista da essência das coisas e função delas no conhecimento. O motivo é justamente para evitar arbitrariedades, já que as coisas têm qualidades objetivas, relações e diferenças específicas. 16 Por isso mesmo, para Platão, a linguagem só designa, cabe à razão ajuizar sobre as proposições, e, por fim, decidir. A instauração do paradigma semântico na filosofia platônica deixou de lado o consenso dialógico pelas ideias. Assim, as regras de uso ou do significado das palavras, ainda que dialogadas no escrito platônico, é um marco. Trata-se do rompimento com a possibilidade de uma racionalidade discursiva. Para Apel, Platão rompeu com a possibilidade de haver “interpretação do pensamento como uma função da comunicação intersubjetiva”. 17 Portanto, a opção de Platão foi diferenciar entre pensamento e linguagem. Segundo Apel, o diálogo passa a ser entendido pela Tradição como acordo internalizado (autoacordo) pelo vislumbre de ideias, e, quando externado, torna-se uma mera exposição de informações. A correção dos nomes é superada pela verdade contida no enunciado sobre algo, de modo que a verdade é transmitida na ligação, para dizer 15
A preocupação dirigida à linguagem leva-nos a reconhecer uma teoria do conhecimento no Crátilo de Platão, cujo interesse primordial está na verdade. Isso aponta para a recusa platonista da tese heraclitiana, especificada no emblemático aforismo “ninguém toma banho duas vezes no mesmo rio”. A recusa platônica contraria a tese de Heráclito em vista da seguridade do conhecimento, atrelado à cautela quanto à função de expressão da linguagem. “Na versão apresentada por Crátilo, o incessante movimento das coisas tornava-se um empecilho à ciência e à ação, que não podiam dispensar bases estáveis. Buscando justamente estabelecer fundamentos seguros para o conhecimento e para a ação, Platão desenvolvera, na fase inicial de sua filosofia, teses que tendem a sustentar a realidade no intemporal e no estático”. PLATÃO. Diálogos. In Vida e Obra. Coleção Os Pensadores. 2º edição Ed. Abril Cultural: São Paulo, 1983, X. ; (435d);(387d). 16 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. Loyola: São Paulo, 1996, p. 19. 17 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 380-1.
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numa expressão moderna, entre sujeito e predicado.18 Ademais, imprescindível para a lógica e a epistemologia, a respeito da objetividade do juízo. Apel situa Aristóteles na mesma linha de Platão. Com o estagirita tem-se o reforço da concepção tradicional, pois conhecimento é abstração, análise de proposições que conservam o sentido da palavra. Manfredo Oliveira concorda com Apel sobre Aristóteles, na Tradição a linguagem é instrumental no acesso ao ser, dada a diferença entre linguagem e ser.19 A voz, mera expressão de sinais dos sons evocados da alma; e a escrita, apenas sinais de sons. Ambas não são comuns a todos. Embora as noções simples da alma sejam idênticas para todos, mesmo com a diversidade de línguas, em perspectiva aristotélica. Para Aristóteles a linguagem não passa, de acordo com Apel, de um símbolo do real que significa o ser das coisas correspondentemente, por adequação a um organum autônomo, lógico. A consequência é que contraímos dois paradigmas 20 assumidos tradicionais na história da filosofia: um de captação dos significados linguísticos; e, outro, de um senso comum, reduzido a sons e signos convencionais. Ainda hoje é bastante difícil pôr em questão a concepção fundada por Aristóteles de um “commom sense” da linguagem no sentido da função designativa convencional; ou seja, é difícil aclarar as funções “transcendental-hermenêuticas” da linguagem acobertadas por essa concepção enquanto funções de um logos comum. 21
Do ponto de vista de Apel, o senso comum da linguagem se aplica tanto à relação sujeito-objeto da cognição quanto para a função da comunicação intersubjetiva. Nesse caso, a dupla relação do discurso (logos) demonstrada por Teofrasto (372 a.C. – 287 a.C.), discípulo de Aristóteles, “uma com os ouvintes, para os quais significa algo, e outra com as coisas, sobre as quais o falante pode transmitir uma convicção aos ouvintes”,22 acaba por ser uma divisão decisiva entre semântica e pragmática. Apel sustenta que, em Teofrasto, na divisão do discurso, temos a relação com os falantes primada na retórica e na poética; e com as coisas, a preocupação é refutar o que é falso e comprovar o que é verdadeiro. Com essa divisão, a dimensão do consenso, a saber, de um acordo mútuo sobre o sentido, figurou epistemologicamente irrelevante. 18
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 381. 19 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. Edições Loyola: São Paulo, 1996, p. 33. 20 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 381-2. 21 Ibidem, p. 381. 22 Idem.
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A divisão clássica realizada por Teofrasto, de acordo com Apel, denota peso no sistema de ensino ocidental. Para o alemão, a recepção desta divisão está nos desdobramentos da distinção, pois a consequência é o abandono do consenso à retórica e à poética. A filosofia resguardou a designação e a verdade objetiva do discurso, no sentido do convencimento sobre a certeza. Por outro lado, a divisão também trouxe à luz as funções da linguagem que ficaram encobertas pelo conceito da Tradição. Da parte de Apel, se Teofrasto, em sua concepção realista onto-semântica da verificação filosófica do discurso, pôde pressupor tacitamente o pré-entendimento pragmático das coisas, essa pressuposição foi superada 23 pela Tradição. Conforme Apel, o pré-entendimento das coisas preservou-se na história da filosofia como framework onto-semântico.24 Ora, os frameworks implicam-se como convenções de termos, assuntos de emprego com conteúdo vocabular específico. Desta maneira, eles são originados, construídos e assentidos por e entre especialistas. A constituição de frameworks por Rudolf Carnap (1891-1970) de linguagens do dia-a-dia resulta de testes de consistência lógica científica. A linguagem, portanto, é instrumento simbólico. Embora seja um falante competente que os estabelece, já se tem em mente o intérprete do sentido subjetivo. Posto que a compreensão é verificável na formalidade deles. Nota-se, portanto, que nos frameworks a linguagem é ao mesmo tempo “objeto” e “condição de interpretação” dela mesma por sujeitos. A dimensão pragmática revela-se como dimensão transcendentalhermenêutica do acordo mútuo e intersubjetivo quanto ao sentido, e compõe, com a dimensão do pré-entendimento semânticomediatizador das coisas (ou melhor, do mundo) – que se encontra acobertado pelo conceito designativo da linguagem –, uma unidade dialética: idealmente, o pré-entendimento linguístico do mundo deveria partir do acordo mútuo quanto ao sentido, como conquista de uma comunidade de comunicação; mas na realidade esse préentendimento já desde o início terá se externado, alienado e instituído a longo prazo, nos sistemas sintáticos-semânticos da linguagem natural.25
Apel se refere justamente à dimensão pragmática da competência comunicativa que carece de competência linguística. É esta dimensão que permite traduzir a linguagem e fazer a reconstrução da linguagem utilizada a fim de atualizá-la na
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APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 383. 24 Idem. 25 Ibidem, p 384.
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comunicação interpessoal. Para Apel, é exatamente isso o que se diz de fazer ciência da linguagem e filosofia da linguagem. 26 Apel aponta Descartes (1596-1650) e Locke (1632-1704) como continuadores radicais, transmissores da concepção de linguagem herdada da Tradição. Essa transmissão se evidencia em dois traços enraizados no racionalismo e no empirismo: 1) evidência cognitiva pré-linguística ou da certeza; e 2) o solipsismo metódico,27 que reduz a significação dos signos às impressões intra-anímicas, enquanto signos naturais do mundo exterior, dirigidos à cognição intuitiva. Descartes, de acordo com Apel, chega a supor que o pensamento “até certo ponto, pode projetar-se por meio da reflexão para fora das amarras da linguagem e da Tradição”.28 Porém, Descartes não percebe que o argumento da dúvida metódica, de que “talvez tudo seja apenas um sonho”, 29 pressupõe um uso público da linguagem, um acordo comunitário para que seja entendido. No cartesianismo, sob a dúvida metódica, só a consciência escapa inquestionável, inegável, sem que haja preocupação com os condicionamentos linguísticos e suas implicações no método cartesiano. Para Descartes, o cogito, fundamento do conhecimento,30 privativo da subjetividade, do eu (res cogitans), não leva em conta que, desde o início, ter-se-ia que pressupor uma comunidade real de comunicação, mesmo que o pensador fosse, como acentua Apel, o último representante vivo. O pai do racionalismo, ao interpretar o resultado de sua dúvida, isentando-se de uma referência real no mundo, é considerado por Apel como o autor da falácia abstrativa (abstractive fallacy)31 por prescindir da dimensão pragmática da linguagem e sustentar, apenas, a sintática e a semântica, independentes do uso comunitário. Segundo Apel, em John Locke encontramos a formulação linguístico-filosófico do solipsismo metódico entendido como convicção introspectiva da autonomia do ego. 32 Locke então é o legítimo responsável por manter o “uso adequado” como “uso comum”.
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APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 384. 27 Ibidem, p. 386. 28 Idem. 29 Idem. 30 DESCARTES, René. Discours de La Méthode. Librio: Paris, 2004, p. 32. 31 APEL, Karl-Otto. Paradigmas de Filosofía Primera. Prometeo Libros: Buenos Aires, 2013, p. 33-4. 32 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. Edições Loyola. São Paulo, 2000, p. 135-6.
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De acordo com John Locke, “palavras, em seu significado primário e imediato, nada significam senão as ideias na mente de quem as usa”. 33 Assim, Locke empreende uma redução do significado das palavras em que o sentido prévio das noções simples, extraídas das coisas, acompanhando o sentido aristotélico. O que Locke visa, segundo Apel, é “fundamentar sua esperança de uma superação da obscuridade e de todos os mal-entendidos na filosofia e na ciência”. 34 Surgem aí, portanto, questões sobre o como alcançar, mediante a introspecção prélinguística, o consenso; e, também, quanto à segurança de que outros tenham os mesmos significados imediatos unidos na palavra. No início do século XX, buscou-se empreender a ideia de linguagem como mathesis universalis. Uma linguagem artificial que evitaria controvérsias verbais. O que se fez foi entender as palavras como elementos de cálculo, uma linguagem de cálculo intersubjetiva a priori a ponto de abarcar a solução para se chegar ao consenso e os significados imediatos. Quanto a esta linguagem-cálculo, a grande dificuldade está em conciliar intersubjetividade e contexto socioprático. Mesmo que baseada em regras de uso público para que façam sentido. De acordo com Vidal, para Apel, o problema da verdade nesta linguagem é idêntico ao problema de verificação de significados em linguagem corrente.35 Não se resolve o problema. Ela só evidencia a consistência sintático-semântica do sistema linguístico, ainda assim, por certificação introspectiva. Neste período, junto à ideia de mathesis universalis de Leibniz (1646-1716), a ascensão da lógica matemático-simbólica, de consistência sintático-semântica, possibilita usufruir do sistema simbólico. No entanto, sem a necessidade de certificações dos conteúdos, como bem o seguiu Carnap. Para Manfredo Oliveira, neste período interessou a contingência. No entanto, interessou também corrigir as imperfeições da linguagem natural para conduzir o conhecimento a partir do pressuposto que Leibniz incorpora do platonismo. Temos nisso ordem das ideias simples numa semântica universal. Logo, na linguagem interessa
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Sobre o “senso comum” (Parte III, Cap. II, § 8); e sobre o solipsismo veja mais em: LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano. 5º Ed. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. Nova Cultural (Coleção os Pensadores):São Paulo, 1991, II, Cap. I, § 2. Apud. CARBONARI, Paulo Cesar. Ética da Responsabilidade Solidária: Estudo a partir de Karl-Otto Apel. IFIBE: Passo Fundo, 2002, p. 40. 34 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 387. 35 VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 56.
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menos a função, como era para Platão, mas passa a interessar mais ser um instrumento, para Leibniz. No Tractatus Logico-Philosophicus (1921), ponto de partida para a filosofia analítica, Apel considera que o problema da metalinguagem pode ser interpretado oposto ao solipsismo. Porém, para Ludwig Wittgenstein (1889-1951) a linguagem natural possui uma forma lógica que é universal. Para Wittgenstein, “a forma lógica da linguagem permite a afiguração do mundo”,
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que é a tese do atomismo lógico. Esta
forma permite, mesmo que oculta, uma figuração intersubjetiva dos estados de coisas elementares por meio de proposições elementares. Ora, aparentemente, dá-se por resolvido o problema do solipsismo, pois a experiência pessoal e a comunicação das experiências passam a não ter mais relação com a construção de significados. Eles já estão pressupostos no sistema linguístico como substância objetiva. Entendendo-se assim que a forma lógica da linguagem e do mundo, isto é, dos estados de coisas, é idêntica para todos os usuários da linguagem, independentemente da troca de experiências e do acordo mútuo quanto ao sentido. O caso é que Apel enxerga na forma lógica uma eliminação paradoxal do problema da subjetividade e da intersubjetividade. Como solução, no Tractatus, a comunicação é sugerida, de acordo com Apel, como “processo de decodificação particular, de transmissão técnica, e de decodificação particular de mensagens sobre estados de coisas”.37 Estabelecido a priori, o sentido intersubjetivamente comunicável se refere somente à estrutura dos estados de coisas pela estrutura do sistema linguístico. Desta maneira, a interpretação das informações é um assunto sem relação com acordos e a constituição da comunicação. Essa é uma dificuldade da concepção logicista, já que a estrutura universal imutável da linguagem não se conforma ao discurso humano. Portanto, nada mais que um diálogo sobre a linguagem, supostamente isento de equívocos. Acontece que quem participa da comunicação teria que pressupor isolado, e a priori, essa estrutura da linguagem que apenas se mostra. Por isso, a tentativa de superação do problema da linguagem de cálculo, pela semântica lógica, não muda a situação do solipsismo, segundo Apel. É a própria
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WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico. Investigações Filosóficas. 2º. Ed. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1995, (4.06). 37 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 389.
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semântica lógica que introduz a hierarquia de metalinguagens. A linguagem natural teria que ser admitida como metalinguagem última, dentro da semântica lógica. Em primeiro lugar ela precisa restringir-se à tematização de construções linguísticas que dependem de decisões, e, em segundo lugar, precisa interpretar essas próprias construções, inclusive a própria hierarquia das linguagens, como sistemas semânticos, e só quando a linguagem corrente – formalizada não no sentido da pressuposição – for admitida como metalinguagem atualmente última. 38
Não é suficiente, para Apel, que a linguagem seja concebida instrumental, enquanto pura transmissão de informações factuais. Ao mantê-la um instrumento deixase intocada a intelecção do sentido do mundo pelos supostos parceiros da comunicação, sem favorecer a atualização particular do sistema linguístico tanto para os parceiros atuais quanto para quaisquer possíveis intérpretes. A possibilidade e necessidade de acordo mútuo sempre renovado quanto ao sentido humano dos assim chamados “objetos” do mundo experiencial, de um lado, e a possibilidade e necessidade de um acordo mútuo quanto ao sentido – isto é, a “significação” – dos sinais linguísticos já no nível das palavras, de outro, são a expressão de uma e mesma reflexividade da razão humana. 39
Apel argumenta que a razão tem que trabalhar com a ajuda da linguagem, em uma interpretação do mundo e, com a ajuda da interpretação do mundo alcançada, trabalhar na construção de um sistema semântico da linguagem. Destarte, o modelo metódico-solipsista, que parte da designação arbitrária de noções intramentais, não pode explicar o sistema linguístico comunitário e também é insuficiente para explicar a validação intersubjetiva das regras de uso da linguagem comunitária, que é pública. Por conseguinte, independentemente do uso comunicativo da linguagem e da capacidade de reflexão dos usuários. A validade universal a priori de um modelo de linguagem artificial é possível se desejamos pensar o uso da linguagem como atualização privada, em um sistema já dado e orientado para um fim específico. Está claro para Apel que “na ideia leibniziana de uma ‘forma’ linguística (sintático-semântico) universal, e por isso, intersubjetiva a priori, a ideia do solipsismo metódico não pode ser superado”,40 mas, pelo contrário, há a confirmação dela. 38
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 390. 39 Idem. 40 Ibidem, p. 393.
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Tanto a ideia de linguagem universal de Leibniz quanto o solipsismo preservam o pensamento isento de linguagem, excluída da formação do pensamento. A comunicação, nelas, não pode ser entendida condição de possibilidade e validade pública do pensamento reflexivo, mas codificação e transmissão de pensamentos privados. Não há o “acontecer do momento comunicativo” do discurso como possibilidade do autoacordo e do acordo comunicativo público, no seguimento da Tradição. Apel acrescenta à discussão que o senso behaviorista da linguagem, compreensão comunicativa do discurso pela observação e descrição externas, não ajuda na compreensão dos significados. A observação e descrição externas não indicam que o comportamento observado constitui coerência com o uso da linguagem. 41 Com isso, o observador do “verbal behavior” perde em seu objeto o parceiro da comunicação; e ao empreender a descrição do comportamento – caso essa situação seja universalizada –, vê-se novamente imerso em uma linguagem que ele precisa usar de maneira particular, sem o pressuposto da comunicação. Para esse observador e descritor metafisicamente solitário, “solipsismo” e “realismo” têm realmente que coincidir, conforme prevê o Tractatus do jovem Wittgenstein. Em suma, é justamente a combinação lógicomatemática de linguagem com a concepção behaviorista do uso da linguagem que leva a cabo o solipsismo metódico. 42
O que Apel busca esclarecer é que tanto o behaviorismo, ao modo de Skinner (1904-1990),43 quanto a ideia logicista da linguagem e o solipsismo metódico fazemnos regressar, em constante referência entre eles, ao modelo tradicional da linguagem, isto é, à concepção do senso comum da linguagem que remonta à Tradição originariamente.
1.1.2 Concepção tradicional de linguagem: reconstrução De acordo com Apel, a destruição do conceito tradicional acontece no segundo Wittgenstein. No entanto, ele julga necessário pensar “com e contra” Wittgenstein para ir além de Wittgenstein. Não basta empreender a substituição do modelo designativo da Tradição pela descrição das funções e regras dos jogos de linguagem. E muito menos a
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APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 393. 42 Idem. 43 Ibidem, p. 308.
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significação objetual, para ser aplicada somente aos nomes próprios. Por isso Apel julga que é preciso reconstruir o conceito de linguagem da filosofia. Nas Investigações Filosóficas (1953), é possível contrapor o modelo dos jogos de linguagem (Sprachespielen) ao modelo do atomismo lógico do jovem Wittgenstein; e contrapor o modelo do common sense da filosofia Ocidental, e ainda, o do solipsismo metódico, com a tese de impossibilidade da linguagem privada. De acordo com Apel, o Wittgenstein tardio consuma uma mudança no modo de pensar a linguagem. A visão de Wittgenstein sobre o caráter precipuamente público de qualquer cumprimento de regras sensatamente concebível (e portanto controlável) – ou seja: quanto ao caráter de dependência dos jogos de linguagem, inclui ainda outra exigência, qual seja: a de que o descritor do jogo de linguagem participe dele, de uma maneira a ser ainda descrita. Caso se observasse apenas de fora, então ele jamais poderia ter certeza de que as regras supostas por ele, em sua descrição, são idênticas as que de fato se seguem no sentido do jogo de linguagem. 44
Apel orienta que o filósofo não se satisfaça, tão somente, com observação e descrição de jogos de linguagem e as formas de vida (Lebensform). Contudo, por estarem estes entretecidos, o filósofo seja um participante de todos os jogos de linguagem possíveis. Ao aprender uma língua e socializar-se, no sentido de que a forma de vida está entretecida ao uso da linguagem, amplia-se as condições e possibilidades de interpretação do conhecimento. De acordo com Vidal é decisivo que em Apel os jogos de linguagem não sejam entendidos apenas no aspecto linguístico-gramatical, mas, exatamente, “tecidos juntos” no entretecimento do uso linguístico e práxis vital. Portanto, “os jogos de linguagem incluem qualquer conduta humana que implique compreensão de sentido”. 45 Assim, a inclusão da dimensão pragmática em Apel considera o uso fático da linguagem conforme regras, e não de outro modo, para que se possa perguntar pelo critério de sentido na esfera comunitária. Vale confirmar a ênfase, da parte de Apel, que “adquire-se com isso também a competência para a reflexão sobre a própria língua, ou forma de vida, e para a comunicação com todos os outros jogos de linguagem”. 46 No entanto, o filósofo deve ser reflexivo e crítico a ponto de prevenir-se de jogos linguísticos específicos. Também 44
O jogo de linguagem da filosofia criticamente entrelaçado aos mais diversos jogos de linguagem, opõese à afirmação wittgensteiniana de que a multiplicidade de jogos de linguagem não possuem, significativamente, mais do que certa “semelhança de família”. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 394-5. 45 VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 27. 46 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p 395.
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se pode pressupor, no entanto, que se deve entrar em comunicação em todos os jogos linguísticos e comunidades correspondentes. Se, contra o primeiro Wittgenstein, pesa a impossibilidade do jogo de linguagem privado, ou cumprimento de regras privadas, indo além do segundo Wittgenstein, Apel propõe o jogo de linguagem ideal como instância de controle de regras numa comunidade de comunicação ainda a ser postulada: Esse jogo de linguagem ideal é antecipado, por todo aquele que cumpre uma regra, como uma possibilidade real do jogo de linguagem ao qual ele está vinculado – e isso de maneira implícita, por todo aquele que age de maneira sensata, segundo seu anseio, e de maneira explícita, por aquele que argumenta; ou seja: tal jogo de linguagem é pressuposto como condição de possibilidade e validade da atuação como atuação sensata. Portanto, gostaria de denominar “jogo de linguagem transcendental” – tal como se antecipa um jogo de linguagem factual.47
Se seguirmos com Apel, o cumprimento de uma regra pressupõe esse jogo. Ele é concebido como condição de possibilidade da ação e pensamento válidos sobre algo no mundo com sentido, até mesmo quanto ao sentido do próprio pensar e agir vinculados, tendo-se antecipadamente como referente a realidade e a argumentação sensata. A formulação do jogo de linguagem ideal está no pré-entendimento do sentido do mundo, enquanto “acordo consigo mesmo” vige o cumprimento de regras públicas. Este é um jogo de linguagem transcendental, dialeticamente justificado por um acordo que não pode ser ignorado, concebido desde as condições de possibilidade da argumentação e da interpretação de argumentos inteligíveis por qualquer um que se comunica com outros. Em suma, este jogo acontece em consideração da existência de parceiros da comunicação, membros de uma comunidade humana ilimitada cujos membros podem ser entendidos e podem chegar à verdade, e enfim, tratar da realidade inerente a esta comunidade, acerca do acordo (contrafático) de algo realizável, ou sobre algo no mundo uma vez os interlocutores antecipam seus princípios reflexivos,48 reconhecíveis por todos. Pleiteado desde a origem até a reconstrução do conceito tradicional em conceito contemporâneo, do ponto de vista de Apel, este é o conceito que se conforma a estrutura dialética do método filosófico. Assim, feita a exposição do conceito de linguagem da tradição e também reconsiderado os fatores que constituem a influência deste conceito 47
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 395. 48 VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 33.
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para a filosofia, explicitamos a proposta do conceito apropriado mais atual ao “refazermos” o itinerário filosófico de Apel.
1.2 A linguagem como tema e meio da reflexão transcendental A partir da atualização do conceito de linguagem, a obra apeliana expõe a situação contemporânea da filosofia da linguagem. Do ponto de vista de Apel, a ocupação do filósofo na modernidade era a consciência, e hodierno, a ocupação é a linguagem, e com de status de epistemologia. A questão é se ela pode ou não assumir a função de filosofia transcendental no sentido que deu Kant (1724 - 1804). A situação é que a filosofia da linguagem não mais é apresentada como disciplina que tematiza o objeto da linguagem, entre outros objetos da cognição. Contudo, nela se trata da reflexão sobre as condições de possibilidade linguísticas da cognição. Sobretudo da validação possível dos juízos. “Até mesmo a resposta à questão sobre a possível validação da verdade de juízos tornou-se tema de investigações linguístico-analíticas à medida que essa validação também depende de condições de cognição apriorísticas ou empíricas”,49 segundo Apel. O cerne dessa reviravolta que vai da critica cognitiva enquanto análise da consciência à crítica cognitiva enquanto análise linguística parece residir no fato que o problema da própria validação da verdade não pode mais ser visto como um problema da evidência ou da certeza (“certitudo”), para uma consciência isolada em sentido cartesiano, nem tão pouco como um problema da validação objetiva (e, portanto intersubjetiva) para uma “consciência em geral”, em sentido kantiano, mas sim, em primeiro lugar, como um problema da formação intersubjetiva de consensos com base em um acordo mútuo linguístico argumentativo.50
Com o surgimento da filosofia analítica ou linguístico-analítica, a análise da linguagem (e de significados) passa a ter a função de crítica cognitiva. Porém, de acordo com Apel, Wittgenstein vai longe demais no seguimento da Tradição quanto ao modelo designativo da função significa, pois após a “destituição da filosofia da consciência pela análise da linguagem, a reflexão parece ter saído de moda”.51 Ciente de que para o
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APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 354. 50 Idem. 51 Ibidem, p. 335.
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primeiro Wittgenstein “não existe o sujeito pensante, imaginante”,52 Apel não aceita que a consciência, a fortiori, seja declarada inexistente e esquecida. Portanto, Apel situa a obra tractatiana como marco desta destituição. Com ela se dá lugar à crítica da linguagem. Com efeito, Wittgenstein, em alusão a Kant, denomina a lógica da linguagem de transcendental. 53 Deste modo, sujeito e linguagem são equiparados, igualados, sendo um limite do mundo, de tal modo que, de acordo com Wittgenstein, os limites da minha linguagem são os limites do mundo.54 Explicitamente, em Wittgenstein o eu é o mesmo que o mundo.55 E deles nada mais se pode dizer. Contraditoriamente, do ponto de vista de Apel o advento da filosofia analítica deixa de fora a capacidade de autorreflexão e atesta a analise lógica de proposições sobre proposições. É este o caráter transcendental atribuído à linguagem que identifica a forma lógica da linguagem, condição de possibilidade de toda afiguração, com as proposições semânticas.56 Essa função, que Apel chama de “semi-transcendental”, é assumida por Rudolf Carnap com o nome de framework onto-semântico. E também é assumida pelo Wittgenstein tardio, com a descrição dos jogos de linguagem e a gramática profunda como condição de possibilidade da experiência. 57 A reflexão se torna, segundo Apel, secundária, destituída, “ultrapassada pela descrição de sistemas simbólicos objetivo-anônimos, pelos quais se fixa a priori o comportamento das pessoas”.58 Nisso se inclui o estruturalismo de Ferdinand de Saussure (1857-1913), pois “cada conteúdo comunicado, por estar relacionado à estrutura ordenadora, contem um valor intersubjetivo no sentido de langue”,59que consta na objetividade da linguagem. Apel nos chama atenção quanto ao sujeito, que não pode pensar “algo como algo” a partir da própria consciência, haja vista que a possibilidade de pensar está 52
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico. Investigações Filosóficas. 2º. Ed. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1995, (5.631). 53 Ibidem, (6.13). 54 Ibidem, (5.6). 55 Ibidem, (5.63). 56 Ibdem, (2.131); (2.172). 57 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. Edições Loyola: São Paulo, 2000a, p. 384. A gramática profunda de Wittgenstein é a reunião de todo uso possível da língua, tomada em quantidade e diversidade que, na aplicabilidade concreta das palavras, mudam de acordo com as regras que se aprendem nos indícios comportamentais entre os jogadores. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. 2º. ed. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1995, 37; § 54. 58 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 356. 59 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000a, p.175; 220.
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condicionada a priori pela forma interna (egocêntrica) da linguagem. 60 Do ponto de vista de Apel, isto está de acordo com a Tradição, pois a linguagem possibilita um simbolismo perfeito61 para a expressão de pensamentos. O contraponto, segundo Apel, está em Hegel (1770-1831), para quem “a linguagem, enquanto ‘espírito objetivo’, mostra-se efetiva deixando-se apreender como subjetividade externada das intenções de sentido, exatamente por isso pode ser reconstruída”. 62 Se concordamos com Apel sobre Hegel, então uma vez externada as intencionalidades da subjetividade temos a superação da filosofia moderna da subjetividade, já que o eu o não é apenas sujeito, mas também razão e espírito. Quanto a isso, Apel considera que “Hegel transforma a lógica da Tradição numa verdadeira ciência com pretensão de tematizar a verdadeira estrutura do método da filosofia: o método dialético”.63 Nisso se tem um primeiro passo indispensável para se conceber a razão dialógica no sentido que sustenta a filosofia apeliana. Referindo-se a Karl Marx (1818-1883), Apel afirma que o “espírito” carrega consigo desde o início a maldição de estar “preso” à matéria: o espírito nos surge como “camadas de ar em movimento, sons, em suma, a própria linguagem”. E de modo que a linguagem enquanto “a consciência efetiva, prática, é existente também em outras pessoas”, 64 de maneira que também é em mim. De acordo com Apel, Hegel e também Marx e Humboldt (1769-1859) tinham uma visão diferente de linguagem, não alcançada pela filosofia analítica para quem a sociedade é objeto da observação empírica. Inspirado neles, Apel apresenta a linguagem como condição subjetiva e objetiva da interpretação para se colocar frente a frente a subjetividade na investigação do cognoscível, e a própria humanidade, como sujeito dos efeitos da linguagem. A finalidade é exatamente tratar da possibilidade (da consciência indissociável de um sujeito histórico, a “sociedade” constituída de co-sujeitos) de formulações dialéticas com o intuito de acareação.
60
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico. Investigações Filosóficas. 2º. Ed. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1995, (4.01). 61 Ibidem, (6.13); (2.18). 62 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 360. 63 Cf. Manfredo Oliveira, “Exatamente na dialética está a grande ousadia dos pensadores eleáticos, que, como os primeiros no Ocidente, se situaram, com consciência coerente, no que exige o pensamento puro, liberado de toda perturbação proveniente da influência dos sentidos”. OLIVEIRA, Manfredo A. de. Para além da fragmentação: Pressupostos e objeções da racionalidade dialética contemporânea. Edições Loyola: São Paulo, 2002, p. 35. 64 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. São Paulo: Edições Loyola, 2000b, p. 360; OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüísticopragmática na Filosofia Contemporânea. Loyola: São Paulo, 1996, p. 258.
42 As condições de possibilidade de toda formação teórica poderiam ser percebidas. Caso se levem a sério no campo das ciências humanas as referências dialéticas à linguagem como paradigma de identidade entre sujeito e objeto, só então se coloca de maneira adequada a pergunta sobre linguagem e reflexão. 65
Deste modo, a interpretação apeliana não irá deixar de lado a epistemologia da modernidade. Isso seria retroceder e negar que todo aquele que deseja o conhecimento, como sujeito do conhecimento, precisa esperar de si mesmo a verdade. Portanto, o sujeito do conhecimento precisa se pressupor como instância crítica de validação da reflexão, da dialética. Nesse caso, Apel se coloca face a um problema: poder levar a cabo a validação da reflexão pública sobre o conhecimento, desejando-se validação universal pelo pensar subjetivo. O impasse é justamente a insuficiência da filosofia analítica. Ela falhou em não dar uma resposta satisfatória a esse problema, pois a linguagem é limite, e pode ser construída artificialmente. Para eliminar a contradição 66 entre linguagem e pensamento Bertrand Russell (1872-1970) proíbe a “auto-remissibilidade” da linguagem. 67 Apel destaca como uma motivação pertinente para a proibição de Russel a antecipação do mútuo acordo prévio quanto ao uso da linguagem. Isso porque na linguagem de cálculo, “numa superposição da posição” em relação à linguagem natural garante-se, e só no caso dela, a vantagem de não mais surgir quaisquer mal entendidos,68 embora seja ela imprópria filosoficamente. A esse respeito, é possível notar, com base em Kant, a efetuação do regresso operado pelos analíticos. Pois “os sinais da consideração filosófica jamais são algo diferente de palavras, que não indicam, em sua composição, os conceitos parciais em que consiste a ideia toda que a palavra significa”. 69 Portanto, o empreendimento analítico distancia-se do critério da reflexão. Conforme
Apel,
uso
efetivo
da
linguagem
dá-se
em
alcançar
“o
entendimento”,70 aceitando-se reciprocidade entre jogo de linguagem e cognição. Esse é 65
APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p.360. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico. Investigações Filosóficas. 2º. Ed. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1995, (5.6); (7). 67 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 361-2. 68 Ibidem, p. 362. 69 KANT, Immanuel. Escritos Pré-Críticos. Ed. Unesp: São Paulo, 2005, p. 108. 70 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. 2ª Ed. (Coleção Os Pensadores) Abril Cultual: São Paulo, 1979, § 2; §7; §11. Para Júlio De Zan, “o telos da linguagem é o entendimento com os outros, o que faz possível a constituição de nós mesmos, e por assim dizer, a intersubjetividade mediada linguisticamente como um âmbito de sentido e validez compartilhados”. DE 66
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o motivo pelo qual a linguagem na filosofia não pode ser entendida a partir de experimentos e determinações. Ao contrário da filosofia analítica, é preciso partir da reflexão para entendê-la. Evitando-se o posicionamento determinativo de seu uso. Apel julga indispensável a abordagem de uma filosofia linguístico-hermenêutica, tal como desenvolvida por Hans G. Gadamer (1900-2002) e Johannes Lohmann (1899‑1983), a partir de Martin Heidegger (1889-1976), inclusive, incorporando reflexões de Jürgen Habermas (1929 -. ) para com eles articular uma versão própria de linguagem, por oposição à filosofia linguístico analítica. Um fator que para Apel é crucial sobre razão e linguagem, e que não foi trabalhado
na
filosofia
linguístico-analítica,
é o
relacionamento
linguístico-
intersubjetivo. Isto é, o relacionamento entre seres humanos já ter expressão na primeira abertura linguística da manifestação do mundo. O que se está destacando, da parte de Apel, é que a “significabilidade dos entes tem, como condição de possibilidade, o relacionamento reflexivo efetivo do homem como ser-no-mundo para com suas possibilidades”,71 pois os seres humanos não trazem consigo a autocompreensão ao mundo. A síntese que se consuma na constituição de algo como algo, e que subjaz à síntese da predicação, precisa extrair do ente uma “significância” que tem sua condição de possibilidade na relação efetiva de reflexão que o ser-no-mundo mantém com suas próprias possibilidades. Quando se leva em conta que toda linguagem que se torna histórica em sua estrutura semântica precisa poder ser concebida como manifestação da experiência pragmática de significância, fica claro que essa assunção fundamental da “hermenêutica do ser” heideggeriana tem que poder ser verificada por via linguísticohermenêutica.72
Apel não toma por base a consciência pura como condição subjetiva de possibilidade e validade, no sentido de Kant ou Husserl (1859-1938). Na verdade, de acordo com o exposto acima, não se poderia extrair com ela nenhuma significância do mundo. Interessa o status transcendental-pragmático, que é interativo-comunicativo para corresponder à abordagem linguístico-hermenêutica. Apel, para tanto, julga que é preciso refletir uma formação histórica que envolve “divisão de trabalho” entre interação e comunicação, cujo processo de socialização para ZAN, Júlio. Karl-Otto Apel y el nuevo paradigma linguístico de la filosofia. In: REVISTA ANTHROPOS: Hellas del conocimiento. Karl-Otto Apel: Una ética del discurso o dialógica. Barcelona: Nº 183, marzo-abril, 1999, p. 78. 71 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 367. 72 Idem.
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a linguística hermenêutica não se trata de adestramento (treinamento do domínio da técnica), contrariando o que diz Wittgenstein,73 mas de aprendizado comunicativo da linguagem, num discernimento consciente. Já que muito embora inexprimível, o ser humano precisa se orientar desde cedo de acordo com regras, conforme Apel. Ele [o ser humano] não é apenas factualmente treinado em uma determinada forma de vida, mas adquire uma relação de reflexão efetiva com a forma de vida em geral: por exemplo, com o aprendizado de uma língua ele também terá aprendido uma intelecção do uso da linguagem em geral, que em princípio o coloca em condições de aprender línguas estrangeiras, traduzir de uma língua para a outra, o que também significa, ao mesmo tempo: entender outras formas de vida.74
A reflexão explícita sobre a linguagem e com a linguagem, de acordo com Apel, só foi documentada com o surgimento da filosofia. A filosofia não deve ser dissociada do surgimento das ciências da fala (gramática, retórica e lógica) porque são coincidentes em certo aspecto. O primeiro Wittgenstein confirma essa relação ao aceitar paradoxalmente as duas possibilidades, mas a solução do paradoxo entre linguagem e pensamento é necessária e está em ir até os limites da abordagem linguístico-hermenêutica, a fim de legitimar o jogo de linguagem da filosofia. A acepção mais importante de uma filosofia linguístico-hermenêutica, segundo Apel, foi contextualizada por Lohmann, para o qual, a consciência é um produto do fato de os seres humanos se comunicarem a milênios. E por isso mesmo serem provocados à reflexão. Com J. Lohmann pode-se conceber a reflexão linguística da filosofia como resultado de um robustecimento contínuo da reflexão efetiva sobre a linguagem, que desde o início está tendo efeitos no próprio uso comunicativo da linguagem; e, sem dúvida, é preciso que a reflexão filosófica seja entendida hermeneuticamente em sua historicidade a partir da linha contínua do diálogo humano. E mesmo assim: em minha opinião, com uma tal apreciação hermenêuticohistórica ainda não se pode conceber a particularidade do anseio da reflexão filosófica.75
Mas mesmo assim o filósofo quer assegurar a crítica da linguagem. O anseio universal de validação da reflexão filosófica da Tradição, que não se recusa em Apel, 73
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. 2ª Ed. (Coleção os Pensadores) Abril Cultural: São Paulo, 1979, §5. 74 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. p. 368. 75 Ibidem, p. 369.
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foi entendido numa acepção primeira, como expressão do pensamento puro, solitário e desprovido de linguagem. Apel julga coerente admitir que “a unilateralidade dessa absolutização do nous, ou mais tarde da ‘consciência’, corresponde à unilateralidade moderna da absolutização da linguagem como limite de cada mundo individual”. 76 Este mundo individual, como indicou o jovem Wittgenstein, teve seu primeiro êxito como condição de possibilidade da reflexão na antiguidade. De acordo com Apel, a linguagem, enquanto condição de possibilidade da reflexão, consiste numa nova etapa reflexiva “com e sobre” a linguagem. Por isso, a filosofia da linguagem como filosofia contemporânea se apropria do método crítico, com anseio de validação reflexiva, à maneira de Descartes, Hegel e Husserl, porém agora renovado. Como tomada transcendental de consciência, essa reflexão é, ao meu ver, a autofundamentação possível para a filosofia (e tão somente para ela) e não deve, como tal, ser confundida com uma fundamentação alcançada por dedução. Uma fundamentação desse tipo, de fato, conduziria a um regressus ad infinitum.77
Segundo Apel, estamos, irremediavelmente, diante do ponto de vista que pode responder à pergunta supracitada, isto é, da pertinência do jogo de linguagem pôr ou não a filosofia em condições de refletir sobre o critério de sentido das relações entre linguagem e mundo, e, ainda, se podemos consentir a própria linguagem inclusa no processo de reflexão acerca da fundamentação, tarefa própria da filosofia. A hipótese que move o pensamento de Apel, então, é que a filosofia consentida na proposta de reflexão indissociável da linguagem, no sentido conceitual kantiano, atinge o mais alto grau. Em termos objetivos, a defesa de Apel é que linguagem e a consciência voltam-se sobre si mesmas como condição de possibilidade do próprio anseio de validação.
1.3 O conceito transcendental-hermenêutico de linguagem Após a Kritischer Destruktion da linguagem designativa instrumental da Tradição, a reconstrução está na defesa de que a linguagem é temática filosófica. Apel afirma o conceito transcendental-hermenêutico como condição de mediação e ação 76
Ibidem, p. 370. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 370. 77
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consequentes com a interpretação do mundo. Assim, a consequência é a transposição do paradigma da subjetividade para o da intersubjetividade. Destacamos, portanto, que a filosofia apeliana se distingue pela dimensão da intersubjetividade ao superar os dois paradigmas anteriores. De acordo com Manfredo Oliveira, se “a antologia clássica teve o ‘ser’ como paradigma, a filosofia transcendental a ‘subjetividade’, agora a intersubjetividade mediada linguisticamente”78 é o terceiro paradigma. E se configura ao lado do problema da fundamentação, compondo a característica da filosofia que a distingue como contemporânea. A linguagem, mediação integrada ao acontecimento do conhecimento – preponderantemente na participação interativa da comunicação – é intransponível (unhintergehbar) condição do auto-entendimento, da compreensão do outro, da pretensão de conhecer o sentido do mundo e das coisas, e “tornando-se a voltar a si mesma” é capaz de garantir a reflexão sobre a própria linguagem utilizada, sobre as razões e as necessidades da prática humana. Na perspectiva de Apel, se bem o compreendemos, o pensar monológico clássico da relação sujeito-objeto do conhecimento imediato perde importância como relação do conhecimento na filosofia da linguagem para tratar de seres humanos e da linguagem, e passa a importar como principal a relação processual sujeito-sujeito do conhecimento. Isto é, ele propõe que a subjetividade de um “eu penso” seja substituída pela intersubjetividade, na qual o “nós argumentamos”79 torna-se preponderante no processo de constituição e validação do conhecimento intersubjetivo sobre o real. Finalmente, do postulado jogo transcendental de linguagem, dimensionado numa reconstrução da concepção tradicional instrumental, temos então a concepção fundamental “à qual se pode recorrer como pressuposto último da filosofia analítica e da crítica à metafísica”,80 baseada na transformação da filosofia transcendental clássica, sob o signo da linguagem. Do ponto de vista de Apel, a concepção normativa do jogo de linguagem transcendental alcança, depois do segundo Wittgenstein, contra a hipostasia platônica do significado ontológico ideal das palavras, uma recusa às respostas definitivas sobre o que deveríamos entender, por exemplo, por “verdade” ou “justiça”. Temos agora o 78
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. Loyola: São Paulo, 1996, p. 254. 79 APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdad y Ética del Discurso. Paidos: Barcelona, 1998, p. 21. 80 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 396.
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reconhecimento da linguagem como ação e mediação no acesso a mundo – o que traz à tona o dialogo para o centro das interpretações e informações. Entretanto, para Apel não é tão simples assim. Não se deve esperar que a solução do problema levantado pela Tradição seja superado necessariamente pelo uso e descrição que se faz das palavras, mas pelo postulado normativo, implícito no uso significativo das palavras. Portanto, o postulado normativo é capaz de prover o consenso pragmático entre possíveis participantes de um jogo linguístico. É preciso que uma definição filosoficamente relevante (isto é, não arbitrária) possa ser vinculada de forma inteligível ao uso da palavra subsistente (na linguagem corrente ou na linguagem culta filosófica), então ela também é exortada a incluir o novo estado da experiência e da discussão especializadas, e a antecipar, no âmbito de um determinado jogo de linguagem, a estrutura do jogo de linguagem ideal que todos os seres racionais pudessem jogar.81
Apel destaca que os jogos de linguagens, como formas de vida, depararam-se com a concorrência plural de outros jogos de linguagem, entre eles, o jogo de linguagem da ciência e da tecnologia. Aliás, o jogo de linguagem da ciência é postulado como capaz de unir diversos jogos. Por isso mesmo é preciso fazer distinção dialética dos sistemas linguísticos sintático-semânticos e jogos de linguagem semântico-pragmáticos. Porém, o que são relevantes neles sejam as “dessemelhanças” (aquilo aparenta estar errado). Do ponto de vista de Apel, são as diferenças na diversidade pluralista de jogos de linguagem, que regulam as possibilidades do uso da linguagem. Apel afirma que, nos mais diferentes jogos de linguagem ou formas de vida, a questão central não é outra senão a possibilidade da interpretação mútua, prejulgada desde o início pelas diferentes “cosmovisões” correspondentes às estruturas linguísticas.82 Mas, contemporaneamente, as cosmovisões podem se relacionar aos “significados”, ou serem integradas (se forem assentidas certas ou semelhantes), antecipando-se um interesse pela compatibilidade e controle entre elas. Em contrapartida, através dos sistemas sintáticos-semânticos abre-se caminho para a formulação de um consenso. Embora baseado na experiência sensória, isso não significa que devemos generalizar e postular uma formação universal de consensos, a
81
Ibidem, p. 397. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 397. 82
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exemplo do postulado por Leibniz; mas, por outro lado, rejeitar tendências relativistas, ou ainda os semantical frameworks, possíveis a priori.83 É só pelo entrecruzamento da constituição da competência gramatical com a constituição da competência comunicativa que se torna compreensível a concomitância entre “rule governed creativity” e “rule changing creativity”, no sentido proposto por Chomsky. Em todo caso, essa criatividade da aplicação de regras ou de alteração de regras, enquanto espontaneidade semiorgânica e inconsciente, constitui um tema da gramática gerativa, enquanto teoria explanativa.84
A relação entre linguística e filosofia jamais foi tão estrita, considera Apel, quanto é na contemporaneidade. Sabendo-se que novas regras podem ser introduzidas, a propósito da abordagem de Noan Chomsky (1928 –. ), é importante reconhecer o papel da “criatividade” no processo do conhecimento (compatível com a noção de regra). Concorda Habermas, “o processo do conhecimento é representado como um comportamento inteligente que resolve problemas e possibilita processos de aprendizagem, corrige erros e invalida objeções”.85 A diversidade de maneiras de compreender uma língua está entrelaçada à maneira de viver das comunidades linguísticas. É bem verdade que na “aceitabilidade de enunciados” trata-se de um conceito que apenas descreve uma norma social de utilização da linguagem (uma norma social de “performance”), sendo que aí se devem considerar inúmeras condições pragmáticas que ultrapassam a “competência” gramatical. Não obstante, a “gramaticalidade” de sentenças é uma condição parcial essencial para a “aceitabilidade”, sobre a qual mesmo o “falante competente” tem que refletir, no sentido de uma norma social. 86
A compreensão das línguas está propiciada pelo entrecruzamento das “regras que regem a criatividade” humana (gramática), ou seja, que também regem a competência linguística. 87 No entanto, complementada com a motivação (pelo sentido) da descoberta de “regras de mudança da criatividade”. Da criatividade no jogo de
83
Idem. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. Edições Loyola: São Paulo, 2000a, p. 347. 85 HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: Ensaios filosóficos. Tradução Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 34. 86 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 323. 87 Noam Chomsky: A Life of Dissent. MIT Press, United States, 1997, p. 38. APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 299. 84
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linguagem, têm-se a possibilidade de reestruturar e atualizar a semântica, no plano de utilização da linguagem corrente. Este entrecruzamento é importante para favorecer a personalização de mensagens, de informações, permitindo-se escapar dos modelos de uso da língua com que se está acostumado. E inovar, “inventar” para que ocorra a melhor situação de comunicação. De tal modo que um sujeito possa ser compreendido pelo outro, supondo o respeito pelas regras a que ambos estão acostumados. É da perspectiva da criatividade, segundo Apel, que se parte para evitar a imitação, o behaviorismo linguístico, o adestramento estrutural da criatividade humana. E com ela, no entrecruzamento dos usos em linguagem corrente, força que cunha previamente todo entendimento, mediar um acordo para o sentido no plano de aplicabilidade da linguagem: O ser humano, graças a sua competência comunicativa (que não tem caráter extralinguístico, mas que representa, sim, o “jogo de linguagem transcendental” cujo aprendizado dá-se junto com o aprendizado da língua), também pode, em cada língua, tematizar reflexivamente as diferenças das línguas, e ainda superá-las em seu efeito pragmático.88
Numa referência histórica, a competência comunicativa para realizar combinações semânticas, por parte dos filósofos gregos, foi decisiva, segundo Apel, para a atualização do pensar conceitual, “pelo qual se fundou um anseio por uma cognição eidética pura e simples, intersubjetivamente válida”. 89 Um caso é o conceito de essência, válido para o conhecimento, que foi disseminado e bem recebido (aceito por longo tempo). No sentido de pressupostamente válido, ele, o conceito, foi primado nesta competência, favorecendo-se a intelecção comum a todos os intérpretes interessados através dos tempos. Para Apel, algo universalmente válido no sentido de um possível aceite de um determinado conceito por todos, é possível por causa da mediação linguística, caracterizado pelo acordo, dentro das condições de possibilidade de aceitação do argumento. E, assim, reconhecível intersubjetivamente como autêntico, uma vez interpretado em concordância ao acordo dialógico de que tais condições são válidas, se assimiladas desde um ato da capacidade de entender, pelos intérpretes.
88
APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 400. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 400-1. 89
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O que destacamos, para compreender o conceito transcendental-hermenêutico, é essa exigência comum da linguagem conceitual, a ponto de Apel julgar sensato esperar pelo cumprimento das exigências de definições eidéticas, ao menos em longo prazo, através do acordo mútuo em linguagem conceitual numa comunidade ilimitada. Como um princípio regulador do sentido. Doravante já entendemos que, para Apel levar adiante o conceito transcendentalhermenêutico de linguagem, tendo feito a distinção sintático-semântica, de um lado, e competência comunicativa universal pragmática ou intelectiva (um ato da capacidade de entender entre intérpretes) de outro, não se pode deixar intocada a função do sujeito transcendental da consciência em geral no kantismo. Como não é suficiente concordar com o primeiro Wittgenstein e identificar o sujeito transcendental da cognição como limite do mundo, como se a razão conservasse uma função, ainda de alguma maneira, independente da linguagem, é preciso insistir na dependência entre razão e linguagem. Em caso contrário, significaria passar direto pela filosofia moderna quanto à relação sujeito-objeto da epistemologia transcendental. [...] o que importa em uma reconstrução consequente da filosofia transcendental à luz do conceito transcendental-hermenêutico da linguagem é a substituição do “ponto mais alto” da epistemologia kantiana, isto é, da “síntese transcendental da apercepção” enquanto unidade da consciência objetual, pela síntese transcendental da interpretação mediatizada pela linguagem – constituinte da validação pública da cognição – enquanto unidade do acordo mútuo quanto a alguma coisa em uma comunidade de comunicação.90
Com esta ênfase, agora sabemos bem que não se trata só de integrar a comunicação à relação sujeito-objeto da consciência. Isso seria apenas um benefício, um adendo à capacidade da consciência. Consistido na “redução cientificista” do sujeito da teoria e da práxis na lógica científica bivalente.91 Para Vidal, convenientemente “a concepção de linguagem de Apel é hermenêutica porque entende a linguagem como o elemento imprescindível pelo qual se produz a abertura de sentido no mundo”. 92 Pois media o significado das coisas no mundo como horizonte de sentido na vida humana. Ainda segundo Vidal, também é
90
Ibidem, p. 401. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 402. 92 VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidencia y Solidaridad. La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 55. 91
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transcendental por que é condição de possibilidade de todo sentido teórico e prático. 93 Uma consequência fundamental desta concepção pragmáticotranscendental da linguagem é que a verdade tem seu “lugar natural”, seu lugar próprio, precisamente na linguagem. Se si permite uma paráfrase de Heidegger diremos que a linguagem é a “casa da verdade”. E isto porque Apel entende que o conceito de “verdade” está na base fundadora de uma imagem do mundo que tem a linguagem. Isso quer dizer, na linguagem ordinária, se encontra sempre objetivada uma imagem do mundo, como pré-compreensão linguística que tem a capacidade de ser atualizada pelos falantes. 94
Em suma, deste conceito de linguagem entendemos que a substituição da síntese transcendental da apercepção pela síntese transcendental da interpretação, Apel pretende a validade intersubjetiva do conhecimento não mais no domínio da consciência isolada, mas a partir de um princípio regulador do consenso, argumentativamente constituído e legitimado por uma comunidade real de comunicação.95 Nota-se a relevância desta substituição destacada tanto para a fundamentação da prática quanto para a epistemologia, posto que o logos em Apel não é a-histórico, muito menos monológico e socialmente independente, partindo do aspecto processual do conhecimento como um processo de comunicação ilimitado. Por isso Apel pressupõe uma ética mínima, imbricada ao discurso de uma comunidade argumentativa. Com efeito, é mérito do pensamento apeliano distinguir a questão da “constituição do sentido” e a questão da sua “justificação” argumentativamente. Tanto que, segundo Manfredo Oliveira, o “específico da filosofia é a questão da justificação do sentido, cuja gênese, nas comunidades históricas, a hermenêutica tematiza”. 96 Inevitavelmente, isso nos conduz à reflexão sobre as condições históricas de aplicação da prática, fundamentadamente. Como saldo de uma racionalidade dialógica, para Apel “a filosofia vê-se obrigada a mediar seus problemas de justificação pela via do discurso não dogmático da comunidade argumentativa” 97 ilimitada, e fundamentar a prima filosofia como unidade da razão prática e teórica. 93
Idem. Idem. 95 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 401. 96 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. Loyola: São Paulo, 1996, p. 262. 97 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 405. 94
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CAPÍTULO II A PRAGMÁTICA TRANSCENDENTAL DE KARL-OTTO APEL 2.1 A transformação da filosofia: de Kant a Peirce A reconstrução crítica de Kant realizada por Peirce (1839-1914), a quem Apel chama de o Kant da filosofia americana, resulta no surgimento de uma nova lista de categorias. Esta é sustentada na tridimensionalidade do signo. Incorporado à pragmática transcendental, o empreendimento peirceano implica sentido e validade intersubjetiva do conhecimento. Para Apel, a filosofia deve voltar mais uma vez a Kant sob a forma de uma transformação da filosofia transcendental. 98 Ele quer substituir a unidade da consciência por uma comunidade ilimitada de comunicação, primada não na crítica do conhecimento, mas na crítica de sentido. Note-se que Kant opta, na Crítica da Razão Pura, por distinções que lhe permitirão aplicar a crítica não somente aos “conhecimentos”, mas também aos conceitos e juízos da razão, tanto que, de acordo com Loparic, “a teoria crítica dos princípios do entendimento e a teoria crítica dos princípios metafísicos da razão especulativa”99 podem ser interpretados como “semântica a priori” dos juízos sintéticos em geral e como metodologia a priori da pesquisa empírica sobre a natureza em geral, respectivamente. Sob este aspecto, Apel considera que Peirce visa seu próprio “ponto alto”, convencido de que “a verdadeira síntese como redução do que há de múltiplo nos estímulos sensórios, e nas qualidades sentimentais, tenha êxito como unidade da consistência no juízo experiencial”. 100 A expressão unidade da consistência versa sobre a consistência semântica de uma representação intersubjetiva e válida dos signos do discurso. O princípio da autonomia da vontade pressupõe o imperativo moral de abrir-se ao diálogo como o único modo de resolver racionalmente os conflitos nas relações inter-humanas e de fundamentar normas. Ele é reformulado como princípio dialógico normativo que atua como 98
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. Edições Loyola: São Paulo, 2000a, p. 41. 99 LOPARIC, Zeljko. A Semântica Transcendental de Kant. 3º Ed. Unicamp (Coleção CLE; V. 41): Campinas, 2005, p. 13. 100 APEL, Karl-Otto. El Camino del Pensamiento de Charles Sanders Peirce. Gráficas Rógar/visor: Navalcarnero (Madrid), 1997, p. 92.
54 norma procedimental de toda argumentação teórica ou prática que supere o solipsismo metódico. 101
Com Apel, asseguramo-nos da ordem do mundo previamente cunhada pela linguagem e “inserimo-nos no mundo enquanto situação vivencial conteudístico significante”,102 no qual concordamos “com nós mesmos” e com os outros, para se chegar a admitir a validade de uma interpretação consensual. 103 Neste capítulo, explicitamos que o a priori pragmático transcendental da argumentação, ou seja, o a priori da comunidade de comunicação, é reclamado no discurso como atividade genuinamente filosófica. Neste caso, a verdade é preconizada por Apel na última instância reflexiva do pensar e agir humanos e que só nela, se pode validar a pretensão de sentido e validade. Efetuado o rompimento com a Tradição no capítulo anterior, a explicitação do acordo intersubjetivo (Verständigung), ideatum do conceito transcendental-hermenêutico de linguagem, agora é afirmado por Apel, nas condições em que se pode interpretar consensualmente os signos linguísticos na filosofia contemporânea. Nesta parte veremos que Apel recusa a divisão kantiana em dois mundos, para sustentar o corpo a priori. E também como ele elucida a semiótica fundada por Peirce para postular a fundamentação última da filosofia na atualidade. A esse respeito, a proposta de Apel coloca a comunidade ilimitada de comunicação como novo sujeito. Uma vez superados os problemas da transformação da filosofia, este novo sujeito passa a ser instância última da reflexão na contemporaneidade.
2.2 A transformação de Kant por Peirce Para Apel, Peirce atinge em cheio, “o ponto alto” concernente à confirmação da experiência possível da realidade do real em que, para ele, “a ‘ultimate opinion’ da ‘indefinite comunity of investigators’ é o ‘ponto mais alto’ da transformação peirceana
101
HERRERO, Francisco Javier. Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea. 2ª Ed. Vozes: Petrópolis, 2001, p. 171-2. 102 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. Edições Loyola: São Paulo, 2000a, p.228. Para conferência, verifique-se a que a concepção de transcendental e a priori de Kant permanecem inalteradas como discussão preambular, possibilitando reinterpretação pragmática. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 5ª. Ed., Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 2001, (B XVII); (CRP, BXVIII); (CRP, B 25). APEL, Karl-Otto. Semiotica Filosofica. Almagesto: Buenos Aires, 1994c, p. 162. 103 MOREIRA, Luiz (org). Com Habermas, Contra Habermas: Direito, discurso e democracia. Landy Editora: São Paulo, 2004, p. 104.
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da ‘lógica transcendental’ de Kant”.104 O sujeito dessa unidade passa a ser simultaneamente, a comunidade ilimitada de experimentação e a comunidade de interpretação ilimitada, operada a substituição do sujeito do conhecimento kantiano. Na filosofia apeliana, essa substituição desencadeia a construção de um jogo de linguagem entretecido nas formas de vida, como Wittgenstein havia concebido. Contudo, agora indissociáveis o “uso linguístico”, “práxis comportamental”, e “intelecção do mundo” nas relações sociais. Conforme Apel, isso possibilita, pelo jogo interpretativo de signos, alcançar o acordo mútuo. Apel assume, também a partir de Peirce, três específicas transformações irreversíveis. A bem da pragmática transcendental elas são convergentes com a insuficiência bivalente (sujeito-objeto) sintático-semântica da filosofia analítica. Permeadas de implicações reconstrutivas com a Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft) estas transformações são factíveis, haja vista a natureza tridimensional do signo linguístico (sujeito-signo-objeto), interpretável in the long run. A primeira dessas transformações legítimas de uma filosofia transcendental transformada do ponto de vista conceitual semiótico faz a distinção entre objetos reconhecíveis e a coisa-em-si, incognoscível. Essa distinção é necessária, pois, se não há signo, não há sentido. Da perspectiva de Peirce, é necessário admitir que o real seja conhecível. Para o norte americano, se o objeto é real há a possibilidade de mediação significativa dele, posto que, a título de comparação, o irreal ou a ilusão possam ser concebidos como tais, para quem quer que seja possa tirar conclusões sobre paradoxos, erros ou equívocos, a respeito do que é descritível como o real ou mera ilusão. A coisa-em-si, irreconhecível, mas pressuposta e capaz de causar afecções, só é possível se fizer sentido como hipótese, com pretensão de verdade consequente com o a teoria do signo. Uma vez que Apel afirma que na teoria do signo, de fato, “o anseio por cognição tem um alcance igual ao do anseio por verdade de hipóteses sensatas; e uma cognição, como se mencionou, que não tenha o caráter explícito ou implícito de uma
104
O que se providencia é a substituição da “unidade objetiva” (p. 186) por uma “unidade do acordo mútuo” como o “ponto mais alto”. Apel deixará “a unidade objetiva e já conquistável de representações [Vorstellungen] em uma “consciência em geral”, pela unidade do acordo “sobre o consenso [Konsens] intersubjetivo, ilimitado, que se conquista pela interpretação consistente de signos”. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000, p. 197.
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conclusão hipotética, simplesmente não pode existir”. 105 Nas palavras de Apel, é preciso que algo como algo faça sentido. É a pretensão de sentido – ao se realizar um ato de fala – que fará toda a diferença para que seja atingida uma concepção de verdade das hipóteses de conhecimento. Logo, de acordo com Apel, a distinção que Peirce preconiza é entre o real conhecível in the long run e o já conhecido, em cada caso. Nas palavras de Apel, “A realidade ‘do real’ que se corresponderia com a verdade é determinada, por Peirce, como o conhecível in the long run”106 sob reserva falibilista, em um processo indefinido de conhecimento. Em caso contrário, a função de representação (representation), de fato “significativa”, não faria sentido para o sujeito do conhecimento sem depender de um mundo real para valer. Nem mesmo teríamos hipóteses, isto é, o ser e possibilidade de se ter conhecimento do ser aproximarem-se de igualdade, ou que coincidam enquanto suposição da verdade. A segunda se coloca como recusa ao idealismo transcendental de Kant, pressuposto para o que o alemão chamou de sua reviravolta copernicana. Pois bem, o que nos chama atenção aqui é que Peirce, de acordo com Apel, recorre a isso para a crítica do sentido, e mesmo assim, refuta a distinção kantiana entre phainomena e noumena. O motivo é que, conforme Apel, Peirce não reivindica a reviravolta copernicana, como patrimônio dos princípios para si, mas, sim, para o entendimento, como patrimônio de inferências ou conclusões sintéticas. Ele mantém para si, segundo Apel, “a fundação transcendental da objetividade possível” da science em geral. Isso possibilita postular a correção empírica das proposições. 107 A terceira transformação é a fusão dos princípios da ciência em uma “fé prática”, concernente à rejeição de Peirce à distinção que Kant faz entre razão prática e teórica. De acordo com Apel, como o processo histórico de conhecimento, que é um processo de interpretação, “implica, para ele, no engajamento moral e social da community of investigators, destaca-se que há um objetivo a ser alcançado. Por causa do
105
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000, p. 199. 106 APEL, Karl-Otto. Paradigmas de Filosofía Primera. Prometeo Libros: Buenos Aires, 2013, p. 323; veja-se também: Karl-Otto Apel. Understanding and Explanation: A transcendental-pragmatic perspective. Translated by Georgia Warnke. Mit Press: Massachusetts, 1984, p. 36. 107 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 200.
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falibilismo ou melhorismo das convicções”, 108 cujo fim do processo se situa no futuro. Deste modo, portanto não se pode admitir essa distinção. O mesmo ocorre com a diferenciação entre os princípios regulativos e postulados morais kantianos. A motivação está na acepção de que o processo cognitivo acaba por ser um processo social, “cuja saída factual é incerta”, e é ao mesmo tempo objeto da lógica e da ética. 109 Apel afirma que, para Peirce, “do ponto de vista da práxis, exige-se ao menos a identificação, postulada por via lógica, do indivíduo com o interesse da indefinite community”.110 Explicação: do engajamento social espera-se, dos seres humanos, a racionalização dos comportamentos. A lei moral só se transmuta em dever-ser (sollen), para o ser que se constitui de razão e sensibilidade, de liberdade e de necessidade [...] somente o ser cuja vontade pode ser perturbada pelos impulsos e inclinações sensíveis pode ser destinatário de um comando que se expresse na forma imperativa: ‘tu deves’. 111
Encontramos nesta transformação, como consequência, o socialismo lógico de Peirce em confronto com o solipsismo metódico: quando cada ser humano entende-se existencialmente livre e consciente. E enquanto sujeito integrado (co-sujeito) a um corpo social histórico, resolve agir em colaboração. Quem quer se comportar de maneira lógica, no sentido da lógica sintética da experiência possível precisa sacrificar todos os interesses particulares de sua finitude, até mesmo o interesse existenciário [...] pela salvação de sua alma, e fazê-lo em prol do interesse da “community ilimitada” que pode, só ela, alcançar o objetivo da verdade.112
Nas palavras de Peirce, aquele que não sacrificaria a própria alma para salvar o mundo inteiro, tendo a chance e condições, havendo esperança de sucesso, age ilogicamente já que está no mundo. Conforme o princípio do socialismo lógico de Peirce.113
108
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000, p. 201. 109 Idem. 110 Idem. 111 SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant: Seu fundamento na liberdade e na igualdade. Editora da UFMG: Belo Horizonte, 1986, p. 211. 112 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 201. 113 PEIRCE, C. Sanders. Collected papers of Charles Sanders Peirce. 8 v. C. Hartshorne, P. Weiss e A Burks Cambridge, Harvard University Press, 1931-1958, 5.354.
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Para Peirce, como explicita Vidal, o caráter social do conhecimento convém na aceitação de uma regra, entendida como própria pelo investigador da realidade. O comportamento, então, não pode ser outro senão assimilá-la de maneira que a realidade vale tanto para si quanto para outros no interesse da meta de alcançar a verdade. Isto supõe dar um passo a mais que Kant, já que não é suficiente com Kant afirmar que o uso teórico da razão precisa da razão prática para alcançar os fins que lhe competem, senão que não se pode falar em alcançar nenhuma verdade teórica se não é desde o pressuposto da aceitação de certo compromisso prático cristalizado nas normas éticas do socialismo lógico. 114
Na perspectiva de Apel, o cientista, na teoria peirceana, imbuído do interesse de alcançar a verdade científica, dispõe-se a atitude moral de autorrenúncia (selfsurrender) em reconhecimento da humanidade no marco do progresso teleológico. Isto porque um co-sujeito se identifica com o interesse da comunidade indefinida em um processo indefinido de pesquisa. Aos envolvidos resta esperar a racionalização das formas de comportamento, consoante o imperativo categórico de Kant.
2.3 O a priori da comunidade de comunicação Com a reviravolta linguística, a filosofia se vê renovada pelas condições de possibilidade da argumentação com sentido e validade. Na contemporaneidade, a intenção é viabilizar o acordo mútuo intersubjetivo quanto à verdade das orações. Como não se pode mais voltar atrás no processo histórico da justificação de conceitos da filosofia, diante das reavaliações que se fez da Tradição, e os novos conceitos introduzidos, Apel se vê obrigado a dar conta da filosofia primeira e reclamar o lugar da filosofia na contemporaneidade. Apel está consciente de que mundo já não é mais o ser-aí das coisas, no sentido das ciências naturais, com o qual se deparou Kant, mas a situação inteira de um ser-nomundo, como colocou Heidegger. Um mundo que agora podemos participar através do compreender linguístico.115 Antes, a Tradição tematizou a tarefa de fundamentação junto à certeza da consciência, que jaz relativizada pela ciência contemporânea. Mas, com o surgimento da
114
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p.73. 115 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 125.
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semiótica, pois do signo se tem apenas hipóteses, do “desembaraçar” argumentativo desencadeia-se a clareza sobre as definições, acerca dos princípios da razão argumentativamente.116 Para Apel, a certeza é característica da auto-reflexividade moderna. 117 Antes, a certeza se deu com o cogito cartesiano e com a consciência kantiana e Husserl empreendeu o método de redução fenomenológica se servindo dela também, como recurso a um ponto irreversível da consciência transcendental. Isso nos leva à perspectiva apeliana sobre o a priori reflexivo e o da consciência. Este se confronta com o a priori pré-reflexivo do sentido, que se consolida na esfera prática. De acordo com Apel, o a priori pré reflexivo precede ao da consciência, isto é, àquele que trata da validade, e por sua vez, possibilita a reconstrução racional. Como não é possível ultrapassar o a priori reflexivo, não é possível alcançar a “destranscendentalização”; e com a tematização do a priori pré reflexivo, restou a Apel a demanda de rediscutir a ética na contemporaneidade. 118 Do ponto de vista apeliano, é patente que a filosofia moderna da consciência não será superada na totalidade, mas a transformação da filosofia rompe com o modelo bivalente. Isso condiz de uma filosofia que não concebe a reflexão como objeto. Não para tentar responder à pergunta renovada. Não obstante, em Apel, manter-se-á o senso que o a priori pré-reflexivo se antecipa ao a priori reflexivo. Embora deste dependa para que haja a efetivação da constituição de sentido. Nisso, denota-se o aspecto dialético entre a priori reflexivo e o a priori pré-reflexivo. No entanto, Apel insiste em manter a prevalência da práxis social, típico do dito popular “primum vivere, deinde philosophari” na problemática da fundamentação de sentido.119 A abertura à experimentação existencial que se dá em vista da reflexão dialética, possível à comunidade de comunicação como novo sujeito transcendental, enfatiza o a priori linguístico. Este se dá pela reflexão mediada por signos, pressuposto na realização corporal da linguagem. Para que os objetos da cognição possam constituir-se, os próprios signos já estão pressupostos como condição de possibilidade de toda intenção de sentido. Por outro lado, no entanto, a linguagem – como 116
PEIRCE, Charles Sanders. Escritos Coligidos (Coleção Os Pensadores). Editora Abril Cultural: São Paulo, 1983, p. 58. 117 APEL, Karl-Otto. Semiotica Filosofica. Almagesto: Buenos Aires, 1994c, p. 155. 118 Ibidem, p. 155-6. 119 Idem.
60 instrumento signico – não pode ser reduzida às condições lógicas conscienciais da cognição. Mais que isso, a linguagem [...] remonta a um a priori subjetivo e particular para o qual deixou de se atentar na epistemologia vinculada a Descartes. Gostaria de denomina-lo “a priori corporal” [Leibapriori] do conhecimento.120
Apel, influenciado por Peirce, está convencido de que a interpretação do conhecimento acontece graças à mediação do sinal (Zeichen) linguístico. Para ele, essa interpretação só é possível por causa do ser humano, cognitivamente e corporalmente situado e engajado no mundo. É o ser humano que identifica e interpreta os próprios sinais corpóreos (no todo encarnado do eu existente) e também os sinais da conjuntura do mundo, com o qual se depara (e se percebe como parte da totalidade existente). De acordo com Apel, o a priori corporal e o da consciência se complementam no todo da cognição sem que haja supremacia de um sobre o outro na consumação do conhecimento. Segundo Apel, o conhecimento não deve ser separado em reflexivo e de engajamento. A experiência, na totalidade, é composição teórica e experimental, no engajamento.121 Apel está convencido de que o rival que se apresenta ao a priori da consciência acaba por ser o a priori semiótico (pragmático) transcendental da mediação do pensamento intersubjetivamente válido. Ou mais especificamente, o a priori da linguagem, por ter associado o a priori pré-reflexivo da vida prática e o a priori de reflexão sobre a validade. Este a priori da linguagem, portanto, da comunidade ilimitada, se corresponde com a pré-compreensão do mundo da vida e sua dimensão pré-hermenêutica.122 Consequentemente, Apel sustenta que o a priori da linguagem é emblemático para a hermenêutica, já que ele é resultante da passagem da subjetividade para a intersubjetividade, pois nele se efetuou uma Absorption do a priori da consciência, unindo-o com o a priori da pré-reflexão. A linguagem, a priori pragmático transcendental da argumentação própria da instância última da pretensão de sentido e de validação do sentido, faz, por isso mesmo, jus à condição de transcendental, metainstituição de todas as instituições.123
120
APEL, Karl-Otto Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 115. 121 Idem. 122 APEL, Karl-Otto. Semiotica Filosofica. Almagesto: Buenos Aires, 1994c. p. 155-7. 123 APEL, Karl-Otto. El Camino del Pensamiento de Charles Sanders Peirce. Gráficas Rógar/visor: Navalcarnero (Madrid), 1997, p. 238.
61
Pensar assim permitiu duas modificações, por parte de Apel, que se mostram como: 1) reorganização do conceito de logos da Tradição,
indicado na
contemporaneidade como o fato da razão dialógica,124 enquanto discurso argumentativo; e, 2) dadas as condições pragmático-transcendentais, no âmbito da semiótica, a linguagem natural seja defendida no ápice da prima philosophia. Do conceito transcendental-hermenêutico já entendemos de Wittgenstein que uma pessoa sozinha, nem mesmo uma única vez, não pode seguir uma regra.125 E que a validação de argumentos não pode ser testada sem que se pressuponha um outro argumentante. Sobre isso, Apel afirma “mesmo o pensador realmente solitário só pode explicar e testar sua argumentação à medida que logra internalizar o diálogo de uma comunidade de comunicação potencial no diálogo crítico da alma consigo mesma”. 126 E nisso está, a princípio, que a validade do pensamento é dependente de justificação de enunciados. Tal como a comunidade de argumentação real, também a justificação lógica do nosso pensamento pressupõe o cumprimento de uma norma moral básica. Mentir, por exemplo, certamente tonaria impossível o diálogo entre os argumentantes; e o mesmo também vale quando se fala da recusa ao acordo crítico, isto é, à explicação e justificação dos argumentos. Em suma: pressupõe-se na comunidade de argumentação o reconhecimento recíproco de todos os membros como parceiros de discussão com direitos iguais para todos. 127
Portanto, a exigência de uma ética mínima é evidente se distinguirmos a questão enquanto atos de fala, 128 conforme a teoria de John Searle (1932–. ). Então, para Apel, “o diálogo entre argumentantes é feito não apenas de enunciados valorativamente
124
APEL, Karl-Otto. Estudos de Moral Moderna. Vozes: Petrópolis, 1994b, 155. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. 2ª Ed. (Coleção os Pensadores) Abril Cultural: São Paulo, 1979, § 199. 126 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 451. Em Wittgenstein, “seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez são hábitos (costumes, instituições)”. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. 2ª Ed. (Coleção os Pensadores) Abril Cultural: São Paulo, 1979, § “O que acaba estando virtualmente implícito na norma básica do reconhecimento recíproco entre os parceiros da discussão é a norma do “reconhecimento” de todos os seres humanos como “pessoas”. APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 453. “o a priori da comunidade de comunicação se converte no ponto de partida para uma ética do discurso”. HABERMAS, Jürgen. Un Maestro com sensibilidad hermenéutica: La trayectoria del filósofo KarlOtto Apel. In: REVISTA ANTHROPOS: Hellas del conocimiento. Karl-Otto Apel: Una ética del discurso o dialógica. Barcelona: Nº 183, marzo-abril, 1999, p. 22. 127 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 452. 128 SEARLE, John R. Os Atos de Fala: Um ensaio de Filosofia da Linguagem. Livraria Almedina: Coimbra, 1981, p. 23. 125
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neutros sobre estados de coisas, mas que esses enunciados estão vinculados, ao menos implicitamente, às ações comunicativas” 129 pressupostas na pragmática. Consoante a isso, para Apel “entende-se que as línguas não são meios para se representar a verdade já conhecida, mas sim, para se descobrir a verdade que não se conhecia previamente”,130 haja vista que a justificação pressupõe “contrafaticamente”, na reflexão pragmático transcendental do ato de argumentar, o factum da argumentação. E este factum da argumentação, inerente ao a priori da argumentação, considera que o outro é capaz de alcançar a verdade, ou de chegar a resultados verdadeiros. 131 Nos discursos práticos há a previsão de que os sujeitos são convocados a testar os enunciados no mundo da vida, pois, quem argumenta já considerou uma pretensão de verdade. Ao se operar até as últimas consequências a transformação da filosofia da consciência, Peirce radicaliza a integração da linguagem à consciência, cuja temática abrange, na circunscrição do pensamento semiótico, um giro na filosofia contemporânea. Em busca do análogo ao ponto irreversível cartesiano, ou ao ponto mais alto da interpretação na unidade semiótica da interpretação consistente, a tese que Apel leva adiante é que a transformação da filosofia pode ser entendida como uma transformação semiótica da lógica transcendental de Kant.132
2.4 Transformação semiótica de Kant por Peirce De acordo com Apel, o método de investigação peirceano propicia a unidade objetiva das representações da consciência ser representada intersubjetivamente por meio de signos. Assim, ele inaugura uma transformação da filosofia transcendental kantiana. Baseada no signo triádico, neste caso, a semiótica por isso mesmo abarca a cognição e a racionalização comunicativa efetivamente consistente.
129
APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 453. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I. Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. Edições Loyola. São Paulo, 2000. p. 123. 131 MOREIRA, Luiz (org). Com Habermas, Contra Habermas: Direito, discurso e democracia. Landy Editora: São Paulo, 2004, p. 13, 104. 132 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 189, 193. 130
63
Sob este aspecto, trata-se então de uma crítica de sentido na análise de signos. Já que para Peirce “todo pensamento é um signo”,133 a cognição constitui-se no processo triádico, isto é, na significação de sinais ou signos da linguagem (parte transcendental). E também coerente interpretação feita por pessoas, mediante as observações empíricas (parte pragmática), pois o único meio de um pensamento “ser conhecido é o pensamento formulado signicamente (parte semântica). Mas o pensamento que não pode ser conhecido não existe. Todo pensamento, consequentemente, deve formular-se necessariamente signicamente” (sintaxe). 134 Logo, de acordo com Peirce, os signos estão no processo do pensamento e simultaneamente produzem efeito cognitivo no intérprete de signos,135 por exemplo, no caso de um observador um signo mental. 136 Com efeito, segundo Apel, devido à insuficiência sintático-semântica redutora da lógica transcendental à relação bivalente (sujeito-objeto), é preciso correção complementar por uma lógica da linguagem137 mais abrangente. O intuito é responder a pergunta pelas condições de possibilidade da validade do conhecimento. Na interpretação de Karl-Otto Apel, no entanto, o empreendimento semiótico deixa de lado “a pergunta kantiana pelas condições de possibilidade e de validade da cognição pela pergunta sobre a possibilidade de um acordo mútuo intersubjetivo quanto ao sentido e à verdade de proposições ou sistemas proposicionais”. 138 Assim, Peirce sai da elementar formalização sintática de teorias e relações semânticas com fatos, da moderna logic of science. 139 Apel nos esclarece que, quanto à lógica transcendental de Kant, Peirce não sugere, e isso de modo algum, suficientemente substituível pela lógica formal dedutiva dos símbolos conceituais e enunciativos.
Por outro lado, a partir do filósofo de
Königsberg, Peirce fundamenta uma lógica sintética de pesquisa. 140 A finalidade é
133
PEIRCE, C. Sanders. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. 8 v. C. Hartshorne, P. Weiss e A Burks Cambridge, Harvard University Press, 1931-1958, 5.235; 2.228. 134 PEIRCE, C. Sanders. Collected Papers of Charles Sanders Peirce. 8 v. C. Hartshorne, P. Weiss e A Burks Cambridge, Harvard University Press, 1931-1958, 5.251. 135 Ibidem, 5.484. 136 Ibidem, 5.291. 137 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000, p. 181. 138 Ibidem, p.186. 139 Ibidem, p.187. 140 Idem.
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vincular
estímulos
sensitivos
aos
conceitos
ou
juízos,
complementarmente.
Assegurando-se a semiose141 como o “ponto mais alto” de uma lógica de pesquisa. Nessa lógica de pesquisa, segundo Apel, exige-se que o sentido conceitual adequado seja aprofundado na representação das consequências que derivam de uma compreensão normativa correta de um sentido. Para tanto, Peirce faz a seguinte recomendação:
“considere quais
efeitos,
que concebivelmente poderiam ter
consequências práticas, concebermos o objeto de nossa concepção. Então, a concepção destes efeitos é o todo de nossa concepção do objeto”.142 Aí está a antecipação contrafática, melhorista da parte de Peirce. Segundo Apel, a recomendação normativa, por parte de Peirce, cuja função é guiar o pensamento até atingir a finalidade do propósito, procede enquanto método na crítica de sentido, para um claro alcance da compreensão.143 Uma vez que na semiose um signo tem a mesma definição de medium de comunicação. Apel acrescenta que “a aplicação da máxima pragmática de explicação do significado, tal como compreende Peirce, pode dar um princípio regulador que vai além da
evidência
conceitual”,
144
empírica
fenomenal,
conduzindo
à
verdade
da
incluindo os hábitos (habits) que comportam uma crença.
interpretação
145
Na semiótica, que Apel chama de filosófica, “o signo representa para um interpretant algo diferente em certo aspecto ou qualidade” 146 para alguém. De modo que o intelecto do intérprete é concebido como rede contínua de interpretants, imbricada em interpretações com interpretações históricas. O conhecimento do real, por princípio, não aparece aqui como intuitivo, mas mediado por signos, que, de acordo com Vidal, “é a mediação de uma opinião 141
Semiose é o termo usado por Peirce para se referir às interações entre os signos, identificáveis no processo de interpretação do sentido por pessoas, cuja comprovação deles só é possível por causa do caráter linguístico da reflexão humana. 142 Veja-se: "How to Make Our Ideas Clear" (Popular Science Monthly, v. 12, pp. 286–302. Reimpresso e incluído in: Collected Papers of Charles Sanders Peirce ). PEIRCE, C. Sanders. Collected papers of Charles Sanders Peirce. 5 v. C. Hartshorne, P. Weiss e A Burks Cambridge, Harvard University Press, 1931-1958, 3.266. 143 APEL, Karl-Otto Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 197. 144 APEL, Karl-Otto et all. Le Partage de la Verité: Critiques du jugement philosophique. Éditions L’Harmttan: Paris, 1991, p. 99. 145 Aqui levamos em conta o termo “crença” como o respeito por uma regra de comportamento. Peirce terá também o termo em duas outras acepções: aquilo na consciência subjetiva; aquilo que possibilita nos tirar do sossego e gerar dúvidas, em vista da praticidade do que seria a verdade. Para o norte americano, as disposições comportamentais (habits) devem equivaler com o significado do conceito, e não aos fatos observáveis e condicionáveis causalmente, para que seja possível alcançar o critério pragmático da verdade. PEIRCE, Ch. S. Op. Cit., 5. 397; 5.400. 146 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000b, p. 194.
65
(“opinion”, “belief”) consistente sobre o real” 147 que apenas referencia o conhecimento possível. Acerca da mediação significa, Vidal enfatiza que “o conhecimento se realiza desde três categorias, ou conceitos fundamentais, para integrar a síntese dos dados sensoriais plurais em uma unidade consistente”. 148 Para Adela Cortina essa unidade consistente é constituída exatamente de usuários de signos do real149, portanto, de intérpretes dos signos dos objetos. Para Apel, assim como é para Peirce, o interpretant, signo que conduz então a outro interpretant, constitui o mundo que se dissolve em signos (“signs about signs about signs”). Consequentemente em Peirce, segundo Apel, o próprio homem, no processo infinito de interpretação (semiotic turn) surge como um signo,150 um ser semiótico. De acordo com Apel o objeto, aquilo que se tem a mente num “determinado momento”, são para um intérprete de signos de dois tipos: imediato (válido agora); e dinâmico (em longo prazo). E os interpretants, sinais que se entrelaçam na tessitura do mundo correspondentemente, a saber, são de três tipos: o interpretant lógico (conceitual), energético (ação particular), e o interpretant emocional. Para Apel, diante dessa perspectiva em que se encontram os objetos e os signos, Peirce divide então as categorias em três, com o nome de phaneroscópicas. 1) a qualidade, carente de relações; 2) a relação diádica, entre o signo e o objeto; e 3), e a relação triádica, originada da lógica transcendental.151 A qualidade, chamada de firstness, expressa algo como algo em seu ser-assim, e se corresponde com o tipo sígnico ícone. Nesta firstness, o ícone está implícito em todo predicado de um juízo experiencial. Segundo Vidal, para Peirce, “esta categoria do conhecimento consiste em integrar a síntese da representação (representation) ao conteúdo do mundo”152 da experiência.
147
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p.66. 148 Ibidem, p.67. 149 CORTINA, Adela. Rázon Comunicativa e Responsabilidad Solidária: Ética y política en K .-O Apel. 2ª Ed. Sígueme: Salamanca, 1988, p. 73. 150 APEL, Karl-Otto. Semiotica Filosofica. Almagesto: Buenos Aires, 1994c, p.168-7. 151 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 194-5. 152 VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p.67.
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É a firstness o primeiro processo da consciência (ao acaso), realizado no “agora”, em que predomina a representação psíquica a ser ordenada. Na síntese da representação, o ícone faz com que se integre o teor imagético de uma qualidade universal. Para Peirce, segundo Apel, a relação diádica, ou secondness, se corresponde com o índice. Este tem a função de representar pronomes e advérbios (deiktikós) no juízo experiencial, garantindo a identificação espaço-temporal dos objetos, que são atribuídos de predicados. Para Vidal, esta é uma categoria de confronto entre sujeito e objeto. 153 Apel afirma que na secondness (existência), realidade e existência são idênticas. Dela se afirma a tomada de consciência do outro, do que existe ante ao sujeito, na qual pensamentos ou ideias referem-se às exigências gerais reais, exteriores à mente. Contudo, é necessária toda uma comunidade de investigadores para testar objetivamente a veracidade de qualquer ideia.154 Com a thirdness (lei), faz-se a relação de identidade entre pensamento e existência, de modo que o signo representa à mente algo exterior a ela. É nesta categoria que se afirma a inferência de significados. Entende-se que nela há a reação humana à realidade histórica. Concebendo-se para o humano, enquanto autoexigência, respostas sígnico-interpretativas do mundo sobre o mundo, conforme Vidal: Esta categoria implica mediação da indicação de existência e as expressões icônicas qualitativas das coisas em uma hipótese (inferência abdutiva), o que conduz à formação simbólico-predicativa de uma síntese de algo como algo. Precisamente porque a linguagem é simbólica e porque os símbolos tem o caráter de uma síntese mediadora [...], todo uso linguístico pode ser entendido como um processo abdutivo de interpretação. 155
Apel nos esclarece que a relação denominada thirdness, “mediação sintética dos dados da experiência por meio do procedimento inferencial”, 156corresponde ao símbolo.
153
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p.67. 154 Segundo Stroh, Peirce distingue entre crença e dúvida, afirmando que a crença, no sentido que nos interessa, envolve uma regra ou hábito no qual uma pessoa está preparada para agir, enquanto uma dúvida não envolve tal regra de ação. A dúvida, porém, causadora de insatisfação, pode impulsionar o desejo de pesquisa. A dúvida genuína impulsiona alcançar a crença; a crença genuína é o fim o proposto para a pesquisa. STROH, Guy W. A Filosofia Americana. Editora Cultrix. São Paulo, 1968. p. 110-12. 155 VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 67. 156 APEL, Karl-Otto. El Camino del Pensamiento de Charles Sanders Peirce. Gráficas Rógar/visor: Navalcarnero (Madrid), 1997, p. 62.
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A principal função do símbolo, que é um signo convencional, é a síntese da representação em conceitos157 de algo como algo. Para que se possa entender em que medida essa dedução semiótica das três categorias fundamentais e dos três tipos de signo realmente contribuem para o esclarecimento das condições de possibilidade e de validade da experiência, é preciso, com Peirce, ordenar os três tipos de signos: à terceiridade corresponde a dedução, como mediatização racionalmente necessária; à secundidade, a indução, como confirmação do que é geral pelos fatos representáveis aqui e agora; e à primeiridade, a abdução, como cognição de novas qualidades do ser assim. 158
Segundo Apel, a abdução (ou hipótese) elucida a possibilidade da experiência. A indução, por outro lado, elucida a validação empírica dos pressupostos universais da experiência; se há em um juízo hipótese, pode-se fazer a dedução a partir do já constatado, isto é, empreender o sentido universal e normativo de um predicado, sob a forma de prognoses. De acordo com Vidal, Apel interpreta a interrelação entre primeiridade (firstness) e secundidade (secondness) de um lado, e terceiridade (thirdness) por outra, no mesmo sentido que Kant indicava a necessidade de uma síntese entre conceitos e intuições. Nas palavras de Apel, “a pura representação, sem índices e ícones, é vazia; os índices e ícones sem representação, são cegas”. 159 Portanto, em caso contrário a terceiridade sem as outras categorias não fariam sentido, e o signo não poderia ser medium do conhecimento ou do acordo intersubjetivo.
2.4.1 Pressupostos da fundamentação última Desde a antiguidade, a busca por princípios na filosofia a caracteriza propriamente como saber de fundamentos. Também contemporaneamente, a tarefa da reflexão dialógica na pragmática-transcendental consubstancia-se como condição de possibilidade da própria pretensão de validade e sentido dos princípios do pensar e agir humanos.
157
Para Apel, “os conceitos, porém, ficariam vazios sem a integração à função de ícone e a função de índice, assim como são vazios os conceitos não-eidéticos em Kant. Ao inverso, a função de ícone e a função de índice são “cegas” sem sua integração à função de representação”. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 195. 158 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 195. 159 Ibidem, p. 68.
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Na Tradição, com Aristóteles essa busca visa a essência (ousia) que está nas próprias coisas. Por meio da intuição, ela é acessível por princípios primeiros. Segundo Aristóteles, “é evidente que há um princípio e que as causas dos seres não são infinitas”, 160 e estas incitam os filósofos às descobertas das causas. Posicionando-se contra o cético, Aristóteles declara falta de formação filosófica ter por exigência explicação para tudo. Isso só levaria ao petitio principii. Assim, não se discute o fundamento seguro dos axiomas, 161 portanto evita-se o regressus ad infinitum. Contra a postura cética, Aristóteles se assegura do princípio de não contradição,162 por reductio ad absurdum (A e não-A). Uma prova indireta (semântica) que desvela a falsidade de antíteses, indicando a prova direta como primeiro princípio de uma ciência primeira. Para Aristóteles, o interlocutor cético que se recusa a significar algo publicamente, de modo a não admitir mais a continuidade do discurso, quer assim evitar a contradição diante de uma conditio sine qua non. Por silenciar-se, optando pela interrupção de discursos, Aristóteles o compara a uma planta.163. Na modernidade, Descartes propõe o estabelecimento da dúvida radical como método para se chegar à certeza. É confrontando-se com um deus maligno que o cogito se mostrará indubitável. Segundo Descartes, podemos duvidar de tudo, só não podemos duvidar do fato de que duvidamos. A dúvida cartesiana, no que concordam Manfredo Oliveira e Apel, levará em conta tanto a dedução quanto a indução com apelo à evidência. 164 Para Manfredo Oliveira, é preciso distinguir a diferença da evidência nas tradições racionalista e empirista. Para o racionalismo, se trata de autointuição da razão voltada sobre si mesma; e para o empirismo, a intuição está no campo da experiência
160
ARISTÓTELES. Metafísica. Gredos: Madrid, 1994, I, 2 , 994a. Ibidem, IV 4 1006 b, 28-34; IV 4 1005 b, 33-34. 162 Ibidem, I, 2 , 994a. 163 Ibidem, IV 4 1006 b, 15. 164 A situação em que se diferencia a não contradição e a autocontradição performativa obriga a pressupor a evidência empírica, nas palavras de Apel, “como indicou o próprio Descartes, a evidência de necessária coincidência entre pensamento e argumentação em minha existência” [...]. Segundo Apel, o ato de afirmação performativa “inclui um ato de minha existência e saber sobre a existência”. Essa perspectiva apeliana se contrapõe a neutralidade científica de caráter positivista. APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Paidós /I.C.E-U.A.B: Barcelona, 1991, p. 113. 161
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sensível, na esfera perceptível. Para ambas, a evidência fornece a fundamentação para conhecimento.165 O recuso à evidência não foi suficiente, na tradição empirista, para garantir a validade do conhecimento das ciências empíricas, e desembocou na tese de Hume, de que a universalidade e necessidade deste conhecimento se radicam em nossos hábitos. Assim, as sentenças básicas das ciências empíricas são pressuposições que não se provam nem analítica (demonstração lógico-formal), nem empiricamente como é o caso das próprias afirmações das ciências. 166
A objeção de David Hume, a quem Kant atribui a interrupção de seu sono dogmático, faz com que o filósofo de Königsberg examine as condições da razão pura em busca de uma resposta ao problema colocado por Hume, isto é, para saber se a razão tem a capacidade ou não de conhecer a priori. A objeção humeana, de acordo com Manfredo Oliveira, distinta pela significação empírica das ideias e a eliminação do caráter a priori do princípio de causalidade, nos mostra que o ceticismo moderno significou uma oportunidade extraordinária de autoconhecimento e consciência da tarefa específica da filosofia. 167 Desde a “revolução copernicana” não mais o objeto tradicional na metafísica clássica é o centro do conhecimento, mas o sujeito cognoscente e suas faculdades. Ao contrair um significado transcendental, a filosofia se constitui como uma forma diferente de conhecimento demonstrável. De acordo com Manfredo Oliveira, a reflexão passa a ser crítica radical da razão sobre si mesma com a pretensão de determinar a possibilidade, os princípios e a abrangência de todos os conhecimentos sintéticos a priori, isto é, os únicos conhecimentos necessários e universais que a indução não nos pode dar, e que valem enquanto condição de possibilidade e validade dos conhecimentos empíricos.168 Nas palavras de Manfredo Oliveira, “com a filosofia transcendental de Kant passa para o centro da atividade filosófica a questão da crítica do conhecimento e, consequentemente, a ideia de uma fundamentação última como aquilo que precisamente
165
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Sobre a Fundamentação. 2º Ed. EDIPUCRS: Porto Alegre, 1997, p. 25. 166 Idem. 167 Idem. 168 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Para Além da Fragmentação: Pressupostos e objeções da racionalidade dialética contemporânea. Edições Loiola. São Paulo, 2002, p. 102.
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distingue a filosofia”.169 Diferente de outros conhecimentos, caracteristicamente a fundamentação não empírica do conhecimento é tarefa filosófica. Nos deparamos com três dificuldades, embora o novo tipo de demonstração tenha pretendido garantir a segurança e autocontrole da razão. Kant as admite: é “por possuir a propriedade especial de tornar possível o fundamento da sua própria prova, a saber, a experiência e nesta deve estar sempre pressuposta” (B 765/A 737), que o cerne do empreendimento kantiano é um raciocínio no modus ponens. Portanto, se radica em pressupostos não demonstráveis. 170 Para Apel, essas dificuldades que se denotam na circularidade, e que Peirce já se havia recusado a incluir na semiótica, como occult transcendentalism,171 de acordo com Manfredo Oliveira, apresentam-se em Kant porque ele 1) outorga as próprias leis lógicas; 2) a experiência só é
possível, para pressupor a validade das sentenças
sintéticas a priori, contanto que se pressuponha a validade da experiência; e, 3) se não há conformidade com as categorias (x), a experiência (y) está fora de questão. Em concordância com a Tradição, entendemos que é pacífico o entendimento de que (A) provar por dedução não é característico da filosofia. Isto é, a dedução não viabiliza o conhecimento dos princípios, mas de dogmas, pois o procedimento filosófico, de outro horizonte, aparta-se distinto do tipo de recurso dedutivo. Não obstante, a filosofia pretende, portanto, o último fundamento como especificidade autocrítica da demonstração reflexiva. E por isso mesmo que também (B) a Tradição rejeita o recurso à evidência empírica como critério. Em outras palavras, isso não é levado em conta na demonstração filosófica. Ora, o filósofo pragmático-transcendental também se depara com adversários. A propósito, ressaltarmos que a fundamentação apeliana não se compara ao que pretendem seus contemporâneos Karl Popper (1902-1994) e Hans Albert (1921-), céticos quanto à fundamentação filosófica na contemporaneidade.
169
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. Cit., 1997, p. 25. Raciocínio no modus ponens: x = a validade objetiva das categorias; y = possibilidade das experiências. Se não x, não y; ou, se y, então x. Ora y, então x. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. Cit., 1997, p. 29. 171 A aderência de Peirce à reviravolta copernicana reporta-se ao princípio máximo dos juízos sintéticos. No entanto, o occult transcendentalismo pela circularidade, segundo Apel que o próprio Kant tinha consciência, é recusado. Isso se deve ao procedimento, que na síntese transcendental da apercepção, não mostrou diretamente a referência à unidade da consistência que possibilita justamente os objetos intersubjetivamente válidos. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 192. 170
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Importa lembrar que o ceticismo é consequência necessária do posicionamento dogmático do qual não se tira das sentenças nenhum conhecimento objetivo absoluto. Para Manfredo Oliveira, “essa epoché deve garantir aquela ataraxia buscada e que é sentida, com certeza, como telos da vida humana. O cético exige renúncia à pretensão de objetividade e a retirada para a autocerteza da própria subjetividade”, 172como alternativa. Conforme Manfredo Oliveira, “a suspensão do juízo” (epoché) com relação à verdade das proposições aponta que o desafio é encontrar a contradição no ceticismo, “o conflito de opiniões que pretendem ser verdadeiras e são contraditórias entre si”. 173 No entanto, o surgimento de opiniões conflitantes para o cético devem ser apaziguadas de forma a evitar a contradição e tranquilizar a alma (ataraxia). Contra Apel, as objeções colocadas pelos representantes do racionalismo crítico circunscrevem-se num sistema axiomático, porém, a fundamentação de Apel, ao contrário, não é ‘‘a partir de’’ princípios, como é na lógica formal. Todavia, é uma demonstração ‘‘de’’ princípios,174 uma vez que a fundamentação filosófica precede a dedução. Popper, que retoma de Hume as críticas ao princípio de indução, acentua o caráter do conhecimento científico provido de testes e teorias. Dependente de críticas recíprocas, e constantes, às regras de um “jogo aberto científico” estabelecido pelos próprios participantes. Por conseguinte, de acordo com Manfredo Oliveira, a tese de Popper é a impossibilidade de derivar conhecimentos seguros de certezas últimas. 175 Apel destaca, a respeito da autorreflexividade, que a intenção de Popper não é, explicitamente, o critério para o sentido das sentenças. Ele quer elevar terminantemente o conhecimento científico como o mais coerente. Por conservar as tentativas de falseamento ou o teste de resistência das teorias. Até que se dê o surgimento de outras melhores. E ainda, o que o torna mais contundente, não ser possível a fundamentação do conhecimento científico pela filosofia.
172
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Para Além da Fragmentação: Pressupostos e objeções da racionalidade dialética contemporânea. Edições Loiola. São Paulo, 2002, p. 98. 173 Idem. 174 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 279. 175 Para Manfredo Oliveira, “o ponto de partida do jogo é o estabelecimento de hipóteses e seu teste na experiência através de observações e experimentos”. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Op. Cit., 2002, p. 48-9.
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Apel argumenta que a questão problemática é que o posicionamento popperiano precisa reconhecer a posição dogmática tão legítima quanto é a própria. 176 E, enquanto diferente, a posição do racionalista crítico seria, por assim dizer, uma “decisão moral e irracional”, que, segundo Apel, corresponde a um “ato de fé” diante das alternativas. Apel enfatiza que é isso, ou Popper se reconhece como um obscurantista (ou ceticismo existencial) 177 por rejeitar regras públicas e racionais do diálogo crítico. Para Apel, disso ele não discorda pela posição que assumiu. Diferente de Popper, a posição de um falibilismo ilimitado deve ser autoaplicável, de acordo com Apel. Então é preciso submeter à crítica inclusive a própria posição, já que se considera tudo como hipótese. Sobretudo porque o posicionamento falibilista tem de apresentar uma pretensão de verdade criticável. No caso de Popper, por assim dizer, por ele mesmo já refutável. Mas o falibilismo de Peirce, o qual Apel adere, considera importante uma reserva de certeza. Mesmo considerando que a hipótese poderá ser refutável algum dia Apel julga que é preciso que se tome decisões no agora, in loco. Diante das circunstâncias e dos critérios disponíveis pelo “momento”, Apel não pode abdicar da pretensão de verdade com reserva de certeza, justificadamente. Assim, o filósofo pragmático transcendental se coloca contra o cético como argumentante sério num instante de decisão. Apel está ciente que, de fato, o argumento racional não tem efeito para quem não quer assumir um posicionamento racional. De acordo com Apel, para consolidar legitimidade ante ao ante ao posicionamento dogmático, mesmo deslocado, Popper quer se valer dos riscos ou consequências práticas que não mudam em nada, no caso de uma “escolha irracional” (não argumentativa) dogmática. Entendemos que o argumento apeliano esclarece que apenas ser unilateral, supostamente, levaria Popper à vantagem (a bem da vontade) para legitimar a posição do racionalismo crítico melhor que a de um obscurantista. Mas acontece que Apel identifica no posicionamento popperiano uma reunião do pathos ético religioso com o solipsismo metódico. Ora, isso é refutável pela reflexão acerca das condições de possibilidade linguísticas. Quem argumenta seriamente não pode se furtar de justificar suas decisões.
176
APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Barcelona: Paidós /I.C.E-U.A.B., 1991, p. 117. 177 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 371-2.
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Logo, o argumentante sério não deve paralisar o agir diante do cético mesmo em caso de silêncio. Isso se for possível pensar e decidir, insiste enfaticamente Apel: Uma tal decisão irracional, que de fato não pode ser evitada com argumentos, tem mesmo que ser levada em consideração como argumento, no contexto da pergunta sobre uma autofundamentação possível do racionalismo crítico? – Sou da opinião que ela, como possibilidade de desligamento em relação a um jogo de linguagem argumentativo, precisa ser levada a sério quando se trata de responder a pergunta sobre a possibilidade de operar a efetivação prática da razão tão só por meio do raciocínio. Aí de fato a boa vontade deve apresentar-se como bom argumento. 178
Na visão de Apel, a solução dada por uma fundamentação última está situada fora do pensamento dogmático. Em outras palavras, resistente ao trilema de Münchhausen, deduzido de Hans Albert,179 capaz de frustrar todas as tentativas de fundamentação. No trilema, ao se afirmar que o homem se equivoca sempre pode se dizer que a pragmática transcendental também poderia ser equivocada, questiona Apel. Já é suficiente que por este pressuposto idealizador se pode compreender que fundamentar significa derivar de outra coisa, – o trilema de Münchhausen – deduzido por H. Albert, se infere com necessidade. Este argumento capital é incompatível com as teses de que, possivelmente, o homem se equivoca sempre, e por assim dizer, em todos os casos. Em suma: a suposição de um deus malignus que sempre nos engana é refutável desde a crítica de sentido. 180
Para que um recurso falibilista, proposto por Popper e Albert, seja aceitável, o ceticismo recorre ao princípio de não contradição. Para Apel, eles o fazem embasados na dedução, de modo a validar os próprios critérios. Ora, o cético não pode se autocontradizer. E é aí que está a fragilidade diante do Trilema de Münchhausen, haja vista que a aplicação de enunciados deve valer para todos, em todos os casos. Notamos que, o racionalismo crítico se identifica com a racionalidade científica,181 que se julga capaz de afirmar o êxito e determinar a melhor explicação. Diante do pluralismo teórico, a capacidade de crítica mostra-se rechaçável. Por ter como 178
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 373. 179 APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Paidós /I.C.E-U.A.B., 199: Barcelona, p. 113. 180 Neste excerto nota-se a preocupação com o conhecimento imediato (sujeito-objeto), a alternativa para “fundamentações” (auto fundamentações) está na parada dogmática, já que a petitio principii e o círculo lógico estão fora de questão. A falácia abstrativa é evidenciada ao se denotar que a verdade da conclusão é consequência da verdade das premissas. APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Paidós /I.C.E-U.A.B., 199: Barcelona, p. 113. 181 Veja se mais sobre os tipos de racionalidade em VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 202-2013.
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característica justamente o que critica, ou seja, a determinação. Além de requerer para si autoridade de fundação. Inevitavelmente, o processo lógico-dedutivo de premissas válidas e conclusões derivadas conduz ao trilema. Frente a ele é preciso assumir as seguintes alternativas: a 1) petição de princípio; 2) o círculo lógico; ou 3) a parada dogmática. Nisso, Albert reconhece que a fundamentação em processos lógico-dedutivos é um problema que consumiu os esforços da lógica da ciência moderna. 182 Porém, por este motivo Apel recusa a falácia abstrativa e não julga suficiente a sintática e a semântica. O filósofo pragmático transcendental sabe que isso só o levaria ao paradoxo do barão mentiroso. A opção apeliana pela pragmática é radical ao recusar a derivação e alçar o recurso à evidência empírica. Contrariando a Tradição, Apel faz isso de maneira a levar à sério a situação contextual de argumentação. Diferente do que fazem Popper e Albert, exatamente na linha solipsista e autônoma da razão moderna. Apel está consciente do dilema. Se ele não pode cair em contradição por negar algo, e nem fundamentar com petitio principii, o caso de recorrer à evidência empírica se torna paradigmático na concepção pragmático-transcendental, de fundamentação reflexiva. De acordo com Apel, a complementariedade entre lógica e evidência corresponde dialeticamente à exigência do jogo transcendental de linguagem. De modo que o compreender hermenêutico, de acordo com Apel, está situado numa “esfera comum da vida”. E inicia “com a confrontação [Auseinandersetzung] de dois horizontes que ao mesmo tempo já pressupõe como condição de possibilidade uma unidade transcendental de interpretação”,183 possibilitando a síntese do acordo mútuo não criticável. No sentido de instâncias entretecidas no jogo de linguagem da filosofia, isto é, os consensos ideal e o fático, a reflexão hermenêutico-transcendental visa o consenso ideal último contrafaticamente, que pressupõe o consenso fático comunicativo na comunidade real. Pois, de acordo com Apel, tem-se como exigência da razão a fundamentação última que não se resigna tão somente à evidência, e ainda considera outros sujeitos capazes de atestar ou contra argumentar justificações.
182
ALBERT, Hans. Tratado da Razão Crítica. Trad. Adalina A. da Silva, Erika Gudde e Maria J. P. Monteiro. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1976, p. 25. 183 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 291.
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2.4.2 A fundamentação última de Apel A pragmática-transcendental confronta o aspecto semântico da filosofia analítica ao criticar a redução da argumentação à lógica formal. Ao elenco de conceitos, hipóteses, frameworks, recurso a premissas, pressupostos que desconsideram a dimensão performativa, isto é, justamente a dimensão que contextualiza o jogo de linguagem. Na redução não só incorreram Popper184 e Albert,185 que afirmam o falibilismo contraditoriamente como crítica radical do conhecimento dogmático, mas também a Tradição. A aceitação do conceito de linguagem da Tradição implica ser coerente com um conceito de linguagem útil para a ciência e a tecnologia em constante interferência direta no mundo e nas relações humanas. Apel se reporta a um falibilismo limitado, diferente do que propõe a escola popperiana. Deseja-se um melhoramento um aperfeiçoamento contínuo, tanto que, para o frankfurtiano, os conhecimentos precisam ser vistos como propostas numa colaboração. A intenção é a corrigibilidade das teorias científicas factualmente alcançáveis, pressupondo o falibilismo como um princípio regulador, já que, para Peirce, “na teoria do falibilismo científico se atribui a ideia reguladora de um progresso teleológico da verdade”,186 válida em comum. Em Apel, não se pode negar que a evidência extralinguística é prévia consideração “irretrocedível” para o consenso, isto é, a possibilidade do consenso já está interpretada previamente. Como tal, também leva em conta as normas contextuais presentes no discurso argumentativo. Como ponto de partida, portanto, Apel, baseandose no factum transformado de Kant, afirma que o a priori da argumentação não admite prova condicional. De acordo com Manfredo Oliveira, a estratégia então está em transformar um juízo condicional em juízo categórico. Corrigindo-se o y do modus ponens, que passa a ser um pressuposto ineliminável e irrecusável na argumentação. Deste modo, x não é mais condição necessária para a experiência. Antes, é passível de renúncia cética. Destarte, para Manfredo Oliveira, “aqui se trata da fundamentação discursivoreflexiva de evidências de que não se pode duvidar sem autocontradição (inconsistência 184
POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Edusp: São Paulo, 1987, p. 44. ALBERT, Hans. Tratado da Razão Crítica. Trad. Adalina A. da Silva, Erika Gudde e Maria J. P. Monteiro. Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, 1976, p. 25. 186 APEL, Karl-Otto et all. Le Partage de la Verité: Critiques du jugement philosophique. Éditions L’Harmttan: Paris, 1991, p. 83. 185
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pragmática) e que não podem ser deduzidas sem petitio principii”.187 Assim, superam-se as dificuldades no cerne do pensamento kantiano. Diante do exposto, agora sobre o juízo categórico transformado, a reflexão de Apel demanda a notação de duas consequências importantes: 1) O argumento transcendental se transforma num argumento elêntico, isto é, se amplia na direção de um argumento de fundamentação última, não condicional, o argumento da irrecusabilidade da situação de argumentação; 2) é posto no lugar de y que efetivamente torna possível uma explicitação regressiva de seus pressupostos, suas condições de possibilidade e leva a conteúdos dignos de consideração.188
Vidal ressalta que o elénchos não faz a vez de argumento de fundamentação última por exigir outra fundamentação dos axiomas pressupostos (não contradição e terceiro excluído). Herrero também esclarece que o elénchos “é uma prova indireta que, por refutação de uma afirmação apresentada, conduz à admissão de um suposto impossível que contradiz a afirmação primeira”. 189 Manfredo Oliveira concorda. Isso se dá enquanto reformulação radical da tarefa de fundamentar princípios. Expressivamente, “uma fundamentação última numa filosofia pós-metafísica crítico-falibilista”.190 Nela, a validade do conhecimento não leva em conta em seu cerne a “evidência dos princípios do conhecimento para uma consciência individual. Está centrada no fato de que os princípios cumprem a função de evidências paradigmáticas da argumentação”.191 Isso caracteriza o empreendimento apeliano. A fundamentação última transcendental pragmática consiste justamente na certificação (confirmação) reflexiva dos princípios da razão que necessariamente já são reconhecidos. O argumentante sério também já reconheceu, por meio de seu modo sério de perguntar [...] a sua corresponsabilidade, em princípio, no sentido da razão prática.192
De acordo com Vidal, a melhor maneira de caracterizar a diferença da fundamentação apeliana é recorrer à comparação entre o princípio de não contradição e
187
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Sobre a Fundamentação. 2º Ed. EDIPUCRS: Porto Alegre, 1997, p. 65. 188 Ibidem, p. 67. 189 HERERO, X. A Razão Kantiana entre o Logos Socrático e a Pragmática Transcendental. Síntese (nova fase), nº 52, 1991. p.38. 190 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Sobre a Fundamentação. 2º Ed. EDIPUCRS: Porto Alegre, 1997, p. 67. 191 CARBONARI, Paulo Cesar. Ética da Responsabilidade Solidária. Estudo a partir de Karl-Otto Apel. IFIBE: Passo Fundo, 2002, p. 90. 192 MOREIRA, Luiz (org). Com Habermas, Contra Habermas: Direito, discurso e democracia. Landy Editora: São Paulo, 2004, p.76.
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o critério de não contradição performativa. A contradição que Apel postula, portanto, “produz um choque, uma contradição performativa – pragmática – entre o conteúdo proposicional e o ato de sua anunciação, que anula por completo aquele”. 193 O que Vidal especifica é que o saber da existência é colocado em questão, “involucrado” na autorreflexão atual do ato de pensar ou falar. 194 Posto que, para Apel, ser racional significa perguntar-se pelo como evitar a contradição performativa. Podemos dizer que, como característica desta fundamentação, distinguem-se os limites da dúvida sensata na busca de algo que seja condição necessária da argumentação crítica, e que, em caso de ser refutada, destruiria a dúvida, dúvida que o próprio cético estabeleceu, e também cujas regras o cético previamente já reconheceu para levantar seu posicionamento. A questão se concentra, então, na demonstração de que uma determinada evidência é inabalável por qualquer dúvida precisamente por constituir os pressupostos inevitáveis da própria dúvida [...], ou seja, uma tematização das condições de possibilidade da própria dúvida [...] para efetivar-se como dúvida. Neste sentido, pode-se dizer que a reflexão filosófica nasce como dúvida, é por ela mediada e se entende a si mesma como sua radicalização por tematizar o princípio (o princípio do discurso) que torna o discurso possível. 195
Por esta razão, Apel destaca a importância de (a) regras de lógica mínima; 196 (b) pressupostos de existência; e a (c) pressuposição de resolução consensual. Para ajustálas às quatro reivindicações de validade do discurso 197 filosófico pragmáticoargumentativo indispensáveis para se chegar ao consenso. Notamos que as regras de lógica mínima (a) não são outras senão as regras da lógica formal. Estas se atrelam à consistência pragmática para evitar qualquer conflito entre argumentantes e atestam a consistência dos enunciados com o valor de verdade e possibilitam crítica. Para Velasco, que confirma o que diz Vidal, “a contradição performativa seria uma contradição entre o afirmado num ato linguístico, e o “saber agir”, implícito na
193
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 130. 194 Idem. 195 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Sobre a Fundamentação. 2º Ed. EDIPUCRS: Porto Alegre, 1997, p. 72-3. 196 APEL, Karl-Otto. Paradigmas de Filosofía Primera. Buenos Aires. Prometeo Libros, 2013, p. 304. 197 APEL, Karl-Otto. Ética e Responsabilidade: O problema da passagem para a moral pósconvencional. Lisboa: Instituto Piaget, 2007, p. 23.
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realização deste ato”.198 Dito de outro modo, o que é pressuposto no ato performativo não pode contradizer o ato proposicional. Os pressupostos de existência (b) podem ser admitidos se não forem conflitantes, isto é, entre o que é argumentado e regras de lógica mínima. Ao se pressupor proposições de conteúdo empírico, autoverificáveis, estes devem ser inteligíveis e não podem constar suscetíveis ao paradoxo do mentiroso. Entendemos que a exposição argumentativa dos critérios conduzirá os argumentantes, dialeticamente, ao reconhecimento de quatro pretensões necessárias da validade (c), investigadas por Habermas (dentre as quais a pretensão de veracidade exclui o consenso).199 Elas são suposições básicas consistentes para todos argumentantes enquanto membros da comunidade ilimitada de comunicação. As quatro pretensões necessárias da validade do discurso argumentativo são: 1) sentido; 2) verdade; 3) veracidade; e 4) validade normativa, segundo Apel. 200 Análogas à teoria da competência linguística de Chomsky, elas nos chamam atenção sobre a consciência de que há regras a serem cumpridas, na argumentação, por um falante. 1) A pretensão de sentido, que compromete o argumentante com a afirmação ou negação com significados públicos, não comporta a autocontradição. Se comprovado o cumprimento de regras públicas, estas servirão de critérios de validade compreensíveis das normas a serem seguidas, ou constituídas, para que haja o entendimento. 2) A pretensão de verdade, em sintonia com o conceito transcendentalhermenêutico de linguagem, implica assumir que há verdades e razões justificáveis, sobretudo defensáveis numa argumentação. É isso que se pretende quando se afirma algo para alguém: que o ato de fala seja assumido verdadeiro pelos sujeitos. Neste, apenas, pretende-se que o interlocutor alcance resultados passíveis de serem assumidos como verdadeiros. 3) A pretensão de veracidade, um pressuposto inevitável que não pode ser negado, e, se for, pode resultar em contradição performativa. Esta pressupõe a verdade, e se dá quando um interlocutor (que interpreta o ato de fala) julga o ato de fala (de quem
198
VELASCO, Marina. Ética do Discurso. Apel ou Habermas? Mauad Editora LTDA: Rio de Janeiro, 2001, p. 49. “O critério da consistência performativa se manifesta como organum e critério de um autoesclarecimento da razão ou da racionalidade auto-reflexiva do discurso”. CARMO, Luís Alexandre Dias do. Discurso Filosófico e a Arquitetônica da Ética do Discurso: Apel versus Habermas. EdUECE, Fortaleza, 2011, p. 135. 199 APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Barcelona: Paidós /I.C.E-U.A.B., 1991, p. 121. 200 Idem.
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enuncia) verdadeiro. Isso diante das circunstâncias e critérios, e não somente o assuma verdadeiro. A veracidade é correspondente ao crédito que se dá aos interlocutores em comunicação, quando cumprem regras. Quando se pretende levantar o problema do fundamento se exige que se desvelem possíveis motivações “ocultas” de quem tome esta iniciativa, a necessidade de dar razões do que se pensa ou se faz pertencente a nossa dotação racional. Quer dizer, pertencente àquele que nos qualifica como sujeitos do conhecimento e da ação. Pois, em que outra coisa pode consistir a racionalidade senão em dar razão do que de diz/pensa e do que se faz? Neste sentido amplo o que se quer indicar é que as coisas e os acontecimentos não são mudos, surdos e cegos para a razão, senão significativos. 201
4) Uma vez que a tese apeliana é que a ação linguística está orientada para o entendimento,202 a pretensão de correção normativa se configura no emprego criativo de regras para serem adequadas, inteligíveis, capazes de serem corretivas e respeitáveis conforme as regras já existentes na comunicação entre sujeitos. O propósito de fundamentação última faz com que Apel diferencie entre enunciados filosóficos e enunciados científicos. Para tanto, Apel estabelece dois critérios: o da diferença transcendental e o da não autocontradição performativa. 203 Com o primeiro critério, distingue-se nos enunciados hipotéticos a condição de serem comprovados e falseados. Ao se efetuar um exame, verificar-se-á se os enunciados estão sustentados em enunciados filosóficos, que os tornam compreensíveis. Neles, confere-se previamente a garantia de pleno sentido. Posteriormente confere-se o exame empírico de validade. O segundo critério – o princípio da não autocontradição performativa –, conforme Apel completa a refutação do falibilismo ilimitado, paradoxal quando autoaplicável. Pois neste se caracteriza os pressupostos indiscutíveis da argumentação pela impossibilidade de serem discutidos sem saber se são ou não verdadeiros.204
201
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 133. 202 MOREIRA, Luiz (org). Com Habermas, Contra Habermas: Direito, discurso e democracia. Landy Editora: São Paulo, 2004, p.79. 203 É importante lembrar que é preciso refletir as anomalias linguísticas opondo-as ao critério de não contradição performativa para alcançar uma distinção, examinando a possibilidade de violação dos princípios universais, que a anomalia indica, mediante o critério de não contradição performativa que faz valer a pretensão auto reflexiva de universalidade da filosofia. APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 1991, p. 106, 128. 204 APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Barcelona: Paidós /I.C.E-U.A.B., 1991, p.129.
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Como podemos notar, a fundamentação que Apel pretende não se confunde com a inferência. Também não se confunde com a dependência lógica de axiomas, mas trata de explicitar pressuposições “intranscendíveis” na situação de argumentação. O que Apel quer, diferente do racionalismo crítico, é distanciar o ceticismo e o relativismo da tarefa da filosofia. Reconhecer a pragmática transcendental como um saber de fundamentos é reconhecer que, contextualmente, o saber teorético é insuficiente para a fundamentação, e que a derivação é um saber provisório que exigirá correções posteriores devido à falta de reflexão metodologicamente crítica sobre as condições de possibilidade. O desenvolvimento da pragmática-transcendental, até aqui refletido, nos coloca diante da exigência de uma abordagem reflexiva, mais acurada, delimitada sobre a filosofia na contemporaneidade, e que, portanto, desemboca numa postura crítica, direta, contra a racionalidade funcional científica bem como à fragmentação do saber, que banalizam a verdade e a responsabilidade humana, sobretudo quanto ao sujeito humano que argumenta e suas motivações no prisma sociopolítico do interesse pelo conhecimento e sua relação prática com o sentido da vida.
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CAPÍTULO III A TEORIA DA VERDADE DE KARL-OTTO APEL
3.1 A verdade como consenso O termo consenso é singular para entender a obra apeliana. Embora o filósofo afirme na introdução da Transformação da Filosofia que seu próprio pensamento passou por transformações, o termo consenso manteve-se constante. Para contextualizá-lo é preciso notar o que se pode entender por universalidade na Tradição. Interessante é notar que, de um lado, na antiguidade, Aristóteles terá na Ética a Nicômaco o consenso como um meio de recorrer à validade da verdade. Isto é, o estagirita aconselha a não rejeição ao que todos consentem. De outro lado, na modernidade, para Descartes nem sequer há interesse no consenso. Não há um porquê para tanto. O que importa resguardar é que tanto a opinião de todos, do aristotelismo, quanto à crítica radical cartesiana que alude ao sentido platônico da “concordância da alma consigo mesma” são decisivas, se tomadas complementares, para o conceito de verdade no pensamento de Apel. Nisso, muito nos ajuda a divisão do pensamento de Apel em períodos, a fim de esclarecer essa chave na teoria consensual da verdade, proposta em que convergem reviravolta linguística e pragmatismo, para enfim se chegar ao “ponto de vista” transcendental transformado.205 Para Siurana há três períodos na filosofia apeliana. 206 Respectivamente são os que vão de 1950 até 1969, com uma transformação da filosofia transcendental kantiana que considera história e hermenêutica; o da transformação semiótica e pragmática da filosofia transcendental, de 1970 a 1987; e o que segue desde 1988 com a defesa da aplicação da pragmática transcendental à história. O primeiro período é marcado pela recusa de Apel à consciência isolada, solipsista, característica do “eu penso” no cartesianismo. Como tal, o eu penso está configurado no conceito lógico científico de linguagem. O filósofo então recorre ao 205
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 61. 206 SIURANA, Juan Carlos. La evolución del pensamento de Karl-Otto Apel frente ao problema da reflexión. In: REVISTA ANTHROPOS: Hellas del conocimiento. Karl-Otto Apel: Una ética del discurso o dialógica. Barcelona: Nº 183, marzo-abril, 1999, p. 100-4.
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conhecimento histórico, contextualizado, para implicar o método transcendental à relevância do ser-aí-no mundo, enquanto membro de uma comunidade histórica de linguagem. No segundo período, Apel se dedica especialmente à leitura de Verdade e Método de Hans-Georg Gadamer. Ele se propõe a negar a superioridade do interpretado sobre o intérprete, em que, segundo Siurana, Apel afirma ser perigoso deixar as coisas como estão especialmente pelo risco de diminuição da capacidade crítica própria da reflexão filosófica. Apel julga importante que o intérprete se reconheça capaz de verdade guiado por uma ideia reguladora a ponto de se reconhecer atuante no processo dialógico do conhecimento, com possibilidade de atingir o acordo intersubjetivo sobre os enunciados. No terceiro temos uma síntese dos dois períodos. Basicamente, a preocupação é com a pressuposição universal de uma racionalidade discursiva, fundamentada no a priori, isto é, Apel levanta o problema de uma ética discursiva para solucionar os problemas que a humanidade enfrenta. Nisso, ele não só leva em conta a fundamentação do discurso racionalmente compreensível por todos, mas também o processo histórico, acerca da responsabilidade humana em nível mundial. O que observamos nestes períodos nos quais o itinerário apeliano se encontra cruzado com outros conhecimentos da filosofia é uma atenção especial quanto ao processo histórico do diálogo humano. Nesse sentido o consenso, que para Vidal está bem distinto,207 pode ser considerado em pelo menos dois sentidos: O primeiro, como pressuposto transcendental – condição de possibilidade a priori de compreensão linguística do acordo, no qual estamos envolvidos; e, no segundo temos “o telos que se pretende alcançar, contanto que se produzam as condições ideais da racionalidade discursiva”.208 Por isso o consenso, de maneira geral, então é aquilo sobre o qual não é possível discutir mais. 209 No entanto, a aproximação que Apel faz entre consenso e verdade é também aproximação entre a teoria e práxis como pretensão de verdade e validade. E que, na prática sejam consolidados na correção mútua das normas que tornam possíveis as
207
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidaridad: La teoría de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares, S.L. Granada, 2000, p. 62. 208 Idem. 209 APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Barcelona: Paidós /I.C.E-U.A.B., 1991, p.110.
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interpretações. Interpretações mediante desempenho de uma função reguladora do consenso. Para esclarecer a teoria consensual da verdade, julgamos necessário retornar e explicitar o que foi já distinguido por nós até aqui e trazer a ideia de complementariedade acerca da verdade em Apel. Com efeito, a proposta filosófica em que “nós argumentamos”, cujo consenso é o marco dos critérios de verdade, é o que queremos enfatizar neste terceiro capítulo. A ênfase sobre o consenso agora é destacada sobre os termos “sentido” e “validade”. A relação que Apel faz entre sentido e validade estabelece o consenso linguístico implicado com o sentido intersubjetivamente válido. Referido para os sujeitos. Desta maneira, o sentido, em primeira instância, não é viabilizado para justificar o significado das palavras, mas das orações. Já a validade encontra-se atrelada à linguagem, como metainstituição no mundo prático da vida. O desenrolar da discussão da verdade em Apel se mostrará, pois, como uma refutação à falácia naturalista e à falácia abstrativa consolidadas no seio da semântica lógica. Para contextualizar estas refutações na filosofia apeliana, abordaremos a reconstrução do factum da razão. A partir daí situar a articulação linguística com a dimensão da validade intersubjetiva do significado, em termos de condições de verdade. Não obstante, faz-se necessário uma crítica ao cientificismo de Peirce para extrair o resto de dúvidas acerca da razão dialógica e comprovar a discussão apeliana como uma discussão que se propõe a superar o problema da interpretação do mundo, especificamente contra a diferenciação de uma razão prática e outra teórica. Como Apel entende que haja comprovação do conhecimento, no sentido de entender em que caso as orações podem ser verdadeiras, em sentido wittgensteiniano, a pretensão de validade universal não pode romper com a dependência da aproximação entre mundo e verdade. Então, é propício verificar o desvelamento do mundo para o sujeito a partir da filosofia hermenêutica de Heidegger e Gadamer. Isso será necessário para ultrapassarmos o sentido das descrições de estados de coisas, em vista do significado pragmático do consenso. É justamente quanto ao significado pragmático do consenso que nesta terceira parte propomos investigar a linguagem transcendental para afirmar que ela está voltada para o consenso. Enquanto transformação da filosofia da consciência em pragmática transcendental, a fundamentação racional da verdade constitui-se no cerne da filosofia apeliana.
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3.1.2 A reconstrução apeliana do factum da razão De acordo com Apel, na Crítica da Razão Prática a lei moral ficou sustentada como factum da razão (Factum der Vernunft). Um dos argumentos é porque para Kant “ela se impõe por si mesma a nós como uma proposição sintética a priori, não fundada por nenhuma intuição, nem pura, nem empírica”. 210 Por causa dela, dotado de vontade autônoma, o ser racional escolhe agir de forma “que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente no querer mesmo como lei universal”. 211 Numa busca livre por leis para guiar as próprias ações. Na Metafísica dos Costumes, Kant explicita que tudo na natureza age conforme leis, mas só o ser racional é capaz de guiar o próprio agir por vontade livre. Enquanto animal racional, a legislação da liberdade não se desvincula da obediência às prescrições morais imediatas da razão.212 Kant concebe a lei universal como um imperativo. Uma vez que o homem está sujeito às mais diversas necessidades e interesses do mundo sensível, agir consoante à lei moral pode lhe ser grande desafio. Muitas vezes se obriga a burlá-la, isto é, querer e dever nem sempre coincidem para o animal racional. O imperativo categórico, nesse caso, exerce a função tal que o homem, enquanto ser dotado de livre vontade, sente que é compelido a agir com base em princípios empíricos ou racionais. 213 De outro horizonte, na Transformação da Filosofia, a formulação de uma norma moral, por um sujeito, está pressuposta na possibilidade de aceitação de um argumento pela crítica da comunidade de comunicação. Essa suposição não é colocada como um fato empírico, mas pertencente às condições de possibilidade de validação de princípios. No que diz respeito à razão, apesar de não ter considerado a interação comunicativa, o filósofo de Königsberg fornece a solução do problema para a justificação das ações humanas na filosofia apeliana, cujas consequências propiciam a abordagem contemporânea da fundamentação de princípios. Essa interpretação da norma é possível em virtude do caráter imperativo do factum da razão, com base no imperativo categórico kantiano. Como uma fundamentação dialógica não é possível em Kant, a suposição fica restringida à acusação de falácia naturalista ou de ser um factum, no sentido de Hume. 210
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Martins Fontes, 2002, p. 1994, A 56. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Abril Cultural. (Coleção Os Pensadores) São Paulo, 1974, BA, 87, 88, 89. 212 Ibidem, BA, 36. 213 Idem. 211
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Apel nos esclarece que o sentido do factum, vinculado a Kant, não é concebido como uma lei moral, senão como consciência da lei moral. Indubitável, relacionado à autodeterminação ética o factum pode ser apreendido como uma lei de “autossuperação autoprescrita”. Um resultado da tomada transcendental de consciência, na perspectiva apeliana. Em tal medida a doutrina kantiana afirma até mesmo em sua configuração metafísica o profundo direito não apenas em face de uma naturalistic fallacy, no sentido de uma redução empírica, mas também em face de todas as fundamentações decisionistas da validação de normas.214 No sentido exposto, o empreendimento kantiano é a expressão de um esforço cognitivo-crítico e antidogmático. Concebido deste modo, é preciso levar em conta que a solução metafísica tem razão de ser enquanto não solucionado o problema do agir. O problema acentuado por Apel é que nele “reside justamente que as decisões sejam também somente fatos para o julgamento (metaético) reflexivo – enquanto não se comprovar pela tomada de consciência e pela crítica de sentido transcendental”. 215 Pois bem, nas palavras de Apel, as decisões são preconcebidas inevitavelmente por uma razão argumentante:216 A meu ver, nesse sentido de um “perfeito apriorístico” é possível reconstruir a doutrina kantiana do “factum da razão” – sobretudo quando se leva em conta que a razão prática comprova, segundo Kant, sua realidade e a de seus conceitos através do ato. 217
A distinção que Kant faz entre razão teórica e razão prática coloca Apel diante da situação de ter que solucionar o dualismo para saber se homem está agindo moralmente ou estrategicamente. Ainda mais, para eliminar a suspeita de prática egoística (solipsismo metódico). O aspecto do factum kantiano constitui por isso mesmo uma das chaves de leitura no pensamento apeliano quando se entende que o factum da razão é um feito para si mesma, de forma que a razão é autoconsciente do imperativo categórico e do saber da existência. Portanto, ela tem a capacidade de legislar sobre leis empíricas, de prescrever como deve ser, e justificá-las, embora as práticas possam ser ao contrário do postulado
214
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. São Paulo: Edições Loyola, 2000b, p. 473. 215 Idem. 216 Idem. 217 Idem.
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pela razão.218 Mas Apel não concorda com a perspectiva solipsista da razão em Kant. A razão vista por si mesma e em função de si mesma, neutra, estratégica. Ora, as decisões pré-concebidas são justamente atos, escolhas, como também são as decisões no mundo da vida. De acordo com Apel, “aí se mostra que a validade de um pensamento solitário depende, em princípio, da justificação de afirmações linguísticas”. 219 Isso se considerarmos uma conversa crítica da alma consigo mesma, no sentido platônico; e também enquanto validade lógica de argumentos com base em Wittgenstein. E já que ninguém pode sozinho seguir uma regra, pressupomos também uma ética. 220 Se alguém respeita uma regra em suas operações intelectivas, só pode ser levantada significativamente no âmbito de um jogo de linguagem, então a lógica tem de justificar o uso monológico da razão, deve penetrar na esfera do diálogo. Os argumentos não têm de ser entendidos, então, como no moderno cálculo (sintático-semântico) da lógica, por abstração da dimensão pragmática, mas sempre, simultaneamente, como pretensões de sentido e validade, que só podem ser explicitadas e decididas no diálogo interpessoal. 221
Para Cortina, em concordância com Apel, a razão está amparada pela intersubjetividade propiciada pela linguagem. “Tais condições se identificarão, ao fio da reflexão, com as condições da racionalidade porque a argumentação é, em nosso caso, o ‘Factum der Vernunft’, e uma análise de suas condições de sentido se identificam com uma análise da racionalidade”. 222 Isso arremete ao conceito transcendental de linguagem. Sim, é possível uma fundamentação filosófica de critérios normativos – teóricos e práticos – se esta há de ser autorreflexiva e última. Autorreflexiva no sentido de que o logos é sujeito e objeto da investigação simultaneamente. Última, enquanto autoconhecimento da razão, se se dá que só ela pode conduzir a critérios intranscendíveis [..]. Desta forma, comunidade real e ideal de comunicação caracterizam agora os princípios de uma nova ética deontológica, como pressupostos do logos. Assim, idealidade e facticidade se nos apresentam por uma parte como polos opostos, porém por outra parte simultaneamente como unos conformadores de sentido. 223 218
CORTINA, Adela. Razón Comunicativa y Responsabilidad Solidária: Ética y Política en K-O Apel. 2ª Ed. Sígueme: Salamanca, 1998, p. 67. 219 APEL, Karl-Otto. Estudos de Moral Moderna. Vozes: Petrópolis, 1994b, p. 119. 220 Ibidem, p. 119; 121-2. 221 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. São Paulo: Edições Loyola, 2000b, p. 122. 222 CORTINA, Adela. Op. Cit., 1998, p. 68. 223 DOBARRO, Ángel Nogueira. La trayectoria filosofia de uma sensibilidad hermenêutica. In: REVISTA ANTHROPOS: Hellas del conocimiento. Karl-Otto Apel: Una ética del discurso o dialógica. Barcelona: Nº 183, marzo-abril, 1999, p. 06.
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Sem embargo, o “factum da razão” de Kant passa a ser o “factum da argumentação”, tratado como condição de possibilidade do sentido de uma norma moral, distinta e inevitavelmente pressuposta na justificação argumentativa sensata. Vemos que a reconstrução pragmática transcendental é explicitada por Vidal na mesma linha de Cortina. Apel “toma como ponto de partida que o feito (Faktum) de que os seres humanos pertencem ‘já sempre’ a uma comunidade de comunicação. Isto é, inseridos desde o nascimento em uma trama de relações sociais, linguagem, valorações e interpretações do mundo”,224 antecipadas idealmente pelo jogo de linguagem ideal. O factum da argumentação, dotado de caráter intersubjetivo, torna-se incontestável para todo aquele que afirma algo, pois quem se habilita a afirmar algo o faz por argumentos ou pelo menos pressupõe a afirmação dotada de argumentos. Inevitavelmente, quem argumenta reporta-se a um sujeito, e assim considera previamente a possibilidade de validade de tais argumentos, ou seja, com o factum da argumentação Apel explicita que os interlocutores podem chegar às mesmas conclusões. Deste modo, na Transformação da Filosofia assim fica caracterizada a reconstrução do conceito de razão de Kant. A partir da linguagem, o factum tem em si o exercício dialógico da razão, insuperável, autorreflexivo, pressuposto em todo ato racional enquanto logos da linguagem humana. As consequências da transformação do factum da razão de Kant, para a filosofia pragmático transcendental, asseguram ao “nós da argumentação” a intersubjetividade pelo caráter reflexivo da fundamentação. Como se pode observar, intersubjetividade em sentido apeliano é a constante reciprocidade e reconhecimento da validade das normas para todo interlocutor. Agora os argumentos estão dotados de estrita reflexão. Então, trata-se de colocar para a apreciação de outros as motivações de um argumento. Portanto, significa ter que desvelar e tornar público, explicito, o que está contido no argumento sem cair em contradição.
3.1.3 A verdade como ideia reguladora Subsidiado pela interpretação de uma ideia reguladora, Apel atribui singular importância ao consenso para a integração de verdades. De acordo com Kant, uma ideia
224
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 124.
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reguladora possui “o valor de princípio regulativo da unidade sistemática do conhecimento da natureza”.225 Enquanto critério, é exatamente a função de regular as interpretações que o consenso exerce. Apel afirma que, “segundo Peirce, devem-se adjudicar as ideias reguladoras, nas quais já em Kant eram decisivas para ‘completar’ a experiência, na função de última instância constitutiva da lógica do conhecimento”.226 Deste modo, Apel recorre à concepção kantiana como uma regra geral (necessária) de organização, para se chegar ao pretendido consensualmente. Nota-se que, em Apel, uma ideia reguladora é por isso um critério para o julgamento racional das justificações. Com isso, podemos entender que o consenso não é nada mais que a última opinião falível, que pode dar direção normativa ao jogo de signos linguísticos. Portanto, a função das ideias reguladoras 227 é exatamente a de constituir a última opinião falível. Nas palavras de Apel, no consenso ideal último concerne “que todo consenso fático e ideal dos investigadores competentes pode e deve estabelecer-se em um metaplano metodológico com reserva falibilista e melhora heuristicamente relevante”. No tocante ao falibilismo, o consenso corresponde assim por resistir aos testes de hipóteses, no sentido de uma evidência coerente de um consenso insuperável. Desta forma, o consenso é um caso limite. Enquanto consenso independe de um único sujeito, e independe também de um auditório com interesses particulares resignados ao que Apel chama de successful,228 isto é, o jogo de convencimento e persuasão. Neste aspecto, para Apel “a ideia reguladora do consenso-limite idêntico com a verdade implica, antes de tudo, o postulado de que não se poderia ter nenhum contra argumento frente ao consenso-limite”.229 Sobre esta característica do consenso não se opõe Costa, pois “a verdade é uma dimensão da validade intersubjetiva do significado articulado linguisticamente”. 230 Do ponto de vista dialógico, isso significa acessar um fundo fático de certezas na lógica da tripla função sígnica. No nível da transformação semiótico-transcendental da lógica transcendental kantiana, a ideia reguladora do consenso último em 225
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 5ª. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001,B 310;B 378, B 710; 702. 226 APEL, Karl-Otto. Paradigmas de Filosofía Primera. Buenos Aires. Prometeo Libros, 2013, p. 323. 227 APEL, KARL-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Barcelona: Paidós, 1991, p. 73. 228 APEL, Karl-Otto. Understanding and Explanation: A transcendental-pragmatic perspective. Translated by Georgia Warnke. Massachusetts: Mit Press, 1984, p. 192. 229 APEL. Op. Cit., 2013, p. 329. 230 COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 322.
89 uma comunidade ilimitada de interpretação assume, por assim dizer, a função da “síntese da apercepção” como “ponto mais alto” da “dedução transcendental” dos princípios do conhecimento. A única diferença é que não se pressupõem como princípios [Prinzipien] também – como em Kant – os “princípios” [Grundsätze] entendidos como “juízos sintéticos a priori” sem as três formas de processos inferenciais, ligados com a interpretação in the long run dos signos: dedução, indução, e abdução.231
Do ponto de vista da pluralidade de interpretações, a teoria da verdade pressupõe uma ética e também uma situação limite, em que os sujeitos se vêm obrigados a dar e fazer valer contribuições, para que se alcance resultados práticos indispensáveis. A situação limite exige uma atitude incontornável, uma decisão que, pela necessária atuação abre-se mão das ideologias em favor da comunidade de comunicação, e seria, por tanto, preciso recorrer ao self-surrender moral. 232 Propriamente uma participação coletiva no progresso do conhecimento ou uma total negação dele, em vista das regras comuns que os co-sujeitos se auto impõem e exigem uns dos outros. E se o próprio diabo acedesse à comunidade científica? Ele poderia, participando da ciência e do conjunto intersubjetivo, referindo-se a comunidade de argumentação, não se afastar de sua vontade má. A isso Apel responde que o próprio diabo, desejoso de se engajar na comunidade, deveria se comportar como se estivesse superado o egoísmo. Seria, pois, conduzido a um imperativo categórico. 233
Apel, neste sentido, dá um passo crucial acerca do aspecto da teoria da verdade, por não conter ou estar em proporção de egoísmos e sim situar a necessidade de eliminação do solipsismo, em vista de uma situação que não se pode ignorar. Por isso, a aderência à discussão implica numa meta que deverá ser assumida por todos como um imperativo categórico, uma vez que se está ciente da fragilização e da dissolução da vida. Não se trata apenas de afirmar os próprios interesses ou ideologias. Torna-se patente que os co-sujeitos de uma meta devem atuar coletivamente e aterem-se aos critérios de verdade das teorias de verdade disponíveis, em vista de uma solução para um caso limite. Trata-se, então, de uma adesão ao construto participativo da verdade que leva em conta a percepção das consequências por seres finitos, em que, indistintamente, da responsabilidade e solidariedade todos dependem.
231
APEL, Karl-Otto. Paradigmas de Filosofía Primera. Buenos Aires. Prometeo Libros, 2013, p. p. 316. APEL, KARL-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del discurso. Barcelona: Paidós, 1991, p. 69. 233 RUSS, Jacqueline. Pensamento Ético Contemporâneo. Trad. Constança Marcondes César. São Paulo: Paulus, 1999, p. 85. 232
90
3.2 Crítica à interpretação cientificista de Peirce Da
perspectiva
de
Apel,
pensar
o
processo
do
conhecimento
na
contemporaneidade é pensar a linguagem, com a linguagem, por meio da linguagem. Ele está ciente que este desafio significa superar o problema do conhecimento em que tradicionalmente defrontam-se sujeito e objeto. Tradicionalmente, foram dadas as mais diferentes interpretações à linguagem. As concepções que vão desde uma mera expressão do pensamento até o reconhecimento dela como prática de interação social e cognitiva não propiciaram totalmente o desvencilhamento da concepção instrumentalista, concepção que engloba todas as outras, ou seja, é instrumentalista justamente porque a linguagem ainda permaneceu epistemologicamente como objeto. Apel, por isso, chama de epistemologia pré-semiótica a reflexão do problema do conhecimento na dimensão da relação sujeito-objeto. “Como parte da unidade e da evidência de uma consciência objetual ou de uma autoconsciência concebidas de maneira metodicamente solipsista”. 234 Esta deixa de lado o processo cognitivo do conhecimento enquanto processo mediado por signos. O filósofo insiste em reforçar que “o conhecimento, como função mediada por signos, constitui uma relação triádica, que não é possível reduzir à uma relação diádica, como no caso das relações observáveis no mundo dos objetos”. 235 Só na função diádica os signos são assimilados como instrumentos de comunicação, pautados pelo já conhecido por meio da observação de dados. Apel está convencido de que a instrumentalização é uma desconsideração da linguagem como instância mediatizadora, correspondente à tradição da epistemologia nominalista. Essa desconsideração acontece ao negar a intersubjetividade da linguagem em vista de um momento de “convenção”, apenas sensório e racional. No qual se abstrai do caráter cognitivo a convenção que precede toda subsunção de dados sensoriais. 236 Na reflexão sobre o momento “convencional” da cognição só se registra a conquista de uma decisão por parte de um sujeito isolado na apreensão dos dados, mas não a conquista do “consenso” intersubjetivo que está em ação em toda e qualquer aplicação interpretativa da linguagem. Em suma, não se nota que o acordo mútuo intersubjetivo enquanto mediatização da tradição é, ele sim, a
234
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 226. 235 Ibidem, p. 178. 236 Ibidem, p. 227.
91 condição de possibilidade e de validade transcendental-hermenêutica de toda cognição objetivamente orientada. 237
De acordo com Apel, mesmo que Peirce tenha o mérito da fundação de uma lógica semiótica, a forma pragmática está sujeita à limitação do cientificismo. Isso quer dizer que inda há dependência dos signos à experiência de comprovação empírica. Com isso, Peirce deixa aberto o problema do conhecimento assimilado num abismo entre o real e o ideal. 238 Assim os signos permanecem entre o normativo e o transcendental, dessa forma, Peirce expõe sua dificuldade quanto à separação entre razão prática e razão teórica. O cientificismo de Peirce, segundo Apel, impede que seja concluída a transformação de Kant por conta da parte que exige comprovação científica da semiose. Por esta dificuldade de Peirce há complicações para a distinção entre pesquisa experimental e acordo comunicativo-interpretativo comunitário. Isso favorece que o acordo mútuo aconteça apenas ao longo do tempo. Para Apel, Peirce concentra seus esforços pensando em ciências naturais, para quem o acordo se dá na comunidade dos cientistas por substituição à consciência clássica. Assim, o cientificismo revela sua fragilidade solipsista e o legado da autoridade da experimentação empírica. Isso coloca em condições relativas à intersubjetividade e a investigação que considera a história dos sujeitos envolvidos no mundo. Da perspectiva apeliana, está é a razão pela qual a máxima pragmática descreve apenas o caso-limite de uma hermenêutica transcendental. Uma vez que, para Peirce, é necessário que ocorra o teste controlado, propriamente porque Peirce não consegue consumar a interpretação do sentido fora da comunidade de cientistas. Contra Peirce, Apel concebe relevante uma interpretação da perspectiva cientificista, da parte Josiah Royce (1855-1816) por rejeitar o acordo que não abre mão da observação e experimentação, própria da relação sujeito-objeto. Apel nos esclarece que, na medida em que ele não tem interesse por estados de coisas experimentalmente testáveis, mas em primeiro lugar a autocognição, J. Royce consuma a reviravolta que vai da tematização dos signos à hermenêutica da intenção de sentido. 239
237
Idem. APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 219. 239 Ibidem, p. 231. 238
92
A interpretação de J. Royce é esclarecida por Apel ao se perceber que o empreendimento de Peirce integra o próprio ser humano enquanto signo. Neste empreendimento, o processo de interpretação de signos visa chegar ao consensus omnium sobre estados de coisas. Nisso, o ser humano é simultaneamente sujeito e objeto da interpretação signica. Muito ao contrário do que propôs Peirce, J. Royce integra o ser humano em lugar de signo, isto é, ao processo interpretativo como sujeito das intenções de sentido, posto que, em comunidade, sujeitos de linguagem interpretam sujeitos. De acordo com essa proposta, assim é possível partir da estrutura triádica do signo linguístico para fazer a mediação entre presente, passado, e futuro.240 Isso torna possível, aceita a crítica contra Peirce, que os sujeitos sejam intérpretes situados numa comunidade histórica e ilimitada em que a linguagem é médium pelo qual é possível fazer as interpretações, e pela qual se pode chegar ao entendimento entre sujeitos acerca do mundo. Para além das dimensões sintática e semântica, as decisões e explicitações com sentido e validade ocorrem num diálogo interpessoal aquém da defesa dos interesses particulares ou comunidades particulares. Do ponto de vista de Apel, também uma crítica ao cientificismo de Peirce é possível a partir de H-G. Gadamer. Para ele, Gadamer afirma que “não é sensato mensurar a verdade possível da interpretação própria às ciências humanas a partir dos parâmetros da objetividade científica – a ser concretizada numa aproximação progressiva”241 do conhecimento. Apel justifica a consideração da crítica alicerçada em Gadamer por conceber a razão dialógica. Na filosofia apeliana, o sujeito do compreender hermenêutico não sustenta o paradigma de uma consciência em geral, tal como o sujeito da elucidação científica, mas o próprio ser-aí histórico de Heidegger, para quem o sentido se dá a partir dos testemunhos da tradição.242 Isso contraria a autoridade científica como fonte privilegiada do conhecimento objetivo. Sob este aspecto, alinhada com Apel, Adela Cortina sustenta que a garantia da objetividade do conhecimento está em recorrer às condições ideais no seio do realismo
240
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 233. 241 Idem. 242 Idem.
93
crítico de sentido.243 Nisso também concorda Manfredo Oliveira, pois no pensamento de Gadamer “o que importa, acima de tudo, é vincular o sujeito que compreende a história, explicita a história e o pensamento da história em todo o conhecimento humano, em última análise, no ser do sujeito”244 que interpreta o mundo. A verdade da interpretação, portanto, não é para Gadamer a verdade de uma aproximação progressiva e metódica ao ideal da objetividade, mas sim a de um descerramento de sentido que resulta da “fusão de horizontes” do presente e do passado na situação histórica.245
A filosofia de Apel, por considerar a hermenêutica existencial, deixa de lado a redução cientificista desenvolvida na pragmática peirceana e propõe a ideia de complementariedade entre ciência e filosofia. A reflexão apeliana considera então que a aproximação assintótica entre as comunidades ideal e real não só é condição de possibilidade da interpretação autorreflexiva (filosófica), mas também explicativa (ciências da natureza) e hermenêutica (ciências do espírito).246 E isso só se constitui na práxis das relações de um sujeito histórico e engajado. A comunidade ilimitada, que era na filosofia de Peirce a comunidade de investigadores, deve se transformar em uma pragmática transcendental e em uma comunidade ideal de argumentantes, que não somente é pressuposto pragmático do discurso teórico, preocupado com a verdade dos enunciados, como também do discurso prático, que se pergunta pela correção das normas da ação. No qual nos permite superar a separação kantiana entre o ponto supremo da apercepção transcendental – o “eu penso” num prático – e um “eu atuo” – para os quais não pode haver dedução transcendental no mesmo sentido da dedução das categorias no âmbito teórico. O sujeito transcendental kantiano é, pois, substituído por um “nós argumentamos”, por uma intersubjetividade que representa “o ponto supremo da reflexão”. 247
A crítica dirigida a Peirce por Apel reserva à linguagem a condição de metainstituição. Uma instância normativa, crítica das normas sociais não refletidas que nos obriga ao acordo intersubjetivo das normas sociais. 248 243
CORTINA, Adela. Rázon Comunicativa e Responsabilidad Solidária: Ética y política em K .-O Apel. 2ª Ed. Sígueme: Salamanca, 1988, p. 75. 244 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 229. 245 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 2000b, p. 234. 246 COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Del Rey. Belo Horizonte, 2002, p. 114. 247 APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Barcelona: Paidós /I.C.E-U.A.B., 1991, p. 21. 248 APEL, Karl-Otto. Semiotica Filosofica. Almagesto: Buenos Aires, 1994c, p. 166. De acordo com Apel, partindo da visão de Peirce, é considerável a hipótese de que a realização de um socialismo lógico precisa levar adiante a hipótese de que “todos os membros da comunidade dos investigadores devem fazer
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Nesse sentido, Apel nos esclarece que a subjetividade integra-se à proposta dialógica na busca pelo consenso. A linguagem, portanto, não só pode consistir em signos apenas simbólicos, mas que também realiza a mediação de intuição e conceitos, no sentido de Kant. E segundo Apel, isso é indispensável para dar conta da afecção causal dos sentidos da percepção, e, por isso mesmo, a defesa que Apel faz em favor da linguagem vai mais além de uma filosofia da linguagem como mera disciplina no campo da semiótica. 249
3.2.1 Verdade e crença O ponto inicial para entendermos a diferença entre verdade e crença está na representação signicasignifica. Como já notamos no segundo capítulo, sem signos nem mesmo pode haver conhecimento sobre o real. Portanto, com a diferença que queremos explicitar, advinda de Peirce, nos propomos a ressaltar, nas palavras de Apel, três “valorações filosóficas da crença diferentes entre si” 250 e que se opõem a concepção de verdade em nosso trabalho. A primeira enquanto crença de algo que temos consciente, introspectivamente; a segunda como aquilo que tranquiliza o sujeito frente à dúvida; e a terceira é a que traz consigo a exigência de uma regra de comportamento. Esta última nos conduz à máxima pragmática, tendo por exigência o hábito. Vemos que a terceira se distingue das outras pelo comportamento que se pode assumir a partir de uma crença. Aqui se mostra importante o sentido tácito que se atribui ao terceiro tipo de crença. Nesta, o comportamento está vinculado ao sentido correto da norma que se usa para julgar, “pois a compreensão correta de uma crença significa sua interpretação adequada por meio do pensamento inferencial”,251 pensando-se nas consequências práticas que podem derivar da interpretação. Essa interpretação adequada é obtida, como nos esclarece Vidal, por causa do “experimento mental”, e não necessariamente apenas por meio da experiência empírica. No experimento mental, a máxima pragmática pressupõe a correta compreensão do da necessidade lógica a completa autoidenficação do próprio interesse o interesse da comunidade, como máxima de sua ação”. APEL, Karl-Otto. El Camino del Pensamiento de Charles Sanders Peirce. Gráficas Rógar/visor: Navalcarnero (Madrid), 1997, p. 150. 249 APEL, Karl-Otto. Semiotica Filosofica. Almagesto: Buenos Aires, 1994c, p.166. 250 APEL, Karl-Otto. El Camino del Pensamiento de Charles Sanders Peirce. Gráficas Rógar/visor: Navalcarnero (Madrid), 1997, p. 103. 251 VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidaridad: La teoría de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares, S.L. Granada, 2000, p. 78.
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sentido. Segundo Vidal, “o experimento mental não significa outra coisa que não ampliar a pré-compreensão que já se tem do sentido e produzir uma antecipação da experiência desde as possibilidades que brindam a imaginação” 252 dos signos conhecidos. Notamos nisso que a aplicação da máxima pragmática favorece a tomada de atitude acerca dos hábitos, de acordo com a função lógica de uma crença quanto às ações possíveis. Este é o ponto inicial pelo qual não se pode ter a verdade em Apel senão como a regra geral, em que encontramos a possibilidade do consenso e no crivo da verdade tornar possíveis os acordos entre sujeitos sobre um determinado sentido. Estão imbricadas compreensão do sentido signico e experimento mental.
3.2.2 Falibilismo e verdade De acordo com Apel, Peirce pensa na possibilidade de erro de interpretação da realidade ao fundamentar o princípio do falibilismo da ciência empírica em 1887. Contraído da teoria da verdade de Peirce, concebida como explicação semântica e pragmática dos signos linguísticos, Apel incorpora também o falibilismo. Contudo, não como possibilidade de erro, mas de melhoria heurística in the long run. Este traço da teoria da verdade é criteriologicamente relevante quanto às outras teorias da verdade. 253 Seguindo o exemplo de Peirce, ele opta pelo afastamento do caráter metafísicoontológico para que a teoria consensual seja reconhecida como relevante pragmaticamente. Então o princípio é assumido na teoria apeliana “com e contra” Peirce por não se tratar de ciência, e sim filosofia. Peirce defende o falibilismo no contexto de uma teoria evolutiva do saber e de uma teoria da evolução cosmológica. Em um de seus escritos considerados como fundacionais do pragmatismo americano, The Fixation of Belief de 1877, Peirce propõe que os seres humanos busquem crenças firmes, à margem de que sejam verdadeiras ou falsas, simultaneamente propõe a seguinte definição de verdade: o método [de investigação] deveria ser tal que a última conclusão de cada ser humano fosse a mesma. Ou seria a mesma se a investigação se prolongasse o suficiente. 254
252
Ibidem, p. 79. APEL, Karl-Otto. El Camino del Pensamiento de Charles Sanders Peirce. Gráficas Rógar/visor: Navalcarnero (Madrid), 1997, p. 64-5. 254 VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidaridad: La teoría de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares, S.L. Granada, 2000, p. 73. 253
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O falibilismo de Peirce, assim, não é comparável à falseabilidade de Popper, ainda que ambas coincidam na possibilidade de um único experimento refutar uma hipótese. A diferença está na perspectiva quase transcendental da realização de hipóteses, no Context of Discovery, no qual é preciso justificar incondicionalmente a validade dos procedimentos.255 Com essa diferença, segundo Apel, o princípio peirceano não é a única alternativa ao indutivismo ou verificacionismo, como é em Popper. É antes um processo de investigação com uma estrutura metódica de raciocínios abdutivos, dedutivos, e indutivos. Esses raciocínios não oferecem uma única conclusão possível, por isso é preciso entendê-los como complementares. Para Peirce, nos explica Apel, todos os conhecimentos sintéticos são falíveis, logo é preciso sustentar uma reserva falibilista do conhecimento. Por exemplo, os juízos perceptivos – se apoiam para a sua realização em raciocínios abdutivos e, com respeito a sua confirmação empírica, em raciocínios indutivos. Como estes dois tipos sintéticos de raciocínios não proporcionam uma conclusão obrigatória, segundo Peirce, todo conhecimento sintético deve ser falível. 256
Encontramos em Peirce o falibilismo em relação com as ideias reguladoras, de sorte que o princípio não consiste apenas para eliminar hipóteses falsas, mas também para a progressão do conhecimento in the long run. Apel prefere entendê-lo como uma condição para a aproximação assintótica, que é uma noção de contínuo aperfeiçoamento que se quer alcançar com a verdade de todos os raciocínios sintéticos. 257 Para Peirce, a provável convergência dos raciocínios sintéticos de diferentes pessoas e desde distintas evidências perceptivas não só representam a possibilidade do conhecimento progressivo do real, mas também, um conhecimento teórico completo ou suficientemente profundo do real, pressupõe, em princípio, a convergência de uma comunidade ilimitada de investigadores. 258
A obtenção abdutiva do conhecimento e das hipóteses estão vinculadas aos processos linguísticos de interpretação. Nisso notamos que Apel integra a sua teoria da verdade não a síntese subjetiva de interpretação, mas intersubjetiva (síntese intersubjetiva da interpretação), em que cada sujeito, como reconhecido membro de
255
PEIRCE, C. Sanders. Collected papers of Charles Sanders Peirce. 8 v. C. Hartshorne, P. Weiss e A Burks Cambridge, Harvard University Press, 1931-1958, 5.344. 256 APEL, Karl-Otto. El Camino del Pensamiento de Charles Sanders Peirce. Gráficas Rógar/visor: Navalcarnero (Madrid), 1997, p. 40. 257 Ibidem, p. 75. 258 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 1997, p. 42.
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uma comunidade ilimitada, pressupõe-se como instância crítica e argumentativa do sentido na comunicação com outros sujeitos. Apel dispensa então a visão cientificista de Peirce, centrada numa comunidade de especialistas que experimentam em condições ideais, embora as decisões sejam tomadas com critérios disponíveis em que o consenso último é, sobretudo, esperado numa convicção última. Notadamente, a partir da falibilidade dos raciocínios sintéticos Apel opera uma reconstrução da teoria de Peirce. Uma vez que a verdade não é uma questão da propriedade subjetiva, mas publicamente intersubjetiva, ele a considera relevante para as discussões sobre os conceitos de verdades.
3.3 Considerações sobre a fenomenologia hermenêutica Diante da redução cientificista empreendida a partir da racionalidade metódica, a proposta de uma transformação da filosofia aborda o paradigma do método científico em geral, para isso, é necessário colocar à luz o modo de pensar fenomenológico. Em vez de sustentar o paradigma da racionalidade metódica, Apel quer levar adiante as discrepâncias do conceito moderno de método e mundo, servindo-se da experiência précientífica de vida e de mundo. Como Apel recusa a redução, o contraponto à racionalidade metódica está na fenomenologia hermenêutica de Heidegger desenvolvida por Gadamer em Verdade e Método. Apel acredita que a fenomenologia hermenêutica inicialmente pode exigir uma vantagem, estabelecer um liame entre duas emancipações: 259 da experiência metafísica dogmática e as visões de mundo, de um lado, e, de outro, a das restrições científicas. Apel afirma que, na filosofia heideggeriana tardia, a perspectiva de destruição e reconstrução crítica da metafísica constitui um constante distanciamento da ciência e da técnica moderna. Nisso se considera que o ser humano dispõe do mundo, e somente depois a partir do mundo a si mesmo.260 O problema que Apel enxerga aí está no método experimental aplicado à esfera social. Pela facilidade de torná-lo instrumento de dominação, cuja funcionalidade pode se mostrar eficiente quando um co-sujeito reflete o agir do seu ser.
259
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. São Paulo: Edições Loyola, 2000a, p. 27. 260 Idem.
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Concorda Manfredo Oliveira: “o homem experimenta o real como objeto, isto é, como o manipulável, o dominável por ele, como aquilo que se pode por à disposição do homem. Nesse contexto, a linguagem é reduzida à informação”. 261 Um instrumento de domínio que, para Heidegger, de acordo com Manfredo Oliveira, caracteriza a essência da técnica que não passa de: Um modo de desvelar uma fórmula, portanto de ver uma verdade. A técnica revela o real em seu caráter manipulável. Nessa perspectiva, a informação é o modo como a natureza se revela por meio da técnica. Não a natureza como ela é em si mesma, mas a natureza enquanto submetida às perguntas do homem [...]; manipulável por ele, a categoria informação se transforma para Heidegger numa das características da civilização contemporânea.262
Sobre isto, Costa afirma que a fenomenologia hermenêutica heideggeriana “ao descobrir a hermenêutica cotidiana, se enfrenta com as coações categoriais do pensamento, e, portanto, da conduta, que partem da estrutura científico-técnica”.263 Do ponto de vista apeliano, o desvendamento da experiência cotidiana favorece a validação da experiência existencial. A experiência existencial do Dasein se distancia da tradição metafísica. Também ao se distanciar do subjetivismo se depara com as condições de existência no mundo hermenêutico. A postura de Heidegger, portanto, resulta em propor outro paradigma: a hermenêutica do ser-no-mundo, propiciado no encontro do ser com o mundo. Apel observa que o pensamento de Gadamer tem uma relação estreitamente mais crítica com a ideia do método. “O desvendamento da experiência refere-se agora aos fenômenos das condições existenciais de possibilidade do ‘Compreender’, ‘esquecidos’ nas metodologias histórico-hermenêuticas”. 264 Por exemplo, enquanto reação à redução do sujeito a agente de tarefas agendadas, cuja realização da função é o principal. Na visão de Apel, a relevância epistemológica introduzida por Heidegger está “sobretudo na superação da ideia do ‘compreender’ como um método concorrente com o elucidar, causal analítico como resposta científica”.265 Ora, Apel não tem dúvidas de
261
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 203. 262 Idem. 263 COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Del Rey: Belo Horizonte, 2002, p. 24. 264 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. São Paulo: Edições Loyola, 2000a, p. 28. 265 Ibidem, p. 30.
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que se vê nisso o compreender como próprio das ciências humanas e o elucidar das ciências da natureza. A fenomenologia hermenêutica então se apresenta com mérito contra a lógica científica moderna. “Ela opõe resistência ao processo de atrofia que sofrem a teoria e a crítica do conhecimento de origem kantiana.” 266 Além de expor os pressupostos transcendentais da lógica científica, próprios da relação cartesiana sujeito-objeto. Sobre isso, Apel dá destaque para as “pré-estruturas existenciais” do compreender, descobertas por Heidegger: “ser-no-mundo” (ser que ao encontrar o ente intramundano possibilita as intenções) que implica a superação do idealismo epistemológico; o “ser-com”, da superação do solipsismo, linguístico e histórico; “serque-se-antecipa” do ser-aí, no modo de preocupação voltado ao futuro, livre de interesses subjetivos.267 A partir do compreender, pode-se ter um novo conhecimento das coisas, sobre todo ser-no-mundo. O compreender, segundo Heidegger, tem o modo de ser da presença que não é dado enquanto poder-ser.268 Apel constata que a fenomenologia hermenêutica possibilita a alternativa entre o apriorismo e empirismo, por meio do círculo hermenêutico. Uma vez que Heidegger nos apresenta a pré-estrutura do compreender269 para fundar a verdade na descoberta do sentido. Com isso, importa afirmar que, na síntese hermenêutica de algo em sua constituição e significação,270 fica claro que o compreender jamais pode ser refém da explicação científica. De acordo com Manfredo Oliveira, “para Gadamer, a analítica temporal do ser humano em Heidegger demonstrou convincentemente que a compreensão não é um modo de comportamento do sujeito”, 271 mas uma maneira de ser do Dasein. Ainda segundo Manfredo Oliveira, “há hermenêutica porque o homem é hermenêutico”.272 Finito e histórico, o homem se articula pelo compreender, por saber de sua experiência de mundo e autorreconhecimento enquanto ser no mundo.
266
Idem. Idem. 268 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Vozes: Petrópolis, 2006, p. 203. 269 GADAMER, H-G. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 7º Ed. Vozes: Petrópolis, 2006, p. 359. 270 COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Del Rey: Belo Horizonte, 2002, p. 26. 271 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 225. 272 Idem. 267
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A afirmação de Manfredo Oliveira segue na mesma linha de Apel. Para ambos, a relevância da epistemologia existencial heideggeriana se mostrou na superação da lógica científica. Nela, o compreender era usado como método no processo investigativo. “A nova hermenêutica pôde demonstrar que o compreender como maneira do ser no mundo peculiar ao homem, já é pressuposta, na epistemologia, na constituição dos dados da experiência”. 273 O problema do compreender, na dimensão transcendental, passa a ser o do sentido da verdade. Nisso, entende-se que o problema da verdade não é um problema da subjetividade, mas do ser humano na história do mundo com uso da linguagem, e, enquanto uso, na linguagem deve se pressupor um acordo mútuo. Assim, o descerramento de sentido não pode estar subordinado à mera elucidação, e sim referido a um consenso, como manifesta interpretação do sentido do mundo. O “compreender” ao outro só é um ato hermenêutico se a relação sujeito-sujeito de “acordo mútuo” acerca de algo – em que deposita a confiança no outro quanto à verdade ou a correta decisão normativa de questões práticas – não for substituída por uma objetivação descritiva ou mesmo explanativa de seus atos psíquicos. Portanto, também as regras de uma hermenêutica como doutrina da interpretação precisa ser entendida a partir de um contexto de um acordo mútuo.274
Na ótica de Costa, isso é verificável em Apel “através de uma atual irrupção de uma problemática histórica fenomenológico-hermenêutica na dimensão histórica da teoria normativa da ciência”.275 Isto é pacífico de entendimento porque a própria ciência pressupõe o acordo. “A tese de relevância metódico normativa do acordo se refere à compreensão filosófica de todas as formas de conhecimento humano, inclusive a autocompreensão”.276 É possível ver nisso a importância do sentido da compreensão
273
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. São Paulo: Edições Loyola, 2000a, p. 30. Sobre essa peculiaridade, nota-se que “a pergunta pelas condições de possibilidade do compreender remetem a total autoexperiência do sujeito, seja ela cognoscitiva, volitiva, emotiva, estética, interpessoal, histórica ou religiosa”. MORATALA, Augustín Domingo. Gadamer y Apel: ¿Hermenéutica experiencial o hermenéutica transcendental? In:REVISTA ANTHROPOS: Hellas del conocimiento. Karl-Otto Apel: Una ética del discurso o dialógica. Barcelona: Nº 183, marzo-abril, 1999, p. 74. 274 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000a, p. 32. 275 COSTA, Regenaldo da. Ética do Discurso e Verdade em Apel. Del Rey: Belo Horizonte, 2002, p.29. “Para um Kantiano como Apel, isto só é possível se se mantém o princípio regulativo e se se concilia com a antecipação da perfeição”. MORATALA, Augustín Domingo. Gadamer y Apel: ¿Hermenéutica experiencial o hermenéutica transcendental? In:REVISTA ANTHROPOS: Hellas del conocimiento. KarlOtto Apel: Una ética del discurso o dialógica. Barcelona: Nº 183, marzo-abril, 1999, p. 74. 276 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 2000a, p. 32.
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hermenêutica, por ter relevância acerca da compreensão filosófica de todas as formas de conhecimento.277
3.4 O conceito de consenso em Apel Como já vimos, o consenso em Apel é sustentado como ideia reguladora: a “última opinião” da comunidade ilimitada de comunicação sobre algo; mas ainda é necessário aclarar mais o significado deste conceito e enfatizar o que se entende por de verdade consensual. De antemão percebemos que se trata de um consenso racional. Nesse
caso,
o
consenso
racional
é
entendido
como
aquilo
alcançado
argumentativamente, não havendo mais o que discutir a respeito. Chega-se a tal consenso considerando-se todos os critérios de verdade disponíveis, e, em vista destes critérios, considerá-lo insuperável argumentativamente. Abaixo, na nota do texto publicado em 1991, Apel apresenta o consenso atribuindo-lhe uma função criteriológica, implicado ao sentido da verdade. Assim, este conceito passa a ser caracterizado pelo caráter regulador, tendo-se em conta os critérios disponíveis. A função criteriológica da explicação consensual do sentido da verdade só pode consistir em que ela – e só ela – permite relacionar mutuamente, de forma comparativa e sintética, os critérios fáticos de que se dispõem para a verdade objetiva, mediante a interpretação e a argumentação, e desse modo, formar uma opinião – sempre falível e, por isso, provisional.278
Com estas palavras, ele marca a função reguladora do consenso último imbricada com critérios de verdade. Segundo Vidal, temos nisso uma exigência de síntese entre os critérios possíveis de verdade para se atingir o consenso fático. Em Peirce, a dimensão normativa das ideias reguladoras de Kant não está reduzida, como parece ocorrer em Wittgenstein, a “hábitos” convencionais do uso fático da linguagem e das formas de vida fáticas, senão que mantém sua função contrafática de orientação para o possível progresso dos processos de racionalização. 279
Daí que se assegura a função criteriológica ao consenso (em sentido a priori, transcendental) como propriedade da verdade. Este, por fim, indica que o predicado 277
COSTA, Regenaldo da. Op. Cit., 2002, p. 29. APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Barcelona: Paidós /I.C.E-U.A.B., 1991, p. 73. 279 APEL, Karl-Otto. Autopercepción intelectual de um processo histórico: Retrospectiva autobiográfica. In: REVISTA ANTHROPOS: Hellas del conocimiento. Karl-Otto Apel: Una ética del discurso o dialógica. Barcelona: Nº 183, marzo-abril, 1999, p. 18. 278
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“verdadeiro” tem como implicação certo saber prático do uso adequado da palavra verdade. O consenso apeliano, como podemos ver, tem a função criteriológica de exigir “que se critique todo consenso fático ou equivalente, que se mantenha atualizado o caminho feito por outros consensos possíveis” 280 para se atingir o consenso ideal. Norberto Vidal salienta que, no processo argumentativo é formulado, inseparavelmente ao conteúdo dos enunciados, uma pretensão de verdade. Isto é, pressupõe na argumentação ou processo argumentativo, a possibilidade “intersubjetiva e ilimitada” de se chegar a um consenso sobre as afirmações que se fazem 281os sujeitos mutuamente. Podemos dizer também que esse processo argumentativo é especificamente a antecipação do consenso, por considerá-lo válido. Nele, quem participa de uma argumentação age com pretensão de verdade das afirmações. Nota-se que juntas a pretensão de validade e pretensão de verdade compõem a concepção de consenso, enquanto conceito apeliano. O conceito de validez absolutamente intersubjetiva se pode usar [...] como ideia reguladora de uma aproximação metódica, entendendo-a como objetivo ideal de uma possível formação argumentativa de consenso em uma comunidade ideal de investigação. 282
Ainda conforme Vidal, a característica do consenso não é tanto de critério, mas de metacritério: “por metacritério há de se entender um critério cujo objeto não é diretamente a verdade dos enunciados (critério objetivo), senão precisamente a regulação do uso que há de se fazer dos critérios que se dispõe”. 283 Neste caso, o consenso possibilita, então, a parte necessária do processual “vai e vem” argumentativo em que os envolvidos fazem suas diferenciações de princípios dialógicos argumentativamente. Em outras palavras, quem argumenta age com pretensão de verdade, leva em conta a validade, e fundamenta a partir de critérios disponíveis de verdade. Com a expressão ”metacritério”, Vidal explicita que o consenso não é um critério como os outros critérios de verdade. Ele é, em suma, a condição do vai e vem de argumentações
280
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidaridad: La teoría de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares, S.L. Granada, 2000, p. 96. 281 Idem. 282 APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Barcelona: Paidós /I.C.E-U.A.B: 1991, p.75. 283 VIDAL, Norberto Smilg. Op. Cit., 2000, p. 97.
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que propicia o discernimento criteriológico mais aproximado das verdades aceitas consensualmente. A força do conceito de consenso, por parte de Apel, está na relevância heurística que ela acrescenta à pragmática transcendental. Portanto, esta noção de consenso que nos é apresentada implica o saber do uso correto ou incorreto, adequado ou inadequado da verdade. O consenso, conforme acima, é mais propriamente o saber “para o ajuizamento da validez e do procedimento de exame dos enunciados afirmados no processo de argumentação”284 em vista de favorecer a resolução intersubjetiva de uma pretensão de verdade. A adoção de um conceito de consenso como metacritério possibilita ter presente a definição aproximada da verdade, possível em conceitos intersubjetivos levando em conta os critérios reivindicados pelos sujeitos por meio de explicações. Diante do exposto, reconhecemos que é possível apenas dizer de uma “definição aproximada” da verdade. Isto é, “só resta a possibilidade de dar uma explicação indireta do sentido da verdade”, 285 segundo Apel. Em termos objetivos: a verdade mesma é inalcançável. Aqui retornamos à ideia de aproximação assintótica, indicada por Apel como aproximação metódica. Isso se faz necessário porque entendemos, em concordância com Apel, que o conhecimento não abarca em si a verdade, mas apenas uma validade intersubjetiva com reserva falibilista. Nos parágrafos acima destacamos que a aproximação assintótica tem relação com o longo prazo necessário para o melhorismo, até se chegar a uma situação considerada ideal em que a verdade é postulada. A situação ideal, no entanto, é uma referência. Ela é representada pela situação de “um progresso infinito, que, num tempo sem fim, se aproxima do seu objetivo, sem jamais o alcançar”. 286 Relacionada a situação ideal, é isso que se entende por aproximação assintótica ou metódica quando se fala em princípio regulador, ou comunidade ideal de comunicação. Quanto a isso, mostra-se na ideia de consenso uma peculiaridade na teoria apeliana da verdade. A verdade em Apel não depende do consenso, como pode se supor, mas da verdade objetiva dos juízos.
284
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidaridad: La teoría de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares, S.L: Granada, 2000, p. 98. 285 APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Barcelona: Paidós /I.C.E-U.A.B., 1991, p.74. 286 SIDEKUM, Antônio. Ética do Discurso e Filosofia da Libertação: Modelos complementares. Editora Unisinos: São Leopoldo, 1994, p. 80.
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No sentido de nossa intuição natural – assim se diz – o consenso deve depender da verdade objetiva dos juízos e não ocorre que o conceito de verdade dependa do consenso. Sem embargo, é precisamente isto que se supõe da teoria consensual de orientação peirceana. 287 E é o que ressalta Vidal com respeito à nota supracitada, para que se afaste qualquer interpretação definitiva sobre a verdade consensual: “daqui que o consenso se fundamenta nos critérios de verdade – e não o inverso – com que marcamos também a diferença entre critério de verdade e consenso”288 na teoria apeliana. Se entendermos o consenso ideal, no âmbito da comunidade ideal de comunicação, como uma antecipação contrafática, o consenso fático acaba por ser aquilo que comumente chamamos de verdadeiro, intersubjetivo, com reserva falibilista. O conceito de consenso, de sentidos duplamente transformados na pragmática transcendental, é formulado com precedência do sentido a priori; porém, o consenso intersubjetivo ocorre discursivamente na situação prática (Leibapriori). Enquanto resultado, é a manifesta pretensão de verdade sob esta condição, metodológica e eticamente relevante.289
3.4.1 Evidência de correspondência No programa de transformação da filosofia, duas afirmações explicitam a teoria consensual como integradora de verdades. Segundo Apel, elas dizem respeito à correspondência e a insuficiência de critérios para dizer o que é a verdade. A primeira coloca a correspondência como uma intuição básica, natural e necessária, pressupostas por todas as teorias da verdade.290 Apel parte dessa concepção originada de Peirce, de modo a sustentar uma correspondência entre o consenso ideal e o real, conhecível por meio de signos. É no mínimo curioso que Apel situe a verdade numa correspondência, concebendo que ambas evidências, da filosofia da consciência e do mundo da vida, não são alcançáveis suficientemente. Portanto, apenas possíveis pela correspondente aproximação assintótica entre o ideal e o real. De acordo com Vidal, dessa possibilidade 287
APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Barcelona: Paidós /I.C.E-U.A.B., 1991, p.73. 288 VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidaridad: La teoría de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares, S.L: Granada, 2000, p. 101. 289 Ibidem, p. 102. 290 APEL, Karl-Otto. Op. Cit., 1991, p. 73.
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extraímos as interpretações linguísticas do mundo, vige a multiplicidade de esforços constantes de aclaração de significados, em busca de trazer à tona a verdade: Na medida em que se produz a aclaração progressiva do sentido será possível propor novas hipóteses e teorias explicativas de fenômenos que acontecem no mundo capazes de gerar novos consensos; e vice versa, novas hipóteses explicativas de fenômenos novos ou não – implicam na necessidade de transformação do sentido do mundo [...] possibilita que as constituições de sentido sejam concebidas simultaneamente como condição de possibilidade e como resultado dos processos de investigação e aprendizagem. 291
Se concebermos a teoria apeliana tendo simultaneamente entrelaçadas condições de possibilidade, resultados de processos de investigação e aprendizagem como uma marca característica, mostra-se nela a refutação dos critérios de evidência independentes. Isso é necessário para refutar todo “decisionismo”, que por exemplo, alicerça o posicionamento de Popper. O realismo da teoria da verdade, que constitui o transfundo do falibilismo em Peirce, não tem o caráter de uma hipótese metafísica que não se pode fundamentar mais, em diferença do “realismo” de Popper, senão que se fundamenta na mesma lógica normativa da investigação que [...] devia proporcionar uma “dedução transcendental” dos fundamentos de validez” de todos os “processos sintéticos de raciocínio”, assim como também do conhecimento por experiência.292
De acordo com Vidal, “se o processo do acordo não for perturbado – se se produz em condições ideais – pode-se chegar in the long run a objetividade mediante um consenso universal que vem a ser o correlato semiótico da consciência em geral de Kant”.293 No entanto, a função básica de “integração” entre linguagem e experiência está na noção de evidência. Entretanto, é preciso uma transformação dela, posto que a evidência perdeu crédito por causa dos giros linguístico e hermenêutico pragmático: primeiro, em vista da adoção da orientação linguística da filosofia; e, depois, por causa da compreensão de que os fenômenos se dão sempre de forma contextual, histórico, impossibilitando-se isolar contingência e facticidade.294
291
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidaridad: La teoría de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares, S.L. Granada, 2000, p. 103. 292 APEL, Karl-Otto. Teoría de la Verdade y Ética del Discurso. Barcelona: Paidós /I.C.E-U.A.B., 1991, p.110. p. 42. 293 VIDAL, Norberto Smilg. Op. Cit., 2000, p. 104. 294 VIDAL, Norberto Smilg. Consenso y evidencia como radicales de la verdade. In: REVISTA ANTHROPOS: Hellas del conocimiento. Karl-Otto Apel: Una ética del discurso o dialógica. Barcelona: Nº 183, marzo-abril, 1999, p. 62.
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Conforme Vidal, por um lado a evidência, desde Peirce, corresponde à categoria da primeiridade, não sendo ainda conhecimento completo, mas enquanto conhecimento é preciso situá-la na categoria da terceiridade. Nos ajuda esse discernimento, já que a relevância dela “tem de ser compartilhável, tem de ser intersubjetivamente válida, tem de ser em – em fim – interpretável e reinterpretável linguisticamente”, 295 dentro da proposta de verdade Apeliana. Subsiste nisso, o que é uma insistência do nosso filósofo, a ideia de complementariedade para constituir a validade na articulação da semiótica com a hermenêutica e a pragmática. Isso é para ele a realização da passagem do paradigma monológico para o da linguagem. Posto que Apel pretende considerar a subjetividade centralizada entre o “fato público objetivo” e a argumentação. Isso aponta também para a rejeição da intersubjetividade dependente da subjetividade no que enceta o conhecimento do mundo alicerçado na validade intersubjetivamente plausível de aceite. Só que desta vez por sujeitos que argumentam no seio de uma comunidade de comunicação e originalmente no crivo da filosofia contemporânea. Note-se que a interpretação feita por Apel da semiótica de Peirce, uma vez ancorada a linguagem à verdade, nos mostra que ele quer também um discernimento pragmático da filosofia acerca do que é dialogicamente evidente numa comunidade ilimitada de interpretação, cujo logos linguístico está envolvido historicamente. A possibilidade de ter a evidências como critério insuficiente, “ao menos nos casos das ciências empírico-naturais e das ciências hermenêuticas, é necessária para uma complementação do critério de evidência cognoscível mediante outros critérios”. 296 No entanto, para Apel, trata-se da consistência e coerência das interpretações e reinterpretações capazes de suscitar o consenso sobre a verdade dos enunciados com sentido e validade no mundo da vida.
3.5 A verdade como o caso especial da validade Ciente que de a linguagem possui dupla estrutura, proposicional e performativa, Apel distingue a parte proposicional como condição de verdade, e a performativa, como 295
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidaridad: La teoría de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares, S.L. Granada, 2000, p. 104. 296 APEL, Karl-Otto. Autopercepción intelectual de um processo histórico: Retrospectiva Autobiográfica. In: REVISTA ANTHROPOS: Hellas del conocimiento. Karl-Otto Apel: Una ética del discurso o dialógica. Barcelona: Nº 183, marzo-abril, 1999, p. 18.
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condição de validade. A esse respeito, ele se guia pelas publicações da década de 70 de Austin e Searle. 297 Apel explicita que essa necessária diferenciação não foi feita pelo Wittgenstein do Tratactus. Mas, de acordo com Vidal, Wittgenstein acredita que conhecer o significado de uma oração significa saber as condições possíveis de validade, da aceitabilidade.298 Isso já é suficiente para refletir se as condições de verdade são absolutas para determinar significado linguístico.299 Naturalmente, Wittgenstein segue o paradigma linguístico da Tradição. No entanto, o problema é que ele em nenhum momento expõe, ao contrário de Apel, a relevância desta diferenciação do significado e da validade. Apel está certo de que a complementariedade entre atos de fala performativos e proposicionais constitui justamente a relevância do logos da linguagem humana. Para nos esclarecer a diferença, Apel propõe a reflexão sobre um logos próprio da linguagem humana. A diferenciação mesma do logos não é novidade, ele nos recorda que Aristóteles fazia diferenciação entre logos apofântico e semântico. Também Teofrasto se assegurava de uma dupla relação. Sócrates, sobretudo, buscava o contexto do diálogo, que, para Platão, tinha a forma de um organum que permitia comunicar, ao outro, qualquer coisa.300 Ao fazer referência à Tradição, ele leva adiante sua concepção de que a verdade intersubjetiva é linguisticamente articulada com a história e o presente. Daí sua insistência de que a compreensão adequada de atos de fala não se produz sobre o ato proposicional, mas na força ilocucionária da fala, na situação de comunicação. Nisso concorda Vidal, pois uma resposta ao ato ilocucionário está convencionalmente condicionado. E que, por isso, os atos de fala diretivos possibilitam conflitos entre o significado proposicional e o ilocucionário. “Assim se pode explicar como o destinatário pode diferenciar entre uma ordem ou uma promessa, quando o conteúdo proposicional é o mesmo”. 301 Deste modo, não só se entende a força de um ato 297
APEL, Karl-Otto. Semiotica Filosofica. Almagesto: Buenos Aires, 1994c, p. 100. VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 287. Segundo Apel, “o primeiro Wittgenstein tinha compreendido as proposições da linguagem numa ótica lógico-matemática, com o intuito de fazer referência aos objetos ou estados de coisas”. APEL, Karl-Otto. Le Logos Propre au Langage Humain. Éditions de L’eclat: Paris, 1994a, p. 19. 299 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico. Investigações Filosóficas. 2º. Ed. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1995, 4.024. 300 Ibidem, p. 12, 13, 16. 301 VIDAL, Norberto Smilg. Op. Cit., 2000, p. 288. 298
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proposicional, mas também “algo” que faz com que se respeite ou não um ato ilocucionário. Com esta afirmação, Apel, segundo Vidal, argumenta que determinado sujeito destinatário de um ato ilocucionário tem que entender não só as condições de realização do significado proposicional, mas também as condições de validade de um ato de fala diretivo, que faz valer a força ilocucionária. 302 Apel considera que este “algo” dotado de força ilocucionária, em última instância, traz “os fundamentos racionais universalmente válidos que permitem julgar a obediência de uma ordem como fundada ou justificada”. 303 Deste modo, como explica Vidal, a força ilocucionária implica em compreender simultaneamente a pretensão de validade presente no ato de fala: A ameaça, as expectativas de obtenção de um benefício ou recompensa, podem ser consideradas como bons motivos ou boas razões, incluindo-se os sentimentos podem sê-los também. Isto é, no mundo da vida se entrecruzam duas dimensões: a negociação estratégica e o acordo baseado em critérios de validez. 304
Por isso Apel discorda de Searle, quando este se ocupa de explicar na última parte de seu ensaio os atos assertóricos. 305 A divergência entre conteúdo proposicional e força ilocucionária, no que concorda Vidal com postura de Apel, é contraditória por parte de Searle. De acordo com Manfredo Oliveira e Norberto Vidal, Austin também discorda de Searle, pois o ato assertórico completo está carregado de verdade, enquanto casos especiais podem ser happy ou unhappy. A despeito de serem cumpridas ou não as condições de realização da aceitabilidade. Consequentemente, a efetivação de um significado constitui-se como um gênero da validez do significado linguístico.306 Ora, o significado de uma proposição em princípio está em suas condições de verdade. Portanto, afirmar a existência de atos de fala que careçam de componente 302
APEL, Karl-Otto. Semiotica Filosofica. Almagesto: Buenos Aires, 1994c, p. 104. Apud VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 287. 303 De acordo com Apel, “isto nos leva mais além da vigência convencional da autoridade institucional de quem emite uma ordem, e o sentido incluso da possível legitimação dessa vigência”. APEL, Karl-Otto. Semiotica Filosofica. Almagesto: Buenos Aires, 1994c, p. 116. 304 Norberto Smilg Vidal. Op. Cit., 2000, p. 289. 305 SEARLE, John. Os Actos de Fala: Um ensaio de filosofia da linguagem. Livraria Almedian: Coimbra, 1981, p. 191. 306 VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 290. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta Lingüístico-pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p. 153.
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ilocucionário vai contra a “dupla dimensão performativo-proposicional da linguagem, que é efetivamente estrutural e universal, não se entendendo só como característica de determinadas sequências linguísticas”. 307 O caso dos atos de fala assertóricos implica, no que concordam Apel e Vidal, que o destinatário não pode simplesmente escolher se quer alcançar ou não o ato de fala completo, isto é, qual parte do ato de linguagem irá preferir para distinguir um conhecimento. Para Apel,“o falante que afirma algo como verdadeiro se crê autorizado a mostrar ao destinatário a exigência de: o bem aceitar como verdadeiro o afirmado (a proposição), ou bem pode impugná-lo com fundamentos”308 irrecusáveis. A discussão sobre fundamentos nos leva ao ponto em que, para Apel, de acordo com Vidal, “as condições de verdade de uma oração são um caso especial das condições de validez”,309 pois as condições de validade de um ato de fala, na medida da aceitabilidade, tem a possibilidade de produzir consenso. Sobre a especificidade desse consenso, Manfredo Oliveira acrescenta que na teoria da verdade pragmático-transcendental “a evidência cognitiva perde, de fato, seu status como instância última de decisão para o consenso intersubjetivo, onde todas as evidências subjetivas são situadas e julgadas (eventualmente corrigidas)”. 310 Em outras palavras, ao se considerar a dupla estrutura, na fundamentação apeliana imbricam-se conhecimento e comunicação. É exatamente a descoberta desta mútua imbricação entre “conhecimento e comunicação” que faz emergir a dupla estrutura da fala, de enorme significação das discussões atuais sobre a questão da fundamentação: a dupla estrutura da fala significa que o falante, em cada ato de fala, se relaciona reflexivamente (estritamente) com suas próprias ações linguísticas atuais e seus proferimentos (sentenças performativas) e não apenas com o conteúdo proposicional afirmado. 311
A verdade, como caso especial, é manifesta pretensão de validade performativamente. Como caso especial, ela não é concebida por Apel exclusivamente como proposição, mas fundamentada pelo o sujeito de linguagem. A fim de se
307
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidaridad: La teoría de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares, S.L. Granada, 2000, p. 289. 308 APEL, Karl-Otto. Semiotica Filosofica. Almagesto: Buenos Aires, 1994c, p. 105. 309 VIDAL, Norberto Smilg. Op. Cit., 2000, p. 290. 310 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Sobre a Fundamentação. 2ª ed. EDIPUCRS: Porto Alegre, 1997, p. 80. 311 Idem.
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assegurar, por meio da força ilocucionária, o consenso com outros sujeitos de linguagem. Enquanto verdade consensual, isso não só aponta para a abertura da linguagem ao mundo fenomênico, mas também para o cancelamento da falácia naturalista 312 e da abstrativa, assegurada pela reflexão transcendental apeliana. O conhecimento, então, passa a ser implicado na argumentação, a partir de uma busca cooperativa pelo sentido da verdade. “Pois desde início o filósofo, como argumentante, já terá reconhecido implicitamente o pressuposto da comunidade crítica e ilimitada de comunicação”. 313 Isto é, propriamente numa relação sujeito-sujeito do conhecimento. Assim, é possível falar de integração e atualização de conhecimentos justificáveis em Apel.
312
VIDAL, Norberto Smilg. Consenso, Evidência y Solidariedad: La teoria de la verdad de Karl-Otto Apel. Editorial Comares: Granada, 2000, p. 292. 313 APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II: O a priori da comunidade de comunicação. São Paulo: Edições Loyola, 2000b, p. 252.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em face do exposto, o objetivo foi apresentar o lugar da teoria da verdade na pragmática transcendental, expondo o pensamento de Apel de maneira a situar a linguagem como referência principal de sua obra. E ademais, com ênfase no teor reflexivo e social que dá destaque à filosofia da linguagem ao se pensar a filosofia contemporânea. Consequentemente, percebe-se pelo êxito da empreitada de Apel que a postura filosófica é mesmo uma postura que implica reflexão e ação (argumentativas), sobretudo em manifesta defesa da humanidade, inclusive para evitar que novas formas de Auschwitz aconteçam. Em síntese, o trabalho objetivou mostrar que a teoria da verdade está articulada arquitetonicamente com a pretensão de sentido e a pretensão de validade, e cabe por isso dizer que a ideia de “consenso” e a de “evidência” estão entretecidas radicalmente juntas na compreensão do mundo, e que a verdade não é exclusividade do arbítrio da consciência. Ao contrário, ela adquire sentido linguístico exatamente pelas condições formais de possibilidade da justificação discursiva na instância pública ilimitada. Portanto, a instância última capaz de testar a verdade e atestá-la. Com esta breve consideração, para um melhor esclarecimento das características da verdade pragmático-transcendental, convém ainda o registro de explanações dignas de apreciação no sentido de ir “com e contra” Apel. Sob o ponto de vista que reflete a Tradição, Apel aponta para a importância de não aceitarmos o mundo como dado, porque as reflexões anteriores demandam importância por engendrar em nós a reflexão sobre elas e as nossas próprias reflexões, como um porto seguro em que podemos retornar e novamente partir. Por um lado, Apel quer restituir o valor dos testemunhos; por outro, quer que se possam, racional e fundamentadamente, reinterpretá-los. Deste modo, os testemunhos das tradições são as referências para nos guiarmos, ir além ou não ultrapassar, inadvertidamente, posicionamentos indispensáveis à “leitura” e a “interpretação” de nós mesmos e do mundo. Da perspectiva de um conceito transcendental-hermenêutico de linguagem, notamos que a verdade está baseada no medium em que se dá o acontecer de sentidos, ou seja, a linguagem, em que o ser humano pode, sem embargo, pensar e discursar a respeito de um mundo interpretável. De fato, com Kant, Apel firma a dimensão
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transcendental da linguagem como dimensão da condição de possibilidade da validade intersubjetiva do pensamento, e, portanto, do conhecimento ideal e fático. Por causa desta dimensão é possível o consenso, concebido dialeticamente numa aproximação assintótica. Tanto publica quanto intersubjetiva. Com Heidegger, Apel sustenta que há um “momento do acontecer da comunicação” numa “abertura de sentido do mundo”, originada por causa da linguagem entendida como metainstituição de todas as instituições. A reconstrução da filosofia do sujeito é uma posição radical em Apel. Ao trazer à tona a rediscussão do sujeito do conhecimento na pragmática transcendental, a proposta é que o sujeito do conhecimento seja também sujeito da ação. No entanto, na convicção de Apel, no caso, baseado em Peirce, a comunidade ilimitada de comunicação é o novo sujeito – em que converge todo conhecimento que destinam as ações humanas. Ademais, um sujeito que integra seres humanos como co-sujeitos que interpretam e consequentemente agem, tendo-se como referência significativa do mundo as relações humanas comunitárias. Pois, para o frankfurtiano, a estrutura do método filosófico, a fortiori, é o dialético. Se coerentemente for assim, com a propícia teoria dos atos de fala de Austin e Searle então a relação apropriada passa a ser a dialética. Isto é, sujeito-sujeito do conhecimento ao se tratar das relações humanas. Esta nova relação é parte do esforço de desconstruir a distinção entre razão teórica e razão prática. Nisso, Apel não seguirá Kant, mas sim, segue com Peirce e o segundo Wittgenstein para evitar o solipsismo metodológico e assegurar o factum dialógico da razão. Mas depois, primado na linguagem, alinha-se novamente com Kant para refutar o determinismo de Popper e Albert, rechaçando não só o posicionamento cientificista, mas todo intento de fundamentação que não filosófico para afirmar a verdade. Quanto ao sentido do “transcendental”, Apel defende o sentido dado por Kant. Todavia, é preciso perceber que ele o coloca arraigado na história, permitindo-se o encadeamento entre verdade e tempo. Isso para situar caracteristicamente a perspectiva histórica da razão. Neste aspecto, o filósofo procura ir mais além da explicação para explicitar a aproximação metodológica do compreender hermenêutico, como método. No registro da teoria da verdade, neste trabalho, duas ênfases se mostraram singulares. Primeiramente notamos que a manifestação do mundo não acontece de outra forma senão pela linguagem, pois por ela se desvela o velamento dos sentidos e se revelam os sujeitos. Simultaneamente tanto na compartilha do mundo quanto por
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argumentos – o que impossibilita a ideia de neutralidade. Num segundo instante, nos deparamos com o desdobramento das condições formais, isto é, das regras que tornam possíveis as justificações – pela fundamentação não dogmática do conhecimento sobre a verdade. Na teoria de Apel o consenso deve ser aproximativo entre o fático e o ideal. O consenso surge como condição de possibilidade a priori, e também o telos da linguagem. Ao transformar o factum kantiano em factum da argumentação Apel quer explicitar que a razão considera previamente o acordo sobre regras específicas. Portanto, é o acordo que faz valer a força de um ato ilocucionário. Trata-se da “autocertificação” que a razão sustenta para argumentar. A razão dialógica, precisamente, tem o aspecto de comportar a possibilidade de identificar e criticar a autocontradição performativa na situação de argumentação. Esta é a razão que exige a validade das pretensões, que não incorre na falácia abstrativa. Nem se entrega ao mero discurso. Visto que são indispensáveis a pretensão de verdade do discurso e a norma rigorosa que o pressupõe, perante a comunidade ilimitada de comunicação. Do ponto de vista de Apel, o consenso há que ser compreendido como um metacritério que, estruturalmente bivalente, pode ser entendido como (a) um “momento de verdade”; e, (b) condição de tessitura da verdade por meio de outros critérios de verdade. É neste sentido que o consenso é telos, e ao mesmo tempo uma ideia reguladora, argumentativamente constituída e legitimada procedimental por uma comunidade real de comunicação. No tocante a evidência, este é um problema que se mostra delicado para explicar a verdade no conceito pragmático-transcendental. Até porque este é um caso paradigmático na história da filosofia. O termo evidência é assumido tanto no sentido empírico como no reflexivo, pois neste termo é que está o nexo entre o real e o ideal, o fático, e o pressuposto contrafático. No sentido empírico, o acontecer da argumentação se dá pela linguagem e regras dos argumentos consoantes a uma comunidade real de comunicação. Nela é que os sujeitos podem afirmar pretensões de verdades esperando que outros possam admitilas, diante de justificações consensuais. Já no sentido reflexivo, considera-se a priori o vínculo de pertença a uma comunidade de comunicação real, na qual se leva em consideração a possibilidade de aceite ou não dos argumentos. Segundo critérios que a razão não pode rejeitar. A
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reflexão, enquanto agir argumentativo pressupõe a comunidade real. Idealmente antecipada pela pretensão de sentido e a pretensão de validade dos argumentos. Em outras palavras, a razão dialógica é que tem as condições intransponíveis a priori, não contingentes e últimas, no plano comunitário da justificação da verdade. Pesa contra Apel a expressão “pós-metafísica crítico falibilista”, por recorrer à metafísica para dizer de uma comunidade ideal, inclusive utilizando seus conceitos. O mesmo ocorre com “estrutura do jogo transcendental de linguagem”, e a ideia de uma “metainstituição” para se referir à linguagem. Ora, estes são termos que Apel usa em sua transformação da filosofia. Porém, a própria concepção pela qual a razão se certifica de regras para agir, segundo leis que impõe a si mesma, é lançada para o plano da prática comunicativa, e compõe a relação sujeito-sujeito numa comunidade ilimitada de seres humanos. Além disso, a ideia de universalidade é conservada pela forte adesão à reflexão transcendental clássica. Mesmo que se possa afirmar a teoria da verdade como pós-metafísica, é a partir da transformação semiótica empreendida por Peirce que Apel propõe o retorno a Kant, e sustenta, com base nas leis da razão, uma releitura em declarada adesão da filosofia de Kant na contemporaneidade. Ainda um fator merece destaque em Apel, e justamente acerca da concepção de liberdade. No caráter público do Leibapriori de Apel está tácita a substituição do “eu penso” por um “nós argumentamos”. Com isso, ocorre a descentralização da liberdade proveniente da causalidade da razão humana, situando a fundamentação da causalidade na comunidade de comunicação ideal, que para ele é o sujeito do conhecimento e das ações humanas. Isto é, a unidade do consenso último apta a validar todo sentido teórico e prático. Embora esta seja uma problemática que arremete ao âmbito da metafísica, a ser discutida à luz da Ética do Discurso, permanece fixa no problema da teoria da verdade enquanto discussão das justificativas que o ser humano encontra para fundamentar racionalmente a verdade. Não obstante, o problema é que isso significaria a necessidade de pôr em discussão que a autocertificação da razão estaria, por assim dizer, qualificada pela prévia consideração da comunidade de comunicação. Sem dúvidas, uma última palavra a ser dita sobre a obra de Apel é “contribuição”. A crítica ao falibilismo científico na ideia de contribuição pode ser notada pelo rol de perspectivas filosóficas através dos tempos, em termos de melhorias contributivas a nós legadas. Na teoria da verdade o posicionamento pragmáticotranscendental é uma resposta compromissada com a exigência de solucionar problemas da humanidade ao abstermos da relação sujeito-objeto para tratar de seres humanos. E
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de tal modo, promete revelar as justificações que não levam em conta a dignidade humana, e sim interesses pessoais, convicções do típico pathos ético religioso que não ajudam, segundo Apel, numa proposta solidária e responsável. No decorrer deste estudo, os questionamentos sobre a ideia de fundamentação nortearam a pesquisa bibliográfica para esclarecer a proposta apeliana. E sob a delimitação da ideia de fundamentação, pareceu-nos importante uma investigação voltada para o aprofundamento de uma possível instrumentalização da reflexão. Esta, implicada em um estudo das falácias e pseudointeresses na perspectiva da ética do discurso e da teoria da verdade em Apel. Por fim, concluo neste último parágrafo que embora Karl-Otto Apel seja contestável em muitos aspectos, a teoria da verdade se mostra consequente pelo método que comprova a diferença transcendental e a autocontradição performativa. E neste caso, é bem possível que o método pragmático transcendental esteja entre as mais pertinentes discussões na história da filosofia, com o qual contemporaneamente converte a crítica da razão em razão comunicativa.
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