Sobre as Regras para o parque humano de Peter Sloterdijk *
José Oscar de Almeida Marques Departamento de Filosofia – Unicamp E-mail:
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Resumo: Raramente um texto filosófico desperta uma polêmica como a que envolveu as Regras para o parque humano, do filósofo alemão Peter Sloterdijk. Neste artigo, examino esse texto, buscando identificar as razões para sua conturbada recepção, e proponho que, mais do que às conseqüências éticas da aplicação da genética à seleção e determinação das características da espécie, a polêmica se relaciona a um movimento mais profundo de distensão das férreas diretrizes político-intelectuais que governam, desde o pós-guerra, a interpretação da história alemã recente. Palavras-chave: Heidegger, Nietzsche, humanismo, genética, antropotécnicas. Abstract: Seldom does a philosophical text raise such a controversy as the book Regeln für den Menschenpark by the German philosopher Peter Sloterdijk. This paper examines Sloterdijk’s book and tries to identify the reasons for the explosive reaction it produced. I suggest that the controversy owes more to an intellectual weakening of the stringent guidelines that have dictated the interpretation of postwar German history than to fears of the ethical
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Texto originalmente apresentado em 23.11.2001, no VIII Colóquio Heidegger, sobre o tema “A Fabricação dos Humanos”, realizado no IFCH-Unicamp. Natureza Humana 4(2): 363-381, jul.-dez. 2002
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consequences of the application of genetics to select and determine the characteristics of the human species. Key-words: Heidegger, Nietzsche, humanism, genetics, anthropotechnology.
Nos meses de setembro e outubro de 1999, o establishment filosófico alemão foi agitado por uma polêmica de inusitada virulência. O fato desencadeador foi a apresentação, pelo filósofo Peter Sloterdijk, de uma conferência intitulada “Regras para o parque humano”, pronunciada em 17 de julho de 1999 em um colóquio dedicado a Heidegger e Lévinas, no castelo de Elmau, na Baviera. Ao tratar de tópicos como as novas técnicas de manipulação genética e ao prever o surgimento de uma “antropotécnica”, o texto de Sloterdijk, logo publicado em forma de livro,1 provocou uma forte reação nos meios de comunicação alemães, produzindo ecos na França e também entre nós, no Brasil.2 Sloterdijk já havia apresentado uma versão preliminar de suas idéias dois anos antes, na cidade suíça de Basiléia, sem provocar maiores reações. Foi com surpresa, portanto, que deve ter observado a tempestade causada pela conferência de Elmau. Para Sloterdijk, mais do que as breves especulações sobre a genética, o que havia de teoricamente importante em seu texto era, em primeiro lugar, um tratamento original da relação do humanismo com os meios de comunicação, ou uma interpretação midiática do humanismo, que examinaremos mais à frente. O segundo ponto, de maior interesse para os heideggerianos, era a proposta de revisão do motivo da clareira, com a incorporação de sua história natural e social, invertendo a prioridade heideggeriana da dimensão ontológica sobre a ôntica (Sloterdijk 1999a, p. 61). 1 2
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Sloterdijk 1999a: Regeln für den Menschenpark (Regras para o parque humano). As indicações bibliográficas completas das obras citadas encontram-se no final do artigo. Para as repercussões no Brasil, ver “O novo zoológico do homem”, matéria de capa do caderno “Mais!”, Folha de S. Paulo, 10 de outubro de 1999. Natureza Humana 4(2): 363-381, jul.-dez. 2002
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Essas propostas, segundo Sloterdijk, foram bem compreendidas pelos participantes, entre os quais se achavam filósofos e teólogos de Israel, França, Estados Unidos e diversos outros países. Alguns jornalistas presentes, entretanto, tiveram sua atenção atraída principalmente por certas afirmações, nas quais viram uma oportunidade de causar sensação. E, de fato, tomadas fora de contexto, algumas asserções de Sloterdijk soavam muito fortes: declarando a falência do humanismo quanto à tarefa de domesticar a animalidade humana, ele perguntou se a evolução não caminharia para uma reforma das qualidades da espécie, para uma “tecnologia antropológica, uma antropotécnica”, aí incluída uma planificação explícita das características humanas, e também “se a espécie humana não irá passar do fatalismo do nascimento ao nascimento escolhido e seleção pré-natal” (ibid., p. 47). Essas questões despertaram um burburinho e, nos meses seguintes, foi gestada uma reação, cujo resultado explodiu em dois artigos que abriram a temporada de caça. O primeiro foi “Das Zarathustra-Projekt” (“O projeto Zarathustra”), um longo texto de Thomas Assheuer (na época um dos editores do Zeit), com o lead: “O filósofo Peter Sloterdijk exige uma revisão tecnogenética da humanidade”. O segundo artigo, escrito por Reinhard Mohr, apareceu logo a seguir, em Der Spiegel, e se intitulava “Züchter des Übermenschen” (“Criador do Super-homem”), trazendo a chamada: “O filósofo Peter Sloterdijk propagandeia a seleção pré-natal e o nascimento opcional: técnica genética como crítica social aplicada. Seu recente discurso sobre ‘criação dos humanos’ traz traços de retórica fascista”. A resposta de Sloterdijk não se fez esperar. Poucos dias depois, em 9 de setembro, Die Zeit publicou seu artigo, em forma de duas cartas abertas, dirigidas, a primeira, a Assheuer, e a segunda, não a Mohr, mas àquele que Sloterdijk considerava o verdadeiro mentor desses ataques: Jürgen Habermas. Habermas é, de fato, o alvo principal de Sloterdijk: duas ou três páginas bastam-lhe para despachar Assheuer, e toda a munição restante é destinada a Habermas. Sloterdijk denominou seu texto, provocativamente, “Die Kritische Theorie ist tot” (“A teoria crítica está morta”). Cito um parágrafo, para indicar seu teor: Natureza Humana 4(2): 363-381, jul.-dez. 2002
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Sr. Habermas, o Sr. conversou com inúmeras pessoas sobre mim, jamais comigo. No nosso ramo, essencialmente argumentativo, isso já dá o que pensar; em um teórico do diálogo democrático é incompreensível. Nessas falas, a julgar pelos rumores que ouvi, seu objetivo foi apenas acirrar os ânimos… O Sr. telefonou para toda a parte, de Hamburgo a Jerusalém, para converter outros a seu erro. O Sr. chegou a colocar sob pressão maciça colegas que acharam que minha palestra de Elmau merecia reflexão. Mais ainda, o Sr. preparou cópias piratas do texto (que lhe foi cedido privadamente) e as enviou, ferindo todas as boas práticas colegiais, acadêmicas e publicísticas, a jornalistas que foram e são seus alunos, acompanhadas de instruções explícitas para uma má interpretação, e exigindo que agissem. O Sr. despejou recriminações quase chantagísticas sobre participantes do evento de Elmau por não terem reagido in situ à minha fala de maneira tão excêntrica quanto a sua. O Sr. encomendou a um colaborador do Zeit, bem como a um articulista do Spiegel, artigos alarmistas, nos quais seu nome não deveria aparecer. Seu aluno Assheuer soou inicialmente o alarme, a seguir Mohr continuou a tarefa.
É uma carta longa, que segue nesse tom por várias páginas – uma verdadeira declaração de guerra. Em resposta, Habermas apenas enviou uma breve nota ao Zeit, em 16 de setembro, manifestando desinteresse pelo trabalho de Sloterdijk, negando que tivesse incitado a polêmica e abstendo-se de outros comentários sobre o assunto. Em sua entrevista ao caderno “Mais!” da Folha de S. Paulo,3 Sloterdijk afirma que a carta de Habermas a Assheuer, contendo, entre outras, a afirmação de que o texto é “genuinamente fascista”, teria sido publicada no Frankfurter Allgemeine Zeitung, em sua edição berlinense, e igualmente veiculada no noticiário noturno de TV do canal 1 (ARD) alemão, mas, infelizmente, esse documento não parece estar disponível em parte alguma, e não pude confirmar seu conteúdo. 3
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Ver nota 2. Natureza Humana 4(2): 363-381, jul.-dez. 2002
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A polêmica na imprensa continuou em grande efervescência,4 e seu ponto alto foi certamente o número de 27 de setembro do Spiegel, que dedicou a capa e um amplo dossiê ao livro de Sloterdijk. O textos são uniformemente críticos, mas o mais ilustrativo é a capa, absolutamente bombástica, que por si só vale por todo um ensaio:5 emoldurada por um mapa circular de cromossomos, irrompe em seu centro uma estátua no estilo de Arno Breker, o escultor do III Reich, representando um atlético homem do futuro, tendo ao seu redor vários ícones agrupados: Hitler, Nietzsche, o Superman das histórias em quadrinhos, a ovelha Dolly e Lara Croft, a heroína virtual dos jogos de computador. O título, “O projeto genético do Super-homem: Hitler, Nietzsche, Dolly e a nova querela dos filósofos”, por sua vez, associa todos esses elementos e faz uma referência à “querela dos historiadores” dos anos 80, na qual Habermas teve também uma participação e à qual voltaremos rapidamente à frente. O que unifica essa salada pop de ícones? Para além da mal-intencionada confusão do Übermensch de Nietzsche com banais personagens da indústria de entretenimentos, o quadro é uma compilação do universo imaginário popularmente associado às técnicas de manipulação genética, à clonagem e às temidas práticas eugenistas. Essa escolha revela que, dentre o variado panorama de questões levantadas no trabalho de Sloterdijk, é a dimensão da antropotécnica que se destaca e passa a atrair as críticas. Para o bem ou para o mal, esse é o aspecto que deu notoriedade e penetração ao trabalho de Sloterdijk. Durante a preparação da edição brasileira, a escolha dos excertos para a quarta capa fez-se em função dos termos “genética” e “antropotécnica”, por serem considerados mais capazes de
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Artigos críticos de Manfred Frank e Ernst Tugendhat foram publicados no Zeit, em 23 de setembro de 1999, supostamente também por solicitação de Habermas aos autores. Para uma lista das publicações mais relevantes sobre a polêmica, ver a página do Instituto Goethe de Bordeaux em: http://www.goethe.de/fr/bor/deislot.htm Essa capa pode ser vista em http://www.spiegel.de/spiegel/inhalt/0,1518,druckbild20370-,00.html
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despertar o interesse do público do que a passagem que sugeri inicialmente e que, em minha opinião, enuncia de forma mais fiel a problemática geral do livro: O que ainda domestica o homem se o humanismo naufragou como escola da domesticação humana? O que domestica o homem se seus esforços prévios de autodomesticação só conduziram, no fundo, à sua tomada de poder sobre todos os seres? O que domestica o homem se em todas as experiências prévias com a educação do gênero humano permaneceu obscuro quem ou o quê educa os educadores, e para quê? Ou será que a pergunta pelo cuidado e formação do ser humano não se deixa mais formular de modo pertinente no campo das meras teorias da domesticação e educação? (Sloterdijk 1999a , p. 32)
* Qual é, em relação a essas questões, o real peso das discussões sobre genética no texto de Sloterdijk? Que papel tem nele a discussão das antropotécnicas? Frente ao conjunto de temas tratados por Sloterdijk, trata-se de um papel sem dúvida diminuto. Podemos verificar isso examinando brevemente a estrutura do livro. Ele se divide basicamente em cinco partes: 1) Caracterização literária-epistolar do humanismo (pp. 7-20). 2) Exame da crítica de Heidegger ao humanismo (pp. 20-37). 3) Exame da crítica de Nietzsche ao humanismo (pp. 37-47). 4) Exame da antropotécnica no diálogo Político, de Platão (pp. 47-56). 5) Reflexão final sobre o colapso contemporâneo do humanismo literário-epistolar (pp. 56-57). O ponto de partida de Sloterdijk é uma frase de Jean-Paul, poeta romântico alemão, que diz que “livros são cartas dirigidas a amigos, apenas mais longas”. A partir dessa idéia, Sloterdijk desenvolve sua ca368
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racterização do humanismo como fenômeno de estabelecimento da amizade por meio da escrita. O livro é interpretado como uma carta remetida a um destinatário distante, e capaz de propagar ao seu redor círculos de amizade. São cartas dirigidas a leitores ainda não conhecidos que estabelecem uma certa forma de sociabilidade humana: a forma da sociedade literária, da sociedade dos que se reúnem para ler, para dar testemunho do amor à leitura. Essa teria sido a origem do processo de humanização do ser humano na Antigüidade, entendido, à maneira da humanitas de Cícero, como uma oposição à selvageria e brutalidade representadas pelos espetáculos no anfiteatro romano. Estas duas “mídias”, a do anfiteatro e a do livro, coexistiram na Antigüidade romana, e a tarefa do humanismo é tomar partido nesse conflito, guiando o processo de desembrutecimento do ser humano, cuja história Sloterdijk acompanha até sua crise final nos dias de hoje. Não tenho possibilidade de analisar aqui o tratamento que Sloterdijk dá a Nietzsche e a Heidegger neste contexto, e decidir em que medida sua leitura é correta ou inovadora – essa é uma tarefa para especialistas nesses autores, o que eu não sou. Vou escolher um único tópico para acompanhar com ele alguns momentos da exposição, procurando esclarecer a questão levantada acima, quanto ao papel das discussões das técnicas genéticas na arquitetura do texto. Trata-se do tópico da alternativa entre inibição e desinibição – Hemmung e Enthemmung. As origens do humanismo na Antigüidade estiveram ligadas, para Sloterdijk, ao exercício de uma inibição, de uma Hemmung: o hábito da leitura como capaz de pacificar, domesticar, desenvolver a paciência, em oposição aos frenéticos divertimentos do “desinibido homo inhumanus” nos teatros ao redor do Mediterrâneo. Há, no humanismo, um esforço de repressão, de retração dessa animalidade e dessa selvageria latentes no ser humano. Mas o humanismo não se esgota nesse aspecto pacificador. Uma vez constituídas as comunidades irmanadas pelas suas literaturas, elas podem tratar das formas de defesa de seus interesses comunitários: os humanismos nacionais burgueses do século XIX constituíram-se como Natureza Humana 4(2): 363-381, jul.-dez. 2002
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uma força capaz de impor a seus jovens a leitura dos clássicos nacionais e, ao mesmo tempo, a prestação do serviço militar nos novos exércitos nacionais; eles refletem sociedades disciplinadas que levam muito a sério sua identidade literária e sua proficiência militar. A que levou, finalmente, esse humanismo nacional do século XIX? A resposta parece clara: levou às duas grandes conflagrações fratricidas européias, que dizimaram a Europa e encerraram a civilização ocidental. Revelar essa conseqüência parece ter sido a tese central de Heidegger na Carta sobre o humanismo. Para que buscar ainda um humanismo, pergunta Heidegger, se o humanismo levou apenas a essa luta pela tomada de poder sobre todos os seres, em uma cega manifestação de antropocentrismo? Sloterdijk ressalta que, na visão de Heidegger, no trágico confronto da metade do século entre “o bolchevismo, o fascismo e o americanismo” exibiram-se simplesmente “três variações dessa mesma força antropocêntrica e três candidaturas a um domínio humanitariamente ornado do mundo – dentre as quais o fascismo errou o passo ao exibir, mais abertamente que seus concorrentes, seu desprezo por valores inibitórios pacíficos e educacionais” (ibid., p. 31). As críticas de Heidegger estendem-se à tentativa de restaurar o humanismo no pós-guerra europeu. O cristianismo, o marxismo e o existencialismo foram as três alternativas que se tentou colocar em prática, e todas elas são, meramente, variações do humanismo, porque todas “evitam a radicalidade última da questão sobre o que é o ser humano” (ibid., p. 23). O ser humano, para Heidegger, não é, de modo algum, um animal racional – esse teria sido o grande erro da filosofia desde seus inícios. Não há, para Heidegger, nenhuma comunidade possível entre o animal e o que é a essência do ser humano. O ser humano não é um animal dotado de racionalidade. Há entre o homem e o animal uma separação fundamental e, na imagem de Sloterdijk, Heidegger caminha entre eles como um anjo colérico com sua espada de fogo (ibid., p. 25), marcando uma clivagem ontológica entre o que é próprio da biologia e o que diz respeito ao homem enquanto clareira do Ser, para quem o Ser se apresenta 370
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e que o Ser escolhe para sua guarda. A busca da pacificação, almejada pelo humanismo, assume, para Heidegger, um caráter muito mais radical. A “escuta” do Ser seria capaz de conduzir a uma pacificação do ser humano muito maior que a alcançada pelas meras leituras domesticadoras do humanismo. Para Sloterdijk, porém, há algo de profundamente insatisfatório e pouco convincente nessas propostas. Em particular, como se organizaria uma sociedade formada por esses ouvintes do Ser? A história natural da clareira deveria revelá-la, não como o lugar da escuta respeitosa, mas como antecedida pela disputa e pelo conflito dos que nela ocuparão as posições de decisão. Antes da casa do Ser, os homens constroem as casas para si mesmos e moldam-se a si mesmos para habitarem essas casas. Em seu método expositivo, Sloterdijk recua na história do pensamento, e, em seguida a Heidegger, é em Nietzsche que ele busca os elementos para prosseguir sua indagação. E é aqui, também, que são desenvolvidas mais explicitamente as discussões sobre a genética e a antropotécnica. Para Sloterdijk, Nietzsche foi o grande crítico da domesticação. Isso se revela distintamente na conhecida passagem “Da virtude apequenadora”, do Zarathustra, em que o personagem contempla as pequenas casas dos homens, perguntando-se sobre quem pode morar nelas: nenhuma grande alma, com certeza, e lamenta: “Tudo ficou menor, em todos os lugares vejo portões mais baixos; quem é do meu porte provavelmente ainda consegue passar, mas, terá de se curvar” (ibid., p. 38). Segue-se a caracterização dos novos homens como pequenos grãos de areia, redondos, corretos e bons uns com os outros, que querem apenas que ninguém lhes faça mal: “A virtude é, para eles, aquilo que torna modesto e domesticado; com ela fazem do lobo um cão, e dos homens, os melhores animais domésticos para os homens” (ibid., pp. 38-9). Segundo Sloterdijk, mais que mera domesticação, ou processo educativo, Nietzsche vê nesse processo uma autêntica criação, mais que uma Zähmung, uma Züchtung, com a aplicação deliberada de práticas de seleção: criadores moldaram os seres humanos como seres pacíficos e inócuos, para que não representem ameaça uns para os outros. Natureza Humana 4(2): 363-381, jul.-dez. 2002
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Mas será que é inócuo produzir ou selecionar seres para serem inócuos? A quem interessa produzir toda uma classe de homens domesticados? Sloterdijk identifica em Nietzsche a denúncia de um certo projeto de criação dos seres humanos e o vislumbre de um projeto oposto. Trata-se de opor, aos que criam o homem para ser pequeno, o projeto de criá-lo para ser grande; à produção em série dos “últimos homens”, a construção da ponte para o além-do-homem. Este é o sentido, em Nietzsche, de uma superação do humanismo. Do mesmo modo que no caso de Heidegger, não posso aqui examinar os detalhes da discussão que Sloterdijk dedica a Nietzsche, apenas noto brevemente que, no âmbito da oposição que nos interessa, entre Hemmung e Enthemmung, parece que a proposta nietzscheana de criar esse novo ser humano exigiria, pelo menos parcialmente, um processo de desinibição para neutralizar os mecanismos sociais repressivos, historicamente utilizados para submeter os fortes ao interesse dos fracos. Quanto ao papel das técnicas genéticas nesse processo, contudo, não há nada no texto de Sloterdijk que dê o mínimo fundamento às maliciosas insinuações dos críticos (e da capa do Spiegel) de que ele defende algo como a produção de um Übermensch em laboratório… Por outro lado, há, certamente, passagens em que Sloterdijk parece enxergar, nas práticas genéticas, um reforço aos impulsos inibidores que os meios tradicionais de educação não mais conseguem gerar em proporção suficiente para se opor ao crescente embrutecimento da sociedade contemporânea de massas, submetida a uma onda desinibidora, sem precedentes, pelos meios de divulgação da indústria de entretenimentos. Ao considerar a possibilidade de uma reforma genética da espécie, ele reflete em uma nota: Assim como na Antigüidade o livro perdeu a luta contra o teatro, hoje a escola poderá ser vencida na batalha contra as forças indiretas de formação: a televisão, os filmes violentos e outras mídias desinibidoras, se não aparecer uma nova estrutura de cultivo (Kultivierungsstruktur) capaz de amortecer essas forças violentas. (ibid., p. 46, nota 14) 372
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E, aqui, parece que o que se tem em mente é algum tipo de controle genético inibidor, uma última tentativa de alcançar os resultados almejados pelo humanista, ainda que por meios não-humanistas… Concluindo sua marcha retroativa, Sloterdijk chega a Platão, e é nessa seção que as questões mais candentes sobre a criação dos seres humanos são colocadas, possivelmente porque o diálogo platônico as levanta com uma crueza e objetividade que se tornou impensável em filósofos posteriores. Da longa discussão, retenho aqui apenas a metáfora da tecedura: Platão, ao final do Político, afirma que a sociedade deve ser constituída pela sábia combinação das naturezas bravias com as naturezas reflexivas, moderadas; e, se qualquer uma dessas dominar a sociedade, esta estará em risco de destruição, pois as naturezas bravias irão procurar a guerra inconseqüentemente, e a porção pacífica, reflexiva, irá evitar ao máximo qualquer conflito, subordinando-se a todas as exigências, até ser também destruída. Não é possível obter uma boa constituição social só com um desses grupos, mas é preciso que eles se combinem à maneira da trama e da urdidura, a trama com um material mais suave e flexível, e a urdidura como um material mais duro e resistente. A metáfora platônica supõe que essas diferentes naturezas se encontram já dadas, como matéria-prima, à disposição do artesão político, que irá apenas separá-las, desbastá-las e tecê-las na configuração desejada. Mas não se poderia pensar em uma atuação no plano da própria produção da matéria-prima com as características necessárias? Não seria esse um espaço possível para a manipulação genética? Talvez, com isso, se possa vislumbrar uma solução para a questão da inibição versus desinibição que viemos examinando: poder-se-ia produzir sob medida essas duas inclinações nas proporções necessárias para sua judiciosa mesclagem posterior no todo social. A exemplo dos humanismos nacionalistas burgueses que produziam, pela leitura, os laços de amizade intragrupal e, pelo exercício militar, as disposições impiedosas para com os de fora, para com os outros, a nova antropotécnica dirigir-se-ia para a obtenção dos mesmos resultados por meios mais poderosos que os tradicionais procedimentos de educação e formação característicos do humanismo. Natureza Humana 4(2): 363-381, jul.-dez. 2002
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Obviamente, estas também são especulações que vão além de qualquer consideração que tenha sido feita por Sloterdijk em seu texto, sobre a direção para a qual se encaminhariam suas concepções da antropotécnica. Não há, de fato, no livro de Sloterdijk, nenhuma tomada de posição sobre o papel desejável dessas técnicas genéticas, que função teriam, se seriam funções inibitórias, se seriam funções desinibitórias etc. Em nenhum momento ele responde, tampouco, a outras questões que estão em nossa cabeça: afinal, quem são esses criadores, quem seriam os autores dessas “regras para o parque humano” ou os grupos que as imporiam, quais suas conseqüências políticas, de quem são as responsabilidades etc. E, mesmo quando diretamente questionado, em entrevistas, Sloterdijk se mostra extraordinariamente relutante em precisar seu pensamento para além de algumas vagas afirmações de que as novas técnicas de manipulação e seleção genética já são uma realidade à qual não se pode fechar os olhos, sendo necessário o estabelecimento de um codex da antropotécnica para regulamentá-las. * Mas, se o que Sloterdijk está propondo é apenas isso, fica difícil entender a razão do mal-estar produzido por seu trabalho. Pois constatações semelhantes são feitas a todo instante, por muitos outros estudiosos e pesquisadores, sem despertarem, minimamente, reações hostis. Tome-se como um exemplo, escolhido ao acaso, um artigo, publicado na insuspeita revista Time, do diretor do centro de bioética da Universidade da Pensilvânia, Arthur Caplan, intitulado exatamente “What Should the Rules Be?” (“Quais devem ser as regras?”). Observando que a possibilidade concreta de inserir genes em células humanas para obter crianças mais inteligentes, fortes e saudáveis representará uma irresistível atração, Caplan descarta as fantasias popularmente associadas à manipulação genética e vai à raiz do problema:
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Cientistas renegados ou loucos totalitários não são as pessoas mais capazes de abusar da engenharia genética. Eu e você somos – não porque sejamos maus, mas porque queremos fazer o bem. Num mundo dominado pela competição, os pais compreensivelmente vão querer dar a seus filhos todas as vantagens… A maneira mais provável pela qual a eugenia vai entrar em nossas vidas é pela porta da frente, quando pais ansiosos, submergidos na publicidade, no marketing, nas modas, começarem a lutar para assegurar que seus rebentos não fiquem para trás na corrida genética. (Caplan 2001, p. 36)
Para Caplan, o antídoto à aplicação cega da genética é começar, desde logo, a discutir o que deve e o que não deve ser permitido, e quais padrões serão impostos aos que pretendam promover e comercializar serviços de aperfeiçoamento genético. Sloterdijk (que Caplan provavelmente nunca leu) tocou exatamente no mesmo ponto, embora em termos mais abstratos, ao alertar que, quando o avanço do conhecimento abre certas possibilidades de intervenção, as pessoas não podem mais se comportar como na época em que não tinham escolha e deixavam o assunto nas mãos de Deus ou do acaso. A abdicação não será uma opção viável; daí a importância de um código das antropotécnicas (Sloterdijk 1999a, p. 45). É verdade que certas discussões científicas que se realizam pacificamente nos Estados Unidos ou na Inglaterra enfrentam, na Alemanha, dificuldades e constrangimentos peculiares. Embora os programas eugenistas tenham sido aceitos por biólogos de todo o mundo e das mais variadas tendências ideológicas até a Segunda Guerra Mundial, foram sobretudo as práticas nazistas que trouxeram à idéia de melhoria genética o opróbrio do qual não conseguem se livrar. A Alemanha é, de fato, o país na Europa em que a pesquisa em genética humana enfrenta maiores restrições, e durante muito tempo toda pesquisa com embriões humanos esteve totalmente proibida. Só muito recentemente (abril de 2002) foi liberada, em condições muito especiais, a importação de células-tronco (de países, como Israel, que não impõem restrições à produção, disposição, Natureza Humana 4(2): 363-381, jul.-dez. 2002
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uso e clonagem de embriões humanos). É compreensível, então, que o trabalho de Sloterdijk tenha ferido susceptibilidades. Mas, mesmo levando-se isso em conta, a magnitude da reação indica que há outros interesses mais profundos em jogo. E, de fato, o que se processa, de forma não muito disfarçada, é uma guerra de sucessão no establishment filosófico universitário alemão.6 Sloterdijk não poupa críticas à presente situação da Teoria Crítica e dos herdeiros da Escola de Frankfurt que, para ele, não mais possuem respostas para as questões que se colocam para a terceira geração do pós-guerra. A figura emblemática de Jürgen Habermas se apresenta, para Sloterdijk, desgastada e em franco declínio. Rei morto, rei posto. Nos três anos passados desde a conferência de Elmau, não há muitas dúvidas de que Peter Sloterdijk, principalmente por sua hábil exposição midiática, surge hoje como o mais visível nome dos meios filosóficos na Alemanha. Quanto a isso, é ilustrativo abrir aqui um parêntese. Em 1996, Daniel Goldhagen, um obscuro professor de Harvard, publicou sua tese de doutorado, que, graças a uma intensa promoção pelo New York Times, tornou-se um best seller, levando o autor instantaneamente à fama. O livro, Os carrascos voluntários de Hitler, defendia a idéia de que a base sobre a qual se realizou o Holocausto foi o anti-semitismo eliminacionista por parte de alemães comuns, motivados por séculos de uma cultura hostil aos judeus. Estando já presente a disposição assassina, Hitler precisou apenas dar um pequeno impulso… Embora tenha feito sucesso junto ao público, em boa medida pelas detalhadas descrições de atrocidades, o livro de Goldhagen não foi bem recebido por historiadores e intelectuais das mais diversas tendências. Diversos trabalhos apontaram suas falhas, mas a refutação sistemática e definitiva veio com o livro A Nation On Trial, de Norman Finkelstein e Ruth Birn. Este livro reúne dois artigos independentes que já haviam sido publicados separadamente, o de Finkelstein na New Left Review e o 6
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Cf. o artigo de Lucas Delattre (1999), em Le Monde. Natureza Humana 4(2): 363-381, jul.-dez. 2002
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de Ruth Birn no Cambridge Historical Journal. Estes trabalhos meticulosos e fartamente documentados, por autores de inatacável reputação e competência, desacreditaram completamente o livro de Goldhagen, pondo um fim às elevadas pretensões acadêmicas do autor.7 Mais impressionante, porém, que a inépcia de Goldhagen, foi a inaudita pressão realizada pelos lobbies judaicos nos Estados Unidos e Canadá para impedir, a qualquer custo, a publicação do livro de Birn e Finkelstein, especialmente por parte de Abraham Foxman, diretor da poderosa Liga Antidifamação, que chegou a declarar, memoravelmente, que “a questão não é se a tese de Goldhagen está certa ou errada, mas o que é uma crítica legítima e o que passa dos limites”. Obviamente, entretanto, tudo o que importa do ponto de vista acadêmico é se a tese está errada ou não. E sobre isso as opiniões foram unânimes. Yehuda Bauer, diretor do Instituto de Pesquisas Yad Vashem em Jerusalém, declarou O livro de Goldhagen foi elogiado por jornalistas e figuras públicas, mas ainda não vi um único historiador que tenha manifestado concordância. Nem ao menos um; e uma unanimidade como essa é muito rara. Na minha universidade, esse livro não teria jamais sido aceito como tese de doutorado.8
Esta digressão é importante para avaliar a dimensão do episódio que relato a seguir. Em 10 de março de 1997, Goldhagen recebeu, no Beethoven-Halle, em Bonn, o Prêmio da Democracia da revista Blätter für deutsche und internationale Politik. Entregue diante de uma grande audiência pelo filantropo Jan Philipp Reemtsma, o prêmio adquiriu maior
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Para uma informativa história do debate do ponto de vista alemão, ver Ulrich Herbert, “Academic and Public Discourses on the Holocaust: The Goldhagen Debate in Germany” (1999), também disponível no site http://www2.ruf.uni-freiburg.de/histsem/herbert/ abe-herbert-Goldhagen.html Citado por Dominique Vidal, em Le Monde diplomatique (1998).
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significação pela presença de ninguém menos que Habermas, que fez a laudatio do trabalho de Goldhagen e considerou-o como trazendo uma importante perspectiva aos estudos do Holocausto.9 Ora, se na “querela dos historiadores” de 1986 Habermas havia conseguido fazer valer sua liderança e condenar como revisionistas as propostas que ousavam pôr em questão o caráter metafisicamente único e incomparável do Holocausto, é difícil não reconhecer neste último episódio um desgaste para essa mesma liderança. Vários historiadores de seu círculo próximo já tinham decidido manter-se à distância de Goldhagen e de suas opiniões, e o apoio prestado por Habermas, apesar de um tanto cauteloso, não pode ser visto retrospectivamente senão como uma desatenção às opiniões acadêmicas mais consideradas, e uma concessão aos grupos no interior da sociedade alemã que sempre se alinham incondicionalmente com as teses de culpabilização. A repercussão do affair Goldhagen na Alemanha marcou, à sua maneira, um ponto de inflexão, e provavelmente constituiu a gota d’água que produziu, no ano seguinte, o famoso desabafo de Martin Walser, durante a entrega do “Prêmio da Paz”, na Feira do Livro de Frankfurt de 1998, de que já não suportava assistir documentários na TV sobre os campos de concentração, e a denúncia de seu uso como um “tacape moral” instrumentalizado para fins presentes.10 Walser não explicitou quais seriam esses fins presentes, mas, dois anos depois, em 2000, essa tarefa foi magistralmente cumprida por Norman Finkelstein, com o livro A indústria do Holocausto11 (mais uma vez enfrentando intensas pressões contra sua publicação), que expôs, com farta e irrefutável documentação, a indústria 9 10
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Ver “Über den öffentlichen Gebrauch der Historie” (Habermas 1997). O “caso Walser” também fez história e gerou um debate com Ignatz Bubis, então presidente do Conselho Judaico alemão. Um vasto dossiê foi compilado e publicado por Frank Schirrmacher (1999). Uma versão em francês do discurso de Walser pode ser encontrada na página do Instituto Goethe de Paris: http://www.goethe.de/fr/par/walser/ frwaltx.htm Uma grande seleção de resenhas e artigos sobre a obra está disponível em http:// www.normanfinkelstein.com/id44.htm Natureza Humana 4(2): 363-381, jul.-dez. 2002
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de chantagens e extorsões contra empresas e governos operada pelas grandes organizações judaicas americanas e internacionais, e o uso político do Holocausto para silenciar críticos de Israel. 1997, 1998, 1999, 2000 – a inserção do livro de Sloterdijk nesta sucessão de abalos permite compreender melhor a reação que despertou. Não é por seu conteúdo tomado isoladamente, mas como parte de um movimento geral de “desinibição” do pensamento, que se deve avaliar sua periculosidade para os ideólogos estabelecidos. Mais do que suas visionárias considerações sobre a antropotécnica, mais do que o uso de um vocabulário de provocativas reverberações (Menschenzucht, Selektion), o que desperta principalmente o alarma são passagens como a que afirma a inexistência de diferenças essenciais entre os projetos de dominação do capitalismo norte-americano, do comunismo soviético e do nacional-socialismo alemão (p. 31), ou que se referem aos anos imediatamente após 1945 como “sombrios” e “miseráveis” (pp. 15 e 20).12 São esses os pontos que ameaçam tabus e, em conjunto com as tensões acumuladas pelos outros debates, arriscam-se a transformar os paradigmas da autocompreensão alemã.
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“Após 1945?”, surpreende-se um crítico. E, de fato, parece ser apenas muito recentemente que está deixando de ser politicamente incorreto lamentar o sofrimento de inocentes na Alemanha do pós-guerra. Um trabalho pioneiro nessa direção proveio, surpreendentemente, de um dos mais sólidos autores do establishment: Günther Grass (2002), com o romance Im Krebsgang, sobre o criminoso afundamento do navio Wilhelm Gustloff, transportando 7000 refugiados alemães, pelos soviéticos, em janeiro de 1945. Outro importante livro é Berlin: The Downfall 1945, de Antony Beevor (2002), que relata, a partir de documentação inédita, o estupro de dois milhões de mulheres alemãs pelas tropas soviéticas em seu avanço em direção a Berlim.
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