UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
A INFLUÊNCIA RECÔNDITA DO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE NA DIMENSÃO SUL-ATLÂNTICA DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE
FERNANDO SOUSA LEITE
Brasília 2016
FERNANDO SOUSA LEITE
A INFLUÊNCIA RECÔNDITA DO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE NA DIMENSÃO SUL-ATLÂNTICA DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília como requisito para obtenção do título de Mestre em História. Orientação: Prof. Dr. Virgílio Caixeta Arraes
Brasília 2016
Veio para ressuscitar o tempo e escalpelar os mortos, as condecorações, as liturgias, as espadas, o espectro das fazendas submergidas, o muro de pedra entre membros da família, o ardido queixume das solteironas, os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas nem desfeitas. Veio para contar o que não faz jus a ser glorificado e se deposita, grânulo, no poço vazio da memória. É importuno, sabe-se importuno e insiste, rancoroso, fiel. "O historiador" Carlos Drummond de Andrade
AGRADECIMENTOS Em 2011, Milena Oliveira de Medeiros emprestou-me a coleção O Brasil Republicano, organizada por Jorge Ferreira e Lucilia Neves de Almeida Delgado. Em um dos livros da obra havia um trecho que me despertou interesse para a pesquisa que agora concluo. Milena era diplomata de carreira do Ministério de Relações Exteriores do Brasil e faleceu após contrair malária em Malabo, Guiné Equatorial. Política externa brasileira e África, termos que me evocam lembranças da querida Milena, são dimensões tratadas nas páginas que se seguem. Dedico este trabalho à memória daquela funcionária do serviço exterior nacional, que, apesar do breve período de convívio, representou importante influência em minha formação acadêmica, profissional e, mormente, pessoal. Gostaria de agradecer ao professor Virgílio Caixeta Arraes, por ter se prontificado a me orientar neste trabalho. Suas ideias, sugestões e provocações foram essenciais para o desenvolvimentos da pesquisa. Além disso, seu interesse por temas que não dizem respeito tão somente à História enquanto disciplina confere uma análise holística sobre os processos históricos, tornando a investigação acerca desses eventos ainda mais instigante. Agradeço à minha mãe, Maria Penha Sousa Nascimento, e ao meu pai, Manoel Gomes Leite, pelo amor e carinho constantes, e pelo dedicado apoio ao desenvolvimento de meus estudos. Ambos sempre me estimularam a buscar algo a mais, assim como a não estagnar no percurso da vida. Às minhas irmãs, Manoela Sousa Leite e Isabel Sousa Gomes, pela companhia e pela alegria de todos os dias. À Isabel agradeço também pela revisão cuidadosa realizada em cada um dos capítulos da dissertação, bem como pelas primeiras impressões manifestadas sobre o meu trabalho. Sou grato aos amigos de sempre, Érica Kaefer, Lucas Cortez, Kauê Darzi, Guilherme Oliveira e Henrique Miglio, pela convivência profícua e prazenteira; e também àqueles que pude conhecer durante esse período de estudos, notadamente Maria Eduarda Paiva, Nádia Maki, Jean Paul Coly, William Fujii, Ana Letícia e Débora Jacintho. Finalmente, expresso minha gratidão ao amigo e professor Rodrigo Perla, que, ao constatar qual seria meu tema de pesquisa, prontificou-se a introduzir-me à
historiadora Cintia Vieira Souto. À Cintia Souto agradeço pela disponibilidade em auxiliar-me na análise e confirmação de algumas informações constantes neste trabalho, em especial daquelas referentes à vida e à atuação de Mario Gibson Barboza.
RESUMO O presente trabalho propõe-se a analisar a abertura da política externa brasileira para a África, investigando a influência que o pensamento gilbertiano empreendeu na projeção internacional do país, em especial no que concerne à triangulação atlântica entre Brasil, África e Portugal. Nesse sentido, procurou-se concentrar na Política Externa Independente (1961-1964), a PEI, que compreende os mandatos de Jânio Quadros e de João Goulart, considerada um marco inicial da atuação da diplomacia brasileira para o continente africano. Não obstante a necessidade de se privilegiar como unidade de análise a própria ação exterior do Brasil em seu relacionamento com territórios e países do chamado "continente negro", tratou-se de não ignorar o estudo daquilo que se desenvolvia no âmbito doméstico, tampouco na conjuntura internacional, de maneira a conferir abordagem holística aos processos históricos. Aventou-se ainda acerca do sentimento de "pernambucanidade" presente tanto nas obras de Freyre, quanto nas atitudes propugnadas pelo chanceler Mario Gibson Barboza, na década de 1970, que remetiam à ligação histórica entre a então chamada "Nova Lusitânia", durante o período colonial, como lembra o historiador Evaldo Cabral de Mello, e a costa ocidental africana, sobretudo com o território que atualmente corresponde à Angola
Palavras-chave:
Política
Externa
Independente,
"pernambucanidade", política externa brasileira, África.
PEI,
Gilberto
Freyre,
ABSTRACT This research aims to present the bases of Brazil's Independent Foreign Policy (1961-64) as being influenced by Gilberto Freyre’s thinking, as well as by his concepts, especially in what concerns the diplomatic movement towards Africa observed in that period and that still sustains its roots in the contemporary Brazilian foreign affairs. It will be studied how the Brazil's Independent Foreign Policy made an effort
to
include
the
African
dimension
into
Brazilian
external
relations.
This diplomatic movement that comprehends the mandates of President Jânio Quadros and João Goulart had not succeeded mostly because of events that were occurring in Brazilian domestic affairs. Nonetheless, the principles of Brazil's Independent Foreign Policy, in the opening to Africa, will be recovered in the following years, by chancellor Mario Gibson Barboza. Finally, it was analyzed if there is, somehow, an influence of historic bonds between the Pernambuco province and the African continent in the Brazilian diplomatic movement towards Africa.
Keywords: Brazil's Independent Foreign Policy, Gilberto Freyre, Pernambuco, Brazilian foreign policy, Africa
Sumário INTRODUÇÃO ....................................................................................................................9 CAPÍTULO 1 – A POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE E SEU CONTEXTO ...... 12 1.1. Breve histórico da política externa do Brasil republicano até meados do século XX ................................................................................................................................ 12 1.2. A PEI como tentativa de ajuste no relógio da política externa brasileira .............................................................................................. 16 1.3. Portugal e sua obstinada resistência aos "ventos de mudança" .............. 24 CAPÍTULO 2 – GILBERTO FREYRE E A POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE ............................................................................................................. 28 2.1. Raízes esquecidas da PEI? ....................................................................................... 28 2.2. Gilberto Freyre e as ideias de lusotropicalismo e de unidade de sentimento e cultura ......................................................................................................... 29 2.3. Tensões na composição do mundo afro-americano de formação portuguesa: o advento da PEI ........................................................................................ 34 2.4. Consolidação da ideia de unidade de sentimento e cultura no âmbito luso-afro-brasileiro ........................................................................................................... 40 CAPÍTULO 3 – A PEI E O LUSOTROPICALISMO: IMPLICAÇÕES PRÁTICAS ....... 43 3.1. Uma política externa para a África: flertando com o lusotropicalismo ................................................................................................................. 43 3.2. O lusotropicalismo e suas reverberações no pensamento diplomático nacional ................................................................................................................................. 46 CAPÍTULO 4 – O LUSOTROPICALISMO E A PEI: RESULTADOS ............................ 56 4.1. A Política Externa Independente em sua vertente africanista: "política externa certa num governo errado"............................................................................ 56 4.2. A "pernambucanidade" e a retomada do Atlântico Sul como horizonte possível da política externa brasileira ....................................................................... 61 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 69 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 79
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INTRODUÇÃO A produção de Gilberto Freyre logrou alcançar ampla repercussão no pensamento social do Brasil. Até hoje, inúmeras análises continuam a ser publicadas, versando sobre elementos presentes nas obras do sociólogo de origem pernambucana. Dada a reverberação dos livros de Freyre tanto âmbito interno quanto externo, como se depreende da quantidade considerável de homenagens recebida pelo estudioso em diversos países, cumpre aventar, como o presente trabalho se propõe a inquirir, em que medida esses títulos exerceram influência nas relações internacionais do Brasil, por meio da recepção e adaptação das ideias freyreanas ou gilbertinas1, por parte de formuladores e executores da política externa nacional. Este estudo concentrou-se nas proposições de duas publicações, a saber, O mundo que o português criou, de 1940, e Um brasileiro em terras portuguesas, de 1953, por serem as primeiras a abordarem aspectos relacionados ao denominado lusotropicalismo. Há outras, por certo, a exemplo de Aventura e rotina, que veio a público posteriormente, ainda em 1953. No entanto, as enunciações presentes nessas últimas obras são repetitivas em relação àquelas constantes nos referidos livros, confirmando conjecturas elaboradas anteriormente. Ademais, por vezes a pesquisa valeu-se de propostas constantes em Casa-grande & senzala, cuja primeira edição data de 1933, por ser considerada a chef d'oeuvre de Freyre, e por essa não poder ser vista como título desencontrado daqueles sobre o ideal lusotropical, mas antes como fonte primeira das quais esses últimos desenvolver-seiam. O presente trabalho propõe-se a analisar a abertura da política externa brasileira para a África, investigando a influência que o pensamento gilbertiano empreendeu na projeção internacional do país, em especial no que concerne à triangulação atlântica entre Brasil, África e Portugal. Nesse sentido, procurou-se concentrar na Política Externa Independente (1961-1964), a PEI, que compreende os mandatos de Jânio Quadros e de João Goulart, considerada um marco inicial da 1
As expressões freyreano(a) e gilbertiano(a) foram empregadas como qualificativos para se referir ao pensamento de Gilberto Freyre. A utilização desta última acepção é constante no livro A construção da brasilidade: Gilberto Freyre e sua geração, de Vamireh Chacon, publicado em 2001.
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atuação da diplomacia brasileira para o continente africano. Não obstante a necessidade de se privilegiar como unidade de análise a própria ação exterior do Brasil em seu relacionamento com territórios e países do chamado "continente negro", tratou-se de não ignorar o estudo daquilo que se desenvolvia no âmbito doméstico, tampouco na conjuntura internacional, de maneira a conferir abordagem holística aos processos históricos. Apesar das propostas apresentadas pela PEI, "a curta duração do governo de Jânio Quadros e a situação de crise praticamente contínua do governo João Goulart impediram muitas vezes que esses princípios fossem aplicados conforme sua concepção" (VIDIGAL; DORATIOTO, 2015, p. 83). Ainda assim, entende-se esse movimento diplomático como esforço de atualização da política externa brasileira frente às mudanças que ocorriam no plano exterior, atualizando-a. Em seguida, avança-se à década de 1970, a fim de se estudar a ação do chanceler Mario Gibson Barboza – que mantinha relacionamento pessoal com Gilberto Freyre, seu conterrâneo, e que havia desempenhado funções de relevo durante a vigência da PEI –, que realizaria o chamado "périplo africano", pouco antes da eclosão da Revolução dos Cravos, em Portugal, e do reconhecimento das independências da África portuguesa por parte do governo brasileiro. Aventou-se, por fim, acerca do sentimento de "pernambucanidade" presente tanto nas obras de Freyre, quanto nas atitudes propugnadas por Barboza, que remetiam à ligação histórica entre a então chamada "Nova Lusitânia", como lembra o historiador Evaldo Cabral de Mello, e a costa ocidental africana, sobretudo com o território que atualmente corresponde à Angola, como a tentar conferir relevo ao fato de o saliente ocidental da África ficar "a poucas horas de voo da nossa costa Nordeste", bem como à "importância do Atlântico Sul, base dos nossos planos de cooperação econômica e de defesa estratégica", ambos impondo "nossos rumos para nossa política exterior", como pretendia o historiador José Honório Rodrigues (1982, p. 245). Rodrigues, é importante que se mencione, ressaltava a importância da África em tempos de indiferenças em relação àquele continente, no meio diplomático nacional. É de todo conveniente salientar que a presente dissertação concentrou sua investigação nas relações do Brasil com a porção subsaariana do continente africano, com especial atenção à chamada África portuguesa. A pesquisa divide-se em quatro capítulos. O primeiro deles inicialmente apresenta, de forma breve, um histórico da política externa brasileira, no curso do
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período republicano, até meados do século XX. Além disso, enuncia a PEI como tentativa de modernização e de atualização da atuação exterior do Brasil em relação aos eventos que se sucediam no cenário internacional, bem como esforço retórico inicial de se afastar de posições adotadas por Portugal, parceiro histórico do país, resistente aos "ventos de mudança" que agitavam o contexto global à época. Em sequência, o segundo capítulo recupera o que se denominou "raízes esquecidas da PEI", em referência as ideias de lusotropicalismo e de unidade de sentimento e cultura, desenvolvidas por Freyre entre as décadas de 1940 e 1950. Outrossim, assinalam-se ações propostas pela PEI que confirmariam, a sua maneira, o ideal lusotropical. Por seu turno, o terceiro capítulo disserta acerca da influência do lusotropicalismo no pensamento diplomático nacional, por meio do estudo de obras e entrevistas concedidas por formuladores e operadores da política externa pátria, revelando a presença de ideias características dos livros do mestre de Apipucos. Por fim, o quarto capítulo confere relevo às vicissitudes que se davam no contexto político brasileiro dos anos 1960, que teriam dificultado a efetividade da política externa dos governo Jânio Quadros e João Goulart, a ponto de ter sido caracterizada por Mario Gibson Barboza como "política externa certa num governo errado". Ademais, investiga-se acerca do sentimento de "pernambucanidade" na retomada do Atlântico Sul como horizonte possível da política externa brasileira. Finalmente, cumpre frisar que este trabalho não teve como objetivo discutir e problematizar o pensamento de Gilberto Freyre – ainda que, por vezes, isso tenha sido inevitável –, mas, tão somente, estudar como suas ideias foram adotadas, interpretadas e adaptadas pelo corpo diplomático pátrio, bem como pelos formuladores da atuação exterior do Brasil. Isso não implica desconhecer ou mesmo ignorar as polêmicas suscitadas pelo mestre de Apipucos em seus escritos, até hoje amplamente discutidas e analisadas. Contudo, não constitui o foco desta pesquisa debruçar-se sobre essas questões, mesmo que se elas se mostrem por demais interessantes ao pesquisador que aqui escreve.
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CAPÍTULO 1 – A POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE E SEU CONTEXTO 1.1. Breve histórico da política externa do Brasil republicano até meados do século XX Na década de 1960, o Brasil convive com uma série de mudanças tanto no âmbito doméstico quanto no contexto externo. Internamente, o país assistia ao avanço dos meios de comunicação – em especial do rádio e da televisão –, à crescente urbanização, ao aumento dos níveis de alfabetização e à evolução de seu processo de substituição de importações. Convém lembrar que em 1956 a produção industrial passa a ser superior à agrícola, ainda que essa superação na pauta de exportações somente tenha ocorrido no início dos anos 1970 (REGO; MARQUES et al., 2008). A década em comento, no país, de acordo com Antônio José Barbosa, configuraria uma “sociedade em movimento”, em alusão ao termo cunhado por João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais (apud BARBOSA, 2003, p. 252), segundo os quais Os trinta anos que vão de 1950 a 1980 – anos de transformações assombrosas, que, pela rapidez e profundidade, dificilmente encontraram paralelo neste século – não poderiam aparecer aos seus protagonistas senão sob uma forma: a de uma sociedade em movimento.
Internacionalmente, a Guerra Fria aquecia as relações internacionais, como denota a construção do Muro de Berlim, em 1961. Anteriormente, a Conferência de Bandung, realizada em 1955, punha em pauta a descolonização afro-asiática e prenunciava o surgimento do Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), que buscava a inserção internacional dos Estados recém-emancipados politicamente para além dos tradicionais alinhamentos com o Oeste capitalista ou com o Leste socialista. O sucesso da Revolução Cubana, em 1959, e sua posterior declaração de apoio à política propugnada pelo Império soviético indicava que a América também se encontrava sujeita à influência do movimento socialista, que poderia angariar aliados na região. A Guerra Fria intensificava sua presença e seus efeitos no continente americano, ampliando o campo da disputa político-ideológica. Isso, por certo, não seria aceito pelos Estados Unidos sem uma tomada assertiva de posição: passaram,
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então, a priorizar seus homólogos no hemisfério. Até então, a atenção da potência norte-americana estava voltada às reconstruções europeia e japonesa, por meio dos planos Marshall e Colombo, respectivamente. Nesse sentido, o país efetuou a tentativa frustrada de invasão da Baía dos Porcos. Em seguida, a denominada crise dos mísseis representaria o clímax do conflito ideológico entre EUA e URSS, que felizmente encontraria um anticlímax que dissipava a possibilidade consequente e imediata de ocorrência de uma hecatombe nuclear. A política exterior brasileira titubeava em seu intento de definir o lugar que cabia ao país em meados do século XX. O paradigma americanista de atuação exterior do Brasil nessa centúria – inaugurado pelo regime republicano e consolidado quando da gestão de Barão do Rio Branco à frente do Ministério das Relações Exteriores – orientará a diplomacia nacional até 1961. Nesse ínterim, os formuladores de política externa procuraram, por vezes, adaptar suas ações às mudanças que ocorriam no cenário internacional, com vistas a obter os recursos de poder necessários para a promoção do desenvolvimento nacional, em um contexto em que predominava, domesticamente, a perspectiva nacional-desenvolvimentista. No curso do primeiro mandato de Getúlio Vargas, por exemplo, aproveitou-se da rivalidade entre Estados Unidos e Alemanha, a fim de conseguir ativos para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e para o reaparelhamento das Forças Armadas. A barganha nacionalista de Vargas, utilizada como estratégia de sua política de equidistância pragmática, encontraria seu fim com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942, o que traria bons dividendos políticos ao país, como demonstra a presença de delegações brasileiras nas principais reuniões responsáveis por erigir o ordenamento mundial no período pós-conflagração, a exemplo das conferências de Bretton Woods e de São Francisco. Com o fim do Estado Novo, o presidente Eurico Gaspar Dutra reforça "o alinhamento, que sob Vargas tinha um caráter instrumental", mas que passa a se tornar "a prática e a finalidade da política exterior brasileira" (DORATIOTO; VIDIGAL, 2014, p. 68). A essa iniciativa de Dutra, Gerson Moura qualificaria como "alinhamento sem recompensa" (apud Ibidem, p. 67).
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Quando do segundo governo Vargas, iniciado em 1951, o líder populista buscará pautar sua política externa pelos mesmos pressupostos que a orientam em seu primeiro mandato2. A conjuntura internacional, contudo, havia se alterado substantivamente. O hemisfério Ocidental e, em especial, a América do Sul, consolidara-se como área de influência americana por excelência, sobretudo após o estabelecimento do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) e a criação da Organização dos Estados Americanos (OEA). Assim, o esforço de retomar a equidistância pragmática redundou naquilo que Mônica Hisrt nomeou como "pragmatismo impossível", uma vez que a América Latina encontrava-se "marginalizada no quadro de prioridades norte-americanas" (DORATIOTO; VIDIGAL, 2014, p. 70). Após o hiato Café Filho, a Operação Pan-Americana (OPA), lançada por Juscelino Kubitschek em 1958, enunciava o prelúdio do fim da ênfase conferida à vertente americana na política externa brasileira. A OPA, ao argumentar que seriam necessários aportes financeiros na região latino-americana a fim de evitar a famigerada infiltração comunista, apesar de não ter logrado êxito em ver atendidos a totalidade de suas demandas, foi considerada a precursora da criação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), em 1960, e da posterior inauguração da Aliança para o Progresso, durante o governo de John Kennedy, em 1961. Esse breve ensaio acerca da história da política externa brasileira mostra-se fundamental para elucidar o caminho que teria levado à consecução do paradigma universalista na atuação da diplomacia nacional pela Política Externa Independente (PEI), de Jânio Quadros e João Goulart. Essa proposta de adoção de uma perspectiva universalista das relações exteriores do país não seria totalmente aceita quando de sua concepção, como expressa a instauração da ditadura de cunho civilmilitar, a partir de 1964. Nessa época, com efeito, as posições adotadas pelo governo em matéria de política externa eram instrumentalizados pela oposição (BARBOSA, 2003), encontrando eco na opinião pública, em um momento de
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Pode-se conjecturar que o modus operandi do presidente natural de São Borja encontre respaldo naquilo que Koselleck (2006, p. 317) denomina "contemporaneidade do não contemporâneo”, ou "não contemporâneo do contemporâneo”, isto é, que o sujeito histórico sempre faz uso de noções passadas para efetuar a interpretação da conjuntura em que vive, não sendo nunca, portanto, contemporâneo de fato.
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significativo impulso em meios de comunicação, considerando-se os padrões vigentes até então. Jânio Quadros ascende ao poder em 31 de janeiro de 1961, com uma base de sustentação composta pela União Democrática Nacional (UDN). Seu vicepresidente, João Goulart, proveniente da coligação PTB-PSD, obteve margem considerável de votos em sua eleição. Quadros, oriundo das direitas, adotaria uma série de medidas de caráter conservador durante seu mandato, como a proibição de beijos em público, o uso de maiôs cavados e as rinhas de galo. Essas suas posturas eram conhecidas pelo público por ocasião de seu exercício como prefeito de São Paulo, quando proibiu a prática de skateboarding na cidade, por exemplo3. Adicionalmente, no campo econômico praticava política ortodoxa, em estrita conformidade com os preceitos do Fundo Monetário Internacional (FMI). A política externa de Jânio Quadros, a seu turno, enveredaria por rumos alternativos àquilo que se observava no âmbito doméstico. O vitorioso do pleito presidencial de 1960 nomeou Afonso Arinos de Melo Franco, político conservador pertencente aos quadros históricos da UDN, para a pasta do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Quadros e Arinos conferem viés pragmático às relações internacionais do país, em que o conflito ideológico Leste-Oeste perde espaço para o descompasso entre Norte e Sul em termos econômicos. A ideia seria a de buscar novos mercados, com o objetivo de obter o desenvolvimento nacional, em acordo com a perspectiva nacional-desenvolvimentista vigente no período em tela. Rompia-se, portanto, com a tradicional opção do Brasil pelo Ocidente (MANZUR, 2014). Como destaca Tânia Manzur (Idem, p. 184), um dos pontos centrais da política externa de Jânio Quadros foi estabelecimento de relações comerciais e diplomáticas seguindo o princípio universal: todos os países seriam potenciais parceiros comerciais e diplomáticos, independentemente de seus vínculos a blocos políticomilitares; isso significava, efetivamente, a abertura de relações com os países socialistas e com os novos Estados africanos, muito dos quais vinham tornando-se independentes exatamente naquele momento.
A esse movimento diplomático nacional dar-se-ia o epíteto Política Externa Independente. A PEI continuaria em execução na gestão de João Goulart – inclusive no período em que vigeu a emenda parlamentarista, adotada para conter os ânimos 3
Para um registro fílmico desse episódio, vide o documentário intitulado Vida sobre Rodas (2010), dirigido por Daniel Baccari.
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golpistas dos setores contrários à posse de Jango –, somente sendo interrompida com o encerramento da chamada República Liberal, em 1964. Não obstante, esse exercício inovador da diplomacia pátria forneceu importantes contribuições e princípios que seriam introduzidas ao seu acumulado histórico, conceito de Amado Cervo
(2008).
Nesse
sentido,
os
fundamentos
da
PEI,
a
exemplo
do
independentismo, universalismo e desenvolvimentismo (MANZUR, 2014), são retomados durante o tempo do regime de exceção brasileiro, mormente com o governo de Ernesto Geisel. De maneira concisa, o professor Teixeira da Silva (2014, p. 136) sintetiza a PEI em três grandes vertentes listadas, a saber: a ampliação e democratização das relações externas do Brasil, denominada de “mundialização”, com abertura para os novos países pós-coloniais, os países do Leste Europeu e a China Popular; adoção da visão de um mundo dividido por ricos (Norte) e pobres (Sul), valorizando as relações Norte/Sul em detrimento da aceitação dos blocos Ocidente/Oriente, típicos da Guerra Fria; adoção de uma estrita política de não intervenção nos assuntos internos dos países – o que se chocava com a ação estadunidense na América Latina – e de reconhecimento das novas soberanias nacionais.
1.2. A PEI como tentativa de ajuste no relógio da política externa brasileira A
Política
Externa
Independente,
em
seu
apoio
ao
princípio
da
autodeterminação dos povos, pode ser interpretada como um esforço no sentido de adaptar a política externa brasileira àquilo que ocorria no âmbito internacional, sobretudo no que diz respeito ao ocaso dos impérios coloniais na África e na Ásia, iniciado na década de 1940, mas que ganha impulso nos anos 1950 e 1960. Nesse contexto, diplomatas e teóricos nacionais que se punham a favor da maior presença do Brasil nos territórios recém-emancipados, ou em vias de obter suas respectivas independências, se deparavam com o fato de que "a presença mais ativa dos Estados Unidos e da União Soviética em alguns países e regiões era compensada pela quase total indiferença em outros" (SARAIVA, 2008, p. 221). E isso era ainda mais urgente no caso africano, em que se poderia invocar a herança social e cultural comuns compartilhada por brasileiros e por diferentes povos daquele considerável espaço de terra localizado na porção sudeste do Atlântico.
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Os Estados Unidos começavam a voltar parte de sua atuação exterior àquele continente, como denotam a viagem de Richard Nixon à África, em 1957, definindo aquele momento como uma "reviravolta da política africana" de seu país (Ibidem, p. 224). Em seguida, John Kennedy dá continuidade à tomada de ação empreendida por Nixon, enviando seu futuro secretário de Estado à África, quando ainda em campanha eleitoral. Por sua vez, em 1961, o então vice-presidente Lyndon Johnson comparecia às festividades de independência do Senegal. Essas missões norteamericanas ao continente africano redundariam em uma série de iniciativas que tinham o objetivo de conter a influência soviética naquele espaço geográfico, tais como a promoção de assistência financeira, distribuição de víveres, concessão de bolsas de estudos a jovens africanos, etc. (Idem). A política externa estadunidense para a África encontrava respaldo em iniciativas executadas no âmbito doméstico. Nesse sentido, Saraiva expõe que "os Estados Unidos vincularam sua política africana ao desenvolvimento social da população negra americana e ao incremento dos estudos africanos naquele país" (Ibidem, p. 224). A segregação racial constatada internamente, entretanto, era reproduzida externamente, como se evidencia fato de, no final de 1960, a maioria dos 200 jovens norte-americanos que "foram passar o verão na África 'para compreenderem os assuntos africanos e suas necessidades'" ser composta por negros. O continente africano deveria ser, assim, objeto de entendimento de colored Americans, e não um assunto de brancos. A segregação se perpetuava nas relações internacionais americanas. Nesse mesmo ano, os Estados Unidos dispunham de "cerca de 20 embaixadas na África" (Idem). O Kremlin, por seu turno, não assistia às ações de seu rival americano sem tomar partido. No que tange às iniciativas da União Soviética para a África, Sombra Saraiva aponta a criação da Universidade da Amizade na capital do país, com vistas a formar quadros especializados para conduzir experiências socialistas em regiões africanas, latino-americanas e asiáticas, além de "vários institutos de línguas africanas em Moscou", da "política de empréstimos" e da "concessão de bolsas a estudantes africanos para que estudassem em Moscou" (Ibidem, p. 225). O processo de descolonização afro-asiática não pode ser analisado sem que se considere o contexto internacional do pós-Segunda Guerra, em que se verifica o declínio das potências imperialistas da Europa, notadamente França e Grã-
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Bretanha. Esse panorama, inclusive, permite a emergência de uma nova estratégia no âmbito europeu, qual seja a da integração regional, com a finalidade de reconquistar a fatia que costumava deter na partilha do poder mundial. A integração europeia intensificava-se, inicialmente com a aproximação entre alemães e franceses, como decorrência do Plano Schuman, que redundaria na criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em 1951. Adiante, o Tratado de Roma, de 1957, estabeleceria a Comunidade Econômica Europeia, com a "Europa dos Seis". Portugal, por sua vez, em sua relutância em manter seu modelo integracionista herdado da época das grandes navegações, somente seria incorporado aos projeto integracionista europeu em meados da década de 1980, quando da conformação de chamada "Europa dos Doze" (AZAMBUJA, 2012), apesar de ter manifestado oficialmente interesse em se associar à CEE ainda em 1970 (RODRIGUES, 1982). A atualização da política externa brasileira, que se processava a partir do advento da PEI, partia de uma análise de ganhos marginais, em acordo com uma leitura pragmática do interesse nacional, isto é, quais as vantagens o Brasil obteria ao manter o apoio ao colonialismo português, prática corrente da diplomacia pátria até o governo JK? De fato, o Brasil estava consciente de que o comércio com a África valia muito mais do que com Portugal. Desde então o Brasil começa a votar pela abstenção [...] não só nas questões dos territórios portugueses como quando Portugal pretende representar os interesses da África portuguesa (Ibidem, p. 522).
O processo de descolonização afro-asiática ganhava compasso cada vez mais acelerado no curso das décadas de 1950 e 1960. A primeira leva de independências ocorrera na Ásia em meados dos anos 1940 se prolongando no decênio seguinte e atingindo então a África, adquirindo, nesse continente, magnitude na década de 1960. Dessa forma, a emancipação dos impérios coloniais ganhava tons de um fenômeno de época, ao passo que o colonialismo aparecia cada vez mais "como um anacronismo da era pós-guerra" (KEYLOR, p. 415). Frente a uma Europa devastada após o fim da Segunda Guerra Mundial, a manutenção da relação metrópole-colônia podia ser percebida cada vez mais como anacrônica. A seu turno, "Portugal era diferente de todas as potências coloniais, porque não era nem Potência, nem colonial, mas um país subdesenvolvido e ultramarino" (Ibidem, p. 367). Rodrigues assim resume o descompasso entre o projeto europeu e o português:
19 A INFLUÊNCIA RECÔNDITA DO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE NA DIMENSÃO SULATLÂNTICA DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE Se Portugal explica à Grã-Bretanha e à França, por exemplo, que o que está em jogo na África é o próprio destino do Ocidente, estas heterodoxamente insistem em promover um novo caminho de ajustamento interpovos, em comunidade de interesses mútuos. Mas Portugal prefere ficar só, e livre escolhe o seu caminho, acreditando na restauração da história, pretendendo evadir-se do seu processo, esquecendo que ser pelo passado é ser contra a história, e pensando, ao ouvir Lorde Home dizer-lhe que a África e a Europa são indispensáveis uma à outra, que isto significa a África subordinada à Europa (Ibidem, p. 363).
Como se sua posição geográfica na Europa comprometesse sua interação, bem como o intercâmbio de ideias, o desencontro das atitudes propugnadas por Portugal e pelos seus pares europeus era algo observado na história daquele país, uma vez que o governo português parecia acometido da mesma abulia, em relação ao que vivenciavam seus vizinhos, que dominara suas ações há quase 150 anos, quando da eclosão da Regeneração, também conhecida como Revolução liberal do Porto, que reivindicava a incorporação de princípios identificados com o liberalismo ao funcionamento daquele Estado situado ao extremo da península ibérica. As críticas em âmbito internacional ao salazarismo não diferiam muito em substância daquela reproduzida do periódico O Português por Schwarcz e Starling (2015, p. 203), publicado a 18 de abril de 1814, a saber: "enquanto as grandes revoluções se têm obrado na Europa, só o governo português [...] dorme em um sono profundo à beira do precipício [...] alevantando um muro impenetrável às luzes que nos possam vir dos vizinhos como se estas fossem contrabando". Portugal entendia a importância de sustentar relações de proximidade com o Brasil; afinal, este representava uma potência média de expressivo cacife político, angariado, sobremaneira, após o fim da conflagração de proporções mundiais. A participação do Brasil na guerra garantiu-lhe assento nas principais conferências internacionais que definiriam a distribuição de poder mundial no período pós-conflito, mormente Bretton Woods e São Francisco. Por ocasião do surgimento da ONU, por exemplo, a apresentação do Estado brasileiro como possível, além de único, "sexto membro permanente", por sugestão do presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt, denota o reconhecimento da contribuição nacional nas operações para a retomada da paz. Dessa forma, o país assegurava sua inserção de modo assertivo em meados do século XX, ainda que mantivesse relações de cunho sentimental e emotivo com um Portugal decadente, comportamento esse dissociado de um cálculo de ganhos marginais atento ao interesse nacional.
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A postura portuguesa diante das mudanças que ocorriam em âmbito mundial começava a ser analisada como anistórica. Em relação à sua presença em território africano, Rodrigues advertia, em livro cuja primeira edição data de 1961, que "é improvável [...] que mesmo Portugal possa evadir-se da história por muito tempo, quando todos os demais [impérios coloniais na África] estão em debandada" (RODRIGUES, 1982, p 253) – diferentemente de seus parceiros ingleses, pois "o senso político e a experiência universal da Grã-Bretanha lhe ensinaram, antes das outras nações imperialistas, que era hora de ficar com o andamento histórico, para impedir a ruptura e manter a continuidade" (Ibidem, p. 254). Em resumo, Portugal "inaugurou a hegemonia europeia do mundo africano e asiático", sendo que "foram os primeiros a chegar e serão os últimos a sair" (Ibidem, pp. 343-344). Como acrescenta Rodrigues (Ibidem, p. 256), Todos estão aos poucos partindo, mas Portugal, por exemplo, insiste em prestar os serviços que não lhe pedem mais. "O abandono, se precipitado, de muitos territórios por parte das Potências europeias, se me afigura um crime mais contra o negro que se pretendia elevar do que contra o branco, mesmo que ameaçado de expulsão e despojado de todos os seus haveres", disse Salazar.
Convém reconhecer, assim como o fazem Magnoli e Barbosa (2013, p. 114), que "o estadista encontra-se, quase sempre, preso a circunstâncias que o impelem a perpetuar a tradição. Sobre as pressões da opinião pública, que tendem a refletir as percepções correntes e os preconceitos arraigados". Dessa forma, a PEI de Quadros e Arinos pode ser interpretada como uma tentativa de ajuste no relógio, um acerto dos ponteiros, uma adaptação do timing da atuação exterior brasileira em relação aos eventos que se sucediam nas relações internacionais de meados do século XX. Nesse contexto, indagava-se o sentido de se manter laços de "Amizade e Consulta", nos termos do Tratado firmado em 1953 e ratificado em 1955, com o atrasado império português. Com efeito, segundo interpretação de Honório Rodrigues (1982, p. 385), o tratado seria uma "vitória portuguesa", que não acarretava ganhos para o Brasil, além de diminuir sua margem de manobra no jogo diplomático. Ironiza, por fim, ao conjecturar a seguinte possibilidade: "imagine-se os Estados Unidos a consultar a Grã-Bretanha sobre o que devem ou não fazer ou não agir deste ou daquele modo, sem ouvir a Austrália e a Nova Zelândia, que falam a mesma língua inglesa".
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Portugal e seus domínios ultramarinos "eram restos de uma História brilhante, em certo sentido, os quais contribuíram para revelar o atraso de uma forma de dominação defasada e retrógrada e denunciar a fragilidade do sistema econômico e social da metrópole" (LINHARES, 2000, p. 54). Portugal, país de exígua extensão territorial, além de pobre para os padrões europeus, insistia em guerras coloniais que "chegavam a consumir 50% da renda nacional" (RODRIGUES, p. 488). O arcabouço normativo em defesa da autodeterminação dos povos ampliavase substantiva e qualitativamente. Em seu primeiro capítulo, a Carta das Nações Unidas, de 1945, enunciava como um de seus propósitos "desenvolver relações amistosas entre as nações baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, p. 5). Some-se a essa previsão de direito internacional o estabelecimento, no âmbito da própria ONU, do Conselho de Tutela, cuja atribuição era administrar territórios recém-emancipados politicamente de suas metrópoles, ou que se encaminhassem para tanto, com o intuito de impulsionar seus respectivos desenvolvimentos econômico, político, cultural e social, de maneira a fornecer condições para que adquirissem soberania (PORTELA, 2015). Por oportuno, Magnoli e Barbosa (2013, p. 84) aduzem que "a ordem do pós-guerra começou a ser percebida também em termos de descolonização, pois a universalidade dos direitos humanos não podia admitir a negação da autodeterminação dos povos". Nesse sentido, aludem ao fato de constar na Carta do Atlântico, assinada por Franklin Delano Roosevelt e Winston Churchill em 1941, a menção a esse tema, como se depreende da leitura de trecho do documento: "eles [Roosevelt e Churchill] respeitam o direito de todas as pessoas escolherem a forma de governo sob a qual desejam viver; e eles desejam ver os direitos soberanos e o autogoverno restaurados para os que foram privados pela força" (ATLANTIC CHARTER apud MAGNOLI; BARBOSA, 2013, p. 85). Essa era uma das características que distinguiam a Organização das Nações Unidas de sua predecessora, a Liga das Nações, uma vez que o pacto que encerra a Conferência de Versalhes não dispõe sobre aquela temática elevada à condição de propósito maior da organização internacional quando da redação da Carta das Nações Unidas. Não só o Pacto da Sociedade das Nações não se refere à autodeterminação dos povos, como, do contrário, confere legitimidade à política
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imperialista das potências europeias. Com efeito, o documento constitutivo da Liga das Nações se refere, em seu artigo 22, às colônias e territórios como sendo "habitados por povos ainda incapazes de se dirigirem por si próprios nas condições particularmente difíceis do mundo moderno" (PACTO DA SOCIEDADE DAS NAÇÕES, 1919, p. 8). Assim, fazia-se necessário "confiar a tutela desses povos às nações desenvolvidas que, em razão de seus recursos, de sua experiência ou de sua posição geográfica, estão em situação de bem assumir essa responsabilidade e que consistam em aceitá-la" (Idem). Por sua vez, a famosa Conferência de Bandung, de 1955, também conhecida como Conferência Afro-Asiática ou Conferência do Terceiro Mundo dedica, em seu comunicado final, uma seção ao tópico direitos humanos e autodeterminação, em que confirma os princípios inscritos na Carta da ONU, bem como na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Esta, ainda que não arrole diretamente a ideia de autodeterminação, representa significativo avanço no reconhecimento do indivíduo como sujeito de direito internacional e, consequentemente, em seu papel como definidor de mudanças que ocorrem no âmbito internacional. Bandung concorda em declarar, como problema dos povos dependentes, o colonialismo, em todas as suas formas, como um mal a ser extirpado rapidamente. Ademais, afirma que a sujeição dos povos à subjugação, dominação e exploração estrangeiros representa óbice aos direitos humanos fundamentais, contrária à Carta das Nações Unidas, e um impedimento à promoção da paz mundial e da cooperação. Destarte, declarava suporte às causas da liberdade e independência desses povos, clamando às potências que garantissem esses atributos aos territórios dependentes 4 (CONFERENCE OF BANDUNG, 1955, p. 6). Além disso, de acordo com José Honório Rodrigues, Desde 1960 vinham a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança insistindo em considerar os territórios portugueses do ultramar como tendo direito à autodeterminação e condenando a recusa de Portugal em reconhecer a declaração de concessão de liberdade, bem como sua
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Tradução livre do original em inglês: The Conference is agreed (a) in declaring that colonialism in all its manifestations is an evil which should speedily be brought to an end; (b) in affirming that the subjection of peoples to alien subjugation, domination and exploitation constitutes a denial of fundamental human rights, is contrary to the Charter of the United Nations and is an impediment to the promotion of world peace and co-operation; (c) in declaring its support of the cause of freedom and independence for all such peoples, and (d) in calling upon the powers concerned to grant freedom and independence to such peoples.
23 A INFLUÊNCIA RECÔNDITA DO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE NA DIMENSÃO SULATLÂNTICA DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE negativa em implementar as decisões das Nações Unidas (RODRIGUES, 1982, p. 478).
Finalmente, em setembro de 1961, ocorria em Belgrado, capital da então Iugoslávia e atualmente centro político da Sérvia, a primeira reunião do Movimento dos Países Não-Alinhados (MNA), da qual o Brasil participaria como membro observador. A Declaração de Belgrado confirma os princípios constantes no documento lavrado em Bandung, em especial no que diz respeito à condenação a todas as formas de colonialismo, ainda que reconheça os consideráveis avanços que se davam no período, uma vez que os impérios coloniais "gradualmente desapareciam do palco da História" (NON-ALIGNED MOVEMENT, 1961, p. 2). A ideia
de
não
alinhamento
traduzia-se na
busca
de
uma
estratégia
de
desenvolvimento autônomo, para além de adesões ao bloco capitalista ocidental ou ao bloco socialista oriental, aos Estados Unidos ou à União Soviética. Naquele mesmo ano, a revista norte-americana Foreign Affairs publica o artigo "Brazil's New Foreign Policy", de autoria de Jânio Quadros, em sua edição de outubro. Quadros havia renunciado à Presidência da República em 25 de agosto, mas o artigo contém elementos que constarão no exercício de política externa brasileira no período que se encerraria em 1964, com a ascensão da cúpula militar ao poder. Em sintonia com os princípios enunciados em Bandung e confirmados em Belgrado pelo MNA, alguns dos quais expressos anteriormente na Carta da ONU, o então presidente afirmava a rejeição do colonialismo como corolário inevitável e imperativo do desenvolvimento. Da mesma maneira, alegava conferir ênfase aos princípios de autodeterminação e da não intervenção, além de se opor ao alinhamento irrestrito do Brasil ao Ocidente liberal e capitalista, ainda que reconheça o pertencimento do país – política, cultural e socialmente – a esse Hemisfério. Por fim, Quadros aprofunda a ideia de não alinhamento proposta pelo MNA, ao expor que o Brasil não era "membro de bloco algum, nem mesmo do bloco neutralista" (QUADROS, 1961, 155).
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1.3. Portugal e sua obstinada resistência aos "ventos de mudança" Salgado remete-se aos argumentos de Williams Gonçalves, segundo os quais as razões para a considerável duração do regime ditatorial e colonialista português seriam as seguintes, a saber 1º) a condição de país periférico no contexto do sistema capitalista internacional, com uma organização econômica de base rural e traços marcadamente tradicionais manteve Portugal à margem das renovações mundiais. O Estado sempre se manteve como força tutelar da economia portuguesa; e 2º) a posse do império colonial, que contribuiu como válvula de escape para a remediação das deficiências e insuficiências da economia portuguesa. As colônias eram enquadradas administrativamente como uma extensão da metrópole (SALGADO, 2009, pp. 4-5).
No entanto, outros motivos explicam essa suposta permanência do atraso português. O medo da infiltração comunista garantia o apoio dos Estados Unidos ao governo de Oliveira Salazar. Esse respaldo norte-americano ao salazarismo seria consolidado quando da cessão de uma base militar nos Açores aos EUA. Nesse sentido, constatou-se, inclusive, o emprego de armas da OTAN – organização da qual o Estado português participa – para reprimir movimentos nacionalistas na África (SALGADO, 2009). Ademais, Portugal não participa da Segunda Guerra Mundial, o que lhe assegura a manutenção de seus recursos materiais e humanos, e, consequentemente,
a
continuidade
de
seu
controle
sobre
as
colônias;
diferentemente do que ocorre com seus vizinhos, que assistem à descolonização como consequência de sua própria exaustão como potências colonialistas. Portugal parecia resistir aos "ventos de mudança" que varriam as potências europeias da África. A expressão foi cunhada em 1960, pelo britânico Harold MacMillan, que prenunciava que O vento da mudança está a soprar pelo continente afora e, quer isso nos agrade ou não, o amadurecimento da consciência nacional é um fato político. Devemos aceitá-lo como tal e as nossas políticas devem dar conta disso mesmo (MACMILLAN apud OLIVEIRA, 2011, p. 30).
De fato, o governo britânico identificava na emancipação gradual dos territórios colonizados e na sua posterior incorporação à Commonwealth não um "sinal de fraqueza", mas sim "a forma mais eficaz de garantir à Grã-Bretanha a continuidade do seu estatuto de grande potência mundial, um estatuto ancorado, precisamente, na sua ampla rede de conexões pós-coloniais e no capital de influência e prestígio que isso lhe proporcionava". Assim, a última coisa que os governantes britânicos desejavam era serem 'equiparados aos portugueses como o
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obstáculo a um futuro progresso no mundo colonial', desbaratando o prestígio que haviam acumulado com sua 'governação benevolente'" (Ibidem, pp. 24-25). Nesse sentido, Arinos, "discursando em plenário [da XVI AGNU], exortou Portugal a aceitar "a marcha da história" e assumiu a direção pela autonomia de Angola. A delegação brasileira apoiou a resolução anticolonialista aprovada pela esmagadora maioria da assembleia, mas rejeitou o item que condenava explicitamente o governo português" (LAMARÃO, 2007, p. 39). Apesar de Jânio Quadros representar um personagem caricato para a historiografia nacional, a vertente africanista de sua política externa pautou-se, sobremaneira, pelo pragmatismo, ao menos no que concerne ao exercício retórico. Tratou-se de uma tentativa de ajuste do relógio da atuação exterior do Brasil, uma tentativa de adequar suas ações ao conjunto de modificações que se sucediam nas relações internacionais. A forma como foi realizada essa inflexão em direção à África pode ser criticada em diferentes aspectos, mas o diagnóstico de que seria necessário proceder a uma abertura para a África pode ser aduzido como correto. A economia ditava os rumos a serem delineados pela política externa. Em uma perspectiva racional, a adição do reconhecimento das independências dos territórios africanos ao cálculo de ação internacional do Brasil poderia trazer ganhos marginais significativos, caso comparado à manutenção de uma espécie de diplomacia cultural de vertente afetiva ou sentimental com Portugal. Era oportuno atualizar o relógio da atuação exterior brasileira em relação ao compasso das mudanças que ocorriam em âmbito internacional, e um desses ponteiros referia-se justamente a um posicionamento quanto à eclosão da descolonização africana. Ainda que vacilante em suas maneiras, a PEI logrou servir ao menos como um protocolo de intenções a ser devidamente colocado em prática no longo prazo. Houve, não obstante, a inauguração de uma perspectiva universalista na história da política exterior do Brasil, diferente da universalidade da "visão regionalizadora", de JK, de acordo com Rodrigues, que predominara durante toda a primeira metade do século XX no exercício da política externa brasileira. O rascunho de uma política africana, de fato, tomaria forma no curso da ditadura civil-militar instaurada no país em 1964. Assim, o relógio continuaria parado, sendo atualizado somente entre 1974 e 1975, como se verá adiante.
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A PEI seguia uma lógica pragmática, de acordo com a qual era necessária se proceder a uma diversificação de parcerias. Tratava-se de uma análise prospectiva, uma aposta para o futuro, no qual o resgate da dimensão sul atlântica do Brasil inseria-se na dinâmica de promoção do desenvolvimento, de maneira autônoma e sem se fixar a orientações de natureza ideológica dos seus pares – fosse ela capitalista ou socialista, segundo a polarização característica da Guerra Fria. A política externa dos últimos dois governos representativos da República Liberal de viés populista caracterizava uma nova postura para um novo panorama internacional. Era preciso uma nova moldura para comportar um novo quadro que surgia no contexto global. Nesse termos, convém indagar se a PEI representava uma reação ou uma inovação. Pode-se argumentar que o movimento da diplomacia nacional instituído por Quadros e Arinos continha em sua elaboração um pouco de reatividade, bem como de inovatividade. Percebia-se, enfim, que a aliança com os Estados Unidos, que renderia tantas benesses no pós-Segunda Guerra, perdera sentido naquele contexto. Aquilo que já fora apontado por Raul Fernandes em seu célebre "memorando da frustração" (ALMEIDA, 2013, p. 423) parecia receber, finalmente, a devida atenção. Ademais, os parcos resultados provenientes da Operação PanAmericana gestada pelo seu antecessor, o presidente JK, serviria para repensar e reavaliar o alinhamento com os Estados Unidos. Por sua vez, a PEI caracterizava uma adaptação a uma nova realidade, em que surgiam novos países e na qual se reconhecia a fragilidade crescente de Portugal. Instituía-se, assim, uma vertente de transição para um novo estado de coisas. Não necessariamente essa aproximação com as aspirações africanas renderia bons dividendos. Todavia, seria melhor ter expectativas de obter ganhos a continuar a promover relações de caráter "histórico e incondicional" (SALGADO, 2009, p. 1) com um Portugal que sustentava sua "arcaica visão de mundo" (Ibidem, p. 11). Ademais, processava-se o resgate da dimensão sul atlântica do Brasil, há muito relegada a uma importância secundária, de forma que se propunha a modernização e a atualização dessa vertente cujo ápice fora vivenciado pelo Nordeste durante o período colonial até a primeira metade do século XIX. O próprio Mario Gibson Barboza refere-se à "modernização de nossa política externa" quando do exercício da PEI, bem como à necessidade de sua atualização em relação ao colonialismo europeu. Afinal, "anticolonialismo era a palavra de ordem
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nas Nações Unidas quando lá servi em 1959-60", conforme relata Gibson Barboza (1992, p. 234). Nesse contexto, "representantes do mundo inteiro discutiam exaustivamente a questão, buscando tecer um novo sistema de princípios, nas relações entre os povos, mais compatível com os tempos modernos" (Idem).
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CAPÍTULO 2 – GILBERTO FREYRE E A POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE 2.1. Raízes esquecidas da PEI? Em sua mensagem encaminhada ao Congresso Nacional a 15 de março de 1961, Jânio Quadros, recém-empossado presidente da República, resume em quinze pontos as ações de política exterior que seriam adotadas em seu governo. Cabe atentar para três dessas estratégias, quais sejam: o apoio decidido ao anticolonialismo, o reconhecimento e atribuição da devida importância e aspirações comuns ao Brasil e às nações da África e da Ásia, bem como o estabelecimento e estreitamento de relações com os Estados africanos (QUADROS, 1961). Apesar da brevidade de seu mandato, Quadros inaugurava a política africana do Brasil, que logrou introduzir as relações com aquele continente no âmbito do acumulado histórico e prático da diplomacia nacional. Contudo, esse empreendimento diplomático não pode ser interpretado como ausente de antecedentes históricos, mas sim como concretização de um acumulado teórico que se encontrava em processo de formação desde a primeira metade do século XX. Identificam-se comumente os antecedentes teóricos da PEI no pensamento de José Honório Rodrigues, San Tiago Dantas e Afonso Arinos, que apontavam os benefícios que adviriam do estreitamento das relações entre o Brasil e a África. No entanto, não se costuma investigar a influência das ideias de Gilberto Freyre para a posterior formulação desse movimento diplomático. Quiçá a ausência de estudos envolvendo as ideias de Freyre e a inflexão da política exterior brasileira rumo à África deva-se ao pouco conhecimento, dentro e fora do Brasil, dos textos do autor pernambucano que fazem referência ao conceito de lusotropicalismo, como indica Cláudia Castelo (2010), em prefácio à obra Um brasileiro em terras portuguesas. O professor José Flávio Sombra Saraiva (2012, p. 39) chega a afirmar que as raízes da política africana do Brasil deveriam ser buscadas entre as décadas de 1940 e 1950, como consequência do “esforço brasileiro de promoção do desenvolvimento econômico”, sem fazer menção a Freyre. Reconhece, entretanto, o sociólogo pernambucano como aquele que pensou
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o Brasil como parte do mundo atlântico do qual a África constituiria “substrato indelével”. Neste capítulo, pretende-se concentrar naquilo que faz referência às atitudes da PEI relativas à África, com o intuito de identificar nesse momento o nascimento de uma política externa do Brasil para aquele continente, que passaria a compor, posteriormente, um dos "cenários obrigatórios" da diplomacia nacional, conforme expressão de Gelson Fonseca Jr. (2011). Por raízes esquecidas, não se quer dizer que a utilização do lusotropicalismo para fundamentar a PEI não tenha sido empregada à época de sua elaboração. Pelo contrário, procura-se resgatar uma ideia que fora empregada consideravelmente naquele momento, mas que por vezes é esquecida quando da análise desse movimento diplomático nacional em produções acadêmicas hodiernas.
2.2. Gilberto Freyre e as ideias de lusotropicalismo e de unidade de sentimento e cultura A produção de Gilberto Freyre, cuja principal obra – Casa-grande & senzala – data de 1933, insere-se em um momento de intenso desenvolvimento intelectual na sociedade brasileira, que se preocupava em explicar o Brasil em suas múltiplas facetas. Juntamente com Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, entre outros, Freyre confirma a famosa impressão de Antônio Carlos Jobim, para quem o Brasil não seria para principiantes. Como caracterizam Mariza Veloso e Angélica Madeira (1999, p. 137), "existe [no período entre 1920 e 1940] uma preocupação central com a ideia de construção da nação, ideia que se desdobra na necessidade de distinguir traços culturais típicos: é preciso dizer o que é [grifo das autoras] o Brasil". Pode-se argumentar que uma das principais contribuições do sociólogo pernambucano para o ideário social do Brasil foi o deslocamento do pensamento sobre o Brasil em termos de raça para a dimensão cultural, o que constitui ponto culminante para o advento da modernidade no pensamento social brasileiro (VELOSO; MADEIRA, 1999). Não deixa de ser interessante atentar que datam dessa época o surgimento do movimento modernista brasileiro, em 1922, a ascensão de Getúlio Vargas ao poder em 1930, trazendo consigo alguns intelectuais
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para tomar posse em cargos importantes, bem como a fundação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, entre outros eventos. Freyre publicou obras discorrendo sobre os conceitos de lusotropicalismo e de unidade de sentimento e cultura, que defendiam uma espécie de comunhão de interesses e de objetivos no âmbito do mundo afro-asiático-brasileiro de formação portuguesa, cujas características lograram introduzir, como aqui se procura investigar, importantes linhas de atuação internacional ao acumulado histórico e prático da política exterior do Brasil. São elas O mundo que o português criou e Um brasileiro em terras portuguesas, lançadas em 1940 e 1953, respectivamente. Castelo (2010) caracteriza como linhas mestras do lusotropicalismo – presentes também em Casa-Grande & senzala –, a especificidade do caráter português, a predisposição portuguesa para a "aventura ultramarina ou tropical", para a miscigenação e para a interpenetração de valores e culturas. Ademais, salienta a "dualidade étnica e de cultura" da formação de Portugal, a influência do contato com mouros e judeus desde os primórdios da nacionalidade e, finalmente, o papel do "cristianismo português" na colonização híbrida dos trópicos. Amado Cervo (2000, p. 278) assim explica o lusotropicalismo de Freyre, a saber: "o sociólogo brasileiro concebia uma comunidade luso-brasileira baseada no que ele chamava 'lusotropicalismo', a condição original que tinha levado o povo português a promover a interpenetração racial, linguística e cultural, combinando a cultura europeia com a cultura tropical". O conceito de lusotropicalismo é complementar àquele de unidade de sentimento e cultura desenvolvido anteriormente. Em seu livro intitulado O mundo que o português criou, Gilberto Freyre defende aquilo que denomina unidade de sentimento e cultura entre Portugal e seus respectivos territórios colonizados na América, na África e na Ásia, além das ilhas de Madeira, Açores e Cabo Verde, impulsionada no Brasil pela intensa miscigenação, assim como pela consequente interpenetração de diferentes valores culturais, vivenciadas no país. De acordo com Freyre, torna-se possível a emergência de uma espécie de transnacionalismo supranacional, assentado, sobremaneira, no domínio compartilhado da língua portuguesa. Outrossim, o autor reitera seu argumento favorável à atribuição de maior peso à identidade negra no processo de formação nacional do Brasil, bem como confere relevo à categoria de miscibilidade, a fim de proceder a interpretação acerca da formação da identidade nacional, assim como fizera em Casa-grande & senzala.
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Ideia constante na obra de Freyre refere-se à facilidade que o Brasil apresenta em assimilar ou contemporizar costumes ou valores provenientes de alhures, o que o pensador pernambucano qualifica como “antagonismos em equilíbrio” (FREYRE apud ARAÚJO, 2009, p. 201). Essa característica da sociedade nacional seria sublinhada por historiadores das relações internacionais brasileiros, como Amado Luiz Cervo, que a identifica como fruto da imigração portuguesa. Os portugueses contavam com vantagens sobre os outros imigrantes. Estabeleciam-se de preferência na cidade, onde se dedicavam ao comércio e à criação de pequenas empresas. Não foram decisivos para o processo de industrialização do Brasil porque não dispunham de grandes capitais nem de experiência. Reforçaram, contudo, traços da cultura brasileira, feita de convivências de contrários e de tolerância, no momento em que a nação tinha seu perfil étnico modificado pelo aporte de outras matrizes no exterior [grifo meu] (CERVO, 2000, p. 5).
Dessa forma, evidencia-se a influência mútua entre culturas como variável constante da formação do mundo luso-afro-asiático-brasileiro como unidade essencial de sentimento e de cultura, inclusive quando da respectiva contribuição dos territórios de colonização portuguesa para a constituição de uma língua transnacional, tendo por base o idioma português. Consubstanciava-se, assim, uma comunidade de costumes e crenças, que sustentava valores cristãos como elemento de identidade. Freyre estabelece que a conformação de unidade de sentimento e de cultura entre Portugal, Brasil, África, Índia portuguesa, Madeira, Açores e Cabo Verde deverse-ia à colonização portuguesa, que logrou desenvolver nesses povos as mesmas características de cordialidade e de simpatia observados em Portugal, visto como “procriador europeu nos trópicos” (FREYRE, 1940, p. 25). Além disso, o autor salienta a predisposição do povo português à mestiçagem, uma vez que na própria constituição étnica de Portugal fez-se intensamente presente esse fenômeno social. Na concepção de Gilberto Freyre, a mestiçagem emergia como força ativa e criadora, assim como dissolvente da rigidez das divisões sociais de raças e de classes. A “democratização de sociedades humanas através da mistura de raças, do cruzamento, da miscigenação” contribuía para o surgimento de uma “consciência de espécie transnacional ou supranacional”, em contraposição à ideia de purismo étnico (Ibidem, p. 30).
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De acordo com o autor, a aproximação entre Brasil e povos da África, da Ásia e das ilhas de colonização portuguesa depende, necessariamente, do estreitamento de relações entre brasileiros e portugueses. Com efeito, assinala que o interesse moderno da literatura, da arte e da sociologia brasileiras pelo negro, pelo afro-brasileiro, pelo mulato, parece participar dessa vontade vaga de integração de parte considerável da nossa cultura daquele todo transnacional, penetrado das mesmas influências africanas (Ibidem, p. 34).
Pode-se atribuir a defesa que o sociólogo pernambucano levanta em favor de uma comunidade transnacional composta por Brasil, Portugal e suas colônias no ultramar à própria influência histórica exercida por Angola em Recife. Interessante recordar que no próprio tratado de reconhecimento da independência política brasileira firmado com Portugal estabelecia-se o seguinte: "Sua Majestade Imperial promete não aceitar as proposições de quaisquer colônias portuguesas para se reunirem ao Império do Brasil” (LIMA apud RICUPERO, 2011, p. 150). Como explica o embaixador Rubens Ricupero (2011), essa condição dirigia-se diretamente a Angola, uma vez que os contatos comerciais entre Brasil e Angola eram mais expressivos e constantes que aqueles entre a colônia africana e Portugal. E no caso de Recife essa proximidade era ainda mais patente, em razão de sua condição de importante entreposto para as mercadorias provenientes de portos angolanos. Mesmo a quantidade de escravos vinda de Angola e desembarcados em Pernambuco não deixa de ser significativa. Saliente-se ainda que, em 1648, os pernambucanos empreendem a reconquista de Angola, tomada pelos holandeses em 1641 (FAUSTO, 2010). Em certo grau, pode-se analisar o constructo freyreano como uma ampliação da ideia de Império Luso-Brasileiro desenvolvida por D. Rodrigo de Souza Coutinho entre o fim do século XVIII e início do século XIX. Afilhado de marquês de Pombal, o futuro Conde de Linhares “propunha a criação de um ‘sistema político’ para a conservação dos domínios portugueses na América”, advogando em favor do “‘feliz nexo’ que ligava todos os domínios lusitanos” e “apelando para um ideal de unidade no qual o ‘português nascido nas quatro partes do mundo’ [quais sejam, Europa, América, Ásia e África] se julgue apenas português e não se lembre senão da glória e grandeza da monarquia”. Coutinho também envidou esforços para minorar as diferenças de tratamento entre súditos do reino e os súditos da colônia (POMBO, 2008, s/n).
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Quando da transmigração da Corte portuguesa ao Brasil, D. Rodrigo Coutinho recebe o título de Conde de Linhares e faz-se nomear ministro da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, propondo a formação de um Império Luso-Brasileiro, com o fim do estatuto colonial. D. Rodrigo falece em 1812, mas suas ideias encontrariam repercussão na elevação do Brasil à condição de Reino Unido de Portugal e Algarves, ocorrida em 1815. O pensamento de Freyre é como condizente com o discurso oficial. Basta ter em mente que data de 1953 a assinatura do Tratado de Amizade e Consulta, que obrigava o Brasil a não manter postura de enfrentamento com relação a Lisboa (PENNA FILHO; LESSA, 2007) e que levou o país a apoiar a entrada de Portugal na ONU, em 1955. Como assinala, Honório Rodrigues, "a ideia de comunidade, declarada explicitamente no Tratado de Amizade e Consulta de 1953, nasceu jungida à da superioridade portuguesa, tão proclamada em O Mundo que o Português Criou de Gilberto Freyre" (RODRIGUES, 1982, p. 382). Àquela época, argumenta Rodrigues, "para alguns portugueses, 'Portugal' e o Brasil, a África e a Índia constituem hoje uma unidade de sentimento e cultura e é o 'Atlântico Sul (África e Brasil) um mar lusitano'" (Idem). Sobre o arranjo bilateral, Cervo (2000, p. 6) esclarece que o Tratado [de 1953] estabeleceu a consulta mútua sobre os problemas internacionais de interesse comum, a equiparação aos respectivos nacionais de portugueses e brasileiros, seu direito de circular e estabelecerse no outro país e o tratamento de nação mais favorecida a ser aplicado aos cidadãos de ambos os países
Saraiva (2012) identifica como uma das razões que explicariam o distanciamento do Brasil face à África a própria concorrência que aquele continente poderia exercer aos produtos primários nacionais, notadamente o cacau, o algodão e o café. Essa preocupação aumenta com a formação do Mercado Comum Europeu, em 1957, que estabeleceria relações especiais com as nações africanas. Ademais, de início as independências dos territórios africanos davam margem à interpretação que estes rivalizariam com a ajuda para o desenvolvimento destinada à América Latina pelas grandes potências. Apesar de não parecer lógico, em análise retrospectiva, o receio quanto à possível concorrência africana, considerando que a descolonização naquele continente poderia figurar como oportunidade para escoamento da produção brasileira resultante do avanço do processo de substituição de importações então em curso, verifica-se que a preocupação de fato
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se constatava, como se depreende de discursos como o político Lourival Fontes, recuperado por Rodrigues (1982). Daí, talvez, resulte a ausência de ação ou discurso do então presidente Kubitschek quando da ocorrência do "Le soleil des indépendances", em 1961, que daria origem a dezessete novos Estados independentes na África (SARAIVA, 1993), apesar de este ter aumentado significativamente o número de representações brasileiras no continente (TEIXEIRA DA SILVA, 2014). O ano anterior, 1960, teria sido, inclusive, reconhecido pela ONU como o ano da África (PENNA FILHO; LESSA, 2007). Como conclui Teixeira da Silva (2014, p .135) o principal óbice a uma política mais dinâmica [de JK] no cenário internacional advinha da histórica solidariedade brasileira ao regime salazarista português ao seu ultracolonialismo na África. Várias novas nações – Índia, Indonésia, Gana e Senegal – condenaram o silêncio brasileiro e seu voto de proteção a Lisboa na ONU.
Afirma-se que o início das relações entre o Brasil independente e o continente negro remonta ao século XIX, com o duradouro tráfico negreiro, que se instituíra ainda no período colonial; contudo, essa seria uma forma de relacionamento imposta, e não um acordo de vontades livremente estabelecido entre as partes. Ainda assim, a partir da década de 1850, observa-se a introdução de um componente de esfriamento na postura do Império para com os territórios africanos, em razão da promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que punha fim ao comércio transatlântico de escravos. Some-se a isso o fato de que desde os anos 1840, o Estado brasileiro voltava-se cada vez mais para a solução de questões litigiosas na região da Bacia do Prata, tendo apaziguado a pouco revoltas internas, o que corroborou para a "regionalização da política exterior brasileira, que perdurou por grande parte do século XIX” (PENNA FILHO; LESSA, 1997, p. 59). Esse distanciamento entre Brasil e África por algo em torno de um século ocasionaria o profundo desconhecimento da realidade africana por parte do país, o que seria evidenciado quando da reaproximação entre ambos.
2.3. Tensões na composição do mundo afro-americano de f ormação portuguesa: o advento da PEI Freyre anuncia Afonso Arinos de Melo Franco e San Tiago Dantas, futuros chanceleres da PEI, como alguns dos representantes daquilo que denomina nova
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história social e cultural do país, que enfatizava o sentido de totalidade humana no processo histórico, com vistas a descrever e a interpretar a formação do Brasil e do brasileiro. O pensador pernambucano reconhece o caráter original das pesquisas conduzidas por aqueles jovens estudiosos, entre outros, que se distanciavam do positivismo
francês
para
aproximar-se
de
novos
métodos
provenientes
especialmente dos Estados Unidos e da própria França, mas também da Inglaterra, da Alemanha e da Itália – a exemplo das técnicas de geografia humana e de história econômica. Convém salientar que Gilberto Freyre (1940, p. 72) refere-se a Afonso Arinos de Melo Franco como “um dos ensaístas mais lúcidos da moderna geração brasileira”. Interessante notar o papel desempenhado por Afonso Arinos na divulgação de ideias relacionadas à valorização da herança africana do Brasil, conferindo relevo a ideias como miscigenação e, por conseguinte, recuperando o pensamento de Freyre. Como expõe Vamireh Chacon (2001, p. 41), "Afonso Arinos de Melo Franco, companheiro de geração, inclui-se entre os que percebem a inserção de Gilberto Freyre como elo importante da identidade cultural brasileira". Em depoimento à Folha de São Paulo, Arinos confidencia que "Gilberto foi meu amigo de mocidade. [...] Ele é tipicamente um homem do século XX, como eu. É um representante típico do pensamento e da sensibilidade da arte do século XX" (MELO FRANCO apud CHACON, 2001, p. 125). A proximidade entre Freyre e Arinos é salientada por Veloso e Madeira (1999, p. 138), quando afirmam que aquele "mantém relações de amizade e troca de ideias com importantes representantes dos modernistas que estão no Rio de Janeiro, e também em Recife", listando o político mineiro entre seus contatos. Em termos de afinidade intelectual, as autoras registram "o gosto que Gilberto Freyre tem pela palavra 'civilização'", predileção essa que seria compartilhada por "Mário de Andrade, Carlos Drummond, Sérgio Buarque e Afonso Arinos" (Idem). Quanto a San Tiago Dantas, Chacon (2001) refere-se à troca de correspondências mantida entre Dantas e Freyre. Cabe ressalvar que a execução da PEI não esteve restrita a esses dois chanceleres, compreendendo também mandatos de outros três na pasta do MRE – nomeadamente Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Araújo Castro. No entanto, a PEI foi "estruturada em conjunto por Quadros e Afonso Arinos" e "sistematizada posteriormente por San Tiago Dantas" (MANZUR, 2014, p. 169).
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Arinos
manifestava
pensamento
anticolonial
e
posição
contrária
ao
preconceito racial no país, ao mesmo tempo em que reconhecia a dívida moral do Brasil em relação aos países africanos e que expunha que toda ex-colônia deveria impor resistência às formas de cunho imperialista (GUIMARÃES, 2013). Aquele que viria a ser Ministro das Relações Exteriores de Jânio Quadros argumentava que a sociedade brasileira, como resultado do processo de miscigenação, não poderia compactuar com qualquer forma de discriminação racial, mas sim “oferecer ao mundo o exemplo de sua fraternidade étnica” (Ibidem, p. 973). Não por acaso, é de sua autoria a lei 1.390, de 1951 – redigida por ocasião de sua legislatura como deputado federal pelo Estado de Minas Gerais –, que qualificava como crime toda e qualquer ofensa referente a preconceito de raça ou cor. Considerando que Arinos e San Tiago Dantas estarão à frente do Itamaraty quando da ascensão de Jânio Quadros e de João Goulart, respectivamente, à presidência da República, consagrando-se como alguns dos principais ideólogos da PEI, é de todo conveniente pressupor que nessa condição os estadistas detivessem margem de manobra para efetuar as mudanças que gostariam de ver na sociedade de seu tempo, fazendo uso, inclusive, de ideias desenvolvidas por Gilberto Freyre. Por ocasião do advento da PEI, inicia-se a inflexão da diplomacia brasileira rumo ao apoio à descolonização africana – qualificada por Pio Penna Filho e Antônio Carlos Lessa (2007) como tímida –, com o início do distanciamento do Brasil em relação às posições defendidas por Portugal no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). Penna Filho e Lessa (Idem, p. 67) afirmam que "o Brasil tentava acompanhar a tendência verificada durante o ano de 1960, que indicava haver dentro da ONU uma posição majoritária a favor das independências", ao mesmo tempo em que tentava se manter fiel a Portugal; no entanto, isso acarretou em contradições por ocasião de alguns posicionamentos brasileiros, que seriam vistos como inconciliáveis. Em relação a esse momento, Cervo (2000, p. 6) enfatiza que O importante Tratado de 1953 por vezes foi de utilidade quando invocado pelo governo português para obter o apoio do Brasil à sua política de colonialismo tardio, embora aquele mesmo governo, por decisão unilateral, houvesse excluído os territórios ultramarinos dos direitos inerentes ao Tratado. Mas não demoveu os governos democráticos de Jânio Quadros e João Goulart de alardear na ONU a política anticolonialista brasileira, provocando mal-estar nas relações bilaterais.
37 A INFLUÊNCIA RECÔNDITA DO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE NA DIMENSÃO SULATLÂNTICA DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE
Esses autores identificam ainda o período entre 1950 e 1970 como aquele em que será verificado o abandono da ambiguidade da política externa para a África, verificada até então. Isso se devia, sobretudo, ao apoio brasileiro ao colonialismo exercido por Portugal e à manutenção de relações com a África do Sul – países não aceitos por parte considerável dos Estados africanos recém-independentes. Com efeito, pode-se identificar a PEI como um período de transição, como uma conjuntura crítica para a mudança da posição brasileira em relação à África, uma vez que até o mandato de Juscelino Kubitschek apoiava-se o pleito salazarista para o continente. A ascensão de Jânio Quadros à presidência da República e de Afonso Arinos à chefia do Ministério das Relações Exteriores denota o ensaio de uma convergência africana, sem prejuízo para a manutenção das tradicionais relações mantidas com o parceiro lusitano. Assim, aproximava-se do ideário de Gilberto Freyre de formação de uma comunidade luso-africano-brasileira – processo que ocorre não sem críticas e resistências diversas. Nesse sentido, expõe Cervo (Idem) que mais tarde a abertura política empreendida por Geisel no Brasil veio acompanhada por decisões concretas de apoio aos regimes recém-independentes de Angola e Moçambique e de cooperação com os demais países independentes da África negra. Essas mudanças, contudo, não colocaram imediatamente Brasil e Portugal em sintonia política. Apesar de boas disposições do regime socialista português. Após tomar posse, em 1976, do cargo de Primeiro Ministro, uma vez consolidada a democracia portuguesa, a primeira visita de Mário Soares a um país estrangeiro teve o Brasil por destino.
Samuel Pinheiro Guimarães (2013) enumera quatro fatos simbólicos característicos da nova política do Brasil para a África, quais sejam: a viagem de Arinos ao Senegal – sendo a primeira missão de um chanceler brasileiro ao continente africano –, com vistas a participar das comemorações da independência do país; a abertura de embaixadas no Senegal, Costa do Marfim, Nigéria e Etiópia; a criação do programa de bolsas de estudo para estudantes africanos; e a nomeação do primeiro embaixador negro brasileiro, Raymundo Sousa Dantas, para assumir o posto em Gana. Este escreveu um livro intitulado África Difícil: Missão Condenada, diário, de 1965, para relatar sua experiência. Amado Cervo e Clodoaldo Bueno (2010), por seu turno, enumeram outros objetivos conduzidos no âmbito da PEI para propulsionar a política africana do país, tais como a criação de um Grupo de
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Trabalho para a África, a constituição de um sistema de consultas com a Organização Interafricana de Café, entre outros. Na gestão de Afonso Arinos inauguram-se diversas embaixadas, consulados e legações em continente africano, bem como se procede a reforma institucional da Casa de Rio Branco, com a criação da Divisão da África (DAF), evidenciando a relevância daquele espaço geográfico para a diplomacia do país. Verifica-se ainda a aproximação comercial entre Brasil e África quando da realização da expedição do navio-escola Custódio de Melo, com o objetivo de apresentar produtos brasileiros em diversos portos da África (ALMEIDA, 2013). Como concretizações do raciocínio freyreano podem-se citar a criação do Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos (IBEAA), em 1961, com vistas a superar o desconhecimento generalizado que prevalecia acerca dos territórios em processo de descolonização, bem como o estabelecimento do Centro de Estudos de Cultura Africana, durante o governo Goulart (SARAIVA, 1993). Constata-se, em princípio, uma série de realizações do Estado brasileiro que denota a elaboração de uma política africana durante o período que compreende a ascensão de Jânio Quadros à presidência da República até a eclosão do regime militar. Naquele contexto, mostrou-se imprescindível o papel desempenhado por Afonso Arinos e San Tiago Dantas, que imprimiram nova roupagem às relações entre Brasil e África. Esse modo de pensar as relações Brasil-África, entretanto, não foi uniformemente aceito de início, havendo inúmeros casos de resistência, inclusive por parte de autoridades africanas, que encaravam com ironia o posicionamento brasileiro, como revela o comentário de Nkrumah sobre a nomeação de Souza Dantas, jornalista negro, ao posto de embaixador em Gana. Segundo o presidente ganense, a melhor prova da integração racial promovida pelo Brasil seria a indicação de um embaixador negro para um país notadamente branco (SARAIVA, 1993). Saraiva (1993) qualifica como "discurso culturalista" a lógica argumentativa que buscava apresentar a política africana do Brasil como dotada de um sentido especial, diferentemente do que ocorria nas relações do país com outros de seus pares no cenário internacional, com a possível exceção de Portugal. Esse discurso acompanhou a atuação brasileira para a África desde os anos 1960, verificando-se até o momento atual, quando se argumenta em favor de maior integração entre os dois lados do Atlântico Sul.
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Talvez a aversão ao aceno nacional aos Estados recém-emancipados politicamente do outro lado do oceano se devesse pelo próprio pioneirismo do governo Jânio Quadros na abertura para África. Convém salientar que a diplomacia brasileira sustentou a tese portuguesa segundo a qual os territórios ultramarinos não representavam dependências, mas sim províncias de um Estado unitário até o advento da Revolução dos Cravos, em 1974, que depôs Marcelo Caetano e, consequentemente, o regime salazarista (Idem). Sem dúvida, a PEI foi um dos elementos que contribuíram para a solução autoritária de 1964. O restabelecimento de relações com países da órbita soviética – como Hungria, Romênia e Bulgária –, as condecorações de Yuri Gagarin e de Che Guevara, o distanciamento do colonialismo de Portugal na ONU, tradicional parceiro do Brasil e, posteriormente, a retomada do relacionamento diplomático com a URSS, a defesa do desarmamento e o voto contrário do país quanto à suspensão de Cuba na OEA foram ações que não encontraram respaldo positivo de setores conservadores da sociedade nacional, refletido pelos veículos de informações disponíveis para a expressão da opinião pública e pelo Parlamento. Como verifica Teixeira da Silva (2014, p. 139), Embora não possamos afirmar que a PEI foi a causa do golpe de 1964, sem dúvida alguma contribuiu imensamente para sua consumação. Numa situação de intensa crise social e econômica, o governo de Jango pouco se deteve sobre a política exterior, que foi, malgrado o caráter esquerdista do governo, menos “espetacular” do que sob Quadros. De qualquer forma, a aproximação do Brasil com os países não alinhados, sem, contudo, ingressar formalmente no grupo, e com os países socialistas, se manteve.
Entre os fatores listados, talvez o apoio tímido ao pleito de movimentos políticos emancipacionistas na África tenha sido o menos polêmico, encontrando maior resistência no lobby português representado pelo grande número de nacionais daquele país e de seus descendentes em território pátrio. A respeito da tensão existente sobre essa temática, Antônio José Barbosa (2003, p. 269) observa que A tese de uma comunidade luso-afro-brasileira, que não alterasse o status das colônias portuguesas em África, foi muito defendida pelos grupos conservadores. Os defensores da Política Externa Independente, ao contrário, pronunciavam-se pela independência das colônias.
Aliado às atitudes propugnadas pela PEI, a proposta das reformas de base e a regulamentação da lei de remessa de lucros ao exterior, no âmbito interno, contribuíram para a derrocada da República Liberal. Junte-se a isso o progressivo
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distanciamento entre os partidos PTB e PSD, que proveram suporte às eleições de Dutra, Vargas e JK, bem como à de João Goulart como vice-presidente – considerado herdeiro político do getulismo –, concomitantemente à aproximação entre UDN e PTB, fator que eclodia o sustentáculo de poder vigorante entre 1945 e 1964 (BARBOSA, 2003).
2.4. Consolidação da ideia de unidade de sentimento e cultura no âmbito luso-afro-brasileiro A PEI pode ser interpretada como um exercício diplomático responsável por efetuar a ligação entre o Brasil e a África, sem descuidar das tradicionais relações com Portugal. Dessa forma, materializava-se a ideia de Freyre que defendia que o estreitamento do relacionamento entre brasileiros e africanos não deveria se fazer em prejuízo do elemento português. Esse movimento pode ser analisado como reflexo do próprio pensamento de Freyre e Arinos, para quem, de acordo com Veloso e Madeira (1999, p. 147), apesar de os intelectuais se autoatribuírem a missão de especificar o conteúdo singular da cultura brasileira, eles valorizavam também, sobremodo, a etnia portuguesa branca [entre eles, destacando-se Afonso Arinos de Melo Franco, nota das autoras], pois, segundo eles, foi ela que ensejou a operatividade material da sociedade, tendo em vista a implementação das técnicas produtivas que permitiram o estabelecimento de uma civilização.
Deixava-se, portanto, de se exibir um diagrama de política externa para o mundo lusotropical trazendo tão somente Brasil, de um lado; e Portugal, do outro – esquema que vigorou até o governo JK –, e passava-se à conformação de um triângulo, com a África ocupando um dos vértices. Com efeito, em sua mensagem transmitida ao Congresso Nacional por ocasião da abertura da sessão legislativa de 1961, Jânio Quadros (1961, p. 23) “sobreleva o vínculo perene com o povo português”, ao mesmo tempo em que ressalta uma “verdadeira identidade espiritual” com o povo africano, evocando a “imensa dívida” que o Brasil teria com ele (Ibidem, p. 24). Conforme assinala Saraiva (2012, p. 21), tratava-se de “convencer os Estados africanos de que as relações históricas do Brasil com Portugal, última metrópole colonial da África, não inibiriam o desenvolvimento de relações com os países da região”. Nesse sentido, constata-se plena consonância com o raciocínio expresso
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anteriormente
por
Gilberto
Freyre,
que
encontraria
ecos
quando
da
institucionalização de arranjos de concertação diplomática entre os dois lados do Atlântico Sul no final do século XX, como o Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP), instituído em 1989 durante o governo de José Sarney, que seria considerado o precursor da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), criada em 1996, no curso do mandato de Fernando Henrique Cardoso. Nesse sentido, constata-se uma série de iniciativas introduzidas pela PEI que procurava valorizar os elementos identitários comuns inerentes à unidade de sentimento e cultura do mundo lusotropical, tanto no discurso quanto na prática. Como será visto adiante, será a "viagem do ministro do Exterior [Gibson Barboza] entre outubro e novembro de 1972 que serviu para revelar o começo da erosão da escolha brasileira pela comunidade [Luso-Brasileira]" (RODRIGUES, 1982, p. 516). Ademais, deve ser considerada a tentativa de empreender coerência e uniformidade às esferas doméstica e internacional. Ao mesmo tempo em que se nomeava Souza Dantas para o posto de embaixador em Gana, conferia-se posse ao geógrafo Milton Santos como representante da Casa Civil do presidente Jânio Quadros na Bahia (TIERCELIN DOS SANTOS, 2011). Similarmente ao discurso proferido alhures, internamente afirmava-se que o Brasil representava uma “democracia racial” e uma “cultura baseada fundamentalmente na ausência de preconceitos e na tolerância” (QUADROS, 1961, p. 19); em resumo, “uma sociedade multirracial tão harmoniosa e integrada que talvez não seja difícil a compreensão e o respeito em que toda amizade deve fundar-se” (Ibidem, p. 25). Amado Cervo (2008) define acumulado histórico da diplomacia de determinado país como o agregado de princípios e valores que conduzem sua política exterior. De acordo com o autor, esses padrões de conduta conferem previsibilidade à ação externa, tanto para analistas nacionais quanto para estrangeiros, e moldam a conduta externa dos governos, não se alterando em razão da sucessão de mandatários ou mesmo de mudanças de regime. Com base nesse conceito, constata-se que a PEI introduziu o componente africano à política externa brasileira, que – apesar da diferença de ênfase atribuída pelos governos subsequentes – passou a não mais ser desconsiderada no cálculo de ação internacional do país.
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Em complemento à ideia desenvolvida por Cervo, pode-se apresentar aquela introduzida por Gelson Fonseca Jr. (2011, p. 18), qual seja a de "'cenários obrigatórios', ou seja, aqueles em que o país é forçado a atuar, tanto quanto quer ser ativa, propor iniciativas, quanto age defensivamente quando as circunstâncias impõem". Inegavelmente, a África passa a configurar um desses cenários para a atuação exterior do Brasil.
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CAPÍTULO 3 – A PEI E O LUSOTROPICALISMO: IMPLICAÇÕES PRÁTICAS 3.1. Uma política lusotropicalismo
externa
para
a
África:
flertando
com
o
O historiador Jerry Dávila assim sintetiza o denominado lusotropicalismo: "o termo, cunhado por Freyre, sugeria que os portugueses possuíam uma maneira especial de viver nos trópicos, caracterizada pela mistura racial e pela afinidade com negros: O Brasil seria o melhor exemplo desse ideal lusotropical" (DÁVILA, 2011, p. 12). Reconhece-se, contudo, o caráter resumido da definição apresentada, uma vez que não há referência à dimensão geográfica inerente ao lusotropicalismo. O conceito apresentado por Freyre conquistaria adeptos e refratários, tanto no Brasil quanto no exterior. Seria, inclusive, utilizado pelo governo de Salazar em Portugal para justificar a permanência de seu país na África, como "último baluarte do colonialismo", na acepção precisa de Maria Yedda Linhares (2000, p. 58). Nesse contexto, Gilberto Freyre endossaria a política africana encabeçada pela administração salazarista. Em seu diário, o Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal à época em que se iniciavam as guerras de libertação nacional, rememora que "[Freyre, durante um almoço em sua homenagem], diz-me que concorda inteiramente com a nossa política africana" (NOGUEIRA apud MEDINA, 2000, p. 50). Oliveira Salazar, de sua parte, estava de acordo com o que Freyre propunha, ao expor que "o Brasil era já, e continua a ser, o mais vivo exemplo da sociedade multirracial que hoje é por todos reconhecido como o ideal a atingir nas relações humanas (SALAZAR apud RODRIGUES, 1982, p. 349). É inegável a influência do pensamento freyreano sobre vários personagens que estarão à frente da inauguração de uma política do Brasil para a África. Note-se, por exemplo, que Mário Gibson Barbosa, o chanceler do governo Costa e Silva, que viajará para nove países do oeste da África em 1972, naquilo que se tornou conhecido como o "périplo africano", fora pesquisador assistente de Freyre na década de 1930 (DÁVILA, 2011). Nesse sentido, Jerry Dávila afirma que Freyre foi o protagonista intelectual da transformação nacionalista cultural e econômica do Brasil que começou nas décadas de 1920 e 1930.
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Culturalmente, esse nacionalismo imaginava o Brasil diferente da Europa e dos Estados Unidos e melhor que eles. Economicamente, significava encontrar o caminho de uma sociedade agrária para uma sociedade industrial, fosse por meio da empresa privada e do livre mercado ou pela intervenção estatal intensa, ou por ambos. Esse nacionalismo inundava a vida política brasileira, orientando as relações externas do país e definindo a interpretação que os brasileiros davam às oportunidades e aos desafios da descolonização africana. (Ibidem, p. 25)
Como avalia Dávila (2011, p. 24), "o conceito de identidade nacional que Freyre transmitiu foi tão poderoso e influente, em meados do século XX, que permeou o pensamento dos brasileiros que formularam políticas com relação à África ou que viajaram para aquele continente". O historiador relata que normalmente iniciava suas entrevistas com diplomatas, artistas e intelectuais brasileiros sobre suas experiências na África – que resultaram na publicação do livro Hotel Trópico: O Brasil e o desafio da descolonização africana, 1950-1980 – indagando como esses sujeitos haviam se interessado por aquele continente e, segundo ele, "o padrão de respostas das respostas era bastante semelhante: os entrevistados geralmente se referiam diretamente à obra de Freyre como fonte de seu interesse e, quando não o faziam, normalmente aceitavam a triangulação de Brasil, Portugal e África proposta pelo sociólogo" (Ibidem, p. 34). Acerca dessa triangulação mencionada por Dávila, cumpre citar Alfredo César Melo, que se refere a ela como "triangulação transatlântica". Se para o Estado Novo salazarista, o Brasil narrado por Freyre era visto como um exemplo de colonização bem-sucedida, no qual os valores da civilização lusitana puderam finalmente triunfar nos trópicos, para os intelectuais africanos, ansiosos pela Independência (ou já no período pósIndependência), o mesmo Brasil narrado por Freyre é um exemplo de país culturalmente autônomo, que havia conseguido firmar sua diferença em relação à antiga Metrópole. Enquanto uns veem o Brasil, com o auxílio das lentes freyreanas, como projeção [grifo do autor] de Portugal nos trópicos, outros, utilizando-se das mesmas lentes, identificam no Brasil a diferença de um país tropical em relação a Portugal. O Brasil passa a atuar no imaginário lusófono como uma signo ambivalente, ora servindo de exemplo da flexibilidade lusitana, ora inspirando alguns intelectuais africanos a afirmar sua diferença em relação ao padrão metropolitano (MELO, 2014, p. 98).
Desse movimento triangular que se procedia entre o Estado Novo salazarista, o Brasil e as colônias portuguesas resultaria na incongruência prática constante na apropriação das ideias de Freyre por intelectuais que defendiam a maior presença do Brasil na África, que se daria mediante o apoio a movimentos emancipacionistas naquele continente. No que se refere aos territórios africanos de colonização portuguesa, essa tomada de posição deveria implicar o distanciamento, ou mesmo o rompimento, com relação a Portugal, caso se tivesse em conta a relação metrópole-
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colônia, explorador-explorado, em que tomar partido de alguma das partes em litígio significasse, imediata e consequentemente, a objeção à outra, de maneira a configurar um jogo de soma zero, o que de fato não ocorria. A referida triangulação encontra reflexo no discurso diplomático, recuperado por José Honório Rodrigues, no qual Afonso Arinos, em 1962, abre o debate no plenário das Nações Unidas sobre a questão de Angola: nossa opinião é determinada pela influência de dois fatores. O primeiro resulta da história do nosso passado e dos seculares laços que nos ligam a Portugal, cuja cultura se manteve em tantos e tão importantes elementos da formação nacional brasileira. O segundo fator é o anticolonialismo brasileiro, traço marcante da nossa fisionomia nacional, imposto pela posição geográfica, pelos interesses econômicos e pela sincera convicção firmada tanto nos círculos dirigentes quanto nas massas populares do meu país, de que o anticolonialismo e o desarmamento são as duas grandes causas deste século, os dois problemas básicos da vida internacional contemporânea, de cujas soluções dependem, em grande parte, o progresso e a paz da humanidade (ARINOS apud RODRIGUES, 1982, p. 467).
A originalidade do raciocínio de Gilberto Freyre residia justamente na plasticidade inerente ao conceito de lusotropicalismo. O fato de o mestre de Santo Antônio de Apipucos se mostrar favorável – ou melhor, inteiramente de acordo, como exposto anteriormente – à política africana sustentada por Salazar, não impediu que diferentes atores fizessem uso de suas ideias para apresentar seu pensamento, com vistas a
alcançar
diferentes resultados e
implicações práticas. Afinal,
o
lusotropicalismo não se resumia àquilo que Freyre pregava em suas manifestações referentes à política corrente à sua época, isto é, a manutenção do vínculo das províncias ultramarinas à administração central portuguesa. Alternativamente, o estratagema gilbertiano poderia ser empregado com outra conotação. Ora, se o ideal lusotropical realmente se fazia presente nos territórios portugueses de além-mar, poder-se-ia reconhecer suas respectivas independências e, em seguida, sugerir a propositura de outra forma de organização, em que fossem assegurados privilégios, livre circulação de pessoas entre os países, etc., tal como proposto pelo presidente senegalês Léopold Senghor, o primeiro chefe de Estado a visitar o Brasil depois do golpe de 1964, embora sua viagem tivesse sido acordada ainda no cambaleante governo de João Goulart (DÁVILA, 2011). No entanto, se esse fosse o raciocínio exposto pelo lusotropicalismo, obviamente não seria promovido pelo Palácio de Belém.
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Melo (2014, p. 99) reconhece as "ambivalências da obra de Freyre", ao propor que Sua obra tanto pode justificar relações de poder que corroborem um "colonialismo interno", como servir de ponto de partida para um discurso anticolonial. São poucas as obras que podem ser consideradas ambivalentes, não apenas pelas lentes hermenêuticas da prática acadêmica, mas também pelas lutas simbólicas pelo poder, entre atores sociais diversos, de países diversos, que apropriam a obra com os mais variados fins.
Os pensadores brasileiros que apoiaram o reforço do Brasil na África se basearam não nas posturas públicas manifestadas por Freyre, em apoio ao colonialismo português, mas sim naquilo que o lusotropicalismo e a unidade de sentimento e cultura representavam em termos do reconhecimento da contribuição do elemento africano para a formação nacional do Brasil, da miscigenação empreendida pelo português para a emergência do caráter iminentemente brasileiro, entre outros fatores. Objetiva-se, pois, analisar a triangulação atlântica operada pelo lusotropicalismo de Gilberto Freyre, bem como estudar como as ideias do sociólogo pernambucano conseguem ser usadas na mudança de apoio à política colonizadora de Portugal para o reconhecimento dos movimentos emancipacionistas que ocorriam na África. Isso se deveria ao caráter ambivalente constante na obra de Freyre. Como reconhece Dávila (2011, p. 24), Mesmo Freyre sendo partidário e defensor do colonialismo português, aqueles que discordaram dele confiavam em sua lógica. Sua obra foi a base da compreensão brasileira da África e de seu significado para o Brasil. Ao projetar o país como a síntese dialética de elementos portugueses e africanos, Freyre criou um arcabouço que tanto aqueles que apoiavam Portugal quanto aqueles que buscavam laços com a África iriam utilizar.
3.2. O lusotropicalismo e suas reverberações no pensamento diplomático nacional Mostra-se notória a presença das ideias emanadas nas obras de Gilberto Freyre no imaginário daqueles que iriam trabalhar para a concretização de uma política externa do Brasil para a África. Dávila (2011, p. 14) recupera depoimento, datado de 1965, daquele que fora o ministro das Relações Exteriores do governo Jânio Quadros, Afonso Arinos de Melo Franco, que argumenta que o Brasil estava das [sic] lado moral de uma "cortina racial": era um líder natural do mundo em desenvolvimento porque sua democracia racial era uma resposta positiva a Jim Crow e ao colonialismo. Os líderes brasileiros usaram as relações com a África para afirmar sua independência em
47 A INFLUÊNCIA RECÔNDITA DO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE NA DIMENSÃO SULATLÂNTICA DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE relação aos Estados Unidos e reivindicar seu papel de potência mundial emergente.
Conforme raciocínio de Bezerra de Menezes, registrado por Dávila (2011, p. 20), "a arma secreta do Brasil era a tolerância racial". A PEI, dessa maneira, pode ser interpretada como exercício pragmático de projeção de poder do Brasil em um espaço no qual a distribuição de forças das grandes potências da época ainda não estavam claramente definidas. A ideia de "democracia racial" seria constantemente evocada durante o breve mandato de Jânio da Silva Quadros. Em seu artigo à Foreign Affairs, publicado após sua renúncia, o ex-presidente afirmava que o Brasil tornara-se "o exemplo mais bem sucedido de coexistência social e integração conhecido na História" (QUADROS, 1961, p. 152). Ademais, propunha Estamos ligados àquele Continente pelas nossas raízes étnicas e culturais e partilhamos do seu desejo de forjar para si mesmo uma posição independente no mundo de hoje. [...] Enquanto pudermos dar às nações do Continente negro um exemplo de completa ausência de preconceito racial, juntamente com provas cabais de progresso sem solapar os princípios da liberdade, estaremos contribuindo decisivamente para a integração efetiva de todo o Continente num sistema ao qual estamos presos por nossa filosofia e tradição histórica (Ibidem, p. 154).
João Neves da Fontoura, em carta-prefácio ao livro O Brasil e o Mundo ÁsioAfricano, de Adolpho Justo Bezerra de Menezes, faz referência direta a uma das obras do homem de estudo pernambucano, qual seja O Mundo que o Português criou. Na ocasião, o diplomata expõe que o segredo da boa colonização portuguesa residiu, realmente, na capacidade de miscigenação dos descobridores e primeiros povoadores das áreas descobertas ou conquistadas. Daí o motivo por que a civilização portuguesa, o 'mundo que o português criou' [grifo meu], não foi obra efêmera e as marcas da sua passagem ficaram indeléveis (NEVES, 1956, p. 17).
Em capítulo com o pretenso título de "Liderança americana atual, liderança brasileira futura", Bezerra de Menezes (1956) defende a tomada assertiva de posições pelo Brasil em espaços nos quais as potências tradicionais à época, quais sejam, Estados Unidos e União Soviética, não conseguiam ou não queriam estabelecer sua influência. O diplomata alinha seu pensamento à tese freyriana – a qual cita frequentemente a fim de fundamentar sua argumentação –, colocando-se a favor da maior presença brasileira no mundo ásio-africano, em um momento no qual ocorrem a descolonização dessas áreas e a Conferência de Bandung. Nesse contexto, Menezes (Idem) discorre acerca da incompatibilidade das práticas ostensivamente racistas dos Estados Unidos naquele período com uma
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política de aproximação com os Estados africanos, lugar a ser ocupado pelo Brasil. Esse constitui um ponto digno de nota, no sentido de que não se verifica a existência de um discurso sentimental e culturalista da potência norte-americana quando de suas relações com a África – apesar de reconhecida contribuição desse continente para a formação daquela como Estado nacional –, diferentemente do que ocorre na diplomacia brasileira. Com efeito, o observador brasileiro presente à Conferência de Bandung expõe que O horror à miscigenação só desaparecerá dos Estados Unidos com a extinção do último negro ou se, por um acaso de todo improvável, o país permitisse a imigração em massa de raças brancas ou semibrancas, como portugueses e brasileiros, capazes de absorver o elemento colonial da União (Ibidem, p. 275).
Não deixa de ser ilustrativo o fato de o autor evocar diretamente o homem de letras de Apipucos quando se remete à "mentalidade 'lusotropicalista' de miscigenação total de que nos fala Gilberto Freyre" (MENEZES, 1956, p. 280). O diplomata acrescenta que "essa formação e essa mentalidade luso-tropicalistas devem ser sempre e cada vez mais fomentadas em detrimento de qualquer veleidade de infusão imigratória essencialmente branca" (Ibidem, p. 283), em consonância com a ideia de "homoportucalensis lusotropicalista do mestre Gilberto Freyre" (Ibidem, p. 285). Portugal desempenhara um importante papel no sentido de promover a assunção de uma comunhão de interesses, sentimento e cultura no mundo lusotropical, mas caberia ao Brasil o aprofundamento desse processo, em função de seu próprio peso demográfico, extensão territorial e do alcance da miscigenação em território nacional. Dessa forma, O exemplo, a prática da conduta mais cristã, a nosso ver, deve ser o de mostrar ao mundo não ocidental que o Brasil é um país de mistura, que nos orgulhamos de tal e que nosso imperativo histórico é a continuação de tal política étnico-social; que acreditamos sinceramente que o maior ou menor sucesso de um moderno supraestado reside precisamente em um maior ou menor caldeamento de raças (Ibidem, p. 282).
De fato, Bezerra de Menezes refere-se constantemente às ideias de Freyre com vistas a subsidiar sua argumentação, mormente no que diz respeito ao conceito de lusotropicalismo, o que denota a sintonia do diplomata com as obras do sociólogo. Outrossim, revela a preocupação deste com a aplicação do constructo freyreano, a fim de angariar maior espaço para o Brasil no cenário internacional. Deve se ter em mente que o livro de Menezes, O Brasil e o mundo ásio-africano, é lançado em 1956, ano em que a proposta do pensador pernambucano acerca do
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lusotropicalismo encontra-se devidamente consolidada, depois da publicação de diversas obras versando sobre o tema, nomeadamente O mundo que o português criou, Um brasileiro em terras portuguesas e Aventura e Rotina. Nesse sentido, Menezes endossa o argumento de Freyre acerca da brandura da colonização portuguesa em terras brasileiras, entre outros; e vai além ao postular que "o futuro do mundo não será decidido pelo jogo político russo-americano ou pelo potencial militar desses dois gigantes, mas pela solução do problema racial ou, melhor ainda, pela solução do problema resultante da diferenciação de pigmentação" (Ibidem, p. 281). Dada sua composição étnica singular, cumpria ao Brasil fazer uso dessa suposta vantagem comparativa no contexto internacional, com vistas a projetar sua liderança futura, que tomaria o espaço então ocupado pelos Estados Unidos. Apresentar suas credenciais de um "país de mistura", de um "país de caldeamento de raças", de um "país de miscigenação" (Ibidem, pp. 282-283) possibilitaria ao Estado brasileiro transitar com destreza e facilidade por diferentes espaços geográficos e dialogar com parceiros diversos. De acordo com Bezerra de Menezes, "essa formação e essa mentalidade lusotropicalista devem ser sempre e cada vez mais fomentadas" (Idem), com o objetivo não só de "firmar posição de conciliador internacional, mas também imprimir um cunho mais sincero e independente a suas realizações com os país asiáticos e africanos" (Ibidem, p. 287). Alberto da Costa e Silva – que esteve presente quando da realização das cerimônias de comemoração da independência de Senegal, em 1960 –, em resposta a Jerry Dávila sobre como surgira seu interesse pelo continente africano, afirma que tudo começou quando tinha dezesseis anos e leu Casa-grande e [sic] senzala, de Gilberto Freyre e Africanos no Brasil, de Nina Rodrigues. Descrevia-se como freyreano porque, a seu ver, o sociólogo tinha ajudado os brasileiros a compreender que "o negro não é algo externo ao país, não era um problema, o negro éramos nós! O negro estava embutido em nós, não só pelo processo de miscigenação, mas como [Freyre] revela (...) os aspectos civilizatórios que o negro teve no Brasil (...) nós somos descendentes de portugueses, índios e negros! E negros numa proporção muito maior que as outras duas" (DÁVILA, 2011, p. 87).
O diplomata conclui que "o impacto do livro de Gilberto Freyre e as discussões que provocou mostravam que o Brasil não era uma democracia racial. Não era, mas, a partir de então, passou a querer ser. Ser uma democracia racial passou a ser uma das grandes aspirações nacionais" (COSTA E SILVA apud DÁVILA, 2011, p. 87). Nesse contexto, o lusotropicalismo funciona como uma
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espécie de exposição de motivos para a posterior elaboração da Política Externa Independente, em especial no que se refere à abertura para a África. Ao propor a mesma questão, desta feita a Mário Gibson Barboza, Dávila obtém como resposta do diplomata o relato de que Como estudante de direito em Pernambuco na década de 1930, ele [Gibson Barboza] frequentava reuniões de intelectuais na casa de Gilberto Freyre que lembra como sendo "verdadeiras aulas de sociologia" em que o "africanismo" do Brasil era discutido [grifo meu]. Ele e outros estudantes que iam a essas reuniões saíam depois para fazer pesquisa para Sobrados e mucambos (1938). Gibson também participou do primeiro Congresso Afro-Brasileiro, organizado por Freyre em 1934. Aliás, o diplomata manteve uma amizade com Freyre por toda a vida e dependeu dela na preparação de sua visita à África [grifo meu]. Tendo começado a carreira de diplomata durante a Segunda Guerra Mundial, Gibson foi enviado para os Estados Unidos, onde se impressionou com a segregação racial: "Havia desigualdade social no Brasil, mas não havia a discriminação racial que encontrei nos Estados Unidos, eu sabia disso". Como sinal da influência de Freyre, ele explicou que o Brasil não tinha esses problemas porque "nossa formação luso-católica, diria eu, é diferente da formação calvinista dos Estados Unidos" (DÁVILA, 2011, p. 176).
Todavia, o pesquisador norte-americano aponta que havia limitações à influência do sociólogo sobre o pensamento do diplomata, uma vez que, na opinião deste, "a visão romântica que ele apresenta da escravidão no Brasil não corresponde à realidade (...) Correspondia mais ao sentimento dele que à realidade" (BARBOZA apud DÁVILA, 2011, p. 176). Bezerra de Menezes anuncia previamente aquilo que Jânio Quadros colocaria em curso por meio da atuação externa de seu governo e nomearia como Política Externa Independente, ao propor que se deveria seguir política independente, inteiramente nossa. Política mais sigilosa, discreta de longa alcance, no qual o Brasil vise a um extenso e persistente trabalho de sedução das massas africanas e asiáticas por meio do uso de nossa principal arma político-diplomática – a igualdade racial e social quase perfeita existente no Brasil (MENEZES, 1956, p. 292).
Por certo, à política externa do presidente Quadros não se pode atribuir os adjetivos "sigilosa" e "discreta" – conforme sugerido por Menezes –, em razão do próprio estilo histriônico característico de sua maneira de governar. Por seu turno, no que se refere à "sedução das massas africanas", incorporando-se ao discurso oficial o enaltecimento à "igualdade racial e social quase perfeita existente no Brasil", podese afirmar que tentou-se, de fato, executar essa vertente. Menezes agrega ao seu discurso elementos lusotropicalistas evocados por Freyre, ao afirmar que "somos um país, um povo, que descrê completamente em separatismos ou superioridades raciais. Temos muitos traços de aproximação não só
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étnicos como espirituais com a África e com a Ásia; só as distâncias nos separam, pois os ideais são os mesmos" (Ibidem, p. 292). Reconhece que "o colonialato português no Brasil tenha sido dos mais brandos e patriarcais", ainda que "em seus aspectos sociais, no lado político e econômico, foi dos mais ríspidos e sufocantes" (Idem), o que representa, em certa medida, uma amenização do caráter afetivo lusotropical. Adolpho Justo Bezerra de Menezes (1956) afirma a necessidade de se expandir a rede diplomática nacional na África. O diplomata lança luz sobre o fato de o Brasil privilegiar Estados localizados ao norte da África, em detrimento daqueles constantes em sua porção subsaariana, meridional ou austral, à exceção da África do Sul. O autor parece simpatizar com o pensamento desenvolvido pelo futuro Presidente da República Jânio Quadros e pelo seu Ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos de Melo Franco, nos quais a influência de Gilberto Freyre é patente, quando qualifica o Brasil como "um grande país [...], onde os problemas raciais são inteiramente desconhecidos" (Ibidem, p. 320), Estado de "perfeita igualdade racial". Ademais, endossa o argumento de Freyre ao interpretar como "igualitária" e "não discriminatória" a maneira como sempre se "caracterizou as relações de Portugal com os países da África e da Ásia" (Ibidem, p. 324). Menezes recomenda o aproveitamento das "manifestações mais típicas e interessantes de nossos negros e mulatos" nas relações internacionais do país, ilustrando que "um maracatu, um congado, umas baianas constituiriam ótimos meios de propaganda não só na Europa, mas principalmente na Ásia e na África" (Ibidem, p. 327). Curioso, entretanto, atentar para o fato de que ao comentar acerca da emergência de uma possível Comunidade Luso-brasileira, o diplomata reconheça que esta "poderia repugnar a brasileiros temerosos de novo influxo de sangue negro por meio de uma desenfreada emigração do ultramar africano para o outro lado do Atlântico" (Ibidem, p. 336). Da mesma forma que ao se analisar retrospectivamente o constructo gilbertiano pode-se caracterizá-lo como um antecedente teórico válido para a posterior conformação da CPLP, Bezerra de Menezes dedica um dos capítulos de sua obra a uma possível criação de uma Comunidade Luso-Brasileira, intitulando com essa expressão aquilo que o autor chama de "Commonwealth Luso-brasileira" (Ibidem, p. 336). O autor reconhece que se a independência
dos domínios de
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Portugal no ultramar ocorresse de maneira violenta, como de fato aconteceu, com exceção de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, provavelmente os Estados emancipados objetassem manter qualquer vínculo com a antiga metrópole. No entanto, caso o Brasil oferecesse seus préstimos com vistas a integrar esse conúbio, poder-se-ia adquirir mais facilmente a simpatia dos países africanos para a formação dessa união. José Honório Rodrigues, a seu turno, é definido por Paulo Visentini (2013) como historiador da africanidade, bem como do interesse nacional. Nesse caso, africanidade e interesse nacional não podem ser interpretadas como dimensões em separado, uma vez que estariam intimamente relacionadas. Buscar a África, na década de 1960 e nos anos seguintes, inseria-se na lógica pragmática de angariar nichos de mercados à época do despertar nacional daquele continente, além de expressar possível polo de projeção de poder do Brasil, considerando-se a distribuição de forças ainda indefinida naquele período. Afinal, quem poderia vir a configurar o principal parceiro comercial da região? Dentre as personagens de uma política externa para a África aqui apresentadas, Honório Rodrigues foi o único que não exerceu atividades na diplomacia ou na política, por meio do exercício direto de cargos, tendo concentrado sua atuação no âmbito acadêmico e intelectual, mas cujas ideias exerceram influência considerável na atuação exterior brasileira, sobretudo quando do advento da PEI. Com efeito, "o autor deixa claro que o que guia sua análise não é qualquer vínculo sentimental com o continente africano, mas a percepção dos benefícios ao interesse nacional que a melhor compreensão deste tema poderia trazer" (VISENTINI, 2013, p. 924). Nesse cálculo, Rodrigues deixa claro que É um equívoco pensar que o Brasil está incondicionalmente comprometido. Seus compromissos são com seus interesses nacionais. Por isso mesmo não temos limitações nos entendimentos que visem defender nossos interesses e nos desentendimentos que nos ameacem. A interpretação compromissária incondicional revela resíduos emocionais imperialistas (Ibidem, p. 26).
Em prefácio à primeira edição de seu livro Brasil e África: outro horizonte, lançada em 1961, José Honório Rodrigues manifesta-se contrário à manutenção de relações de caráter sentimental com Portugal, em prejuízo ao interesse nacional, ao expor o seguinte: "acho que não se devem subordinar os interesses nacionais a sentimentos de filiação sanguínea e só reconheço como Mãe Pátria o Brasil. Neste sentido, de defesa apenas e sobretudo dos interesses nacionais, este livro é
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nacionalista" (RODRIGUES, 1982, p. 23). Ademais, apoia a PEI de Quadros, argumentando acreditar "que a soberania de um país só se exprime numa política internacional independente e realista, como a definida, por exemplo, pelo Presidente Jânio Quadros, sem falsos sentimentalismos, que inclusive confundem Portugal com a sua oligarquia" (Idem). Finalmente, Honório Rodrigues apresenta o Brasil como líder no mundo de língua portuguesa, não sendo necessário comungar com desígnios de Portugal. Brasil e África divide-se em duas partes: a primeira tratando de "Relações e contribuições mútuas", e a segunda versando sobre "Política brasileiro-africana". Aquela como a fundamentar esta última, pois, como contemporiza o autor, não é a antiga ocupação portuguesa que devemos manter com a África, mas é o aceitação e reação mútuas, de doações justifica, tanto quanto as nossas alianças latino-americanas, a boa cooperação e (Ibidem, p. 145).
justifica as relações que hoje próprio processo histórico da e contribuições culturais que europeias, pan-americanas ou a amizade brasileiro-africana
Entre os objetivos que Rodrigues ambiciona com a publicação de sua obra, lista nominalmente a intenção de apresentar "que, inicialmente, o processo histórico brasileiro foi racialmente discriminador, mas, com o tempo, democratizou-se e, se não somos perfeitos, somos a mais perfeita forma existente de convivência racial" (Ibidem, p. 24). Outrossim, alega que "somos uma República Mestiça, étnica e culturalmente; não somos europeus nem 'latino'-americanos; somos ocidentalizados, aboriginizados ou tupinizados, africanizados e possuímos fortes acentos orientais" (Idem). Rodrigues advoga em favor do apoio do Brasil à independência de Angola, uma oportunidade histórica única para se sublinhar o princípio da autodeterminação nas relações internacionais do país. Nosso anticolonialismo deve ser coerente e defender a independência de Angola, pois de outro modo comprometeríamos o nosso destino político internacional diante de todas as novas nações africanas, com as quais teremos de manter no futuro século cooperação e entendimento indispensáveis. Esta é uma oportunidade única, e se perdida será irreparável, pois a História é irreversível (Ibidem, p. 26).
Em prefácio à segunda edição da mesma obra, datada de 1963, o autor acrescenta o dever de se defender as emancipações políticas de Moçambique e Guiné-Bissau. O livro Brasil e África traz alguns aspectos que comungam com Casa-grande & senzala. Primeiramente, em razão da utilização de elementos históricos para a
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tomada de posições à época e além. Em seguida, pelo próprio estilo de escrita fluida adotada por Honório Rodrigues, o que atribui a seu trabalho caráter quase ensaístico, tal como se constata nas obras de Freyre. E, finalmente, em virtude de o então membro da Academia Brasileira de Letras fazer uso das ideias do sociólogo pernambucano para embasar suas posições. Com efeito, o autor reconhece que as visões sobre o negro no Brasil vieram a ser desenvolvidas, analisadas e interpretadas com a maior originalidade, com o rigor das ciências de sua época, e numa indagação crítica a que nunca se atingira antes, por Gilberto Freyre, em sua Casa Grande & Senzala, especialmente no capítulo sobre o escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro (Ibidem, p. 67).
Rodrigues suporta a tese de que o preconceito de cor existente no Brasil seria "mais de classe que de raça" (Ibidem, p. 129). Em síntese, o autor propõe Na verdade, apesar de todos os nossos defeitos em matéria, apesar de todos os nossos defeitos em matéria de preconceitos raciais, constituímos a mais perfeita democracia racial, que é uma criação nossa, como a democracia política é fruto anglo-americano (Idem).
Ainda de acordo com Rodrigues, "somos uma República de Mestiços étnica e culturalmente; não nos envergonhamos disso, honramo-nos de ser um exemplo mundial da coexistência pacífica" (Ibidem, p. 133). José Honório Rodrigues, no entanto, também procura ponderar as noções freyreanas, como se atesta no trecho seguinte: Do ponto de vista social, se as relações entre senhores e escravos podem ter sido adoçadas, como escreveu Gilberto Freyre, pelas necessidades genéticas, aproximando os dois grupos, contemporizando-as, suavizandoas pela concumbina, a ama de leite negra, os criados, a verdade é que o negro sofreu muito na sua condição de escravo, como se vê pelos castigos, as ideias de suicídio, as eliminações violentas dos senhores, as revoltas e os quilombos" (Ibidem, p. 77).
Da mesma forma, o espírito lusotropical não deveria se restringir à aliança com Portugal e ao apoio ao seu colonialismo, mas ampliar-se, proporcionando a aproximação do Brasil em relação à África. Afinal, "se o sangue e os sentimentos justificam alguma coisa, então não é só de Portugal que merece nossa simpatia e apoio, mas também as nações africanas, especialmente Angola" (Ibidem, p. 19). A todas essas contribuições a serem incorporadas pela PEI, Quadros atribuiria peso ao pragmatismo que circundava a aproximação com a África, colocando que "atualmente o crescimento industrial de meu país garante aos africanos uma importantíssima fonte de suprimentos, que poderia mesmo servir como base de acordos para unir os nossos respectivos sistemas de produção"
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(QUADROS, 1961, p. 155). Conclui, nesse sentido, que "a divisa do meu governo é 'Produzir tudo, porque tudo que for produzido é comerciável'. Sairemos à conquista desses mercados; em casa, na América Latina, na África; na Ásia, na Oceania, em países sob a democracia e naqueles que se uniram ao sistema comunista" (Ibidem, p. 156). Essa vertente pragmática era ressaltada por Rodrigues, quando afirmava que A abertura mundial da nossa política externa não nasce provocada por motivações ideológicas, mas por necessidades reais, e o Brasil, tal como o Canadá, se viu obrigado, em face do declínio de seus mercados tradicionais, a buscar outras fontes (RODRIGUES, 1982, p. 18).
Por fim, A modesta exportação industrial brasileira pode e deve expandir-se nesta vasta região da África Ocidental, onde nossos produtos manufaturados chegariam despidos das imputações colonialistas, imperialistas e racistas. Uma ofensiva de exportação de produtos químicos e farmacêuticos, de maquinaria, de veículos e acessórios, de manufaturas de borracha, de madeira e de minerais, de têxteis e de metais, de artigos sanitários de louças, e especialmente de máquinas de costura e veículos a motor pode ajudar-nos a nos libertar da exportação dominadora de produtos primários e acelerar nosso processo de industrialização (Ibidem, p. 306).
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CAPÍTULO 4 – O LUSOTROPICALISMO E A PEI: RESULTADOS 4.1. A Política Externa Independente em sua vertente africanista: "política externa certa num governo errado" Contrariamente ao seu antecessor, presidente Juscelino Kubitschek, que sustentava uma "política externa de retaguarda, contra uma política interna avançada" (RODRIGUES, 1963, p. 392), Jânio Quadros tomará posições consideradas vanguardistas no âmbito externo, ainda que tenha uma política doméstica interpretada como conservadora. Ao ascender à Presidência da República, a 31 de janeiro de 1961, Quadros se propõe a empreender um conjunto de ações no âmbito internacional, que seriam reunidas sob o nome de Política Externa Independente, a PEI. A política exterior desse presidente propunha-se, entre outras medidas interpretadas como inusitadas e originais, a buscar um continente há muito esquecido no portfólio de relações exteriores do país: a África. Essas medidas inauguradas pela PEI encontrariam continuidade após a sua renúncia, quando então assume seu vice, João Goulart. Isso se daria até em razão da própria composição dos postos referentes à burocracia internacional brasileira. Afonso Arinos, chanceler durante o governo Jânio, passa a ocupar o cargo de chefe da Delegação do Brasil junto à Organização das Nações Unidas, no curso do mandato de Jango. Ademais, Arinos voltaria a ocupar a pasta do MRE, em substituição a San Tiago Dantas, quando este é licenciado por motivo de doença (CERVO, 2000). Dantas, por seu turno, fora representante brasileiro junto à ONU, concomitantemente ao exercício do mandato de Arinos à frente do MRE. Em síntese, a chamada 'política externa independente' teve continuidade com a formação do primeiro gabinete parlamentarista, chefiado pelo PrimeiroMinistro Tancredo Neves e tendo Francisco San Tiago Dantas no comando do Itamaraty. Afonso Arinos continuou marcando presença ativa no campo das relações internacionais (LAMARÃO, 2007, p. 39).
A mudança do modus operandi em relação a JK era evidente, uma vez que o "presidente Bossa Nova" desconheceu, quer no campo de sua ação própria, quer nas Nações Unidas, o caminho da liberdade africana, apoiou toda a conduta lusitana, submeteu-se aos interesses das Potências coloniais e limitou-se, encerrados os processos de independência dos Estados africanos, a reconhecê-los de jure. Nada mais, nenhuma mensagem de simpatia, nenhuma solidariedade, nenhum gesto, para não falar em cooperação,
57 A INFLUÊNCIA RECÔNDITA DO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE NA DIMENSÃO SULATLÂNTICA DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE como se nos humilhasse a outra alma que possuímos, como se tivéssemos acanhamento da nossa identidade comum, como se fosse possível continuar esta dicotomia entre a política internacional dirigida por uma elite europeizada, que trabalhava pela conservação do status quo, e o povo, cuja entrada na área da decisão só agora começou. O fiasco da política exterior de Juscelino Kubitschek consistiu na unilateralidade de sua visão regionalizadora (RODRIGUES, 1963, p. 398).
No entanto, se é de bom tom atribuir a alcunha de "semeador de vento" a Jânio Quadros e de "presidente equilibrista" a João Goulart, como o fazem Schwarcz e Starling (2015), é difícil crer que ambos os presidentes possuíssem destreza e poder de barganha para imprimirem efetividade às iniciativas ousadas que se propunham a tocar no plano internacional. E isso mesmo considerando que Quadros havia obtido a maior quantidade de votos para Presidente da República registrada no país até então. Afinal, se política externa é também política pública, necessita, como as demais, de legitimação para que seja efetivamente implementada, tendo em vista que "a política externa não começa onde termina a política doméstica" (MILANI, 2015), mas, do contrário, configuram dimensões que se relacionam de maneira substantiva. Assim como ocorre em política interna, política externa não se faz apenas com propostas e boas intenções, mas com ampla articulação e negociação em diversos espaços de poder. Sem embargo, deve ter-se em consideração que, no Brasil, a opinião pública tem peso mínimo para os formuladores de política externa. Os únicos momentos em que houve maior envolvimento da sociedade civil nesse âmbito deu-se justamente com a PEI e, posteriormente, na década de 1990, com a proposta da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). No caso de Quadros, tome-se em consideração, por exemplo, seu curto mandato, interrompido com um pedido de renúncia apresentado inesperadamente, menos de sete meses após a sua posse. Por sua vez, Goulart teve de conviver com a chamada solução parlamentarista a fim de conseguir assumir o governo. Como alude Carolina Salgado, o mandato de Jango foi profundamente conturbado pela oposição radical e sistemática movida pelos partidos de centro-direita e também por segmentos das Forças Armadas, o que não lhe propiciou muito tempo e disponibilidade para travar mudanças ou atitudes significativas quanto à política externa do Brasil (SALGADO, 2009, p. 13).
Com efeito, as vontades de Quadros e depois de Goulart para tornarem a África negra mais próxima do Brasil encontravam sérias limitações advindas, do lado
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brasileiro, da própria dimensão doméstica da nova política exterior. Tensões e incertezas da vida política nos últimos anos do Estado populista afetaram, em certa medida, a continuidade de políticas esboçadas (SARAIVA, 1996, p. 68).
Nesse contexto de política doméstica turbulenta, a política externa era utilizada pela opinião pública e pelo Parlamento com vistas a deslegitimar a chapa que se sagrou vencedora das eleições de 1960. Em síntese, "a [política] externa receberia os influxos das tensões internas" (Ibidem, p. 85). Analisando-se o mandato de Jânio, convém considerar que sua dramática renúncia em 25 de agosto de 1961 foi parcialmente derivada da frustração de não ter recebido apoio do Congresso Nacional e de outros setores da sociedade brasileira para a nova política externa, como o seu Ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos de Melo Franco, viria a afirmar posteriormente (Ibidem, p. 70)
Inábil para conseguir efetivamente governar o país, com um mínimo de apoio, difícil conjecturar que lograria empreender ações efetivas na dimensão das relações exteriores. Esse fator explica, em parte, a política externa "de duas faces" de Quadros, de acordo com Salgado (2009, p. 11), uma vez que por um lado, profundamente anticolonialista, apoiando e reconhecendo os movimentos pela independência dos territórios não autônomos das potências europeias; por outro, se posicionando (sic) fora dos debates sobre a independência das colônias portuguesas, uma vez que ainda se fazia presente no ethos político brasileiro o sentimentalismo e a retórica da afetividade.
A essa mesma característica, Saraiva atribui o nome de "movimentos ou posições ziguezagueantes da política externa independente" ou "movimento pendular" (SARAIVA, 1993, p. 85). A PEI, nesse sentido, não passou de um esboço, um protocolo de intenções, um programa que não contava com capacidade de ser implementado, considerando o momento político. Não era mesmo viável ir além disso, tendo em conta o próprio contexto interno vivenciado pelo Brasil. Ainda assim, não deixou de abordar aspectos importantes, que seriam recuperados mais adiante, em panorama mais favorável e oportuno. Há de se reconhecer, portanto, que "a politização vinculada à PEI foi um dos fatores que contribuiu para o Golpe Militar deflagrado por setores conservadores da sociedade brasileira, com apoio explícito norte-americano" (VISENTINI, 2016, p. 13). Rodrigues assim resume esse contexto, ressaltando o papel exercido por Afonso Arinos de Melo Franco: O ministro do Exterior de Jânio Quadros tivera realmente suas vacilações, mas o importante foi a disposição com que enfrentou o problema, sem o costumeiro alinhamento às tradicionais posições colonialistas do Brasil. Era
59 A INFLUÊNCIA RECÔNDITA DO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE NA DIMENSÃO SULATLÂNTICA DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE preferível reconhecer que ele era um homem profundamente brasileiro, no sangue, na cultura, no amor à nação e ao povo brasileiro, que não havia no Brasil Mãe Pátria, mas uma só Pátria. Os ataques da imprensa, partidos especialmente dos criptocolonialistas que julgavam indiscutível o compromisso do Brasil para com Portugal, não podiam abalançar a convicção democrática do ministro, especialmente quando se considera que mais adiante, no processo histórico brasileiro, a histeria e a inquietação vão se apossar de certos setores da opinião pública, nos mais desabrido, no mais aberto combate à política externa de Jânio Quadros, às vésperas de sua renúncia (RODRIGUES, 1963, p. 413).
Chegou-se a propor que "o Brasil não teve e não tem política africana". A afirmação é de autoria de José Honório Rodrigues, constante no prefácio da segunda edição de sua obra Brasil e África: outro horizonte, que viria a público em 1963. A primeira tiragem do livro, lançado em 1961, pari passu ao advento da Política Externa Independente, expressava otimismo em relação à política externa de Jânio Quadros, especialmente no que concerne à sua vertente africanista. Quanto a essa dimensão da atuação exterior do governo Quadros, no entanto, desta feita lamentava: Pensou-se que ela seria formulada ao nascer o governo Jânio Quadros, mas ficou-se nas declarações iniciais. Na verdade ela nasceu morta, quando a Missão à África foi completada com a Missão a Salazar, uma tese e uma antítese, sem síntese. Não há também política em matéria colonial, e dança-se ao sabor da firmeza ou tibieza dos executores, das injunções transitórias, e assim como a política nacional é o reino da indecisão, a externa é também o domínio da hesitação, mascarada de conciliação (RODRIGUES, 1982, p. 20).
Aqueles que sustentavam expectativas alvissareiras quanto às iniciativas enunciadas pela PEI, como Honório Rodrigues, esperavam uma postura mais assertiva da diplomacia brasileira naquilo que concernia aos assuntos referentes ao continente africano, e não uma postura reticente em relação ao governo de Salazar, em Portugal. Contrariamente, o que se observou foram as abstenções do Brasil tanto na resolução 1603/1961 da AGNU sobre a independência de Angola (SILVA, 1995), quanto na resolução 1761/1962 contra o regime do apartheid na África do Sul, esta adotada no curso do mandato do sucessor de Quadros (MALLMANN, 2009). Desse modo, Rodrigues esclarece que houve um impulso inicial, um apaixonado interesse pela África, mas, política africana, propriamente, nunca se formulou. [...] A política africana do Governo Quadros, nos seus sete meses de gestação, não pariu senão a abstenção nas Nações Unidas, contra a Argélia e contra Angola (...).
Salgado (2009, pp. 13-14) corrobora com essa postura, ao afirmar que "a política africana, entretanto, mais uma vez, não existiu; apenas se seguiu
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condenando o colonialismo e manifestando solidariedade às aspirações de independência, bem como o reconhecimento de algumas, como Argélia, Ruanda e Urundi". A guinada da política externa brasileira em seu processo de abertura para a África na década de 1960 pode ser considerada como uma ação coerente com aquilo que ocorria concomitante e gradualmente no âmbito interno do país, a saber, a procura de valores identitários a fim de explicar a formação nacional do Brasil. Cumpria, pois, resgatar o que fora deixado de lado sobretudo durante o século XIX, em que a Europa representava o modelo a ser seguido pelas elites locais, e o século XX, quando os valores norte-americanos passam a figurar cada vez mais como aqueles a serem adaptados pelos nacionais. Certamente, não se pode negar o momento histórico em que a recuperação – em novos moldes, por certo – da dimensão africana se dava, no qual ganhava relevo a descolonização afro-asiática, o acirramento da Guerra Fria, a necessidade de se buscar novos mercados; no entanto, a inexistência de um arcabouço teórico desenvolvido com vistas a fundamentar o discurso oficial possivelmente dificultaria ainda mais essa iniciativa, por si só sujeita a resistências tanto de brasileiros como de africanos de diferentes países e territórios. Esse é um processo que colhe dividendos na longa duração. Desse modo, é de todo conveniente recordar que, ainda em 1939, Getúlio Vargas cria o "Dia da Raça", a ser celebrado em 10 de junho, reservado à celebração da miscigenação brasileira. Dando continuidade a esse esforço de valorização de aspectos autóctones definidores das gentes brasileiras, em 1963 é instituído o "Dia Nacional do Samba", que seria comemorado em 2 de dezembro (FIGUEIREDO, 2009). Como explica Visentini (2016, p. 11), Vargas, durante o período de 1930 a 1945, lançou as bases de um projeto nacional de desenvolvimento, o qual necessitava de uma identidade nacional. A busca da brasilidade, para a qual convocou artistas e intelectuais, resgatava os afrodescendentes do silêncio a que haviam sido relegados e valorizava formas de expressão cultural e religiosa dessa comunidade. O brasileiro, historicamente, era resultado de uma prolongada mestiçagem, e esta dimensão era resgatada como um dos elementos básicos da identidade nacional.
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4.2. A "pernambucanidade" e a retomada do Atlântico Sul como horizonte possível da política externa brasileira As obras do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre desempenharam clara influência na forma pela qual o Brasil se relacionou com seus parceiros alhures, em especial com Portugal e com o continente africano, primeiramente com uma intensa aproximação com aquele e, quando da eclosão dos movimentos anticoloniais, acercando-se mais deste, ainda que procurando manter relações positivas com o Estado português. E, naquela conjuntura das décadas de 1960 e 1970, esta posição mostrava-se mais adequada aos anseios nacionais, bem como ao projeto de poder ambicionado pelo país. Era necessário proceder à abertura para a África, em uma leitura atenta do interesse nacional, em um momento em que ganhava fôlego o projeto de substituição de importações e que, consequentemente, apresentava-se como conveniente e, sobretudo, urgente o escoamento da produção brasileira para novos mercados. Casa-grande & senzala, publicado em 1933 – mesmo ano que Adolf Hitler ascendia ao poder na Alemanha, com sua política de cunho racial, base do nazismo –, bem como títulos que se seguiram a ela, versando sobre lusotropicalismo, procuravam valorizar a miscigenação da sociedade brasileira, atribuindo seu sucesso ao caráter da colonização portuguesa. Ao passo que Casa-grande voltavase mais à análise interna do Brasil, investigando sua própria formação social e buscando explicações para o funcionamento da sociedade nacional no período colonial; O mundo que o português criou, Um brasileiro em terras portuguesas e Aventura e Rotina apresentavam uma lógica externa, uma maneira e um discurso que poderiam ser explorados pelo país em sua atuação no mundo lusotropical. Considerando-se que os formuladores da política externa brasileira e os diplomatas constituem parte da elite intelectual à época, não é de se estranhar que tivessem contato com o pensamento dos assim denominados intérpretes do Brasil, entre os quais se incluíam, além de Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. De fato, tomando-se o impacto que as ideias do mestre de Apipucos tiveram na sociedade brasileira, bem como na própria autoimagem que o país sustentava, difícil não supor que esse modo de interpretar a formação nacional do Brasil não exerceria certa influência em sua própria projeção externa. Assim, "o
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engajamento do Ministério das Relações Exteriores [na política africana do Brasil] foi facilitado pelos estudos e abordagens que vinham se desenvolvendo pelas vozes dissidentes dos diplomatas, políticos e intelectuais que vinham dos anos 1950 e que agora era postos em evidência" (SARAIVA, 1996, p. 64). Dissidentes porque, segundo Rodrigues (1982, p. 516), "no Brasil, os setores oficiais ainda pensavam ser possível a conciliação entre as relações especiais com Portugal e o crescente relacionamento com a África e desta com o Brasil". O maior problema e, ao mesmo tempo, o mais notável mérito de Casa-grande & senzala foi ter generalizado um esquema estritamente identificado com uma perspectiva de história regional como característica de história nacional, o que produzia lógicas interpretativas desfocadas do ponto de vista geográfico. Ao evocar sua herança pernambucana, parecia reproduzir um raciocínio característico do século XVII, qual seja, a de a palavra pátria ostentar "caráter local, não nacional" (CORRÊA MARTINS apud ALDÉ, 2008, s/n). Fazia-se agora o contrário: partia-se de uma análise local que se pressupunha nacional. Desse modo, Gilberto Freyre é, antes de tudo, um autor pernambucano; e, com base nessa chave de explicação, devem ser interpretadas suas ideias lusotropicais. Interessava, pois, impulsionar a modernização e a atualização do vetor do relacionamento sul-atlântico que o Nordeste desenvolvera com a África em tempos de antanho. Afinal, se havia uma base histórica e social a fundamentar o processo de afirmação do Brasil naquele âmbito geográfico, seria adequado explorála da melhor forma possível. Naquele movimento triangular entre Brasil, África e Portugal, as ideias introduzidas pelo sociólogo pernambucano seriam moldadas e adaptadas a fim de se coadunarem com aquilo que a diplomacia brasileira desejava propugnar, fosse o estreitamento do relacionamento luso-brasileiro, como defendido explicitamente por Freyre, fosse a defesa do direito à autodeterminação pelos povos africanos. Existia uma diplomacia cultural de vertente afetiva na prática da política externa brasileira em seu relacionamento com Portugal, que fazia uso do discurso lusotropicalista. Dessa maneira, essa deveria ser apenas adaptada para a África, de forma que se alteraria o eixo, mas se manteria a base. Nesse sentido, pode-se aventar que o lusotropicalismo seja fruto da própria proximidade cultural entre Pernambuco e Angola. Freyre recupera laços, sobretudo com Angola, que se esmaecem no pósindependência do Brasil. Conforme salienta José Honório Rodrigues,
63 A INFLUÊNCIA RECÔNDITA DO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE NA DIMENSÃO SULATLÂNTICA DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE Angola foi mais ligada ao Brasil que a Portugal. Foi o Rio de Janeiro que a libertou do domínio holandês; dos seus três deputados às Cortes Constituintes, dois bandearam-se para o Brasil; em 1822 foi no Rio de Janeiro que se lançaram as proclamações pela 'desprezada Angola' e logo em seguida os movimentos rebeldes de Luanda e Benguela visaram ligá-la ao Brasil (RODRIGUES, 1963, p. 24).
Essa ligação é evidenciada por Luiz Felipe de Alencastro, que relata que a viagem entre Recife e Luanda no primeiro quartel do século XVII durava 35 dias, ao passo que o mesmo trajeto para a Angola partindo da Bahia se estendia por quarenta dias, e do Rio, cinquenta (ALENCASTRO, 2000), de maneira que se conformava uma "Angola brasílica", na acepção do historiador. Ademais, o período entre os anos 1648 e 1665 é denominado "o período brasileiro da história de Angola", compreendendo os governos Salvador de Sá, João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros (SILVA REGO apud ALENCASTRO, 2000, p. 262). O estratagema gilbertiano insere-se em uma vertente de valorização do sentimento
nativista
vigente
em
Pernambuco,
hodiernamente
denominado
"pernambucanidade" (ALDÉ, 2008, s/n). Segundo essa lógica, aquele Estado do Nordeste brasileiro seria identificado como modelo de resistência à colonização portuguesa, expulsando, inclusive, os invasores holandeses. Nesse contexto, é de todo conveniente salientar a trajetória de André Vidal de Negreiros que, além de governador de Pernambuco, será também governador de Angola, sendo reconhecido
pelo
historiador
Francisco
Adolfo
Varnhagen
como
"legítimo
representante dos brasileiros na gloriosa restauração do solo nordestino ao corpo da nação" (PESSOA, 2009, p.8). Em suma, a importância do lusotropicalismo residia na recuperação da dimensão do Atlântico Sul nas relações internacionais do Brasil. A geografia revelava-se um quesito fundamental para o advento da PEI. O viés geográfico e o lusotropicalismo deviam ser vistos como complementares nesse processo, justificando-se mutuamente. Procurava-se reatar um laço que fora desfeito ainda no século XIX, em um processo adequadamente descrito por Honório Rodrigues, Feito o rompimento, por volta de 1855, por imposição britânica com a aquiescência de Portugal, que de 1847 a 1895 negou-nos o estabelecimento de um consulado em Angola, a nossa política latinoamericanizou-se e o Rio da Prata passou a ocupar lugar mais destacado, afora, é evidente, o predomínio inglês e o incremento do intercâmbio comercial e da influência cultural e política norte-americana (RODRIGUES, 1963, p. 25).
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Por certo não há que se negar que o trabalho de história implica a necessidade de se impor delimitações temporais. Não se pode, contudo, ignorar a continuidade dos processos históricos, inseridos na longa duração. Nesse sentido, apesar desta pesquisa ter procurado se deter ao período em que vigeu a PEI, isto é, no
ínterim compreendido
entre
1961 e
1964, impende
mencionar
seus
desdobramentos futuros, da mesma forma que se lançou luz sobre eventos anteriores a esse interregno. Nessa toada, sabe-se que seria na ditadura civil-militar que se definiria efetivamente a política africana do Brasil, com a "pioneira viagem de Gibson Barboza nove países da África Ocidental – Costa do Marfim, Gana, Togo, Daomé (atual Benin), Zaire, Camarões, Nigéria, Senegal e Gabão – em novembro de 1972" (LARAMAO, 2007, p. 46). Evidenciava-se uma aproximação tanto comercial quanto política com a África, marcando uma "mudança de postura do governo brasileiro em relação ao colonialismo português" (Idem). Interessa notar, pois, que Barboza fora chefe de gabinete de Afonso Arinos na ONU e de San Tiago Dantas, quando este foi Ministro de Estado das Relações Exteriores. No entanto, "mais uma vez se configurava a frustrante marca que caracterizou nossa atuação era uma política externa certa num governo errado" (BARBOZA, 1992, p. 74). Em depoimento, Barboza afirma que De Raul Fernandes passei para o gabinete de Afonso Arinos de Melo Franco. Aí já como chefe de gabinete, e depois chefe de gabinete de San Tiago Dantas. Veja que coisa extraordinária! Três grandes brasileiros! Três homens extraordinários pela cultura, pela integridade, pela inteligência. Três homens de Estado e eram realmente diferentes. E tive a felicidade de fazer a minha carreira junto desses homens, que foram me chamando para trabalhar com eles simplesmente. E as informações começaram a ocorrer, quando eu menos esperava (BARBOZA, 2002, p. 5).
A viagem do chanceler Gibson Barboza a nove países da costa Ocidental africana, o golfo da Guiné, demonstra o empenho do Brasil em estreitar laços com o continente. O périplo africano não compreende territórios que travavam lutas sangrentas contra europeus, tampouco territórios portugueses. Ademais, havia empenho pessoal de Barboza em convencer os portugueses a facilitarem a independência de suas províncias ultramarinas. Há inclusive um encontro entre o diplomata brasileiro e Marcelo Caetano para tentar lograr o convencimento da contraparte portuguesa (BARBOZA, 1992). Cabe conjecturar ainda em que grau o denominado sentimento de "pernambucanidade" chegou a se refletir na necessidade e na importância de se buscar a África. Não deixa de ser interessante, como se procurou demonstrar nesta
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pesquisa, o fato de a influência da PEI ter de ser buscada em sua aqui qualificada como uma "raiz esquecida", qual seja, o pensamento do pernambucano Gilberto Freyre. A concretização da política externa para a África, propriamente, há de ser identificada na atuação de Mario Gibson Barboza, o executor do chamado périplo africano, aquele que, de acordo com Lamarão (2007, p. 43), "abriu as portas para a presença do país na África". Assim, cumpre questionar se seria mera coincidência o fato de Barboza ser também natural de Pernambuco, bem como de ter sido auxiliar de pesquisa de Gilberto Freyre, na década de 1930. Como propõe Alzira Abreu "as trajetórias de vida podem se tornar objeto de análise e interpretação histórica, sendo possível fazer a articulação entre o tempo de uma história individual e o tempo sócio-histórico, ou seja, a articulação entre biografia e história" (ABREU, 2007, p. 8). A história se repetia, conforme expressão da personagem Úrsula, imortalizada por Gabriel García Marquez em Cem anos de solidão. Similarmente ao que ocorria durante o período colonial, quando Recife e Angola mantinham estreita relação, vigiada sob o olhar atento e desconfiado de Portugal, tentava-se recuperar esse vínculo histórico, adaptado aos tempos modernos, mas que ainda despertava suspeitas por parte da relutante potência colonial lusa. Tal qual Freyre, Mario Gibson Barboza sempre evocava suas origens ao se apresentar. Em seu clássico Na diplomacia, o traço todo da vida, o diplomata, além de trazer no título da obra alusão à frase atribuída a seu conterrâneo Joaquim Nabuco reproduzida em epígrafe5, alude no segundo parágrafo da nota introdutória sua origem pernambucana: "Principalmente nasci em Olinda" (BARBOZA, 1992, p. 7). De fato, a própria continuação do trecho em que expõe a ideia do "traço todo da vida", Nabuco se refere à Pernambucano como sendo um fator sempre presente em sua vivência: Passei esse período inicial [os primeiros oitos anos da vida] tão remoto, porém, mais presente do que qualquer outro, em um engenho de Pernambucano, minha província natal. A terra era uma das mais vastas e pitorescas da zona do Cabo... Nunca se me retira da vista esse pano de fundo que representa os últimos longes de minha vida (NABUCO apud LAFER, 2002, p. 20).
O ex-Ministro das Relações Exteriores do governo Médici repete a colocação quando entrevistado pelo Programa Memória Política, em 2002, ao se expor o 5
"O traço todo da vida é, para muitos, um desenho da criança esquecido pelo homem" (Joaquim Nabuco, Minha Formação, "Massananga").
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seguinte: "Não gosto de me gabar, mas já que me colocam frequentemente essa pergunta, devo responder que nasci em Olinda. Tive essa fortuna de nascer em Olinda". E continua: parafraseando Carlos Drummond de Andrade, diria que principalmente nasci em Olinda, uma cidade antiga em um País novo, cheia de monumentos, como se sabe. Até hoje é um monumento histórico universal, mas que para mim eram apenas lugares onde eu brincava ou a igreja onde eu ia à missa acompanhando minha mãe, sem saber, só me disseram depois, que era uma esplêndida igreja barroca (BARBOZA, 2002, p. 1).
Um dos principais artífices da abertura da política externa do Brasil para a África confessa: "penso que meu sentimento entranhado de brasilidade tem grande dívida com o caráter tão brasileiro daquela cidade onde nasci e me criei. Naquele tempo, meu horizonte era limitado" (Idem). Quando da execução de seu périplo africano, Barboza constata as similaridades entre o Nordeste brasileiro e aqueles países do outro lado do Atlântico Sul: "eu, quando visitei esses países, verifiquei que em certos lugares da África eu tinha a impressão que estava na Bahia ou em Pernambuco. A praia é a mesma, o mar é o mesmo, a comida é a mesma". "Não é só uma questão de pagar uma dívida de um remorso; é que a ligação entre o Brasil e a África é única". E conclui: "e essa política, se me permitem um pouco de vaidade, eu me orgulho de ter aberto, porque acho que é um momento importante na política externa brasileira" (Ibidem, p. 28). [...] "Essa abertura para a África foi uma coisa que marcou a minha gestão. Permitam-me dizer isso, não só isso, mas essa foi uma das coisas que eu considero mais importantes que tive oportunidade de fazer" (Ibidem, pp. 29-30). Quando propõe ao presidente Médici iniciativas voltadas ao continente africano, constatam-se os argumentos que coincidem com ideias introduzidas por Gilberto Freyre: quando eu propus ao Médici fazer uma abertura para a África da política externa brasileira, pelos motivos que eu explicava na exposição de motivos que fiz depois para ele e que ele aprovou, ou seja, que o Brasil não é um país negro, mas é um país mestiço. Nós temos, para mim, a vantagem, a glória de ser um país mestiço, acho que isso dá muita riqueza à civilização brasileira. O coeficiente africano para a formação da nossa nacionalidade foi enorme. Quando foi decretada a abolição da escravatura no Brasil, dois terços da nossa população era de negros escravos. Este país foi construído pelo braço negro, pelo braço do escravo negro. Ele foi feito no braço do escravo negro. Foi isso que construiu o Brasil. Nós temos uma dívida moral para com a África nesse sentido (Idem).
Assim, a raiz da vertente africanista, identificada em Freyre, seria recuperada e colocada em curso por Barboza. Este, um ator central durante a vigência da
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Política Externa Independente, testemunhara em posição privilegiada a falta de trato político daqueles dois últimos presidentes da chamada República liberal populista. O "semeador de vento" e o "presidente equilibrista" podiam ter bons projetos, mas era patente suas incapacidades para implementá-los. Essa incapacidade poderia decorrer tanto de fatores de ordem pessoal, como no caso de Jânio, quanto do acirramento político-ideológico do cenário doméstico, no caso de Jango. Quanto a Jânio, Barboza afirma que este chegara a autorizar a nova posição portuguesa de voto contrário ao colonialismo português, mas que mudara sua posição ao falar com o presidente de Portugal. O relato de Barboza sobre esse episódio tornou-se icônico: - É, Ministro [Afonso Arinos], mudei sim. Já prometi ao Embaixador que nós vamos votar a favor de Portugal. Sabe, Ministro, o Presidente de Portugal telefonou-me, fez um apelo, eu chorei ao telefone, choramos os dois. Ficamos aos prantos. Não podemos fazer isso com Portugal. Não, Ministro, não vote contra Portugal".
E refletia: É verdade que o Presidente de Portugal telefonou para Jânio? Penso que sim. É verdade que ele chorou? Pode ser, não sei. É possível que ele tenha simplesmente cedido à pressão e que tenha querido dar ao seu Chanceler, bem no seu estilo, a aparência de um gesto patético, dramático, à guisa de explicação. Com Jânio Quadros foi sempre difícil saber realmente onde se inseria o histrionismo (BARBOZA, 1992, pp. 237-238).
Por sua vez, em relação a Jango, Barboza expunha que não tinha nenhuma capacidade para governar – governo zero. Nunca vi incapacidade igual. Se aquilo tivesse continuado, não sou a favor de golpe militar, mas se tivesse continuado aquilo virava uma república sindicalista que quem mandava não ia nem ser ele, mas ele não tinha disso, não. Agora, a presença dele era uma presença cordial (BARBOZA, 2002, p. 32).
"A política externa certa num governo errado" poderia finalmente ser posta em marcha, em um ambiente político e econômico mais favorável, como era aquele da primeira metade da década de 1970, época do denominado milagre econômico. O cabedal de iniciativas a serem executadas estavam bem estudadas, esperando para integrar a pauta de atuação exterior de maneira adequada. Aquele expectador privilegiado da década de 1960, passava, no decênio seguinte, à posição de principal executor. Pode-se constatar, conforme analisado no capítulo anterior, a relação direta e pessoal entre Mario Gibson Barboza e Gilberto Freyre. Com efeito, quando da entrevista do diplomata ao historiador Jerry Dávila, aquele confidenciara ao pesquisador norte-americano que frequentava encontros na residência do sociólogo,
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na década de 1930, aos quais se refere como verdadeiras aulas de sociologia, oportunidades em que se discutia o africanismo constante no país. Barboza, à época ainda era discente da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco e, juntamente com seus pares acadêmicos, seguiam dessas reuniões para realizar pesquisa para o livro Sobrados e mucambos, de 1938, que se seguiu à Casa-grande & senzala. Ademais, Gibson confessa a Dávila a participação no I Congresso AfroBrasileiro, organizado por Freyre em 1934. Por fim, aquele que seria chanceler do governo do general Emílio Gastarrazu Médici registra que manteve relação de amizade com Gilberto Freyre durante toda a vida e que este participou dos preparativos da missão diplomática que se tornaria conhecida como périplo africano (DÁVILA, 2011). A historiadora Cíntia Vieira Souto, que também entrevistou Gibson Barboza, confirmou, mediante intercâmbio de correspondências eletrônicas, as informações apresentadas acima, além de listar outras. A pesquisadora afirma que, na entrevista a ela concedida, Barboza menciona ter sido paraninfo de Gilberto Freyre quando este recebeu o título de doutor honoris causa, pela primeira vez, concedido pela Universidade de Pernambuco. Ademais, Cíntia Souto relata que o diplomata conversou com Freyre a respeito de coisas que testemunhou na África, atestando a proximidade entre a África e o Brasil – fatos que eram desconhecidos do sociólogo pernambucano. Finalmente, Barboza refere-se a seu conterrâneo como "velho e querido amigo" (BARBOZA, 1992, p. 301). Pode-se afirmar, enfim, que Mario Gibson Barboza faz a ligação entre as ideias de Freyre e a política externa brasileira, adaptando-as, por certo, aos desígnios de abertura da atuação exterior do país para o continente africanos, bem como conferindo operacionalidade a elas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS A inflexão da diplomacia brasileira em direção ao continente africano à época da Política Externa Independente pode ser interpretada como tentativa de projeção de poder do Atlântico Sul, vinculada, por suposto, à função econômica então em alta, tendo em vista a necessidade da abertura de novos mercados. Cumpre frisar que economia e poder não são fatores dissociados, uma vez que aquela representa um vertente de manifestação desse. Havia de se explorar novos mercados para os produtos nacionais. Em meados do século XX no Brasil, vários pensadores – a exemplo de Gilberto Freyre e Afonso Arinos – defenderam a existência de laços comuns que aproximariam Brasil e África, fazendo uso de amplo esforço teórico desenvolvido para justificar seus posicionamentos. Esse arcabouço conceitual, que compreende as ideias de lusotropicalismo e de unidade de sentimento e cultura, entre outras, possibilitou fundamentar argumentos para sustentar o estreitamento das relações brasileiro-africanas, sem prejuízo para a tradicional parceria com Portugal. Com perdão do neologismo, poder-se-ia afirmar que "o Brasil sulatlanticavizava-se", considerando a retomada da dimensão sul-atlântica pela diplomacia nacional. Pode-se concordar com a ideia segundo a qual “as raízes da nova política para a África devem ser buscadas na segunda metade de 1940 e na de 1950, no esforço brasileiro de promoção do desenvolvimento econômico” (SARAIVA, 2012, p. 39). Nesse sentido, a preexistência de um discurso fundamentado anterior à inflexão da política exterior do Brasil rumo à África facilitou o desenvolvimento da PEI. Interessante notar que a PEI, apesar de ser vista como progressista, tem suas origens e execução a cargo, respectivamente, de homens conservadores, sintonizados com mudanças que se procediam no cenário internacional, a saber: Jânio Quadros e seu ministro Afonso Arinos – este pertencente aos quadros políticos da UDN. Talvez essa dualidade seja uma característica própria da PEI, como observa o diplomata Panelli César (2012, p. 406) que argumenta ser curioso observar que o discurso da PEI, justamente por sua manipulação ideológica, acaba recebendo loas tanto à esquerda como à direita do espectro político nacional. Ele era palatável para a esquerda, porque sinalizava uma não capitulação perante os Estados Unidos, em sua zona de influência (a América Latina). Era saboroso para a direita porque, além de fortalecer sua voz nacionalista, demonstrava que ela tampouco estava a
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“soldo do imperialismo ianque”, um viés de independência tanto mais importante, quanto mais críticos ficavam os americanos (sobretudo a partir do governo Carter) com relação aos abusos dos militares contra os direitos humanos.
Sobre essa mesma dualidade, Barbosa (2003, p. 271) destaca ser a seguinte a “singularidade da Política Externa Independente”: ela que, na prática, jamais foi revolucionária, ganhou roupagem ideológica que lhe quiseram impor – à esquerda, uma espécie de instrumento de libertação nacional e, à direita, a inocente útil a serviço do comunismo internacional, logo, fantasma a ser exorcizado.
Da mesma maneira, nas palavras de Veloso e Madeira (1999, p. 147), Freyre "é um personagem controverso, acusado simultaneamente de progressista e conservador, de democrático e autoritário, e de personalista em sua análise da cultura brasileira". Como atesta Chacon (2001, p. 85), Freyre foi objeto de "acusações políticas de conservador a até reacionário, 'ideológico' de falsa democracia étnica, 'salazarista', 'defensor' do regime militar brasileiro de 1964, 'saudosista' enfim da casa-grande contra a senzala etc etc etc". Cardoso (2010, s/n), por seu turno, reconhece que "é esta ambiguidade permanente na escrita e nas interpretações de GF que lhe dá encanto, dificulta sua compreensão e gera incertezas sobre o significado profundo de sua obra". Buscou-se aqui apresentar os conceitos de lusotropicalismo e de unidade de sentimento e cultura, desenvolvidos por Gilberto Freyre, como elementos que subsidiariam a PEI em seu discurso em favor de uma maior aproximação com a África. Essa seria, presumiu-se, uma raiz esquecida da Política Externa Independente e, consequentemente, do pensamento africanista nacional. Não se pode deixar de atentar para a proximidade intelectual de Gilberto Freyre com Afonso Arinos e San Tiago Dantas, tampouco as similitudes entre as ações empreendidas por esses dois diplomatas com as ideias expressas anteriormente pelo sociólogo de origem pernambucana. A exposição apresentada por Freyre mostrava-se, em parte, adequada aos anseios da elite dirigente nacional, uma vez que não se fazia por meio de rompantes declaratórios de cunho radical. Do contrário, defendia uma espécie de modernismo conservador de matiz conciliatório entre o Portugal salazarista, suas colônias do ultramar e o Brasil. Em suma, uma transição sem rupturas. De acordo com Veloso e Madeira (Idem, pp. 155-156),
71 A INFLUÊNCIA RECÔNDITA DO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE NA DIMENSÃO SULATLÂNTICA DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE senso histórico não é aceitação pura e simples da mudança, mas o reconhecimento e a aceitação da mudança na continuidade, e da continuidade na mudança. Gilberto Freyre não compreende a realidade como algo parado, estático, estacionado, ao contrário, acredita que há um processo de continuidade, que garante a possibilidade de mudança na sociedade brasileira.
As pesquisadoras complementam afirmando que Freyre "vê a continuidade, como a mudança, numa outra perspectiva, não como ruptura, como o marxismo propunha, mas como movimento de transformações graduais" (Idem, p. 156). Dessa forma, a noção de história apresentada em sua interpretação social do brasileiro encontra respaldo em uma frase muito citada para qualificar a política externa do país, a saber: "a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se", proferida em 1974 por Azeredo da Silveira, em seu discurso de posse, justamente o chanceler do Pragmatismo Ecumênico e Responsável, do então presidente Ernesto Geisel, que daria prosseguimento, assim como aprofundaria aquilo que fora anteriormente apregoado pela PEI – em especial em sua vertente africanista. De fato, a abertura para a África parecia coadunar com aquela ideia difundida à época do Império brasileiro, que afirmava por vezes ser necessário que tudo mudasse para que tudo continuasse como estava, um movimento que se reproduzia desde a Independência do Brasil, quando se proclamava a independência de Portugal mantendo-se a monarquia, a escravidão e o latifúndio monocultor voltado à exportação. A continuidade, como defende Gelson Fonseca Jr. (2011, p. 15), "é um dos traços característicos da política externa brasileira", servindo à sua credibilidade. Com efeito, argumenta o autor é curioso que chanceleres que promoverem mudanças, como o próprio Rio Branco (no início do século) ou San Tiago Dantas (nos anos 1960), e mesmo presidentes, como Getúlio Vargas, prestaram, no plano do discurso, tributo à continuidade, como se essa reforçasse a legitimidade do que faziam, disfarçando de permanentes as mudanças de orientação que patrocinavam (Ibidem, p. 17).
Como complementa o autor em outro artigo, San Tiago não reclama para o que a política externa que desenvolve o rótulo da novidade [...]. O chanceler inova, mas não precisa dizer que inova. Os valores que exalta, como o da atitude pacifista do Brasil, valem mais justamente porque estão sustentados historicamente (FONSECA JÚNIOR, 2013, p. 1018).
Fonseca Jr. expressa bem o cânone acadêmico em voga, sobremaneira nos estudos acerca da diplomacia pátria; todavia, a PEI é inegavelmente uma dimensão nova, que representaria, caso efetivamente implementada, uma ruptura, a ponto de
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ter sido posta de lado com o golpe de 1964, pelo menos durante o primeiro governo militar. Tome-se, por exemplo, o caso da Divisão de África, a DAF, que é extinta durante o governo Castelo Branco, sendo reinstituída no curso do mandato de seu sucessor, o presidente Costa e Silva. A PEI não chega a ser anacrônica; do contrário, traz efetivamente o Brasil para as mudanças que ocorriam na segunda metade do século XX, de maneira que o país poderia finalmente adentrar na segunda parte daquela centúria. Os contornos da política africana do Brasil desenhados na década de 1960 somente ganharia projeção efetiva, argumenta Fonseca Jr., quando se abandona o apoio às posições de Portugal na ONU, o que se efetiva em 1974, conforme apresentado anteriormente. Nesse sentido, quando da independência dos países africanos o Estado brasileiro podia almejar seus mercados, sem que isso representasse uma mudança brusca de conduta internacional. Quiçá essa seja uma visão relegada pela história da política exterior do Brasil justamente por representar uma interpretação de matiz conservador, que optava por manter a tradicional aliança política com um Portugal periférico, um Império decadente, ao invés de propor uma guinada total em direção aos novos Estados da África. Verifica-se um movimento diplomático que se estende da tradicional lusoaproximação nacional à convergência com os países africanos, de forma que se irmanava contra a metrópole. Em longo prazo, esse câmbio não significou o abandono de alguma dimensão da política externa brasileira, pela própria maneira pela qual a PEI, vacilante em sua vertente africanista, fora posta em prática. Há um processo de longa duração que compreende as tradicionais relações lusobrasileiras, o pensamento gilbertiano, a atuação conjunta de Afonso Arinos, San Tiago Dantas e Jânio Quadros no âmbito da PEI e, por fim, a impressão definitiva do continente africano ao acumulado histórico e prático da atuação externa do país. Cumpre diferenciar a retórica da PEI de suas ações efetivamente empreendidas. Apesar de ter proposto algumas medidas que sugeriam a abertura para o continente africano, ao não ter logrado se distanciar do governo colonialista português, não pôde deixar de configurar um protocolo de intenções, com parcos resultados em seu eixo africanista. Assim, mantinha-se a tradição da diplomacia nacional de se adaptar à conjuntura internacional sem efetuar câmbios significativos de discurso e de ações. Não se tratava de um jogo se soma zero. Ao inserir a África
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ao portfólio de relações exteriores do Brasil não se fazia necessário abrir mão da parceria com Portugal. A singularidade do raciocínio de Gilberto Freyre, a seu turno, possivelmente resida em sua tentativa de desenvolver conceitos próprios para o entendimento da realidade nacional, como autêntico intérprete do Brasil. Trata-se de movimento contrário àquele que habitualmente se dá na história das ideias do país, em que modelos concebidos alhures e baseados em torno de modus vivendi distintos são sumariamente importados e empregados com o intuito de explicar o que ocorre no âmbito nacional. Freyre preocupa-se em analisar a convivência entre diferentes povos e culturas com base na miscigenação empreendida pelo português, em negação ao "purismo étnico" (CASTELO, 2011, p. 266). Tratava-se de pensar o Brasil como "experiência única, singular e original" (RODRIGUES, 1982, p. 350). Se, por um lado, poder-se-ia supor que o raciocínio de Freyre fosse inicialmente dissociado da realidade, por outro há de se admitir que não deixa de representar uma chave de explicação diferente e inovadora sobre a formação do Brasil como nação. Para todos os efeitos, implicava reconhecer a miscigenação como uma realidade inexorável ao Brasil. E seus intérpretes, munidos da função de operadores da política exterior do país, tentariam tirar o melhor proveito da situação, em termos de acordos de comércio, entre outros, a serem assinados com seus parceiros da outra margem do Atlântico Sul. Nesse sentido, Menezes (1956, p. 283) argumenta que Quer queiramos, quer não, o Brasil é país de miscigenação. Nem a índole da maioria dos brasileiros, nem o tempo, nem o número dos elementos não brancos permitirá uma marcha à ré na nossa composição étnica. Por que não capitalizarmos, não tirarmos, portanto, todos os lucros de uma situação, de uma realidade que, somente para uma ínfima minoria, poder-se-á afigurar como um defeito? Se a premissa é aceitável, como nos parece ser para a maioria da nação, cumpre-nos apenas tarefa muito fácil. A de difundir, pelo mundo, um estado social já existente e a de basearmos e canalizarmos nossa política internacional sobre tal estado étnico e em função dele (MENEZES, 1956, p. 283).
A triangulação atlântica, portanto, subentendida na obra de Gilberto Freyre, assim como a plasticidade inerente ao conceito de lusotropicalismo seriam utilizadas pela diplomacia brasileira quando da inauguração de uma política do país para a África, sem que isso soasse como uma ruptura, como algo revolucionário. Era fundamental apenas que se renovasse a tradição, enfatizando a mudança na
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continuidade e a continuidade na mudança, e os textos do sociólogo pernambucano se adequavam perfeitamente a esse propósito. Pode-se afirmar que Freyre inaugura reafirma um novo "estilo de pensamento", de acordo com o termo de Karl Mannheim (1986), em que se propunha o maior reconhecimento da função do negro na formação da sociedade brasileira. Essa formulação, inicialmente em Casa-grande & senzala, avança em possibilidades práticas com as obras do lusotropicalismo. Formuladores e operadores da política externa do Brasil, por sua vez, procedem à leitura do estratagema freyreana da forma que melhor lhes convêm naquele momento. Como alude o teórico alemão, Do nosso ponto de vista, toda filosofia não é mais que uma elaboração mais profunda de um tipo de ação. Para compreender a filosofia deve-se compreender a natureza da ação que repousa em sua base. Essa "ação", à qual nos referimos, é um caminho especial, peculiar a cada grupo, de penetrar a realidade social, e ele toma sua forma mais tangível na política. O conflito político dá expressão aos objetivos e propósitos que operam de forma inconsciente, mas coerentemente, nas interpretações do mundo conscientes e meio-conscientes características do grupo (Ibidem, p. 89).
Outrossim, as percepções elencadas por Freyre seriam empregadas com fins diversos, não aqueles ambicionados pelo sociólogo. Apesar de se posicionar a favor da política salazarista para a África, sujeitos encarregados de pensar a atuação exterior do Brasil confeririam novos tons ao ideal lusotropical. Dessa maneira, o que ocorre com o conceito freyreano coaduna-se com o fenômeno descrito por Mannheim, em que formulações teóricas desenvolvidas com finalidade específica são empregadas com propósitos diversos por terceiros agentes. Consoante explicação de Mannheim, Um filósofo, ou mesmo um pensador isolado, pode não ter consciência das implicações políticas do seu pensamento e, não obstante, desenvolver atitudes e categorias de pensamento que tem sua gênese social num tipo especial de atividade política (Ibidem, p. 90).
Enquanto Gilberto Freyre estipulava o lusotropicalismo como justificativa para a manutenção do status quo, tomando por base uma análise histórica, alguns diplomatas e teóricos estudavam a mesma noção como um conjunto de novas possibilidades, sujeitas a novos significados e significações. Ao passo que aquele se punha como um conservador, estes sustentavam posturas progressistas, conforme diferenciação exposta por Mannheim, a saber: Em poucas palavras, essa diferença pode ser expressa da seguinte forma: o progressista considera o presente como o começo do futuro, enquanto o
75 A INFLUÊNCIA RECÔNDITA DO PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE NA DIMENSÃO SULATLÂNTICA DA POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE conservador o vê simplesmente como o último ponto alcançado pelo passado (Ibidem, p. 123).
A diferença, portanto, residiria, sobretudo, "na forma de se vivenciar o tempo" (Ibidem, p. 122), uma vez que "o pensamento conservador se concentra sobre o passado na medida em que o passado sobrevive através do presente" (Ibidem, p. 125). Assim, um teórico inicialmente encarado como conservador passava a ser visto como progressista. E isso em virtude de mudanças levadas a cabo em seus pronunciamentos públicos, mas sim pela forma com que suas ideias foram apropriadas e reinterpretadas, desta feita por atores sociais de posturas de cunho progressistas, pelo menos no que se referia à abertura para a África. Forçosamente, a noção de lusotropicalismo introduzida por Gilberto Freyre poderia ser comparada aos estratagemas de pensamento que estiveram em voga ao longo do século XIX, a fim de justificar a presença do elemento colonizador na África e na Ásia, no contexto do neocolonialismo de matiz imperialista, assim como Rudyard Kipling o fez com sua acepção do "fardo do homem branco". Uma coisa é certa: com a publicação das obras de Freyre houve o incremento das discussões acerca das contribuições do elemento negro na formação do Brasil contemporâneo. Procurava-se então reconhecer que "pela tradição histórica, pelas relações do povo, pela posição geográfica, pela unidade do mar, em cujas praias nos irmanamos, não pode o Brasil alhear-se do destino atual da África, seja ou não a portuguesa" (RODRIGUES, 1982, p. 249). A ação de se buscar a África coincidia com o próprio esforço de construção da identidade nacional, tão promovido durante a primeira metade do século XX. Com efeito, a vertente portuguesa havia sido bem explorada como elemento constitutivo da identidade brasileira, até mesmo em função da forte presença de nacionais portugueses e de seus descendentes, sobremaneira na região urbana da cidade do Rio de Janeiro. Necessitava-se, de modo alternativo e concomitante, sem negar a herança lusa constante no país, o reconhecimento da África na formação nacional do Brasil, e isso repercutia, inclusive, na dimensão das relações exteriores do Estado brasileiro. Muito se escreveu a respeito de Casa-grande & senzala, como o fez Vamireh Chacon (2001). Buscou-se, nesta pesquisa, analisar a repercussão de obras do lusotropicalismo sobretudo nos personagens envolvidos com a formulação e a execução da política externa brasileira. Casa-grande e os livros sobre o ideal
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lusotropical não podem ser vistos como produções dissociadas. Gilberto Freyre parecia atender àquilo que estipulava o argumento do filósofo Bertrand Russell de que os pensadores ilustres costumam formular ideias básicas em torno de vinte e trinta anos, apenas as desenvolvendo daí em diante, conforme ressalta Chacon (2001). De fato, livros como O mundo que o português criou, Um brasileiro em terras portuguesas e Aventura e Rotina surgem quase como projeções, para o plano externo, do raciocínio de sua obra lançada em 1933. O lusotropicalismo gilbertiano não causou interpretações desencontradas apenas no Brasil, mas também em Portugal, conforme se evidencia de depoimento de Mário Soares, "na presença do próprio Gilberto Freyre, no Recife, em 23 de março de 1987": Essa teoria foi mal aproveitada no tempo do antigo regime, mas justamente eu quis demonstrar que a obra de Gilberto Freyre era admirada em Portugal, não só por aqueles que eram os partidários do colonialismo, como pelo Portugal livre, democrático e moderno que eu represento; [...] Portugal, independentemente de regimes, ou independentemente de credos políticos, está com Gilberto Freyre e compreende a grandeza de sua obra e a sua importância para Portugal, para o Brasil, e para aquilo que nós podemos chamar de a nossa unidade linguística afro-luso-brasileira (SOARES apud CHACON, 2001, p. 112).
Assim como alguns diplomatas brasileiros atuantes em meados do século XX faziam, Soares também entendia "a possibilidade e a necessidade de readaptar o lusotropicalismo conforme as razões de Estado" (Idem). A mesma confusão que o mestre de Apipucos demonstrava ao se apresentar reverberava em seus interlocutores e intérpretes. Em entrevista à TV Cultura de São Paulo, testemunhava que Se me perguntarem quem sou, direi que não sei classificar-me. Não sei definir-me. Sei que sou um eu muito consciente de si próprio. Mas esse eu não é um só. Esse eu é um conjunto de eus. Uns que se harmonizam, outros que se contradizem. Por exemplo, eu sou, numas coisas, muitos conservador e, noutras, muito revolucionário (FREYRE apud PAULINO, 2009, p. 48).
Ademais, como Freyre disse sobre si mesmo, "tenho a tendência de escandalizar os bem-pensantes. [...] Sou, antes de tudo, um homem de paradoxos. Acho que quase todas as verdades estão em paradoxos. [...] Os paradoxos chocam os bem-pensantes" (FREYRE apud CHACON, 2001, p. 2001). Apesar de ter apoiado o Estado Novo português, é cediça a relação conturbada entre o sociólogo pernambucano e o Estado Novo varguista (CHACON, 2001). Conforme relata Vamireh Chacon, "Gilberto Freyre, de volta ao Brasil em
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1932, ia ficar contra o varguismo depois ao auge do Estado Novo de 1937 a 1945, de cuja resistência democrática fez parte, após ser preso e espancado" (Ibidem, p. 58). De fato, em 1930, Freyre fora persequido quando da emergência da chamada Revolução da Aliança Liberal, em virtude de exercer o cargo de assessor especial de Estácio Coimbra, governador deposto (CHACON, 2001). Chacon registra ainda que, em 1942, o mestre de Apipucos fora agredido pela polícia política recifense do Estado Novo, ocasião em que seu pai também sofreu violência (Idem). Estudioso da obra de Freyre, Vamireh Chacon refuta a tese de que a produção gilbertiana tenha viés analítico geograficamente limitado, ainda que reconheça que "dentro do Nordeste, a Paraíba e a Bahia eram, ao lado de Pernambucano, ainda mais próximas ao coração de Gilberto Freyre [...], embora se possa dizer que praticamente nenhum estado ou região brasileiros fora esquecido por Gilberto Freyre ao longo de suas obras [...]" (CHACON, 2001, p. 63). E acrescenta que "o regionalismo gilbertiano jamais foi bairrista, para ele o bairrismo era um sentimento menor, acima de tudo pairavam a brasilidade e o universalismo (Ibidem, p. 79). No entanto, como contemporiza Cardoso (2013, pp. 107-108), Certamente não foi assim [o modelo de sociedade escravocrata construído por GF] em São Paulo, nem no Rio Grande do Sul, por exemplo. Nem nas regiões mineradoras ou nas faixas de comunicação comercial por onde o país se expandiu sem se basear no latifúndio patriarcal ao estilo do que ocorre no Nordeste e, em outra época, nas terras fluminenses e mesmo paulistas, como o açúcar e o café.
Gilberto Freyre participa do processo de construção da brasilidade, que traria consequências externas, entre as quais a projeção da política externa do país para a África, inaugurando-se uma nova vertente na atuação exterior do Brasil. Tal como se evidenciava internamente a contribuição de vários povos, culturas e etnias para a formação nacional, externamente implicava a diversificação de parcerias – a noção de que a diplomacia brasileira, em virtude da própria composição diversificada do povo por ela representado, podia globalizar ou universalizar seu portfólio de relações. Se o "maestro pernambucano" – como a ele se refere Fernando Henrique Cardoso (2013) – regeu ampla gama de músicos na orquestra do pensamento social brasileiro, pode-se dizer que perdeu o controle de seus regidos quando estes trataram de política externa brasileira. Não obstante a existência de interpretações desencontradas acerca de suas ideias, resta evidente a valorização de elementos identitários autóctones para a consequente projeção internacional do país, em
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observância à opinião de Tolstoy (apud Chacon, p. 111), segundo a qual "se queres ser universal, fala de tua aldeia". De acordo com Cardoso (2013, p. 95), "todo o pensamento gilbertiano estava voltado para a singularidade das formas sociais e culturais do Brasil". Ao mesmo tempo em que os brasileiros usufruíam do encontro com a sua própria brasilidade, descobriam também que podiam universalizar suas relações externas, sem limitações de qualquer natureza, acarretando, inclusive, na abertura para a África. Entrementes, a diplomacia nacional retomava sua dimensão sul-atlântica de maneira exitosa.
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