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O bêbado da Rua dos Bondes

Este conto trata de um personagem aparentado com o Seu Viriato, aquele que teve encontro com um misterioso violeiro. Serve de advertência àqueles que, nas horas mortas de suas cidadezinhas, se abraçam à garrafa de aguar- dente em vez de ao travesseiro.

Nas noites de inverno em Ipiracema das Almas, ainda se ouve falar de um estranho fantasma alcoólatra. Se verdade ou não, eu sei como surgiu a lenda e a reconto tal qual me disseram, sem florear nem tirar frase alguma.

Ante o frio da noite, sentado na calçada da antiga Rua dos Bondes, sob os braços abertos de uma antiga amendoeira, Benedito Bem-Vindo, colarinho solto, gola amarelada e um cravo vermelho na lapela, de nada mais se lembra- va. Acordara meio absorto naquela manhã friorenta, guardando um pedaço de vela mal apagada na mão esquerda. Tanto fizera uso do conteúdo de uma garrafa de aguardente que não sentira os respingos escorrerem por sua mão, uma lava branca e quase etérea da madrugada.

Benedito Bem-Vindo, já descaracterizado como exemplo de pai de família, uma vez se sentia nocauteado pelo tempo: as folhas rosáceas e violáceas da amendoeira cobriam inconstantes a calçada, e aquilo lhe soava dentro da alma como sinal de que mais um ano se passava...

Naquela madrugada, pisoteando as folhas que tantas vezes o fizeram es- corregar, ele pôde presenciar o mesmo inquietante fenômeno que confundia seus últimos apelos à racionalidade: vinda de não sei onde, ou de "alhures", como o padre gostava de dizer, a alma de uma mulher insistia em segui-lo pe- las horas tardias.

Diacho! Assombração agora? É só o que faltava... Ah, essa mardita - e dava um olhar embaçado à aguardente.
E Benedito Bem-Vindo, continuando os trôpegos passos sob efeito alcoóli co, jogava - noite sim, noite sim - a garrafa no meio da rua, dizendo a si mes- mo em semitom:

Ainda abandono essa mardita. Não bebo nunca mais.

Entrementes, continuava a pálida face a caminhar pari passu com o boe- mio. Seria a falecida sua irmă ou alguma alma penada do purgatório rogando- -lhe prece?

Logo com Benedito Bem-Vindo, que não tinha tino para religiosidade. Mal versado em latinório de catecismo antigo, trocava o Laudate pueris mais do que os passos que dava noite adentro. Era um desleixo de caminhante aquele homem.

- Num volto a beber. Num volto. Ainda largo a marvada.

E, a cada ímpeto rumo à velha praça da cidade adormecida, fulgia a pou- cos passos dele a alma esbranquiçada, mais rosto do que corpo, mais olhos do que feição, esgazeando sobre os pedregulhos como traste flutuando em correnteza.

Quimera!

Mas o fato curioso e quase dantesco que recobre a poeira dos anos é a falta de brilho que o tempo ido algumas vezes devota a uma história. E esta, em especial, merece ter seu encanto. Pois bem: chegados os primeiros cantos do galo, perante a pia batismal da igreja, no vão público do adro da

matriz, a alma se dirigia até a penumbra. Desfazia-se naquele lugar a mate- rialização luminosa.

Toda noite a aparição se desmanchava ante os primeiros clarões.

E o Benedito Bem-Vindo, esforçando-se para abandonar a mardita, mas não resistindo a um gole a mais toda noite, endividava-se na venda pegando outra garrafa, a ponto de o atendente lhe pregar à testa os dizeres: "Fiado, só amanhã".

Pela última vez, Benedito Bem-Vindo veria a assombração que tinha en- tão lhe acompanhado por várias noites, desde aquela primeira vez na Rua dos Bondes. E a moça não tinha lugar certo para surpreendê-lo: saía detrás da va- randa de algum casarão assobradado, de dentro de um canteiro de hortensias ou simplesmente descida do céu como uma santa. O certo é que a figura sem- pre voltava. Vestida um tanto em desalinho, parecia uma mancha, um borrão de lençol sustentando uma cabeça inexpressiva.
Valei-me, Santo Deus, que de hoje não retorno a beber. Ainda quero largar essa mardita.

O bêbado ficava exausto toda vez que a mulher quase tocável lhe soprava a respiração de morta nos ouvidos.

Naquela noite, por cinco segundos, apenas, Benedito permaneceu vislum- brando a alma se dirigir à pia batismal da igreja, para então desaparecer, como sempre fazia. Cinco segundos que bastaram para o caminhão de leite virar a curva da praça em atraso e pôr a alma do bêbado para fora.

Ô coitado!

Ainda hoje, quem perambula à noite pela desanimada Ipiracema das Al- mas costuma avistar Benedito Bem-Vindo. Ele sempre surge cirandando trô- pego pelas ruas da cidade, segurando sua aguardente, guiado pela moça es- voaçante. Esta, entretanto, nunca falou nada a viv'alma. Ele, porém, jurava sempre e em alto tom a todas as velhas beatas madrugadeiras que corriam cedinho para receber hóstia na igreja:

-Ah... Ainda abandono a mardita!​
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