Delírios de honestidade
Outro dia eu estava pensando em como seria o mundo se as pessoas fossem realmente honestas. Inclusive no mais prosaico cotidiano. Eu me imagino entrando em uma dessas churrascarias de luxo. Sento-me à mesa e peço um filé bem passado ao garçom. Ele me alerta:
– Não aconselho. O filé hoje está uma sola de sapato.
– Peço o quê?
– Peça licença e vá para outro lugar. Olhe bem o cardápio. Pelo preço de um bife o senhor compra mais de 1 quilo no açougue. Quer jogar seu dinheiro fora?
Vou para outro e escolho salmão. O garçom:
– Se o senhor quiser, eu trago. Mas salmão, salmão, não é. É surubim, alimentado de forma a ficar com a carne rosada. Ainda quer?
– Nesse caso fico com escargots.
– Lesmas, quer dizer? Por que não vai catar no jardim?
Ou então entro em uma butique de grife. Experimento um jeans, que está apertadinho na barriga. O vendedor aproxima-se:
– Ficou bom? Ah, não ficou, não! Está apertado e não tenho um número maior.
– Acho que dá... Ando pensando em fazer regime.
– Pois compre depois de obter algum resultado. Se bem que não sei, não... Essa barriga parece coisa consolidada.
– Eu quero o jeans. Quero e pronto!
– Não vou deixar que cometa essa loucura. Aliás, falando francamente, o que o senhor viu nesse jeans, que nem cai bem nas suas adiposidades? Só pode ser a etiqueta. Meu amigo, ainda acredita em grife?
Depois, corro à casa de chocolates e peço um dietético.
A mocinha no balcão:
– Confia nessa história de dietético? Ou só quer calar a sua consciência?
– E se eu quiser confiar, estou proibido?
– Pois saiba que engorda. Menos que o chocolate comum, mas engorda. E o senhor não me parece em condição de fazer concessões a doces. Não vou contribuir para o seu autoengano, jamais poria esse chocolate nas suas mãos. Vá à feira e peça um jiló.
Resolvo trocar de carro. Passeio pela concessionária, escolho:
– Este vermelho, que tal?
– O motor funde mais dia, menos dia – alerta o vendedor.
– Parece tão bonitinho...
– Desculpe, mas você acha que a lataria anda sozinha? Já alertei o dono da loja, este carro está péssimo. Fique com aquele.
– Mas é velho e horroroso!
– Pode ser, mas anda. Está decidido, leve aquele. E não discuta!
O embate com a honestidade absoluta também poderia ser em uma galeria de arte.
– Gostei daquele – aponto o quadro à marchand.
– Está precisando de pano de chão?
– Não... é que... bem, posso não entender de arte, mas achei bonito.
– Sinceramente, o senhor não entende mesmo. Isto aqui é um horror. Não vale a tinta que gastou. Está exposto porque o dono da galeria insistiu. Leve aquele, é valorização na certa.
– Aquele? É muito sombrio... Eu queria alguma coisa alegre e...
– Não insista. Sombrio ou não, vou embrulhar. Faça o cheque, é melhor pra você.
E em uma loja de móveis? Mostro as cadeiras que me interessam. O decorador:
– É amigo de algum ortopedista?
– Está precisando de um? Posso indicar...
– Você é quem vai precisar. Essas cadeiras vão desmontar na terceira vez em que alguém se sentar. Fratura na certa.
– Caras assim e desmontam? Eu devia chamar o Procon.
– Se quiser, eu chamo para o senhor!
Pior seria alguma vaidosa querendo fazer plástica. O cirurgião examina:
– Hum... hum...
– Meu nariz vai ficar bom, doutor?
– Se a senhora se contenta em trocar uma picareta por um parafuso, fica! Agora, se ambiciona uma melhora significativa, é melhor desistir.
A paciente sai chorando. Eu, que vivo me irritando com vendedores, chego a uma conclusão: quero comprar o jeans que me oprime a barriga, o chocolate que não emagrece e o quadro colorido. Deliciar-me com as pequenas fantasias. Feitas as contas, delírios de honestidade podem transformar-se em pesadelos cruéis. Porque os pequenos enganos abrem as comportas dos pequenos sonhos e adoçam o dia a dia.
1) No texto, as situações são apresentadas por meio de diálogos entre o narrador e os interlocutores. Quais sentidos o emprego do diálogo confere ao texto?
2) Releia o texto, se necessário, e responda: você conseguiu pensar na atuação das personagens? Você imaginou os gestos, as expressões de rosto, o tom das falas, as roupas usadas pelo narrador e pelas demais pessoas envolvidas na trama?
Lista de comentários
1) Os diálogos trazem dinâmica ao texto, ao mesmo tempo que são o ingrediente cômico. As respostas sinceras referidas pelo autor são irônicas, sarcásticas ou inesperadas.
2) Dá para imaginar o rosto dos interlocutores e, às vezes, sua gestualidade, quando os vendedores discordam do cliente e o aconselham a tomar as melhores decisões. O cliente faria uma cara de surpresa.
A narrativa e a construção de atmosferas
A atividade aborda algumas das principais características dos textos narrativos, que são o uso de diálogos, a presença de personagens e a ação em sequência. No caso mostrado, trata-se de uma série de diálogos, cada um com sua própria pequena sequência.
Estes elementos permitem que o autor construa uma atmosfera, que no caso da referência é bem-humorada. O texto explora como seriam diferentes diálogos de compra durante os quais os vendedores fossem absolutamente sinceros.
Trata-se do gênero textual da crônica narrativa, um conto curto mesclado com observações cotidianas. O diferencial, no caso específico apresentado no exercício, é que as situações não são apenas fictícias, mas também inverossímeis. O autor brinca com a ideia de como seria se fossem ditas algumas coisas que nunca são ditas, seja por prática comercial, seja por polidez.
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