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FLÁVIO ADRIANO NANTES
A LAVOURA SAGRADA DE RADUAN NASSAR
São José do Rio Preto/ São Paulo 2018
FLÁVIO ADRIANO NANTES
A LAVOURA SAGRADA DE RADUAN NASSAR
Tese de doutorado apresentada ao IBILCE – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, da UNESP – Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Letras – Teoria e Estudos Literários. Financiadora: CAPES
Linha de Pesquisa: Perspectivas Teóricas no Estudo da Literatura Orientadora: Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro
São José do Rio Preto/ São Paulo 2018
Nantes, Flávio Adriano. A lavoura sagrada de Raduan Nassar / Flávio Adriano Nantes Nunes. -São José do Rio Preto, 2018 172 f. Orientador: Cláudia Maria Ceneviva Nigro Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas 1. Literatura - História e crítica. 2. Bíblia como literatura. 3. Religião e literatura. 4. Nassar, Raduan, 1935- Crítica e interpretação. 5 Bíblia - Critica, interpretação, etc. I. Nunes, Flávio Adriano Nantes. II. Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho". Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. III. Título. CDU – 8.09 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IBILCE UNESP - Câmpus de São José do Rio Preto
FLÁVIO ADRIANO NANTES
A LAVOURA SAGRADA DE RADUAN NASSAR
Tese de doutorado apresentada ao IBILCE – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, da UNESP – Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Letras – Teoria e Estudos Literários. Linha de Pesquisa: Perspectivas Teóricas no Estudo da Literatura Orientadora: Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro
Banca Examinadora Profa. Dra. Cláudia Maria Ceneviva Nigro UNESP – São José do Rio Preto Orientadora Profa. Dra. Elizabeth Maria Azevedo Bilange Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Profa. Dra. Maria Celeste Tommasello UNESP – São José do Rio Preto Profa. Dra. Michelle Rubiane da Rocha Laranja Instituto Federal de São Paulo Prof. Dr. Ulisses Infante UNESP – São José do Rio Preto
São José do Rio Preto/ São Paulo 19 de fevereiro 2018
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Pus o bucho pra fora, mas parece que o pessoal gostou do meu pronunciamento1 Esse governo agonizante está numa situação precaríssima [...] É muito triste o que está acontecendo com o Brasil2
Assim como Raduan Nassar, também sou veementemente contra a violência perpetrada à democracia e à soberania nacional, em 2016, que depôs a então presidenta da República Dilma Rouseff eleita pelo voto popular.
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Fragmento da fala de Raduan Nassar, em entrevista à Revista Cult, em junho de 2017, referindo-se ao pronunciamento por ocasião do Prêmio Camões concedido ao escritor brasileiro, no Museu Lasar Segall, em São Paulo. 2 Ainda parte da entrevista acima citada.
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Para minha mãe Amélia, que não aceita NENHUMA de minhas ideias, mas me apoia incondicionalmente em TUDO, de quem herdei o gesto silencioso-sagrado da leitura do texto bíblico.
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AGRADECIMENTOS
À Profa. Dra. Cláudia Nigro, com quem compartilhei durante os anos de doutorado não apenas a ciência literária, mas também a dos engendramentos humanos. Às professoras Diana Junkes, Elizabeth Bilange, Michelle Rubiane Laranja, Maria Celeste Tommasello, e ao professor Ulisses Infante, pela leitura empreendida do trabalho e pelos apontamentos sugeridos. Às colegas e ao colega da Pós-graduação Laís Midori, Mariana Guirado, Thadyanara Martinelli, Vivian Lemos, Yoanky Cordero, pelo convívio e alegria literária intensa. Às minhas amigas-professoras Lucilene Machado, Joanna Durand Zwarg, Maria Adélia Menegazzo, por todos esses anos partilhando afetos e literatura comigo. À Maria Alice Nantes, luz dos meus olhos, por ser quem é. À Vanessa Vieira, pelo amor sagrado que nos une. À professora-amiga Ana Maria Gomes, a grande dama dos Estudos de Gênero da UFMS, pela força, resiliência e dedicação aos que se achegam até ela. Ao Luiz Jr. Carvalho, por encher minha vida de cores, afetos e poesia. À Sueli Ignoti, por ter acompanhado à distância e na proximidade dos nossos afetos, a construção deste trabalho e os desejos nele implicados. À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior), pela concessão da bolsa de apoio financeiro.
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RESUMO
O presente trabalho tratará de uma pesquisa contrastiva entre o conjunto da obra de Raduan Nassar (Lavoura arcaica, Um copo de cólera, Menina a caminho, além dos contos “O velho” e “Monsenhores” dispostos na Obra Completa) e os escritos sagrados para judeus e cristãos – Bíblia. Elucidar-se-á a poética que perpassa e une os textos, bem como o entendimento de que os escritos sagrados também se estruturam como um texto literário, pois se assim não fosse esses escritos não poderiam ter influenciado uma vasta literatura ao redor do mundo. Para endossar esse pensamento, demonstraremos que a formação da cultura ocidental tem como paradigma, entre outros, os ideais do Judaísmo e do Cristianismo, logo, a literatura, por sua vez, não poderia estar fora deste modelo. Por uma série de questões, dentre elas, a divulgação do cristianismo e a maneira pela qual o homem criou a imagem de Deus e sua personalidade por intermédio de seu próprio caráter, é possível afirmar que o substrato judaico-cristão – registrado desde tempos primitivos na Bíblia – permanece ainda hoje na cultura. Nesse sentido, queremos pensar que esse substrato tem livre trânsito entre os constructos artísticos arquitetados ao redor do Ocidente, conforme esclarecem alguns pesquisadores (acerca do traço cultural na literatura): Eneida Maria de Souza, Silviano Santiago, Jorge Luiz Borges, Michel Schneider, Antoine Compagnon, entre tantos outros. Dito de outro modo, os escritos religiosos são parte integrante de um conjunto de eventos que contribuiu na construção da cultura e “afetou” sobremaneira a literatura, tal como se nos apresentam os textos do escritor brasileiro Raduan Nassar. PALAVRAS-CHAVE: Literatura bíblica; Literatura e religião; Literatura nassariana; Raduan Nassar.
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RESUMEN
El presente trabajo tratará de una investigación contrastiva entre el conjunto de la obra de Raduan Nassar (Lavoura arcaica, Um copo de cólera “Menina a caminho”, además de dos cuentos “O Velho” e “Monsenhores” dispuestos en la Obra Completa) y la sagrada escritura de judíos y cristianos – Bíblia. Será aclarada la poética que atraviesa y unen los textos, así como el entendimiento de que la sagrada escritura también se estructura como un texto literario, pues si no fuera así esa escritura no podría haber influenciado una multitud de obras al rededor del mundo. Para validar ese pensamiento, demostraremos que la formación de la cultura occidental tiene como paradigma, entre otros, los ideales del Judaísmo y del Cristianismo, luego, la literatura, por su parte, no podría estar fuera de ese modelo. Por muchas razones, entre ellas, la divulgación del Cristianismo y la manera por la cual el hombre ha creado la imagen de Dios y su personalidad por intermedio de su propio carácter, es posible decir que el sustrato judaico-cristiano – dispuesto desde los tiempos primitivos en la Bíblia – permanece hasta hoy en la cultura. En ese sentido, queremos pensar que ese sustrato tiene libre tránsito entre los constructos artísticos estructurados al rededor del Occidente, según aclaran algunos investigadores (acerca del rasgo cultural en la literatura): Eneida Maria de Souza, Silviano Santiago, Jorge Luiz Borges, Michel Schneider, Antoine Compagnon, entre muchos otros. Dicho de otro modo, los escritos religiosos son parte integrante de un conjunto de eventos que contribuyó para la construcción de la cultura y “afectó” sobremanera la literatura, tal como se nos presentan los textos del escritor brasileño Raduan Nassar. PALABRAS CLAVE: Literatura bíblica; Literatura y religión; Literatura nassariana; Raduan Nassar.
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SUMÁRIO PALAVRAS INICIAIS ........................................................................................................... 12 CAPÍTULO I ........................................................................................................................... 20 A CONDIÇÃO RELIGIOSA .................................................................................................. 20 1.1. A cultura judaico-cristã no contexto ocidental ................................................................. 21 1.2. A religião .......................................................................................................................... 34 1.3. O retorno da religião ........................................................................................................ 36 1.4. O homem: uma construção religiosa ................................................................................ 42 CAPÍTULO II ......................................................................................................................... 45 NO PRINCÍPIO ERA O VERBO-LITERÁRIO ..................................................................... 45 2.1. O verbo sagrado ............................................................................................................... 46 2.2. Sapiência bíblica vs. sapiência nassariana ........................................................................ 52 2.3. A poética mítica nassariana .............................................................................................. 61 2.4. O Evangelho segundo Raduan Nassar: a crucificação ..................................................... 73 2.5. Animal-bestializado: o homem em Raduan Nassar .......................................................... 86 2.6. Os silêncios nassarianos ................................................................................................... 91 CAPÍTULO III ........................................................................................................................ 98 AS PERSONAGENS SAGRADO-NASSARIANAS ............................................................. 98 3.1. Jesus Cristo e as personagens nassarianas: sujeitos da insurgência contra as estruturas social, cultural e cosmogônica................................................................................................. 99 3.2. Erotismo, corpo, palavra: a lavra das paixões ................................................................ 114 CAPÍTULO IV ...................................................................................................................... 132 A LAVOURA DE DEUSES ................................................................................................. 132 4.1. Deus: uma construção .................................................................................................... 133 4.2. Yahweh/Iohána: os deuses da contradição ..................................................................... 141 IN(CONCLUSÕES) .............................................................................................................. 147 Referências ............................................................................................................................ 150 ANEXOS............................................................................................................................... 157 Anexo I - Obra completa, de Raduan Nassar, e as vozes insurgentes que ecoam em seus textos ..................................................................................................................................... 158 Anexo II - Raduan Nassar vence o Camões 2016................................................................. 166 Anexos III - Transcrição da carta de Rayyane Tabet ............................................................ 172 Carta de Rayyane Tabet ........................................................................................................ 174
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Nosso universo moral é moldado por Rei Lear, Moby Dick e Madame Bovary tanto quanto pela Bíblia. Raramente absorvemos textos inteiros: imagens isoladas, frases e fragmentos vivem em nossas mentes em conjuntos incontáveis, fluidos, que agem e reagem uns sobre os outros. De maneira semelhante, a Bíblia não existe inteira em nossas mentes, mas nelas se encontra de forma fragmentária. Criamos nosso próprio “cânone dentro do cânone”, e deveríamos nos assegurar deliberadamente de que nossa seleção é uma coleção de textos benignos. O estudo histórico da Bíblia mostra que houve muitas visões rivais no antigo Israel, cada qual afirmando – muitas vezes de maneira agressiva – ser a versão oficial do jeovismo. Podemos ler a Bíblia hoje como um comentário profético ao nosso próprio mundo de ortodoxias furiosas; mas ela pode nos proporcionar a distância compassiva para compreender os perigos desse dogmatismo estridente e substituí-lo por um pluralismo purificado. (Karen Armstrong)
(... e é enxergando os utensílios, e mais o vestuário da família, que escuto vozes difusas perdidas naquele fosso, sem me surpreender contudo com a água transparente que ainda brota lá do fundo; e recuo em nossas fadigas, e recuo em tanta luta exausta, e vou puxando desse feixe de rotinas, um a um, os ossos sublimes do nosso código de conduta: o excesso proibido, o zelo uma exigência, e, condenado como vício, a prédica constante contra o desperdício, apontando sempre como ofensa grave ao trabalho; e reencontro a mensagem morna de cenhos e sobrolhos, e as nossas vergonhas mais escondidas nos traindo no rubor das faces, e a angústia ácida de um pito vindo a propósito, e uma disciplina às vezes descarnada, e também uma escola de meninos-artesões, defendendo de adquirir fora o que pudesse ser feito por nossas próprias mãos, e uma lei ainda mais rígida, dispondo que era lá mesmo na fazenda que devia ser amassado o nosso pão: nunca tivemos outro em nossa mesa que não fosse o pãode-casa, e era na hora de reparti-lo que concluíamos, três vez ao dia, o nosso ritual de austeridade, sendo que era também na mesa, mais que em qualquer outro lugar, onde fazíamos de olhos baixos nosso aprendizado da justiça.) (Raduan Nassar)
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PALAVRAS INICIAIS No princípio era o Verbo (João, 1, 1) [...] e meu verbo foi um princípio de mundo [...] (Raduan Nassar) A palavra, a palavra, a palavra: disto se trata o trabalho do escritor brasileiro Raduan Nassar. Um trabalho intenso para extrair delas uma poética carregada de silêncios, mas que nunca, nunca deixa de falar. É o próprio Raduan quem diz “Dei conta de repente de que gostava de palavras, de que queria mexer com palavras. Não só com a casca delas, mas com a gema também” (NASSAR, 1996, p. 24). Ele tem consciência de seu projeto estético, da lavoura árdua que é lidar com as palavras, darlhes vida, tirá-las de seu lugar ordinário, enchê-las de força e tensão. A obra não deixa de falar pelo fato de que, há quase quarenta anos, o escritor retirou-se da cena literária, mas a escritura continua cada dia mais atual, mais contundente, mais em consonância com uma série de eventos ocorridos nos últimos tempos ao redor do mundo. Raduan é um sujeito diplomático por excelência: conversa, por intermédio de sua prosa poética, com tantos povos, culturas, épocas e com o que de mais contemporâneo compõe a sociedade. É inegável o boom nassariano, o que implica dizer que o conjunto da obra do escritor volta a circular de forma estrondosa (se é que um dia deixou); além de Raduan Nassar ser um dos maiores escritores do século XX, há outros eventos que explicam esse fenômeno: o Prêmio Camões concedido ao escritor em 2016; seu repentino aparecimento em determinadas mídias para se opor contra o impeachment empreendido contra a ex presidente do Estado-nação, Dilma Rousseff; o apoio ao também ex presidente da República, Lula da Silva, pelas denúncias e a forma como elas estão encaminhadas; a doação da fazenda Lagoa do Sino ao Governo Federal, mais especificamente, à Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, para a criação do Campus de Buri; o livro Um copo de cólera esteve entre os finalistas do Man Booker Internacional Prize, também em 2016; o lançamento do conjunto de textos do escritor, Obra Completa, com o acréscimo de três escrituras inéditas no Brasil – os contos “O Velho” e “Monsenhores” e o ensaio político-filosófico “A corrente do esforço humano”;
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e o projeto Sósia produzido para a 32ª Bienal de São Paulo (2016), do artista Rayyane Tabet, em que a proposta é tratar acerca da migração libanesa no Brasil, utilizando a novela Um copo de cólera. Em maior ou menor grau, esses eventos, e outros que não conseguimos visualizar em traços mais nítidos, e tampouco na ordem como dispomos, constituem a realocação da obra do autor em evidência no cenário literário. Queremos acrescentar um motivo a mais para a circulação intensificada da obra de Nassar, e para isso, lanço mão do pensamento do filósofo Didi-Huberman: as artes e as suas coisas detêm a mesma função dos vaga-lumes – lançar lampejos sobre as densas trevas em que a humanidade se encontra. Se o homem deliberadamente empreende os constructos artísticos, ele torna-se uma espécie de vaga-lume; “os seres humanos”, escreve Didi-Huberman, são “seres luminescentes, dançantes, erráticos, intocáveis e resistentes enquanto tais – sob nosso olhar maravilhado” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 23). A leitura que proporemos para o conjunto da obra de Raduan Nassar ao longo desta tese nos fará entender que o escritor brasileiro é um ser-vaga-lume: “Para compreender os vaga-lumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 52). Nassar projeta, por intermédio de seus textos literários, uma luz sobre nós e então podemos ver. É possível caminhando nas sendas nassarianas compreender elementos do campo estético, mítico, filosófico, cultural, religioso, etc., no interior das sociedades. O que seria nesta tese o entendimento das esferas política, estética, mítica, filosófica, cultural, religiosa, etc.? O modo como esses elementos se relacionam e/ou se projetam no mundo mais empírico e como o homem os maneja. Raduan Nassar, em seus textos, desmonta a concepção de família tradicional-patriarcal carregada de elementos da religião, como a ideal, bem como o discurso (o amor, a união, o trabalho) que a mantém de pé. Traz à luz elementos que nos permitem entender o quanto somos violentos e beligerantes em mantermos intactas ideias que já não servem para o mundo da agoridade: um sistema onde apenas um tem direito à voz e um governante que oblitere a dos demais; uma sociedade que se vale de elementos religiosos para suprimir o direito de alguns em viver dignamente, por não compactuarem com uma ética e uma moral forjadas a partir da religião; um Estado totalitário que se organize para muito poucos e os que se insurjam são severamente punidos e em última instância têm seus corpos eliminados.
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Há, no entanto, aqueles que não veem os vaga-lumes, posicionam-se no lugar de onde esses lampejadores já se debandaram. Mas como os vaga-lumes desapareceram ou “redesapareceram”? É somente aos nossos olhos que eles “desaparecem pura e simplesmente”. Seria bem mais justo dizer que eles “se vão”, pura e simplesmente. Que eles “desaparecem” apenas na medida em que o espectador renuncia a segui-los. Eles desaparecem de sua vista porque o espectador fica no seu lugar que não é mais o melhor lugar para vêlos (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 47).
Raduan Nassar nos faz enxergar elementos que se ocultam na escuridão, é certo; por outro lado, seguindo as proposições de Didi-Huberman, há aqueles que se recusam a ver, preferem não entender, não fazer uma reflexão do lugar/tempo onde estão alocados. Certo também o é que os vaga-lumes não desapareceram. “Alguns estão bem perto de nós, eles nos roçam na escuridão; outros partiram para além do horizonte, tentando reformar em outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu desejo partilhado” (DIDIHUBERMAN, 2011, p. 160). Assim como eles, tampouco a obra de Raduan Nassar deixa de dizer, circular e nos projetar fagulhas de luz, indicando quem somos e onde estamos. Quem somos? Sujeitos da religião. Onde estamos? Num espaço cuja cultura foi forjada com elementos religiosos, conforme trataremos no primeiro capítulo deste trabalho, lançando mão das proposições acerca da constituição da cultura do Ocidente. E é possível visualizar, entre outros, os elementos que fazem parte da religião judaicocristã: o tempo que passa a ser pensado/vivenciado de outra maneira, como nos informam as palavras de Umberti Galimberti (2003); o humanismo, outro elemento que, segundo Edward Said (2007), estrutura-se com os ideais do Cristianismo. Para além dessas questões, queremos pensar, seguindo as proposições de Erich Auerbach (2009), Slavoj Žižek (2015) e Antonio Carlos Magalhães (2009), que há um legado deixado pela escritura do Judaísmo e do Cristianismo; legado que não pode ser deixado de lado para pensar a cultura, o humanismo, a cosmovisão e a literatura produzida neste espaço dito ocidental. Se os textos aos quais lançamos mãos para refletir e contrastar com o conjunto da obra de Raduan Nassar são os da religião, sobre esta proporemos uma discussão de como se estrutura, se organiza, o que ela significa para a humanidade em geral e para os que comungam da fé religiosa. É evidente que muitos precisam da religião para se sentir seguros em relação aos embates do mundo e há, por outra parte, os que não professam
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nenhuma religião, além dos ateus, mas que, de algum modo, ainda sem querer, estão ancorados à religião, seja por intermédio da cultura, da ética/moral, do imaginário social, etc. Se o homem situa-se no interior de uma cultura estruturada com elementos da religião, é possível afirmar que as produções artísticas, por exemplo, terão em seu interior elementos dessa cultura. Nesse sentido, a literatura, por mais cético que seja o escritor ou tenha pouco ou nenhum contato com a Bíblia, terá elementos dessa cultura forjada na/pela religião. A lavoura sagrada de Raduan Nassar estrutura-se na relação entre os livros que compõem o “Velho” e “Novo Testamento” – a Bíblia3, logo, a tomaremos também, enquanto objeto literário. Teóricos do calibre de Erich Auerbach (2009), Nortroph Frye (2004), John B. Gabel e Charles B. Wheeler (1993), entre outros, legislam a favor do autêntico material literário que compõe os textos bíblicos – sejam as narrativas ou os poemas; disto trataremos no capítulo II. A relação entre os textos bíblicos e nassarianos demonstra o trabalho poético empreendido pelo escritor brasileiro, estruturando-o a partir daqueles; isso pode ser observado, por exemplo, na estrutura e temática dos livros sapienciais e nos discursos empreendidos ora por Iohána, o patriarca da família, ora por Pedro, o primogênito. Esses textos, os sapienciais, tratam a mulher como um ser abjeto, um sujeito de segunda categoria: “A mulher é toda alvoroçada; é indisciplinada e sem conhecimento” (Provérbios, 9, 13), e na esteira desta escritura misógina, Nassar põe em evidência sujeitos ficcionalizados que ainda são vistos como seres abjetificados: a personagem feminina, de Um copo de cólera; a criança e a costureira, do conto “Menina a caminho”; a personagem feminina do conto “Hoje de madrugada”; as mulheres, de Lavoura arcaica. Raduan Nassar (estudioso do “Velho” e “Novo Testamento”, além do Alcorão) ao atualizar na obra temas e estruturas bíblicas, lança mão da mitologia judaico-cristã, subvertendo-a, desestabilizando-a, estruturando um texto outro, uma nova versão – a poética nassariana. Entre esses temas míticos estão: o filho pródigo, o êxodo/a terra prometida, o incesto.
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Nas referências figuram dois livros – Bíblia sagrada e A Bíblia da mulher que ora – e ambos se prestam à nossa pesquisa. Vale ressaltar que todas as citações dispostas no interior da tese são do primeiro livro, e o último serve como obra de referência – notas explicativas sobre os textos bíblicos.
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A crucificação de Cristo, outro tema revisitado por Nassar, perpassa pelos textos do escritor brasileiro, como pode ser observado em Lavoura arcaica, Um copo de cólera, no conto “Menina a caminho”. Em maior ou menor grau, determinadas personagens desses textos sofrem uma espécie de crucificação, a mesma perpetrada contra o filho de Deus, e as vítimas silenciadas por seus algozes resignam-se à crueldade, ao desrespeito à pessoa humana, à inumanidade. Para entender a temática da crucificação e melhor elucidá-la, pensaremos a construção da crueldade (Animalbestializado: o homem em Raduan Nassar) do/no homem e como esta se projeta no outro, na vítima. Ainda no capítulo II, no subtópico – Os silêncios nassarianos – elucidaremos o que seria um possível fracasso na/da linguagem; quando determinado evento não pode ser materializado por intermédio das palavras, o silêncio deve ser convocado. Talvez isso explique, em parte, os silêncios no interior do conjunto da obra de Raduan Nassar. O que pensar sobre a violência extrema empreendida contra Jesus Cristo e algumas personagens nassarianas, senão convocar os “gestos silenciosos” que Foucault (1978) nos esclarece? No capítulo III, As personagens sagrado-nassarianas, far-se-á (que essa mesóclise não deslegitime nosso trabalho) uma análise contrastiva entre as personagens nassarianas e Jesus Cristo, enquanto sujeitos da insurgência, isto é, aqueles que desafiam as normas estabelecidas, subvertem o que está posto para ser obrigatoriamente seguido. Os sujeitos que se insurgem, tanto no texto bíblico como nos de Raduan Nassar, o fazem como uma maneira de questionar/criticar o modus operandi social e cultural dos lugares onde estão. Para além das críticas e dos questionamentos perpetrados por essas personagens, há neles um desejo de que algo seja modificado, transformado, reelaborado. Cristo, e isso nos parece claro, é um subversor por excelência, atua de modo a escandalizar a sociedade de seu tempo; essa subversão, no entanto, está menos para chocar a sociedade de sua época que fazer justiça, reconhecer os degradados, dissidentes, propiciar a estes um espaço para se movimentarem nos espaços sociais. André, narrador de Lavoura arcaica, em conluio com Ana, sua irmã, subverte as regras paternas, desafia os preceitos ancestrais da família e relaciona-se com a irmã. Para os que desestabilizam a ordem vigente há um preço a ser pago: Ana e Jesus Cristo, com a própria vida; André, com a frustração de um amor interditado, impossível.
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Ainda no capítulo em questão trataremos de pensar o elemento erótico na Bíblia e na obra de Raduan Nassar, bem como a relação desse elemento em ambos os textos. Do texto sagrado lançaremos mão do livro O cântico dos cânticos, de autoria atribuída ao rei Salomão, e do escritor brasileiro, Lavoura arcaica, Um copo de cólera, os contos “Hoje de madrugada”, “Aí pelas três da tarde” e “O velho”. Os sujeitos do erotismo são Sulamita e o rei Salomão, na Bíblia; Ana e André, do Lavoura; personagens masculina e feminina d’Um copo; o bacharel e a personagem mulher, de “O velho”. Todos empreendem uma prática erótica: desejo, exaltação aos corpos, à beleza dos seres amados. O erotismo tem a ver com uma poética corpórea que está para além da junção sexual; é, conforme as palavras de Octavio Paz (1994), rito, cerimônia, ato poético. Raduan Nassar, como o autor de O cântico dos cânticos, empreende um lirismo do desejo, da união entre os corpos – a liturgia poético-sexual entre os sujeitos da paixão. Pelo fato de o erótico não estar apenas na conjunção dos corpos, ele pode ser observado em momentos onde não há a presença de um outro para o qual o desejo se inclina. No início de Lavoura arcaica, por exemplo, André, o narrador-personagem, empreende um discurso erótico carregado de poesia e imagens, utilizando seu próprio corpo. O mesmo acontece com a personagem masculina de Um copo de cólera; enquanto aguarda na cama a namorada traça um perfil erótico dos excelentes sobre seu corpo. Também a personagem de “Aí pelas três da tarde” erotiza seu corpo: o modo como seus movimentos são descritos, a retirada das roupas, do sapato – um conjunto de gestos que designam erotismo, poesia, sedução, ainda que não haja intenção/desejo sexual. Já no conto “Hoje de madrugada”, o narrador constrói um discurso que demonstra como a personagem feminina empreende um erotismo no intuito de seduzir o marido que não a deseja. Ainda que a mulher não alcance seu desejo, é inegável que seus gestos estejam compostos a partir do erótico. No capítulo IV – A lavoura de deuses – partiremos de uma concepção sobre Jeová Deus, demonstrando como atua em relação aos fiéis – os leais e os que traem sua confiança. Essa deidade, viva ou morta, continua conduzindo a humanidade em muitos aspectos; os homens crentes ou não estão sob uma cultura, uma ética, uma moral, dispostas nos escritos sagrados e ditadas pelo próprio Deus. O Deus judaico-cristão se apresenta de forma ambígua – é bastante contraditório em suas decisões, oscilando ora no amor incondicional que sente por seus filhos, ora no caráter vulcânico, vingativo, ciumento, conforme elucidam, entre outros, Terry Eagleton
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(2016) e Harold Bloom (2006). É interessante notar que esses mesmos rasgos do caráter de Jeová estendem-se à Iohána, o patriarca deus-pai de Lavoura arcaica. Elucidaremos também como o deus-pai nassariano está orquestrado à imagem e à semelhança de Deus; ambos ególatras, adoradores de seu próprio governo e da manutenção das regras impostas. Talvez o ponto de convergência mais categórico sobre a incoerência de Deus e Iohána tem a ver com a morte de Jesus Cristo e de Ana. O primeiro, o filho amado, é oferecido pelo pai como sacrifício para expiar o pecado da humanidade; já Ana é morta pelo “próprio patriarca, ferido nos seus preceitos” (NASSAR, 1989, p. 193), com o objetivo de destruir o demônio do incesto que invadira a casa da família. Os Anexos deste trabalho comporão de dois trabalhos críticos sobre a obra de Raduan Nassar, a saber: Obra completa, de Raduan Nassar, e as vozes insurgentes que ecoam em seus textos; Raduan Nassar vence o Camões 2016 e uma carta de Rayyane Tabet, que compõe o trabalho intitulado Sósia, escrita por ocasião da 32ª Bienal de Artes de São Paulo (2016), já mencionada nesta Introdução. Os dois primeiros trabalhos, de autoria de Flávio Adriano Nantes, foram publicados no site da Reitoria da UNESP – Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”, e posteriormente no periódico Unespciência. A resenha Obra completa, de Raduan Nassar, e as vozes insurgentes que ecoam em seus textos trata do lançamento, pela Companhia das Letras, da Obra completa do escritor onde, além dos textos já conhecidos e publicados, figuram outros três inéditos no Brasil: dois contos – “O velho” e “Monsenhores”, escritos na década de cinquenta – e um texto com uma perspectiva político-filosófica empreendido nos anos 1980. A Obra completa está estruturada para pensar como o escritor no conjunto da obra (o que podemos denominar como projeto estético) vai na contra mão de muitos valores compreendidos como verdade absoluta no imaginário social. Nota-se uma perspectiva de denúncia social e de combate às injustiças impostas a determinados sujeitos. Nassar anuncia que, desde tempos arcaicos aos dias hodiernos, há pessoas silenciadas, postas à margem, subjugadas, tratadas como abjetas, e um forte empreendimento para a manutenção do status quo para mantê-las nesse lugar de invisibilidade e silenciamento. No texto Raduan Nassar vence o Camões 2016 propomos uma análise mais estrutural sobre a obra do escritor brasileiro, apontando para a exiguidade de sua escritura, a forma enxuta, a palavra exata que dispensa a falácia ordinária. Há um fio poético que perpassa e liga toda a obra do escritor – o veto ao desejo e à paixão, os
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amores impossíveis, a demanda nunca alcançada, a insurgência das personagens, as mulheres como sujeitos abjetos e de segunda categoria, ademais de outras minorias sociais. Nota-se um trabalho profundo com as palavras – Raduan é uma espécie de artesão do verbo – empreende imagens, metáforas, fluxo de consciência, idas e vindas de um tempo recortado/fragmentado, mas que se une, conformando um sentido global ao texto. O efeito que essas palavras articuladas minuciosamente causam no leitor é de tensão, êxtase, espanto; ler esses textos é um convite para arder no verbo nassariano que nunca deixa de falar/queimar, assustar, provocar solavancos. O último item do Anexos está composto pela carta escrita por Rayyane Tabet, artista plástico libanês, onde o artista explica o contato que teve com Raduan Nassar, por intermédio do livro Um copo de cólera. Tabet procura com seu projeto artístico Sósia encontrar um ponto de encontro e por que não de explicações para a vida lacunar entre os migrantes libaneses no Brasil e os que ficaram no Líbano. Entre outros elementos, no trabalho artístico, Rayyane Tabet lê em árabe o capítulo “O esporro”, do livro Um cópo de cólera, traduzido para o árabe por Mamede Jarouche. Raduan, escritor-vaga-lume, lança, então, lampejos ao outro lado do mundo, dizendo acerca das sobrevivências, das nossas, do Líbano devastado, do mundo submerso nas trevas.
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CAPÍTULO I A CONDIÇÃO RELIGIOSA
Sabemos que os europeus, quanto à etnia, são também formados por grupos híbridos, como certas espigas de milho; como de resto foram híbridos todos os grupos humanos das chamadas “grandes civilizações” anteriores. Inclusive a cultura europeia, impregnada de judaísmo e cristianismo, não é mais que o desenvolvimento de uma complexa mistura de elementos provenientes de várias fontes, ou seja, ideias de outras geografias migraram para lá como a migração das andorinhas. (Raduan Nassar)
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1.1. A cultura judaico-cristã no contexto ocidental A função essencial do universo é uma espécie de máquina destinada a criar deuses. (Henri Bergson) “O tempo, o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis”, escreveu Raduan Nassar, em Lavoura arcaica (NASSAR, 1989, p. 184), elemento que não se pode conter com as mãos, nem precisar ou ter qualquer exatidão acerca. De igual modo se sente o leitor ou quem se propõe a estudar a escrituras sagradas judaico-cristãs, pois as datas e a autoria de tais textos são, senão totalmente, bastante imprecisas. No entanto, conforme se observa na grande poesia/narrativa bíblica há um Verbo, uma palavra ancestral, um Deus, que, desdobrando-se no tempo, fixaram-se na cultura e no imaginário do mundo ocidental, pois “As escrituras de Israel tornaram-se o Antigo Testamento da Cristandade e o dabar profético de Yahweh para seu povo tornou-se a palavra de Deus para a humanidade” (VOEGELIN, 2001, p. 412-413). A obscuridade de informações em relação aos textos sagrados não foi um impedimento para que tais escritos se incorporassem à cultura, ao imaginário e penetrasse nas produções engendradas pela humanidade. Umberto Galimberti (2003), remontando o histórico acerca do tempo, afirma que a história está dividida em duas partes – antes e depois de Cristo. Antes de Cristo, o tempo não tinha uma finalidade, senão simplesmente um fim, um ciclo natural que se encerrava com a morte – um sentido cíclico, natural: “Nada há a esperar, apenas o que deve retornar. Essa é a escanção do tempo antes de Cristo” (GALIMBERTI, 2003, p. 136). O tempo cíclico, com Deus feito homem, foi dilacerado. O tempo, então, passa a transcorrer e ao fim haverá uma finalidade: a de salvação, redenção, a chegada de algo. As palavras iniciais de Nassar acerca do tempo endossam a autonomia desse elemento que se transforma e, por conseguinte, passa a compor uma nova perspectiva para o homem ocidental e “O Ocidente foi seduzido por esse novo modelo de temporalidade [...]” (GALIMBERTI, 2003, p. 137). Ademais do tempo, o humanismo estrutura-se com base no Cristianismo e não em oposição ao mundo cristão – os conventos eram o lugar de guarda das bibliotecas. Em outras palavras, laboratório não apenas da cultura teológica, mas também,
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humanística e científica. Talvez não seja por acaso que a encarnação – Deus se tornar homem – seja um elemento primordial para pensar a fundação do humanismo, pois afinal o próprio Deus torna-se humano e empreende uma ética voltada para o outro, o semelhante, o irmão. Nesse sentido, “[...] não [há] descontinuidade entre humanismo e teologia medieval, mas estuário da teologia cristã para aquele seu aportar que é o homem e a sua dignidade” (GALIMBERTI, 2003, p. 146-147). Deste modo, à época do surgimento do humanismo, dizer-se homem era igual ou equivalente a dizer-se “cristão”. A ciência humanística é uma derivação teológica, logo, a própria ciência pode ser vista como uma prática de redenção, de salvação para o homem, de progresso para a humanidade e “Dessa ideia se alimentará toda cultura ocidental [...]” (GALIMBERTI, 2003, p. 148). Para Edward Said (2007), as humanidades são representadas por mãos humanas; o homem, em sentido genérico, traz à existência os produtos de seu trabalho. “O humanismo é a realização da forma pela vontade e ação humanas; não é nem um sistema nem uma força impessoal, como o mercado ou o inconsciente [...]” (SAID, 2007, p. 34-35). O fazer, por intermédio da ação do homem, está, portanto, mais para a acepção grega que a judaica4. Said ainda afirma que o livro Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, de Erich Auerbach, é a obra mais influente sobre o humanismo da segunda metade do século passado e dedica um capítulo de seu livro Humanismo e crítica democrática para tratar do tema. Nas proposições de Auerbach descritas por Said, o homem primitivo produz conhecimentos primitivos; estes são projeções do imaginário daquela sociedade, assim, Homero, por exemplo, produz um pensamento literário carregado de imagens fantásticas, deuses que transmitem medo, terror, culpa, etc. A era primitiva dos bárbaros é substituída pela dos heróis que, por sua vez, é suplantada pela era dos homens. Conforme acima explicitado, o homem é o artífice de seus objetos concretos e espirituais – ideias. O humanismo a cada época sofre alterações; o humanismo, então, tem um caráter perspectivado, pois se modifica de acordo com as transformações do homem.
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Aqui, entendemos que na concepção judaica o haja divino seja imperante, enquanto que para os gregos o fazer é sempre um trabalho estruturado por mãos humanas.
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Said, em análise ao texto de Auerbach; este, analisando o “Novo Testamento”, indica que a inserção do cotidiano, do ordinário contingencial enquanto elemento narrativo/literário acontece por primeira vez no interior daquela escritura.
Na literatura clássica [...] o estilo alto era usado para os nobres e os deuses, que podiam ser tratados de forma trágica, o estilo baixo era principalmente para os indivíduos cômicos e mundanos, talvez até para os idílicos, mas a ideia de uma vida humana cotidiana ou terrena como algo a ser representado num estilo apropriado a suas características não existe de modo geral antes do cristianismo (SAID, 2007, p 125).
As narrativas do Cristianismo fundam um humanismo mais abrangente, põem em evidência aqueles sujeitos abandonados, sujos, enfermos, caóticos, possuídos (loucura), mulheres abandonadas à própria sorte. Se a cultura ocidental é forjada a partir dos substratos judaico-cristãos, podemos afirmar que esses mesmos elementos estão presentes na formação do humanismo. Isso não significa, no entanto, que no Ocidente as vidas precárias tenham voz, saíram do anonimato e do silenciamento, mas tais vidas estão inseridas nos anais (escritura sagrada) do humanismo ocidental. A profundidade dos engendramentos humanos salta aos olhos nas narrativas da Bíblia – o homem e toda sua complexidade de pensamentos, sentimentos e ações estão ancorados aos fios narrativos e/ou poéticos do texto bíblico. Na literatura clássica os heróis [...] ‘acordam toda manhã como se fosse o primeiro dia de sua vida’, enquanto as figuras do Antigo Testamento, inclusive Deus, são carregadas com a implicação de que se estendem nas profundezas do tempo, espaço e consciência, portanto do caráter, requerendo assim do leitor um ato de atenção muito mais concentrado e intenso (SAID, 2007, p. 126-127).
Através dos textos sagrados passamos a visualizar um mundo comum, real, e identificável aos leitores. O Cristianismo solapa o equilíbrio clássico entre o alto e o baixo (mundo ideal/perfeito vs. mundo ordinário), “[...] a vida Jesus destrói a separação entre o sublime e o cotidiano” (SAID, 2007, p. 133) e nesses termos nasce um “novo” humanismo. Se o Cristianismo está para a cultura e esta para o texto literário, não nos parece incoerente afirmar que a literatura segue as pegadas do legado deixado pelas escrituras sagradas. O ateísmo e a laicidade crescentes não mudam essa concepção acerca da
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cultura e do humanismo que podem ser entendidos por uma perspectiva de origem hebraico-cristã. Umberto Galimberti, na esteira do pensamento de Gianni Baget Bozzo, faz um questionamento: “O cristianismo sobreviveria ao fim do Ocidente? [...] O Ocidente sobreviveria o fim do cristianismo?” (BOZZO apud GALIMBERTI, 2003, p 169). Por mais eloquente que seja o desejo de laicização da humanidade, o Cristianismo e o Ocidente sobrevivem e se mantêm ligados; um é depositário do outro; o primeiro sobrevive no segundo; este forjou-se a partir daquele. “Como se pode ver, o modo de pensar, porquanto laicizado, ainda é religioso [...]” (GALIMBERTI, 2003, p. 174). Se o Cristianismo acendeu no Ocidente a chama de tempo futuro – redenção, salvação pela ciência, utopia – não seria oportuno pensar que as grandes revoluções, os movimentos sociais, o desenvolvimento econômico e industrial, teriam suas bases nessa religião, por mais laicizadas e crescentemente ateias que estejam as sociedades ao redor do mundo? Deus, então, não se fez apenas homem, mas também, cultura, pensamento, religião, idiossincrasia, imaginário. Said e Galimberti são categóricos na afirmação de que o humanismo e a cultura ocidental ancoram-se às narrativas do “Novo Testamento”, isto é, ao Cristianismo. Queremos pensar, no entanto, na esteira do pensamento de Werner Jaeger (1961), que o elemento cristão, enquanto força criadora para a cultura e o humanismo, está carregado daquilo que se designa cultura helênica. Fazer uma análise dos traços judaico-cristãos no interior de uma dada cultura implica também estar tratando dos traços gregos. Se no elemento judaico-cristão contém substratos da cultura grega, no conjunto da obra de Raduan Nassar, por sua vez, os elementos helênicos estão subjacentes. O Cristianismo primitivo, segundo Jaeger, em seu Cristianismo primitivo e a paideia grega, não está restrito apenas ao território que compreendem o Mar Morto e a fronteira da Judeia, mas penetra o mundo que circunda esses territórios; esse espaço a ser conquistado pela nova religião é “[...] um mundo unificado e dominado pela civilização grega” (JAEGER, 1961, p. 16). Como esse mundo está em conformidade com a língua e a cultura gregas, para o desenvolvimento do processo de cristianização, apóstolos e missionários sem outra alternativa lançam mão tanto da língua como da cultura estrangeiras. Se o mundo é grego, os cristãos primitivos deveriam, para converter os pagãos à nova religião, efetuar um discurso – seja escrito ou oral – de acordo com a língua e a cultura gregas. O que
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trouxe uma série de implicações: “É claro que este processo de cristianização do mundo de língua grega dentro do Império Romano não foi de forma alguma unilateral, pois significou ao mesmo tempo a helenização da religião cristã” (JAEGER, 1961, p. 16). A língua grega, por si só, segundo Werner Jaeger, representa todo um conjunto de categorias de pensamento – metáforas, conotações de sentido, sutilezas de argumentação. O uso da língua, da cultura e da filosofia (e tudo que está implicado nisto) torna evidente que neste processo tanto os gregos como os cristãos se afetam mutuamente – os gregos tornam-se cristianizados e os cristãos, por sua vez, helenizados.
Assim, foi a missão cristã primitiva que obrigou os missionários ou apóstolos a empregar formas gregas de literaturas e discurso, ao dirigirem-se aos judeus helenizados, para quem se viraram primeiro e encontraram em todas as grandes cidades do mundo mediterrânicos. Isto tornou-se ainda mais necessário quando Paulo abordou os gentios e começou a fazer conversos entre eles. [...] Até o termo “conversão” emana de Platão, pois adoptar uma filosofia significava sobretudo uma mudança de vida (JAEGER, 1961, p. 23).
Outro dado interessante sobre a influência da cultura grega no Cristianismo, ainda de acordo com as proposições de Jaeger, tem a ver com a tradução das fontes, isto é, os primeiros documentos da religião cristã – narrativas orais ou escritas sobre os eventos, falas e ações de Jesus Cristo –; estes são traduzidos do original aramaico para o grego. Falar em tradução implica alocar ao documento traduzido não apenas a língua, mas também todo um conjunto de elementos subjacente à linguagem; um texto traduzido torna-se um texto dúbio, ambíguo, “contaminado”, por diferentes línguas/culturas/escritor-tradutor. Conforme já elucidado acima, o processo de influência entre o Cristianismo e a cultura grega é um fenômeno de mão dupla – o primeiro afetando o outro e vice-versa. Desta forma é possível falar de um cristianismo helenizado e de um mundo grego cristianizado.
A filosofia torna-se um conjunto de dogmas que, se bem que baseados numa certa concepção do mundo e da natureza, visam essencialmente orientar a vida humana pelos ensinamentos da filosofia e proporcionar-lhes uma segurança interior, que já não era possível encontrar no mundo exterior. Este tipo de filosofia cumpre, pois, a função religiosa (JAEGER, 1961, p. 60).
O mundo da religião imbricado ao mundo da filosofia dá-nos a impressão de que religião e filosofia confundem-se e que não nos é possível separar uma da outra.
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Estamos tratando da religião filosófica e da filosofia religiosa? Que diferença há entre o que se propõe a filosofia grega e a religião? Parece-nos que ambas se estreitam e têm, resguardadas as especificidades de cada uma, a mesma função – fazer funcionar de maneira adequada os engendramentos internos do homem, bem como os externos, onde cada um possa conviver de modo mais harmônico consigo mesmo e com o outro. Conforme tratamos de elucidar até agora é a religião cristã que dá as bases para a formação do pensamento humanístico e da cultura do mundo ocidental. Mas como foi e continua sendo possível a transmissão e a perpetuação dos valores cristãos nas mais diversas áreas do saber e da cultura e em várias partes do mundo? Erich Auerbach, num ensaio de bastante importância para pensarmos essa questão, Figura (1997), traz uma profunda reflexão acerca do termo [figura], discutindo a história semântica desde sua significação primitiva e nos indica, assim, uma resposta à questão proposta. Para o autor, a palavra figura ao longo dos séculos significou: forma plástica, selo impresso, estátua, imagem, efígie e figura simulacro. Esses lexemas estudados por Auerbach remetem-se à questão da representação do mundo.
O fato de que outrora havia uma paixão por imagens é atestado por... e também por Marco Varrão... que inseriu imagens de setecentas pessoas ilustres: não admitindo que as figuras desaparecessem ou que o tempo passado prevalecesse sobre homens [...] uma vez que não só deu aos retratados a imortalidade, mas também enviou-as a todos os lugares, para que se pudesse crer que aquelas pessoas estivessem em toda parte (PLÍNIO, O VELHO apud AUERBACH, 1997, p. 17).
Desta citação, queremos inferir que a imagem e por que não dizer a presença de Deus, seu filho Jesus, ademais de outras personagens e eventos bíblicos (figuras/efígies) perpetuaram-se e permaneceram em evidência por intermédio do texto sagrado, da palavra escrita, isto é, a Bíblia. Tomemos um exemplo do “Novo Testamento”, que talvez seja comum à sociedade: o mercado, o capitalismo (que naquele período, início do cristianismo, ainda não existia com esse nome), o materialismo frente aos valores espirituais, éticos e morais: “Depois, entrando no templo, começou a expulsar a todos os que nele vendiam e compravam/ dizendo-lhes: Está escrito: A minha casa será casa de oração, mas vós a transformastes em esconderijo de ladrões” (Lucas, 20, 45-46). Esses versículos aparecem apenas uma vez nos livros dos quatro Evangelhos escolhidos para a composição da Bíblia sagrada e não seria incongruente afirmar que as sociedades ao
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redor do mundo ainda se debatem em relação a esse conflito: materialidade vs. espiritualidade O excerto acima extraído do texto bíblico nos remete aOs vendilhões do templo, 2006, de Moacyr Scliar, que estrutura uma narrativa em três períodos distintos voltada para as questões do capitalismo, da ética, da moral, do homem corrompido pelos valores materiais. Dessa forma, temos uma figura (tema) ao molde auerbachiano que permanece viva não apenas no texto bíblico, mas também em outros estruturados a partir das escrituras sagradas. Outro exemplo extraído da Bíblia, para melhor exemplificar figura, está na epístola de Paulo escrita à igreja em Coríntios, texto intitulado “A ceia do Senhor”:
e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo que é entregue por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue, fazei isto todas as vezes que beberdes, em memória de mim (I Coríntios, 11, 24-25).
O pão e o vinho são figuras que representam, respectivamente, os referentes carne e sangue do próprio Cristo, filho de Deus: “Este é o meu corpo, isto é, a figura do meu corpo” (TERTULIANO apud AUERBACH, 1997, p. 29). A escritura por si só já é uma figura, pois preenche o lugar do referente. Preenche com vida/existência eventos do outrora que se alocam em algum momento posterior. Nesse sentido, a Bíblia toda é uma figura que preenche a existência dos fatos narrados e das personagens:
O preenchimento é constantemente designado como veritas [verdade] [...] e a figura, por sua vez, como umbra ou imago [sombra]: mas tanto sombra quanto verdade são abstratas apenas em referência ao significado, a princípio ocultado para ser revelado em seguida; são concretos em referência às coisas ou pessoas que aparecem como veículos de significação. Moisés não se torna menos histórico e real porque é umbra ou figura de Cristo; e Cristo, o preenchimento, não é uma ideia abstrata, mas uma realidade histórica (AUERBACH, 1997, p 31).
Preenchimento e figura são dependentes, aquele necessita desta para existir, em outras palavras, quando a figura existe o preenchimento é realizado. Um exemplo mais amplo ainda de figura e preenchimento pode ser observado no livro de Isaías (9, 6-7), em que o profeta séculos antes fez a prefiguração/profecia (umbra ou imago) de Cristo; no “Novo Testamento” houve a concretização da profecia (verita) e, depois do nascimento de Cristo, este sobrevive por figuras dispostas na Bíblia ou em outros textos/imagens forjados a partir dela.
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Figura, com aquelas concepções semânticas anteditas, pode servir para a estruturação do jogo entre modelo e “cópia”. Nesse sentido, o conjunto da obra de Raduan Nassar (Lavoura arcaica, Um copo de cólera, Menina a caminho, Safrinha) pode ser entendido a partir desse modelo proposto, empreendendo “cópias” que se relacionam com os escritos sagrados. A começar pelo nome das personagens centrais de Lavoura arcaica, passando pela temática e estrutura poética, o texto de Raduan Nassar demonstra uma profícua relação com a Bíblia. Ana, André, Pedro, o pai (que se posiciona como um deus) são também personagens dos textos bíblicos. O pai no texto literário exerce a mesma função de Deus no texto sagrado. Percebe-se ao longo de toda a narrativa um sistema patriarcal do qual ninguém pode fugir. É ele – o Pai – quem tem o poder de decidir, dizer, inferir, intervir na vida de todos os membros da família sem que nenhum seja consultado. Essa mesma personagem que zela e protege todos os membros da família é o autor do assassinato da própria filha Ana. Esse pai tem traços semelhantes ao Deus-Pai, justo vs. vingativo, bondoso vs. vulcânico, amoroso vs. ciumento, etc. Essa imagem de Deus migra do texto bíblico para o imaginário ocidental e deste para a escritura literária, por exemplo. Existe, então, uma necessidade de se “perceber que Deus como personagem não é determinado somente pelo contexto sociorreligioso, mas, em grande parte pela fantasia e perspicácia estética dos autores” (MAGALHÃES, 2009, p. 41). Ainda em relação à imagem convergente entre Iohána (deus de Raduan Nassar) e o Deus judaico-cristão, Jack Miles é categórico ao afirmar que,
Deus é a Rocha das Idades, a integridade em pessoa. E, no entanto, esse mesmo ser combina diversas personalidades. Mera unidade (caráter apenas) ou mera multiplicidade (personalidade apenas) seriam bem mais fáceis. Mas ele é ambas as coisas, e assim a imagem que do humano dele deriva exige ambas as coisas (MILES, 1997, p. 15),
assim, ambas as personagens, tanto do texto literário como do sagrado, apresentam os mesmos rasgos de caráter, contradições, ações e maneira de conduzir e manter o patriarcado, o poderio, os gestos despóticos. Voltando à questão da perpetuação dos elementos judaico-cristãos na cultura e imaginário ocidentais, queremos pensar por que tais elementos firmaram-se, perpetuaram-se e sobrevivem no hodierno. Para Antonio Magalhães (2009), o
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Cristianismo, como o Judaísmo e o Islamismo, é a religião do livro, isto é, está registrada em forma de cartas, parábolas, contos, alegorias, poesias, etc. Distintamente das religiões que mantêm seus ritos de maneira oralizada nos cultos, o Cristianismo tem suas bases, preceitos, leis, registrados, podendo ser lido e relido diversas vezes, prática que o perpetua. Não seria por acaso que as três maiores religiões do mundo mencionadas acima são as do livro.
Reconhecer o Cristianismo como a religião do livro é falar de suas origens, dos conflitos das interpretações em meio ao Judaísmo de sua época; é reconhecer certa apropriação da Bíblia hebraica como parte de uma Bíblia cristã, sabendo que tal apropriação foi, por muitas vezes, problemática relativização de outra religião do livro: o Judaísmo (MAGALHÃES, 2009, p. 11).
Como é possível que religiões distintas – Judaísmo e Cristianismo – e com crenças divergentes possam dar as bases para a formação do imaginário de determinada cultura? As proposições de Antonio Magalhães nos trazem alguns esclarecimentos ao mencionar a apropriação da Bíblia hebraica pela cristã; esta é estruturada a partir daquela, assim, essas religiões ainda que divergentes estão imbricadas, uma utilizou-se da outra para se constituir. O Cristianismo no grande afã de se perpetuar e conquistar novos povos (leia-se também culturas) para o reino dos céus põe em marcha uma empresa missionária para divulgar a nova religião e superar o Judaísmo. O Apóstolo Paulo é o grande entusiasta na divulgação dos propósitos messiânicos; isso pode ser observado em alguns livros da Bíblia, como na epístola de Paulo ao povo de Éfeso: “um só Senhor, uma só fé, um só batismo;/ um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, e por todos e em todos” (Efésios, 4, 5-6). Esse excerto é bastante esclarecedor para entendermos o objetivo que o Cristianismo tinha na unificação – unidade de Cristo – dos povos, das religiões, das culturas. Os judeus, povo eleito pelo próprio Deus, passariam a ser como todos os homens, os gentios, e a nova religião faria, então, uma irmandade gigantesca ao redor do mundo. Ainda na esteira do pensamento de Antonio Magalhães, o “Novo Testamento” foi estruturado a partir de um arranjo literário e teológico do “Velho Testamento”; neste “novo” figuram novas personagens, mitos, símbolos, contos, alegorias, parábolas, etc.
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São esses novos elementos que perpetuarão o avanço, não apenas do Cristianismo, mas também de traços judaicos, no imaginário de pessoas de diferentes culturas. Se os autores da Bíblia cristã lançam mão da hebraica para empreender seu projeto escritural, o que dizer da literatura produzida no Ocidente, enquanto uma construção que se relaciona com a cultura – neste trabalho vista por uma perspectiva judaico-cristã? Para Northrop Frye, “nenhum livro poderia ter uma influência tão pertinaz sem possuir, ele próprio, características de obra literária” (FRYE, 2004, p. 14). Temos, então, um livro religioso que nasce de outro e ambos os livros – “Novo” e “Velho Testamento” – influenciam sobremaneira a cultura, o pensamento e o imaginário ocidentais e estes elementos – judaico-cristãos –, por sua vez, influenciam/marcam a literatura produzida nesse contexto. Entender o texto literário como um constructo que se forma por intermédio de outros textos significa estar de acordo com a concepção de que o discurso ficcional não nasce de um vácuo ou vazio, mas antes se arquiteta com escrituras alheias num processo de empréstimos, em que o próprio e o alheio confundem-se a tal ponto de não haver uma delimitação fronteiriça exata entre o que pertence a “mim” e o que pertence ao “outro”. Antoine Compagnon (1996) afirma que o texto literário é constituído num constante processo de recortar/colar. Em tal processo o escritor se apossa da biblioteca mundial das letras e a faz sua. Jorge Luis Borges, nos ensaios Kafka y sus precursores (2005) e Cuando la ficción vive la ficción (1996), é categórico ao enfatizar a presença de outros escritores/textos no interior de uma escritura qualquer. Ademais, o mesmo Borges, em A memória de Shakespeare (2012), faz-nos entender que o escritor, de um modo geral, herda uma memória alheia; esta se imbrica com a do sujeito herdeiro e, no momento do desarquivar de memórias (escritura), já não se sabe a quem pertence as memórias materializadas em letras. Michel Schneider (1990) afirma ser o escritor um ladrão de palavras que as rouba de outrem para arquitetar “novos” textos. Na esteira dos autores citados, pensemos em dois de nossos compatriotas, Eneida Maria Souza (2002) e Silviano Santiago (1984); aquela diz que a literatura sempre se nutriu do termo intertextualidade; aquele endossa as palavras acima ao categorizar o escritor como um grileiro, o que grila textos alheios e os faz seus. Ainda de acordo com o pensamento de Compagnon, há um texto fundador por intermédio do qual todos os outros discursos foram/são originados, e o enunciador seria o próprio Deus: “Mas como foi lançado o primeiro livro, a partir de que energia ele se
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comunica com todos os outros? Esse é o mistério nas letras, a que a escritura de Deus trouxe algumas respostas” (COMPAGNON, 1996, p. 57). E ainda: “A primeira citação toma como postulado fundamental a exegese bíblica: a voz, a palavra divina, a verdade da origem foram transmitidas pelos profetas e estão contidas na escritura” (COMPAGNON, 1996, p. 122). A partir das duas citações de Antoine Compagnon, em que de certo modo coloca a voz divina como texto fundador dos tempos e da humanidade, podemos afirmar que os discursos posteriores foram forjados com base nessa voz primitiva. Em forma de mito a voz de Deus está disposta nos escritos sagrados judaico-cristãos: a Bíblia, e a prática escritural no Ocidente tem, portanto, seu nascedouro nesse discurso primevo, fundador.
É nesse contexto que a Bíblia passa a ser vista de forma cada vez mais expressiva como literatura mundial, de cuja riqueza autores de todos os matizes poderiam usufruir. Constata-se uma recepção tanto quantitativa, pelo número de escritos literários que a Bíblia provoca, quanto qualitativa, pela sua força estética em se adaptar a tantos contextos e gerações distintas (MAGALHÃES, 2009, p. 108).
Conforme se observa nas palavras de Antonio Magalhães, a Bíblia além de pertencer ao gênero literário serviu de base para arquitetar um sem número de projetos ficcionais, históricos e outros elementos artísticos. Pensemos na literatura medieval produzida no contexto europeu, depois nas literaturas de “descobrimento”; nestas constatam-se elementos do texto sagrado para elucidar os referentes do Novo Mundo. No Barroco europeu é inegável uma volta ao pensamento do mundo medieval religioso, além da forma como tal período estético consegue congregar elementos sagrados e pagãos num mesmo espaço: dobras compossíveis e incompossíveis, conforme esclarece Gilles Deleuze (2012). Também o Romantismo tem suas bases fundadas em um mundo espiritual, divino, sagrado. A literatura subsequente a esse período estético também se valeu da escritura bíblica e no hodierno há uma série de exemplos que endossa as palavras anteditas. Pensemos no conjunto da obra de Raduan Nassar, na escritura de Moacyr Scliar, José Saramago, Jorge de Lima, com seus versos religiosos, Marguerite Yourcenar que recupera personagens bíblicas, Milton Hatoum, com o conflito ancestral entre irmãos, e um grande etcétera. Se entendemos as proposições de Hugo Achugar (2006) de que o locus cultural enquadra o sujeito escritor de modo que qualquer escritura que emerja desse território estará intrinsecamente ligado a sua cultura, é conveniente aludir o fato de que a cultura
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ocidental e, por conseguinte, parte da escritura literária tiveram a Bíblia como fonte inspiradora. O texto sagrado com “Suas normas de comportamento influenciam decisivamente relações familiares, sociais e políticas. Podemos dizer, sem dúvida nenhuma, que a Bíblia é o livro por excelência da civilização ocidental [...]” (MAGALHÃES, 2009, p. 109). Aparentemente tem-se a impressão de que todos os ocidentais de forma geral são leitores da Bíblia e professam a fé cristã. Não é o caso. O que queremos pensar é que o mundo ocidental está forjado, entre outros elementos, com os ideais e nos moldes do cristianismo e que a literatura não se furta a tal enquadramento cultural/idiossincrático.
As narrativas bíblicas passaram a ser narrativas da cultura, os personagens bíblicos foram tingidos novamente com o imaginário dos povos, as tramas que encontramos nos relatos da Bíblia passaram a ser imagens das tramas das memórias da religiosidade popular (MAGALHÃES, 2009, p. 22).
O conteúdo bíblico se enquadrou de tal forma à cultura e ao imaginário ocidentais, que já nem pensamos que muitos elementos de nossas práticas culturais são provenientes dos textos sagrados e nos identificamos de tal modo aos heróis bíblicos que os vemos como modelo de integridade e honestidade a ser seguido, como é o caso de Jó, Abraão, Moisés e o próprio Cristo. Deste modo, reafirmamos nosso pensamento em relação ao fato de os elementos judaico-cristãos fazerem parte da cultura do Ocidente. Para Slavoj Žižek (2015), existe um imenso e autêntico legado cristão que não deve ser esquecido; por intermédio desta religião é possível estruturar um pensamento atual para a cultura e seus elementos, como a literatura e as coisas das artes em geral. Serviria ademais para combater uma série de equívocos empreendidos por diferentes sociedades ao redor do mundo: xenofobia, apartheid, racismo, preconceito, violência de qualquer tipo. O apóstolo Paulo é contundente ao afirmar “Desta forma não há judeu nem grego, não há servo nem livre, não há macho nem fêmea, pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas, 3, 28), dando lugar, sem qualquer exceção, a todos os sujeitos.
O cristianismo [...] é a religião da confissão. Como o próprio Freud destacou em Moisés e o monoteísmo, os cristãos estão prontos para confessar o crime primordial (na forma deslocada de assassinato não do Pai, mas de Cristo o filho de Deus) e, assim, revelar seu
33 impacto/peso traumático, fingindo que é possível fazer as pazes com ele (ŽIŽEK, 2015, p. 101).
Confessar o pecado/assassinato, assumir a culpa – um ato cristão – e redimir-se, buscar a reconciliação com próprio Deus. Reconciliar-se com a divindade, entre outros, seria a aceitação do outro, a outridade por excelência, isto é, que todos sejam um. A construção do humanismo segue, então, os preceitos ético-morais do Judaísmo e Cristianismo, no entanto, o decálogo ancestral que, por assim dizer, fundou o humanismo, não tem sido levado a termo e, por conseguinte, o Cristianismo, enquanto amor incondicional ao outro, tem fracassado miseravelmente. O conjunto da obra de Raduan Nassar representa essa falta: um pai devoto do amor, da família, da união, do trabalho, que luta contra o pecado, os excessos, as trevas, assassina a própria filha, aniquilando qualquer forma de reconciliação. A personagem feminina de Um copo de cólera é severamente agredida e humilhada pelo namorado que a coloca numa condição abjeta, de inferioridade, de sujeito de segunda categoria. Às mulheres-personagens de Menina a caminho restam-lhes o desprezo, o desafeto, o desamor, o silêncio. De acordo com Žižek (2015), os deuses pré-judaicos caracterizam-se pela antropomorfia; os deuses gregos, por exemplo, possuíam características muito próximas a dos humanos: trapaceavam, fornicavam, envolviam-se em paixões, invejavam, etc. A religião judaica foi a primeira a desantropomorfizar a divindade: o Deus santo, verdadeiro e incorruptível. O que se observa aqui é uma clara divisão na composição/caracterização das divindades pré e pós-judaicas. André, personagem central de Lavoura, pertence a essa religião pré-judaica porque compactua, através de suas ações que negam o decálogo, com a maneira de atuar desses deuses, corrompendo com os preceitos do pai; este se inclina à judaica que se quer santa, única e verdadeira.
[...] tenho dezessete anos e minha saúde é perfeita e sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para meu uso, a igreja que frequentarei de pés descalços e corpo desnudo, despido como vim ao mundo [...] me senti num momento profeta da minha própria história, não aquele que alça os olhos pro alto, antes o profeta que tomba o olhar com segurança sobre os frutos da terra, e eu pensei e disse sobre esta pedra me acontece de repente querer, e eu posso! [...] (NASSAR, 1989, 89-90).
De acordo com as palavras do narrador, ele pertence à outra religião, aquela que ele mesmo funda e atua de acordo com seus próprios desígnios; é profeta, logo, tem o
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direito de instituir e zelar pelos dogmas. Em outras palavras, despir-se de todas as leis professadas pela religião do pai Iohána, desestabilizar o veto em relação à paixão incestuosa por Ana, entronizar-se como fundador dessa nova igreja/religião. André torna-se o grande baluarte espiritual para seu próprio uso e, em termos psicanalíticos, o grande rival do pai, pois dentro da casa paterna, há dois senhores, duas religiões, deuses diferentes, paixões distintas: André quer vivenciar o amor com Ana; o pai, manter a suposta ordem familiar. Ainda em relação à religião fundada por André, a quais fiéis se dirigiria? Ao próprio fundador e a Ana. Para Žižek (2015), Cristo dirigia-se às pessoas de extratos sociais mais baixos – os proscritos da ordem social. Desta forma, a religião fundada por Cristo e a fundada por André são convergentes, pois a personagem de Lavoura é, conforme suas próprias palavras, “[...] o filho torto, a ovelha negra que ninguém confessa, o vagabundo irremediável da família [...]” (NASSAR, 1989, p. 120). Essa comunidade de André, como tantas outras, pode se equiparar a “[...] outras comunidades ‘excêntricas’ de proscritos [...] em que indivíduos estigmatizados se unem por um elo secreto de solidariedade” (ŽIŽEK, 2015, p. 123).
1.2. A religião Os temas que elegemos, o repertório de palavras que usamos, além de outros componentes da escrita, tudo isso passa pela triagem dos nossos afetos [e de nossa religião]. (Raduan Nassar) Sérgio Nazar David (2003), num estudo que trata acerca da psicanálise e da religião, aponta que, de acordo com as várias incursões de Freud sobre o tema, o sujeito sente, desde sempre, necessidade de proteção, de alguém que o proteja. Na infância há o pai protetor; na vida adulta o homem se sente só e desamparado e tem necessidade de um deus-pai para recuperar a proteção de outrora. Entretanto, essa proteção para Freud é uma ilusão, “[...] ele questiona o abrigo e o conforto que o homem vai buscar na religião e ainda acrescenta: onde esse homem julga ter sua morada mais segura [...] é justamente aí que invasões incômodas [...] vêm lhe turvar a paz”. (DAVID, 2003, p. 14).
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A religião não pode, então, salvar o sujeito da (e de sua) natureza – suas fragilidades, medos, angústias – e da finitude da vida. A família de Iohána, por exemplo, estruturada num paradigma religioso, não se salvou das tragédias que se abateram sobre ela. Conforme dito anteriormente, André e Iohána possuem suas respectivas religiões, no entanto, nenhum nem outro puderam contar com elas para por fim às suas angústias. As religiões fracassam, tal como o homem que as criou e as faz permanecer, não concedem a seus fiéis a proteção necessária, assim, ambas as personagens ficam desamparadas. André não recebe a graça divina para levar a termo o relacionamento incestuoso com Ana, sua irmã; o pai, o grande defensor da família, da união, do amparo ao próximo, assassina a filha. Freud talvez tenha razão, sobretudo na época em que refletia sobre tais questões, ao afirmar que a religião é uma ilusão, pois tem-se a impressão/fantasia de uma proteção e esta, no entanto, não acontece: “A crença nessa felicidade completa através do amparo religioso [...] é uma ilusão, uma ilusão infantil (como toda ilusão)” (DAVID, 2003, p. 36). Para Sérgio Nazar, na esteira do pensamento freudiano, o início ou criação da religião está relacionado às mudanças que aconteceram nas famílias humanas. Num tempo primitivo, os homens viviam em pequenas hordas governadas por um macho que se relacionava com todas as fêmeas. Um dia os filhos (os homens) da horda rebelaramse contra o pai, o assassinaram e comeram o cadáver; em seguida se arrependeram e criaram uma nova ordem social: interdição para os homens em relação às mulheres da tribo e a proibição do assassinato do substituto do pai. Aqui estão elaboradas pelos filhos as primeiras proibições, os primeiros dogmas e, por conseguinte, a fundação da religião. A religião instaura-se, então, como uma necessidade básica para a humanidade, que desde sempre sente necessidade de proteção, mas isso não significa, conforme já mencionamos, que haja tal proteção.
[...] se a nossa cultura se ergue sobre as doutrinas da religião, sem ela o caos não retornaria? Sem inibição ou temor, os homens em sua maioria não estariam mais inclinados a seguir seus impulsos associais e egoístas? Por exemplo, se a única razão para não matar é porque Deus castiga, então quem não acredita em Deus é um assassino em potêncial? Claro que não. Foi visando ao interesse em comum que a cultura formulou o Mandamento de que não se deve matar [...] Seria melhor admitir então que a origem das regras sociais é puramente humana (DAVID, 2003, p. 42).
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A religião está sem dúvida ligada à cultura, ou melhor, a cultura é forjada, entre outros, pelos substratos religiosos. Há na sociedade uma necessidade pela religião que está para além das necessidades protetivas e de amparo, mas também como forma de organização social, combatendo os impulsos mais ególatras do homem. No entanto, não há garantias para o homem em relação à proteção e à ordem estabelecida. Se assim não fosse, André, Iohána, Pedro e os demais membros da família não teriam ficado em pleno desamparo quando da revelação incestuosa entre os irmãos feita por Pedro. O pai, exímio guardião dos preceitos religiosos, infringe o mandamento ancestral de não matar, falhando como crente e comprovando que a religião também falha.
1.3. O retorno da religião Para onde estamos indo? Estamos indo sempre para casa (Raduan Nassar)5 Se Gianni Vattimo tem razão ao afirmar que na experiência religiosa está implicada a questão do êxodo, ou seja, o retorno ao lar, não seria arbitrário afirmar que o conjunto da obra de Raduan Nassar se ancora à estrutura judaico-cristã que “[...] é experimentada como um retorno” (VATTIMO, 2000, p. 91). O retorno da religião na perspectiva deste trabalho também está pensado na refacção que o escritor brasileiro faz dos textos bíblicos, colocando-os em circulação e dando a eles novas perspectivas. Para ilustrar a questão do retorno, tomemos determinadas personagens de diferentes textos do escritor: André – alocado numa família carregada de princípios religiosos – deverá sempre voltar para casa, pois (ainda que o narrador se recuse a compactuar com os dogmas/sermões paternos) está marcado de um algum modo pela religião do pai. A personagem em questão ao sair da fazenda/lar sabe que deverá retornar. Ao se perguntar (pergunta também dirigida a Pedro): “[...] ‘para onde estamos indo?’” (NASSAR, 1989, p. 35). Ao que (se) responde: “[...] ‘estamos indo sempre pra casa’” (NASSAR, 1989, p. 36) A própria divisão de Lavoura arcaica em dois capítulos está estruturada de acordo com o êxodo religioso: “A partida” e “O retorno”, indicando a dupla viagem de 5
A epígrafe em questão é um fragmento do 6º capítulo de Lavoura arcaica e, conforme se lê na primeira edição do romance, foi extraída de um texto de Novalis.
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André pelo mesmo caminho, que voltará à casa paterna para fazer uma nova aliança com o pai e consertar a cisão causada na família. No entanto, uma vez o elemento cindido é impossível uma restauração. A família jamais será a mesma depois do retorno de André. Em Um copo de cólera a personagem feminina ao final da narrativa volta para a casa do chacareiro de onde saíra por haver sido agredida. Tal como acontece com a personagem de Lavoura, a d’Um copo parece estar sempre voltando para casa, semelhante a um ritual aspiralado que se repete de tempos em tempos. “A chegada” é o título do primeiro e do último capítulo da novela, o que demonstra o constante retorno da personagem feminina à casa da personagem masculina.
E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço (NASSAR, 1992, p. 09). E quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse ainda aberto, pois a tarde, fronteiriça, já avançava com o escuro [...] e ali ao pé da escada notei também que a porta do terraço se encontrava escancarada, o que poderia parecer mais um sinal, redundante, quase ostensivo, de que ele estava à minha espera [...] (NASSAR, 1992, p. 83-84).
O primeiro e o segundo fragmentos apresentam respectivamente o início e o fim da novela e em ambos nota-se a chegada das personagens. No primeiro é a personagem masculina que chega; no segundo, a feminina. Durante quase todo o enredo da novela o foco narrativo fica a cargo do chacareiro, apenas no final a jovem jornalista assume a narração, dizendo acerca de sua chegada. Com a alternância do foco mais a fala da jovem, independentemente de como essas personagens se relacionam, fica evidente que a feminina está sempre tornando à casa. Em “Menina a caminho” a personagem central do conto atravessa quase toda a narrativa, percorrendo diversos caminhos de uma cidade interiorana até regressar ao seu lugar de origem, a casa. “Vindo de casa a menina caminha sem pressa, andando descalça no meio da rua [...]” (NASSAR, 1997, p. 09), e após a caminhada “Chega sem respiração em casa, branca, tremendo” (NASSAR, 1997, p. 44). No menor conto de Raduan Nassar, “Aí pelas três da tarde”, a personagem, um jornalista, como que abandona tudo à sua volta – sem se importar com os olhares alheios ou familiares – e regressa para casa, onde pode se libertar completamente do peso provocado pelas relações sociais. A casa é uma espécie de Terra Prometida. Aqui,
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o regresso significa libertação; é o sujeito se havendo com seu próprio desejo, abandonando a aridez da rotina e encontrando-se consigo mesmo no regresso ao lar. Nessa perspectiva, as personagens nassarianas precisam – como numa espécie de destino traçado – regressar às suas casas, lugar de encontro com o pai. É o espaço para onde todos devem se encaminhar para que possam ser protegidos. O filho de Deus, além de tornar à casa paterna, oferece morada aos que se sentem desamparados: “Na casa de meu Pai há muitas moradas [...] Vou preparar-vos lugar [...] para que onde eu estou estejais vós também” (São João, 14, 2-3). Essas personagens ao se encaminharem para casa reativam de certo modo o chamado religioso de volta à casa. Nesse sentido, o retorno pode ser entendido como:
[...] o restabelecimento presente de algo que acreditávamos ter esquecido definitivamente, a reativação de um vestígio adormecido, a reabertura de uma ferida, a reaparição de algo que fora removido, a revelação de que o que pensávamos ter sido uma Überwindung (superação, aquisição de veracidade e consequente descarte) [...] (VATTIMO, 2000, p 91).
A religião pode ser entendida, também, como um organismo vivo, tal como algumas plantas durante o inverno ou um vulcão adormecido por anos a fio, que, por mais oculta e soterrada que esteja, um dia retorna – se é que se retirou totalmente da cena cultural – com vivacidade e se instaura no interior das práticas sociais, convocando os cidadãos – sejam crentes ou não – a trilharem por suas sendas. Por que pessoas das mais diferentes estirpes aceitam o papel de andarilho nos caminhos propostos pela religião? Esta, sendo um organismo vivo e metamórfico assume as mais diversas formas, logo, caminhamos pelos ditames religiosos, muitas vezes sem saber que o são. A palavra Überwindung é importante para pensarmos a questão da laicidade no interior da cultura ocidental; havíamos pensado numa suposta superação religiosa que, na realidade, não houve. Ficou, pois, um “[...] vestígio indelével de sua doença” (VATTIMO, 2000, p. 91), do qual não podemos escapar pelo fato de estarmos submersos a uma cultura forjada a partir dos preceitos da religião. Para Gianni Vattimo, esse retorno à experiência religiosa (casa paterna) não se deu por mera coincidência ou de forma acidental; o retorno do qual estamos falando faz parte de uma das características em si da religião: vitalidade das igrejas, neopentecostalismo, explosão das religiões orientais ao redor do mundo. Segundo o
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filósofo, esse ressurgimento deu-se logo após a segunda grande guerra com seus assombros, medos e terrores. Outro ponto a ser pensado diz respeito ao vazio existencialista, pois o homem nas diversas sociedades ao redor do mundo experimenta o “[...] verdadeiro tédio que parece acompanhar inevitavelmente o consumismo” (VATTIMO, 2000, p. 93). Daí que os bens de consumo já não nos satisfazem; o poder de compra não passa de uma felicidade ilusória e fantasiosa. Não passamos de seres faltantes; há sempre algo que precisa ser preenchido e que inevitavelmente nos escapa.
No que diz respeito à filosofia e à reflexão explícita, o retorno do religioso parece acontecer segundo modalidades totalmente diferentes, ligadas a experiências teóricas que nos parecem bastante diferentes, e em contraste com a inspiração quase sempre “fundamentalista” da nova religiosidade inspirada nos medos apocalípticos difundidos em nossa sociedade (VATTIMO, 2000, p. 93).
De acordo com as proposições de Vattimo, podemos afirmar que o reaparecimento do religioso não está mais relacionado às ameaças bíblicas alastradas e enraizadas no homem; já não temos o medo grandioso do fogo do inferno, do purgatório, das dívidas para com o mundo espiritual, das contas que devemos saldar no pós vida. Os medos agora são de outra ordem. De todos modos, é impossível que o homem viva sem medo e nisso consiste, entre outros, o retorno da religião. O sujeito alocado no interior da cultura do medo e do pavor não poderia, ainda que o quisesse, produzir um Estado totalmente laico, pois a democracia com “[...] todos os seus conceitos jurídicos, éticos e políticos, ou seja, o de Estado soberano, do sujeito-cidadão, do espaço público e do espaço privado, etc., ainda comporta o religioso – na verdade, o que herdou de determinado tronco religioso (DERRIDA, 2000, p. 40). Há uma necessidade religiosa, um apelo à espiritualização das pessoas independente de crerem ou não no divino/sagrado. Esse apelo ao qual nos referimos talvez tenha mais a ver com o equilíbrio do ser, a paz existencial, a aceitação de si, do que com as implicações dogmático-religiosas. Ainda de acordo com o pensamento de Gianni Vattimo, a religião hodiernamente ressurge “[...] como uma exigência profunda e também filosoficamente plausível [...]” (VATTIMO, 2000, p. 100) pelo fato de que as verdades racionalistas do homem moderno já não se sustentam mais, ruíram. Pelas frestas onde a ciência, a
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tecnologia, a exatidão concreta das verdades falham, o conteúdo místico pode penetrar e congregar com a ciência que perdeu seu posto de senhora absoluta da verdade. Em conformidade com o pensamento de Vattimo, Eugenio Trías (2000) acredita que é em meio à crise que o substrato religioso emerge. Quando a sociedade não mais consegue sustentar as bases que a estruturam, tal substrato precisa ser invocado. Para Jacques Derrida (2000), o retorno da religião não se deu de forma fortuita, mas pensado e construído a partir das mais diversas modalidades tecnocientíficas. Incluem-se aqui as mais diferentes formas de divulgação/manutenção do religioso nos quatro cantos do planeta. As religiões para atrair multidões têm a seu favor uma parafernália tecnológica: a transmissão de milagres ao vivo pela televisão aos shows religiosos que atraem milhões, a internet, o transporte para deslocamento dos profissionais da fé, etc.
Ajustado de forma tão notável à escala e às evoluções da demografia mundial, afinado de forma tão perfeita com os poderes tecnocientíficos, econômicos e midiáticos de nosso tempo, o poder do testemunho de todos esses fenômenos encontra-se, assim, formidavelmente intensificado, ao mesmo tempo em que reunido no espaço digitalizado, pelo avião supersônico ou pelas antenas audiovisuais (DERRIDA, 2000, p. 38).
Testemunho – palavra de ordem – que deve ser esparsado com o intuito de convencer e atrair fiéis ou novos convertidos para as verdades propostas pela religião6; esta, conforme se observa, lança mão da tecnologia para se perpetuar e se difundir. Por que as expressões religiosas querem manter-se no cenário cultural e no imaginário do homem? Para que a tentativa de “salvar” a humanidade que mergulha num intenso ateísmo e persegue a todo custo a laicidade? Por que há esse intento atual de espiritualização das pessoas? O que há por trás das intenções das religiões? “Talvez”, afirma Derrida, “[...] exista outra coisa, é claro, e outros interesses (econômicos, político-militares, etc.) [...] por trás do que se apresenta sob no nome de religião” (DERRIDA, 2000, p. 39). Se a religião ficou recalcada ou se seus fragmentos nunca foram estirpados, ela ressurge, então, a partir de alguns vestígios nunca apagados na totalidade. O espectro da religião ressurge para reaver o que lhe pertenceu durante tantos séculos – a manutenção 6
O mote utilizado pelo Cristianismo primitivo ainda é o mesmo – converter as pessoas. Mas esta prática não é exclusividade apenas da religião cristã, mas também de outras. Nesses termos, parece-nos que as mais distintas religiões oferecem ao homem que a ela se converte uma espécie de verdade, de salvação, de consolo.
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do poder. O filósofo franco-argelino tem toda razão ao afirmar que “[...] existem formas inéditas de uma atroz ‘guerra das religiões’, esta, por sua vez, nem se apresenta como tal” (DERRIDA, 2000, p. 39). Um exemplo mais próximo ao nosso contexto em relação a essas “novas” guerras diz respeito à intervenção religiosa no âmbito da política, das leis, dos direitos humanos, da educação. O poder religioso hoje está declarado na bancada política brasileira e trabalha por sua manutenção. Diante disso, é evidente que os nossos engendramentos político-sociais estão abertamente atrelados à religião. Dito de modo mais categórico, o Estado-nação e as humanidades (enquanto ciência) não estão isentos e todos, sem exceção e mesmo os que não queiram, estão submersos na condição religiosa ou como sugere Aldo Gargani “[...] os objetos da tradição religiosa tornam-se figuras para uma perspectiva de interpretação da vida” (GARGANI, 2000, p. 129). Ante ao exposto, é impensável a constituição de um Estado laico “puro”, sem as intervenções do elemento religioso que sem dúvida está para além das questões transcendentais e espirituais. O elemento religioso e o não-religioso tecem nossa cultura, são como fios entrelaçados; não se separam sem que haja uma fratura, uma cisão. Não sabemos se é possível separar o que pertence à esfera do religioso e o que pertence à da razão. Uma está imbricada à outra. Religião e razão não são elementos díspares, mas convivem, amalgamam-se e a linha divisória entre as duas são tão tênues que nem sempre sabemos distinguir uma da outra: “[...] a religião e a razão têm a mesma fonte [...] desenvolvemse juntas, a partir de um recurso comum [...] [se] compromete a responder” (DERRIDA, 2000, p. 43) ao homem as questões que o inquietam e o fazem estar numa constante busca que oscila entre a razão e a religião – a ciência e a espiritualidade. Pensar essas questões e trazê-las para discussão no âmbito da crítica literária demonstra uma semelhança no que acontece entre fé/razão e verbo sagradoreligioso/verbo profano-laico. As palavras que compõem o texto literário – sejam elas provenientes do discurso religioso ou não – se justapõem, confundem-se. Não é possível separar aquele verbo primevo, ancestral – “No princípio era o Verbo” (São João, 1, 1) – daquele que surge após ele. O conjunto da obra de Nassar estrutura-se dessa forma: um verbo sagrado que sofre uma série de profanações; a estrutura estética nassariana confunde-se com o “Novo” e “Velho Testamento”. O tratamento dado às personagens nos dá impressão que os sujeitos bíblicos saltaram para os textos do escritor brasileiro.
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1.4. O homem: uma construção religiosa Pensar na religião como um elemento para além do transcendental (ou que ocupa apenas os espaços daquilo que entendemos como espiritualidade) significa visualizá-la no contexto concreto da vida ordinária, assim, por intermédio dos substratos religiosos, podemos entender a nós mesmos e o mundo circundante. “A religião, afinal, não será o discurso que descobre e revela um Outro Objeto, uma Outra entidade, mas um termo de comparação segundo o qual as situações, as figuras e os processos da vida são reinterpretados” (GARGANI, 2000, p. 129). A religião seria, nesses termos, um objeto-paradigma, um olhar sobre o comportamento humano. É possível entender o mundo, a cultura, a idiossincrasia, o lugar de onde se fala por meio dela. Esse entendimento pode trazer algumas respostas, acender um lume em meio à escuridão vasta e densa do interior do homem e por ela e nela encontrarmos a nós mesmos. Ela tem em si mesma uma promessa de libertação – o libertar-se de si mesmo, de uma situação, de um engendramento social. Algumas personagens bíblicas para obter liberdade abandonam o lugar ao qual pertencia, a sociabilidade entre os seus, o conforto do pertencimento. Abraão e Moisés, ambos patriarcas do Judaísmo, ao comando da voz divina, deixam suas terras, acreditando na esperança de liberdade e paz, mas antes, devem caminhar pelo deserto, na errância para obter o mérito divino – a Terra Prometida. Vicenzo Vitiello (2000), com base nas proposições de Hegel, afirma que o deserto é o lugar de ausência por excelência; ausência de amor, de valores, dos seus, do próprio Deus: é a mais absoluta solidão. São esses os sentimentos de André – ausência de Ana, seu maior desejo, do amor dela; sente o peso da solidão no quarto de pensão de uma cidade interiorana para onde se encaminha depois que sai da casa paterna. O casal do conto “Hoje de madrugada” se encontra também num deserto: a sequidão do silêncio entre ambos, a falta de amor, de afeto, a angustia da mulher em relação à rejeição que sofre do marido. A estrada que a personagem protagonista de “Menina a caminho” percorre também pode, aqui, ser entendida como um deserto – lugar de hostilidade, mesquinharias, violências, abandonos, segregação. Acima discutimos acerca das verdades que as ciências já não conseguem sustentar e, nesse momento, a religião manifesta-se na tentativa de dar respostas plausíveis ao homem sedento por elas. Nesses termos, a religião está estruturada para
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dar respostas categóricas; estas, no interior de uma comunidade religiosa, são incontestes, verdades absolutas que não permitem contra-argumentos: “[...] por pouco que se saiba a respeito da religião, sabe-se, pelo menos, que ela é sempre a resposta e a responsabilidade prescrita [...]” (DERRIDA, 2000, p. 49-50). Cabe-nos pensar em como essa verdade absoluta opera no interior da cultura; estaria apenas para os crentes ou também para os demais? Jacques Derrida parece acreditar que todos os homens a vivenciam e a esperienciam de alguma forma, conscientes ou não, pois “[...] no mundo, hoje, singulariza o uso da palavra ‘religião’ e a experiência do que se refere a essa palavra [...]” (DERRIDA, 2000, p. 51)7. Derrida (2000) num trabalho minucioso e extenso investiga a terminologia da palavra religião e dessa investigação podemos extrair dados que nos permitem afirmar acerca do intrínseco contato entre ela e o homem. O filósofo trata da terminologia do termo a partir de duas fontes etimológicas para a palavra latina religio: 1. relegere, legere (colher, juntar), acepção dada por Cícero; 2. religare, ligare (ligar, religar), por Lactâncio e Tertuliano. Na primeira é possível pensar em respeito, paciência, tolerância, escrúpulo; a segunda diz respeito ao dever, à obrigação, à dívida para com Deus. Em relação à primeira acepção semântica: se a religião junta, reúne, convoca o homem para uma vida social de respeito mútuo, é possível pensar na propiciação de um espaço harmônico, logo, a religião está no âmbito das políticas sociais. Temos, então, a política-sócio-religiosa, solicitando ao homem a construção de uma sociedade humanizada, justa, tolerante. Ademais de reunir, juntar, a religião conduz ainda o homem ao encontro com a divindade, o sagrado – o contato com Deus. Estando os homens reunidos num espírito harmônico podem, conforme a segunda acepção do termo, ligar-se, relacionar-se com Deus. Daí não haver a possibilidade de exclusão nem da ideia de Cícero nem a de Lactâncio e Tertuliano. A humanidade, nesse sentido, está, de algum modo, ligada à religião – seja na primeira acepção, na segunda ou, ainda, nas duas. 7
Um exemplo que endossa essa questão está nas palavras do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, numa entrevista concedida à IstoÉ. Perguntado sobre a compreensão da vida por intermédio do cinema, respondeu: “Antes de ‘Mulheres’, eu não havia jogado um telefone na parede (risos). A culpa que Julieta carrega, por ter fracassado como mãe, também ecoou em mim. Achei que já tinha superado a culpa pela religião católica que recebi, mas não cheguei lá ainda. Por mais que eu tenha uma abordagem laica, sem pensar em céu ou inferno, passei a pensar no que fiz de errado, com quem fiz e como poderia assumir a responsabilidade e remediar”. O discurso de Almodóvar retumba muito forte em nós, pois em todos os seus filmes em que há menção à igreja católica, ela sempre é severamente criticada. Parece-nos algo tão incoerente pensar que o espanhol ainda guarda o ranço da culpa proveniente da cultura judaico-cristã, mas o fato é que por mais laicizado que seja ou se sinta, ele está submerso à cultura religiosa que incute culpa ao homem. http://istoe.com.br/estou-aterrorizado-com-o-avanco-da-direita-nomundo/
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A religião encontra-se em todos os lugares, dita em uma vastidão de línguas, veiculada nos mais diferentes suportes de comunicação e com ela uma infinidade de elementos. Para Derrida (2000), temos a multiplicação dos dez mandamentos8, a mensagem de Deus dada no monte Horebe9. A sarça em chamas que não queimava o pé de Moisés, queima, no entanto, os homens afoitos em responder a pergunta de Deus: “[...] bradou Deus a ele no meio da sarça: Moisés! Moisés! Respondeu ele: Eis-me aqui./ Continuou Deus: Não te chegues para cá. Tiras as sandálias dos pés, pois o lugar em que estás é terra santa” (Êxodo, 3, 4-5). Essa voz-chamado continua ecoando nos ouvidos da humanidade, nos convocando, admoestando, exortando à uma vida baseada nos substratos judaico-cristãos, indicando nossa construção religiosa.
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Conforme consta das escrituras sagradas são dez os mandamentos ditos por Deus a Moisés, no entanto, é possível verificar no livro do Êxodo uma quantidade expressiva de leis escritas pelo patriarca, ademais de tantas exortações/admoestações feitas por são Paulo em suas epístolas e para além desses textos, se pensamos nas religiões abraâmicas, existe uma infinidade de dogmas/condutas/leis/normas; estes em constantes adaptações, revisões, crescimento. 9 Este lugar, Horebe, onde Moisés encontrou-se com a deidade significa o monte de Deus.
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CAPÍTULO II NO PRINCÍPIO ERA O VERBO-LITERÁRIO
[...] toda palavra sim é uma semente; entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a força do verbo em primeiro lugar; precede o uso das mãos, está no fundamento de toda prática, vinga e se expande, e perpetua, desde que seja justo. (Raduan Nassar)
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2.1. O verbo sagrado Na verdade, as ideias estéticas (criação, inspiração, unidade, autonomia, símbolo, epifania, e assim por diante) são em sua maioria fragmentos deslocados de teologia. Os signos que realizam o que significam são conhecidos como poesia na estética e como sacramentos na teologia. (Terry Eagleton) Entender o texto bíblico como uma construção literária que há muito circula nas sociedades ao redor do mundo significa estar de acordo que nele contém toda uma estrutura poética que o define como tal. Nessa estrutura poético-sagrada o nome do Deus de Israel e dos cristãos sobrevive o correr dos séculos e sua memória encontra-se resguardada, permanecendo em nosso imaginário e em um sem-número de constructos – artísticos ou não – produzido pelo homem nas sociedades ao redor do mundo. Para Umberto Galimberti (2003), a palavra poética arrebata o sujeito do esquecimento, não permite que a memória seja evanescida com o tempo. Mnemósine10 é a própria alma do poeta e a este compete a função de aniquilar o tempo, eternizar, por intermédio das palavras, os elementos alocados no interior do fazer poético. É deste modo que Homero, seus heróis, e os mitos gregos sobrevivem ao tempo. “[...] os deuses habitam o tempo que é o reino do imutável [...]” (GALIMBERTI, 2003, p. 57). O texto literário, então, se converte numa espécie de “monumento de pedra” afixado na sociedade para que dê notícias dos acontecimentos de outrora, conforme nos faz saber Canclini (2006)11. Burlando o tempo e montados às palavras dos poetas, os deuses dos gregos politeístas e, de igual modo, o Deus das religiões abraâmicas permanecem entre nós.
[...] é o mundo dos deuses a que retorna tudo o que deixou a luz do sol. Desse mundo a alma do poeta pode aproximar-se, entrar e voltar livremente por dádiva da memória [...] [e] a alma poética não distingue dois tempos, mas dois mundos: o mundo do ser presidido 10
Mnemósine, deusa grega da memória, mãe, com Zeus, das Musas inspiradoras. Isso não significa que os eventos sejam necessariamente do mundo empírico; a literatura, informa-nos o lugar-comum, pode ou não ter responsabilidade com o que se convencionou chamar realidade, logo, tais acontecimentos podem estar tanto no ficcional como no factual. Nesse sentido, não nos é importante saber se Jesus, filho do Deus judaico-cristão e suas ações, por exemplo, existiram de fato, senão sua existência no interior do texto bíblico-literário. 11
47 pela Verdade e o mundo do devir devorado pelo esquecimento (GALIMBERTI, 2003, p. 57).
O poeta possui a chave do território das deidades, pode circular livremente e subtrair eventos do esquecimento. Seriam os poetas e os deuses amigos fiéis? Se pensarmos que estes sobrevivem às custas daqueles, parece-nos que sim; ambos se dão as mãos nesse jogo de escrever/sobreviver. Sobrevive aquele que é tocado, resguardado pelo poema – a lembrança não olvidada, pois está salva nas palavras que a representam. Se ao poeta lhe cabe tocar o shofar da “verdade” em relação ao mundo e aos deuses, ele, ademais, de acordo com Galimberti (2003), deve estabelecer certa ordem na terra. Essa verdade mítica, da qual fala o artista, é transmitida pelo poema, entroniza os deuses que não são esquecidos e organiza os homens na terra – o mundo “ideal”. Sabese que há muito os poetas abandonaram a torre de marfim, mas não deixaram de ser os grandes transmissores de verdades que nos habitam. A perpetuidade e a manutenção do Deus de Israel no imaginário ocidental dão-se por intermédio da palavra literária, ou melhor, da literatura hebraica antiga que deu origem aos textos canônicos do Velho Testamento. Para exemplificar esse fenômeno, tomemos os estudos analíticos de Gabel e Wheeler (2003), onde afirmam que os conteúdos dos livros sapienciais têm um caráter atemporal e universalista, logo, em diferentes épocas e lugares essa escritura será relevante. Quantos já não se identificaram com as questões existencialistas de Jó dispostas no livro homônimo ao protagonista? O que faz com que os textos da Bíblia – incluindo aqui “Velho” e “Novo Testamento” – tenham um caráter literário? As mesmas estruturas composicionais de um texto literário podem ser utilizadas para o texto sagrado? Ler o discurso bíblico como literatura anularia o discurso sagrado-religioso? A longa pesquisa de Gabel e Wheeler (2003) nos dá algumas indicações para entendermos a Bíblia enquanto literatura: 1. um constructo da mente humana arquitetado com palavras articuladas para causar um determinado efeito no leitor; 2. os autores utilizam suas línguas nativas e as formas literárias disponíveis, buscando nesse processo que tais textos sejam entendidos como literatura12; 3. Um aglomerado de livros que compõe a Bíblia traz diversos temas. Esses três pontos de modo en passant nos 12
Nesse tópico há a questão que separam os crentes e os estudiosos da Bíblia: os primeiros acreditam ter sido escrita por inspiração divina; os outros se inclinam ao processo de construção/uso das palavras. A divergência aqui está na utilização do texto sagrado. Pode ser sagrado para alguns e um documento literário para outros, o que o define é objetivo que cada leitor faz.
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mostram que o texto sagrado não é diferente da literatura canônica produzida ao longo dos tempos e consagrada pela crítica.
Acreditamos que, em alguns aspectos fundamentais, a Bíblia não é diferente das obras de, digamos, Shakespeare, Emily Dickinson, Henry Fielding ou Ernest Hemingway. Se estivéssemos estudando as obras desses autores, este capítulo não seria necessário – pois quem pode imaginar precisar ler algo chamado “Shakespeare como literatura” ou “Emily Dickinson como literatura”? Supomos que a sua obra seja literatura, sem necessidade de demonstrá-lo. Mas, historicamente, muitas suposições diferentes têm sido aplicadas à Bíblia e ainda vigem em muitos círculos (GABEL; WHEELER, 2003, p. 17).
De igual modo que os escritores consagrados compõem seus textos a partir de um tema com artifícios literários, os do texto sagrado também o fazem: seleção dos processos literários, escolha e articulação das palavras, organização interna do discurso, indicando que a Bíblia pode, entre outros, ser lida como literatura. No entanto, um dado importante apontado na citação acima trata sobre o caráter bastante divergente da escritura sagrada que muitos vêm indicando no correr dos tempos; talvez isso se dê pelo fato de a Bíblia, ainda que a tomemos por literatura, possuir um discurso tendencioso, ou seja, tende a instruir ética, moral e religiosamente os seus leitores. Para Gabel e Wheeler (2003), as formas literárias utilizadas em um dado contexto entram em circulação na cultura e são absorvidas pelos artistas, assim, os escritores do texto bíblico lançam mão de determinadas formas comuns entre eles. É necessário ressaltar que a Bíblia é escrita por diversos autores em tempos e contextos culturais diferentes; desses escritores pouco ou nada sabemos e a autoria dos livros não são fidedignas; desta forma não é possível entender a Bíblia como uma unidade, mas antes uma miscelânea de diversos textos, com pouca ou sem relação entre si. Talvez seja apropriado falar em blocos temáticos, tais como os livros dos profetas, os sapienciais, os evangelhos, os atos, os epistolares, etc. “Não há uma forma literária singular [...] como não podia deixar de ser, vindo elas de tantos autores diferentes que escreveram em épocas tão distintas” (GABEL; WHEELER, 2003, p. 29-30). O caráter divergente da Bíblia (as distintas maneiras como os textos são recepcionados pelos leitores) e a “desconfiança” que ela traz nas mais diferentes áreas do conhecimento podem ser entendidas nas palavras de Karen Armstrong (2007), ao afirmar que as Escrituras – os textos sagrado-religiosos – são desabonadas quando utilizadas para fins que vão de encontro aos direitos humanos: a violência bélica
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praticada por alguns muçulmanos adeptos do Alcorão; a justificação do ódio/desprezo por alguns sujeitos que não se enquadram nos paradigmas bíblicos; a legitimação dos judeus em massacrar os palestinos pelo fato de se considerarem o povo eleito/escolhido pelo próprio Deus. É importante destacar que tais práticas empreendidas com bases supostamente extraídas das Escrituras não se deram apenas em tempos de outrora, mas também nos dias correntes. “Houve um revival das Escrituras que se intrometeu na vida pública. Oponentes secularistas da religião afirmam que as Escrituras geram violência, sectarismo e intolerância” (ARMSTRONG, 2007, p. 09). Esse renascimento dos elementos religiosos não significa que algum dia eles tenham sido postos de lado, antes, saem das esferas da religião e se infiltram também em espaços que deveriam ser privados/laicos. É o que acontece com Iohána em Lavoura arcaica; ele é o sujeito da religião por excelência, o que busca manter os preceitos ético-moral-religiosos entre os membros da família:
[...] o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara de nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado [...] (NASSAR, 1989, p. 56).
Esse mesmo pai que predica o excerto acima mata a própria filha de forma brutal para destruir o demônio do incesto que invade a casa e se legitima/é legitimado em seus atos por professar uma religião que causa violência e intolerância13. Estamos tratando aqui das Escrituras como texto sagrado, logo, não nos parece incoerente afirmar que Iohána também utiliza sua escritura pessoal – uma “[...] velha brochura, onde ele, numa caligrafia grande angulosa, dura, trazia textos compilados, o pai, ao ler, nunca perdia a solenidade [...]” (NASSAR, 1989, p. 63) – onde à cabeceira da mesa lia para a família durante as refeições. O patriarca toma para si a função de um antigo sacerdote/exegeta das narrativas bíblicas, que lê para os membros da comunidade, comunicando uma verdade aos fiéis, de acordo com a interpretação dada por ele. “A leitura [...] marca o início de um 13
A legitimação dá-se pelo fato de que Iohána, o assassino da filha, em nenhum momento na narrativa é arguido sobre seu gesto homicida e tampouco dá qualquer justificativa. Parece-nos que o pai nada tem a dizer acerca; o gesto, no entanto, diz por si só: em nome dos (meus) preceitos religiosos, eu mato.
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judaísmo clássico, uma religião interessada não meramente na recepção e salvaguarda da revelação, mas em sua constante reinterpretação” (ARMSTRONG, 2007, p. 39). Nesse sentido, a formação da religião e, por conseguinte, seus preceitos constituem-se a partir da leitura e da exegese de um sacerdote. Com a chegada dos tempos modernos, estes sob a luz do Iluminismo, outras leituras – não sem conflitos entre os intérpretes – são atribuídas às Escrituras. Nesse período, tudo deveria ser provado a partir de resultados empíricos, assim, a religião e o próprio Deus deveriam ser observados por uma perspectiva da ciência. A Bíblia não mais seria entendida como uma revelação divina, mas com a razão da ciência. “O filósofo René Descartes (1596-1650) sustentou que não havia necessidade de Escritura revelada, já que a razão nos fornecia ampla informação sobre Deus” (ARMSTRONG, 2007, p. 181), o que nos possibilita intuir que as Escrituras perdem, pelo menos em partes, o status de transcendental, revelação divina e entrem para o rol dos documentos da humanidade. As mudanças de ethos na cultura provocam uma série de rearranjos no interior de uma dada sociedade; daí o surgimento de novas formas de leitura e interpretação dos textos sagrados. Um exemplo dado por Karen Armstrong (2007) está em Spinoza que desenvolve no século XVII estudos sobre as origens históricas e os gêneros literários da Bíblia.
No monte Sinai, Deus havia se revelado num código de leis, não num conjunto de doutrinas, de modo que a religião judaica dizia respeito unicamente à ética e deixava a mente inteiramente livre. Antes de aceitar a autoridade da Bíblia, os judeus deviam se convencer racionalmente de suas pretensões (ARMSTRONG, 2007, p. 183-184).
De acordo com a crítica, o projeto escritural do que hoje denominamos “Velho Testamento” está voltado menos para os dogmas religiosos do que para uma organização ética, moral, social, isto é, trata-se de uma busca por organização social: estabelecer a convivência entre o povo, imputar regras, proteger a composição familiar, etc.
A Bíblia representou coisas diferentes para judeus e cristãos em diferentes estágios de sua história, e a exegese deles foi inevitavelmente colorida por suas circunstâncias particulares. Se uma interpretação concentrava-se somente no que o autor bíblico dizia, e ignorava o modo como gerações de judeus e cristãos a haviam compreendido, ela distorcia a significação da Bíblia (ARMSTRONG, 2007, p. 217).
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Entre judeus e cristãos, de acordo com o contexto e as necessidades, são feitas diferentes leituras das Escrituras e aplicações destas em suas vivências; deste modo, hoje, é possível entender o homem e suas práticas através dos séculos. Da transcendência à história da humanidade; da revelação de Moisés à vinda do próprio filho de Deus à terra; das guerras santas ao apocalipse – de fato a Bíblia é essa miscelânea de textos, culturas, idiossincrasias, autores e língua. O que temos em mãos é um conjunto de livros que sobrevive ao tempo e vem desdobrando-se até os nossos dias para nos dar pequenos lampejos da história da humanidade e sua experiência com o sagrado. Ainda de acordo com as proposições de Karen Armstrong (2007), no passado a leitura do texto bíblico era sempre acompanhada de um rito: orações, silêncio, jejuns, cantos, gestos cerimoniais e sem esse contexto litúrgico, a Bíblia seria apenas um livro informativo, sem trazer nenhuma experiência transcendental. A forma como Iohána conduz a leitura dos textos que – “[...] [eram] os ossos sublimes do nosso código de conduta [...]” (NASSAR, 1989, p. 77) – é muito parecida com a feita outrora:
E o pai à cabeceira fez a pausa de costume, curta, densa, para que medíssemos em silêncio a majestade rústica da sua postura: o peito de madeira debaixo de um algodão grosso e limpo, o pescoço sólido sustentando uma cabeça grave, e as mãos de dorso largo prendendo firmes a quina da mesa como se prendessem a barra de um púlpito; e aproximando depois o bico de luz que deixava um lastro de cobre mais intenso em sua testa, e abrindo com os dedos maciços a velha brochura, onde ele, numa caligrafia grande, angulosa, trazia textos compilados, o pai, ao ler, não perdia nunca a solenidade [...] (NASSAR, 1989, 62-63).
Iohána representa o antigo leitor das Escrituras; observa-se no fragmento do romance que um verdadeiro ritual é celebrado no momento da leitura de sua velha brochura, contendo uma série de admoestações, instruções – uma espécie de compêndio de conduta ético-moral que os membros da família deveriam seguir. A descrição do patriarca feita por André, que precede a leitura do texto sagradofamiliar nos faz associá-la à imagem do próprio Deus, conforme a visão oracular do profeta Isaías: “[...] eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as orlas de seu manto enchiam o templo” (Isaías, 6, 1)14, demonstrando como o Deus de Israel e o deus-pai posicionam-se, respectivamente, diante dos fiéis e da família. 14
O trono representa o poderio das personagens bíblica e nassariana, que ocupam lugar de destaque entre os membros da comunidade, mostram-se como autoridades e senhores de uma verdade absoluta. De
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2.2. Sapiência bíblica vs. sapiência nassariana Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para o meu caminho (Salmos 119, 105) Porque o Senhor dá a sabedoria, da sua boca vem o conhecimento e o entendimento./ Ele reserva a verdadeira sabedoria para os retos [...] (Provérbios, 2, 6-7) [...] fui num passo torto até a mesa trazendo dali outra garrafa, mas assim que esbocei entornar mais vinho foi a mão de meu pai que eu vi levantar-se no seu gesto “eu não bebo mais” ele disse grave, resoluto, estranhamente mudado, “e nem você deve beber mais, não vem deste vinho a sabedoria das lições do pai” [...] (Raduan Nassar) Existe um fio invisível e indissociável que relaciona as obras de Raduan Nassar, entre si e estas com as narrativas bíblicas, unindo esses textos tão divergentes, plurais e de tempos tão distantes, mas esse fio faz com que haja um encontro entre eles, seja semântico, estrutural, temático. Há momentos em Lavoura arcaica que temos a impressão de estarmos diante dos textos sapienciais da Bíblia, pelos conteúdos e maneira como as escrituras bíblica e nassariana estão estruturadas. Três livros da Bíblia são considerados sapienciais: Jó, Provérbios, Eclesiastes, ademais dos livros apócrifos: Eclesiástico (Siraque) e Sabedoria de Salomão. Todos são escrituras que tratam acerca da antiga sabedoria judaica. No entanto, isso não significa que textos com esse caráter não apareçam em outros momentos no “Velho Testamento” e também no “Novo”. Para nosso estudo utilizaremos os Provérbios e Eclesiastes por fazerem parte do cânone e serem os dois que mais se convergem ao conjunto da obra de Raduan Nassar. acordo com Chevalier (2012), o termo – trono – tem a função universal de suporte ou manifestação da grandeza humana e divina. O que nos permite afirmar que tanto uma deidade como um homem podem assentar-se para exercer seu governo.
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Para Gabel e Wheeler (2003), os livros sapienciais são considerados um “corpo estranho” no interior do conjunto de textos da Bíblia, pois, além de serem divergentes entre si, também o são em relação aos demais livros do “Velho Testamento”. Ambos os pesquisadores não atribuem a escrita de Provérbios e Eclesiastes ao rei Salomão, conforme a tradição costuma sustentar, mas a um grupo de escritores que existe no Israel antigo denominado sábios; estes são os conselheiros do rei e velam pela religião nacional e pela organização social. Esses livros contêm uma carga existencialista, elemento que os diverge, por exemplo, dos proféticos; aqueles não trazem nenhuma revelação advinda dos céus, mas possíveis respostas às indagações humanas que podem ser obtidas a partir da observação da própria natureza do homem. Os Provérbios, de forma generalizante, são instruções de conduta para que o homem não acarrete problemas para si. “O público-alvo do livro deveria extrair dele a compreensão de que colheria o que semeasse, tanto no plano moral [...] como no prático [...]” (GABEL; WHEELER, 2003, p 112). Observemos:
Filho meu, não te esqueças do meu ensino, e o teu coração guarde os meus mandamentos,/ pois eles aumentarão os teus dias, e te acrescentarão anos de vida e prosperidade./ Não te deixem o amor e a fidelidade; ata-os ao teu pescoço, e escreve-os na tábua do teu coração./ Então acharás graça e bom nome aos olhos de Deus e dos homens (Provérbios, 3, 1-4).
Nesses versos proverbiais, há uma personificação da sabedoria, convocando o leitor a guardar seus mandamentos, pois assim terá abundância de dias, prosperidade e felicidade. O fiel que guardar os sábios preceitos será bem visto aos olhos de Deus e aos dos demais homens. No texto bíblico introdutório aos Provérbios fica evidente que se trata de conteúdos instrutivos e quem segui-los será compensado com boa fortuna. Em outro exemplo da escrita sapiencial: “O vinho é escarnecedor, e a bebida forte alvoroçadora; todo aquele que por eles é desviado não é sábio” (Provérbios, 20, 1). Aqui há uma instrução categórica acerca do vinho e de outras bebidas fortes15 em que o leitor não deve se entregar ao vinho, evitando assim, a zombaria e a prática de uma vida leviana e sem seriedade. Quando o consumo de vinho figura em Lavoura, salta aos olhos a conexão entre o romance e o texto sagrado: 15
Por efeito de sugestão e pelo fato de a bebida forte estar na mesma categoria que o vinho, podemos intuir que se trata de um termo do campo semântico que se refere à bebida alcóolica.
54 [...] assim que esbocei entornar mais vinho foi a mão de meu pai que eu vi levantar-se no seu gesto “eu não bebo mais” ele disse grave, resoluto, estranhamente mudado, “e nem você deve beber mais, não vem deste vinho a sabedoria das lições do pai” ele disse com um súbito traço de cólera no cenho, desistindo na certa de quebrar com seu afeto o meu silêncio, e deixando claro que eu passaria dali pra frente por uma áspera descompostura, “não é o espírito deste vinho que vai reparar tanto estrago em nossa casa” ele disse cortante, “guarde esta garrafa, previna-se contra o deboche, estamos falando da família” [...] (NASSAR, 1989, p. 40).
Tanto no texto proverbial como no nassariano há uma explícita desaprovação em relação ao consumo exacerbado de vinho, pois pode trazer prejuízos aos que o consomem. Deboche e escárnio podem advir dessa bebida, aniquilando a seriedade dos homens e a capacidade de discernimento para a resolução de uma demanda. O antigo sábio de Israel e Pedro16, personagem de Lavoura arcaica, buscam admoestar respectivamente o povo e André em relação as suas práticas sociais e individuais para, deste modo, não acarretarem problemas para si mesmos. Já mencionamos acima acerca da incongruência entre os livros sapienciais – Provérbios e Eclesiastes; primeiro trata de convencer o leitor de que há uma recompensa para os homens de boa conduta, aqueles que fazem uso da sabedoria e não se corrompem. Já o segundo demonstra o quanto a escritura proverbial pode estar equivocada, pois um homem reto, íntegro e temente a Deus poderá, a qualquer momento, ser abalado por uma tragédia, um conflito, uma desestabilidade na rotina ordinária da vida. Segundo Gabel e Wheeler (2003), Jó alega que não há relação entre o bem e o mal praticado pelo homem e o que acontece em sua vida. A personagem bíblica em questão não obtém uma resposta categórica dos amigos e nem do próprio Deus para todas as intempéries sofridas. Daí “O autor do Eclesiastes parte do ponto em que Jó ficou e leva a discussão às ultimas consequências” (GABEL; WHEELER, 2003, p. 113). Nesse sentido, podemos afirmar que não há certezas; a única que existe tem a ver com a ordinariedade natural, isto é, os elementos da natureza continuarão imutáveis – o passar dos dias –, afetando o homem e a morte sempre sucederá à vida.
Porque o que acontece aos filhos dos homens, isso mesmo também acontece aos animais; a mesma coisa lhe acontece. Como morre um, assim morre o outro. Todos têm o mesmo fôlego, e nenhuma 16
Nesse excerto Pedro, o filho primogênito, já usa os sermões predicados pelo pai, demonstrando que será o sucessor do patriarca para dar continuidade a essa lavoura cíclica familiar; tal qual Pedro, o discípulo de Cristo, que recebeu a incumbência de tomar conta da igreja na terra.
55 vantagem têm os homens sobre os animais. Tudo é vaidade (Eclesiastes, 19, 1).
O pensamento pessimista do texto bíblico demostra o fim inevitável do homem e não há nada que se possa fazer contra isso; tais ideias vão de encontro com os ensinamentos proverbiais, indicando ser vão qualquer gesto que a humanidade possa empreender. Assim: “O Eclesiastes e os Provérbios têm diferenças tão radicais entre si que mal podem ser considerados advindos da mesma escola de pensamento” (GABEL; WHEELER, 2003, p. 114). Essa divergência entre um texto e outro pode nos ajudar a entender a relação divergente/conflituosa entre André e Iohána; este seria uma espécie de autor do Provérbios, aquele do Eclesiastes, ambos, cada um a seu modo, mantêm um discurso diferente. O desejo do pai é um – a manutenção da rígida estrutura familiar; o de André, outro – deseja “um lugar na família”, onde possa lavrar o corpo de Ana. Como na Parábola do faminto extraída por Nassar d’As mil e uma noites, ambos são famintos – pai e filho – mas cada um com sua fome/seu desejo/seu discurso. As falas de André e Iohána demonstram tal divergência:
_ Eu não disse o contrário, acontece que muitos trabalham, gemem o tempo todo, esgotam suas forças, fazem tudo que é possível, mas não conseguem apaziguar a fome [...] Eu também tenho uma história, pai, é também a história de um faminto, que mourejava de sol a sol sem nunca conseguir aplacar sua fome, e que de tanto se contorcer acabou por dobrar sobre si mesmo alcançando com os dentes as pontas dos próprios pés; sobrevivendo à custa de tantas chagas, ele só podia odiar o mundo. [...] _ Você está enfermo, meu filho, uns poucos dias de trabalho ao lado de teus irmãos hão de quebrar o orgulho da tua palavra, te devolvendo depressa a saúde de que você precisa (NASSAR, 1989, p. 159-161).
Iohána é um entusiasta, acredita na força do trabalho que funciona como uma espécie de prumo para equilibrar o temperamento de todos os membros familiares. Sob os sermões paternos, a vigilância constante por parte do patriarca e do primogênito Pedro, todo e qualquer problema seria solucionado. André, por outra parte, não acredita nem aceita uma suposta “cura” ou que sua fome seja aplacada com a ajuda da família, pois nesse diálogo com o pai, o herói se refere (de forma dissimulada) ao amor que sente por Ana, e sabe que essa relação incestuosa não lhe é possível. Para Gabel e Wheeler (2003), a principal estrutura dos livros sapienciais é, em geral, uma série de proposições independentes, divididas em duas partes com o artifício
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do paralelismo, recurso utilizado na antiga produção poética hebraica. A forma paralela dessa poesia como unidade dúplice apresenta um determinado tema na primeira parte e na segunda é reafirmado com outras palavras – paralelismo sinônimo: “Duas espécies de peso são abomináveis ao Senhor, e balanças enganosas não são boas” (Provérbios, 20, 23). Esse versículo pode esclarecer o modo como se apresenta a poesia hebraica. No primeiro, a parte a (“Duas espécies de peso são abomináveis ao Senhor”) trata do peso de uma balança, elemento voltado à aplicação da justiça que deve ser igual para todos; a segunda parte, b, repete semanticamente o mesmo conteúdo de a (“balanças enganosas não são boas”), mas com palavras diferentes. Um dado importante, seguindo ainda o pensamento de Gabel e Wheeler (2003), diz respeito ao conteúdo que os livros sapienciais nos dão acerca da cultura judaica. Essa escritura é feita para indivíduos bastante parecidos com os de hoje, que buscam entender e fazer parte da sociedade na qual estão alocados:
Os tópicos dos quais os escritores sapienciais trataram têm caráter intemporal e universal; por conseguinte, os seus livros serão, em todas as épocas e em toda parte, relevantes. O problema do sofrimento pode nunca vir a ser resolvido, mas a humanidade tem de manter para sempre a angustiosa tentativa de resolvê-lo [...] (GABEL; WHEELER, 2003, p. 120).
Isso implica afirmar que muitos povos de diferentes culturas estão ancorados nas escrituras judaicas, pois a humanidade inteira se debate na busca por uma vida equilibrada, harmoniosa e fraterna. A leitura dos livros sapienciais pode indicar alguns caminhos já percorridos pelos homens e que ainda hoje percorrem na busca de uma vida mais amena, menos vazia, mais harmônica, menos conflituosa. Pensar na cultura e na literatura como elementos que de algum modo estão relacionados significa entender que “A literatura sapiencial bíblica é um dos grandes repositórios culturais do mundo [...]” (GABEL; WHEELER, 2003, p. 120), o que endossa nosso pensamento sobre a literatura estar para a cultura e esta, por sua vez, haver sido forjada, entre outros, nos escritos judaico-cristãos. Dito de outro modo, a literatura que não pode escapar à cultura está carregada de elementos religiosos do mundo judaico cristão. A prática do equilíbrio no mundo perpassa a linguagem; é por intermédio dela que as relações são estabelecidas na sociedade entre os homens; estas, dependendo da maneira como a língua é modalizada, podem ser harmônicas ou nocivas: “O homem se
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alegra em dar resposta adequada, e a palavra a seu tempo quão boa é!” (Provérbios, 15, 23). E ainda: “Favo de mel são as palavras agradáveis, doçura para a alma e saúde para os ossos” (Provérbios, 16, 24). Ambos os textos proverbiais demonstram o quanto a linguagem, a comunicação entre os indivíduos, deve ser adequada para que haja harmonia. Por outra parte, “Os lábios do tolo entram em contenda, e a sua boca clama por açoites./ A boca do tolo é a sua própria destruição, e os lábios um laço para a sua alma” (Provérbios, 18, 6-7), indicando essa dupla face da linguagem; em determinados momentos pode ser sã, benigna, santificada, em outros, pode ser rude, causando conflitos, dores, desarmonia. Há no Provérbios inúmeras referências em relação ao uso da língua e como sua má aplicação pode ser destrutiva para o homem que a profere e para os que dão ouvidos a ela. O autor das escrituras sapienciais convoca os leitores a fazer um uso adequado da comunicação humana, tal como faz Iohána com os membros da família.
_ Você sempre teve aqui um teto, uma cama arrumada, roupa limpa e passada, a mesa e o alimento, proteção e muito afeto. Nada te faltava. Por tudo isso, ponha de lado essas histórias de famintos, que nenhuma delas agora vem a proposito, tornando muito estranho tudo o que você fala. Faça um esforço, meu filho, seja mais claro, não dissimule, não esconda nada do teu pai, meu coração está apertado também de ver tanta confusão na tua cabeça. Para que as pessoas se entendam, é preciso que ponham ordem em suas ideias. Palavra com palavra, meu filho (NASSAR, 1989, p. 160).
Figura em Lavoura arcaica, como no Provérbios, várias passagens que tratam sobre o uso da língua; o patriarca, na esteira destes preceitos, é o grande sábio que instrui e vela pelo bom uso das palavras. No excerto acima, o herói do romance ao voltar para a fazenda sob a tutela de Pedro, no momento em que se encontra com o pai, deve dar explicações por ter saído de casa sem nenhum motivo aparente. Iohána exige que o filho seja claro com as palavras, coloque ordem nos pensamentos e, por conseguinte, na linguagem para que através dela a verdade apareça; esta, no entanto, não se presentifica, pois André dissimula seus sentimentos. Para James G. Williams (1997), a escritura eclesiástica ataca a sabedoria proverbial, questionando-a, o que supõe uma espécie de sabedoria da contraordem, pois tende “[...] a um questionamento crítico daquilo que os antigos sábios ensinavam” (WILLIAMS, 1997, p. 287), tal como faz André, se insurgindo contra os preceitos paternos e, como Lula, o irmão mais novo, que também tem planos de deixar a casa:
58 _ Vou sair de casa, André, amanhã, no meio da tua festa, mas isso eu só estou contando pra você. _ Fale baixo, Lula. _ Não aguento mais esta prisão, não aguento mais os sermões do pai, nem o trabalho que me dão, e nem a vigilância do Pedro em cima do que faço, quero ser dono dos meus próprios passos; não nasci pra viver aqui, sinto nojo dos nossos rebanhos, não gosto de trabalhar na terra, nem nos dias de sol, menos ainda nos dias de chuva, não aguento mais a vida parada desta fazenda imunda... (NASSAR, 1989, p. 179-180).
André é o precursor da contra-lei, o combatente das proposições proverbiais paternas e, sem que soubesse, havia dissipado-a no interior da família; o próximo a se rebelar contra as regras estabelecidas seria Lula. Os sermões do pai, a vigilância constante do patriarca e de Pedro, as regras que devem ser seguidas, são pesados demais e acabam por criar esse sentimento de insurgência contra os preceitos que começam no avô, depois Iohána e, na sequência, Pedro. Há nessa sequência uma exaltação ao patriarcado, pois conforme se observa o que governa nesse sistema é sempre um homem, isto é, a voz de comando é sempre do sujeito masculino. Na sabedoria proverbial, a mulher não tem voz, não pode se fazer ouvir, é silenciada pelo homem, além de representar uma ameaça que pode desestabilizar toda uma sociedade. É parte da sabedoria o desprezo à mulher estrangeira, à adúltera, ou àquela que deixou o companheiro e tem fala sedutora. “Ela simboliza o tipo mais destrutivo de loucura” (WILLIAMS, 1997, p. 285), e com sua linguagem insensata pode levar o homem ao absoluto desastre. Aparece no Provérbios um número considerável de conselhos que tratam sobre a mulher, enquanto sujeito abjeto: “Porque estes mandamentos são lâmpada [...] para te guardarem da mulher imoral, e da sedução da língua da adúltera. Não cobices no teu coração a sua formosura [...]” (Provérbios, 6, 23-25). O discurso proverbial hostiliza a mulher, afasta-a do meio social, impedindo sua circulação democrática em espaços públicos; e ao fazê-lo passa por assédios, injúrias, violências, já que é considerada adúltera, imoral, sedutora, louca, etc. “A mulher toda é alvoroçada; é indisciplinada e sem conhecimento” (Provérbios, 9, 13). No conjunto da obra de Raduan Nassar – corpus dessa pesquisa – as mulheres recebem, em certa medida, o mesmo tratamento dado pelos sábios da escritura sapiencial: elas não têm direito à voz, o leitor nada sabe (ou quase nada) acerca do que pensam e quando é possível, inteira-se sempre pela voz do outro, a de um homem. O que sabemos de Ana, personagem de Lavoura arcaica, da criança e de sua mãe do conto
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“Menina a caminho”, das personagens femininas de Um copo de cólera e do conto “Hoje de madrugada”? O pouco que nos é revelado acerca delas é dito pela voz de um homem. Em outras palavras, o discurso da mulher é perpassado pelo outro, existe por conta do outro, o homem. Em Lavoura as personagens femininas não falam, a começar pela mãe que sequer tem nome próprio17, senão “mãe”. As outras personagens dos demais textos de Nassar, tampouco têm voz e quando do intento de dizer sua história são severamente repreendidas, humilhadas, agredidas. Em Lavoura, a personagem narradora, André, declara amar sua irmã Ana; esta, por fazer com que o patriarca da família seja ferido em seus preceitos, é assassinada por ele, que elimina com o golpe de um alfanje o demônio do incesto que invadira sua casa. O narrador diz ser a mãe a grande culpada – a aliciadora18 – pelo amor entre os irmãos e pela derrocada da família: “[...] te exorto a reconhecer comigo o fio atávico desta paixão: se o pai no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição [...]” (NASSAR, 1989, p. 136). Ana e a mãe, mulheres silenciadas e culpadas, nada podem dizer, nem ao menos empreender um discurso para se defender ou dar a saber seu ponto de vista. A tensão, a força e a violenta explosão do verbo em Um copo de cólera se refletem nos gestos da personagem masculina em relação à feminina. Um encontro aparentemente ordinário entre o casal se transforma na cólera e na ira de ambos, revelando a brutalidade masculina em relação à mulher. Nessa novela, a personagem feminina não apenas sofre uma agressão física, mas também é humilhada por ser mulher, desdenhada em sua profissão, tem sua inteligência ultrajada, é comparada a algo vil, um objeto sem qualquer valor – a coisificação do outro. A criança de “Menina a caminho”, como as outras mulheres, sofre uma série de violência pelos vários lugares em que passa durante sua caminhada que perpassa toda a narrativa. Em resposta às agressões simbólicas – xingos, desacatos, humilhações, separação de classe – ela dá seu imutável silêncio. 17
Ademais da mãe de Lavoura, as personagens femininas de Um copo de cólera, do conto “Hoje de madrugada”, do conto “Menina a caminho” (mãe e filha) tampouco possuem nome próprio. De acordo com Jean Chevalier (2012), o nome, entre uma série de acepções, não é outra coisa senão o próprio homem; desta forma, os que não têm nome “inexistem”, isto é, não exercem nenhum domínio sobre si mesmos, posicionam-se passivamente perante o outro. 18 Há aqui uma filiação entre o tema da aliciação materna e de Eva (“a mãe de todos os viventes” Gênesis, 3, 20), do jardim do Éden que, por aliciar Adão a comer do fruto da árvore proibida, arruína com a vida de todos no paraíso, de todas as mulheres da humanidade e frustra os planos de Deus.
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De igual modo que no Copo, podemos observar em “Menina a caminho” a tensão e a força da palavra: a explosão do verbo e das ações se dá simultaneamente.
A casa está tomada, mas a voz forte de Zeca Cigano, sobrepondo-se ao berreiro das crianças e os gritos da mulher, de repente explode: “Cadela!” Marido e mulher se pegam num rude bate-boca que se prolonga até que um silêncio inesperado, de curta duração, faz apertar, uma contra a outra, as mãos da vizinha junto à cerca. Não demora, ela ouve a primeira chicotada, acompanhada de uma falsa inquisição: “Quem é que te ofendeu?” E ouve a segunda chicotada, acompanhada também de uma falsa inquisição: “Quem é que me ofendeu?” A tala da cinta vibra no ar, um estalo terrível quando o couro desce na bunda da costureira [...]. “Corno” diz ela de repente, de um jeito puxado, rouco, entre dentes. O Zeca Cigano endoidece, o couro sobe e desce mais violento, vergastando inclusive o rosto da mulher. Uma, duas vezes (NASSAR, 1997, p. 46-47).
O excerto acima demonstra a cólera da personagem masculina que chega ao extremo – a violência física empreendida contra a mulher-costureira; esta, por efeito de sugestão, teve um relacionamento extraconjugal com o dono do armazém, seu Américo, e é ofendida pelo amante, conforme se verifica nas arguições de Zeca Cigano, e pelo fato de a própria costureira ter chamado seu companheiro de corno. As duas perguntas da personagem masculina dirigidas à costureira seriam idênticas, não fosse a substituição do pronome pessoal “te” por “me”; daí, podemos empreender a leitura de que a personagem feminina é ofendida pelo amante e, por conseguinte, a masculina também pela traição que sofre. No conto “Hoje de madrugada”, narrado em primeira pessoa por uma personagem masculina, é instaurado o silêncio por parte do narrador e sua mulher. Na madrugada, enquanto os demais dormem, marido e mulher ocupam o mesmo espaço da casa, sem nenhuma comunicação entre eles. Ela implora pateticamente por afetos e o faz por intermédio de um bilhete: “Foi uma caligrafia rápida e nervosa, foi uma frase curta que ela escreveu [...] ‘vim em busca de amor’[...]” (NASSAR, 1997, p. 54-55). Ao que o marido responde com imenso desprezo e também por escrito: “[...] não tenho afeto para dar [...]” (NASSAR, 1997, p. 55). O silêncio para a mulher é estridente, angustiante, desesperador, pois acompanha a espera de uma demanda que não vem. Ana é o objeto do desejo de André e a culpa é atribuída à mãe, pelo narrador; ambas, como Eva, são as causadoras da ruína familiar; a costureira é a mulher adúltera
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dos Provérbios, logo, deve ser execrada, surrada e humilhada no interior da sociedade onde vive, não merece estar com pessoas de bem; a personagem feminina do Copo é uma tola, detentora de um discurso estúpido e inócuo que nada acrescenta a ninguém, logo, não tem função nenhuma; a mulher do conto “Hoje de madrugada” é um ser desprezível e ao mendigar por afeto ao marido é ridicularizada por ele. Todas essas personagens de Raduan Nassar relacionam-se, de alguma forma, como os textos
bíblicos e, por
conseguinte, com o modus operandi da/na cultura ainda vigente. Pelo fato de essas mulheres estarem inseridas na cultura, é possível pensá-las enquanto sujeitos ficcionalizados que permeiam não apenas as literaturas bíblica e nassariana, mas também o mundo mais empírico.
2.3. A poética mítica nassariana Agora, exauridos pela razão, os conteúdos míticos continuam a povoar os nossos sonhos, as nossas paixões, as nossas angústias, naqueles itinerários incertos e obscuros da nossa alma onde cada um deve encontrar-se com demônios e deuses, mas deles perdemos a origem, o lugar e o nome. (Umberto Galimberti) A Bíblia, enquanto guardiã de um tesouro mitológico, estruturada de forma a ser vista como um imenso texto literário, onde muitos escritores ancoram-se para empreender um constructo artístico outro, faz com que determinadas estruturas míticas sobrevivam o correr dos séculos. O mito incorporado ao texto literário-sagrado vem desdobrando-se de tempos mais remotos até os nossos dias. A literatura, então, é a grande responsável pela manutenção e sobrevivência das narrativas mitológicas – o mito propriamente dito. Tais narrativas – orais ou escritas – incorporadas ao imaginário humano, sem qualquer rigor científico, tornam-se uma verdade social inconteste.
O mito seria um conto ao qual não se pode atribuir um autor determinado ou que teria inúmeros autores sem identidade pessoal; mesmo quando registrado num determinado momento, ele vem de muito longe, não procede de alguém e parece provir, conforme já se
62 admitiu, de um difuso colegiado ou da própria coletividade (NUNES, 2009, p. 292).
A Bíblia estruturada a partir de uma diversidade de textos contém elementos históricos, lendários, mitológicos, dogmas religiosos empreendidos pela religião judaica e cristã, etc. Esses elementos justapostos no interior dos textos bíblicos estão estruturados de modo a serem lidos, também, como literatura. O fazer dos escritores bíblicos centra-se, então, numa estrutura não apenas dogmática, religiosa, sagrada e/ou revelação divina, mas também enquanto constructo artístico. Independentemente de os textos sagrados serem revelação/inspiração divina ou invenção da mente humana, o que importa para essa pesquisa é a materialização de tais conteúdos por intermédio da escrita. Se Cristo de fato esteve entre os homens, foi o Deus encarnado que pregou o evangelho, fez milagres, conviveu com os dissidentes sociais, foi crucificado e ressuscitou ao terceiro dia depois de sua morte, não tem a menor importância. Queremos tratar essas questões de igual modo que os mitos – não nos importa a factualidade dos eventos. Falamos, então, de um Deus, um Cristo, personagens bíblicas, enquanto construções humanas. O lugar originário do mito está no passado, mas mostra-se no presente. Para Benedito Nunes (2009), há textos na ficção brasileira que dão um “passo para trás” na direção do primitivo: Lavoura arcaica, Pedra do reino, de Ariano Suassuna, Dois irmãos, de Milton Hatoum, entre outros que vão de O guarani, de José de Alencar, perpassando por Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, a Clarice Lispector, em seu A paixão segundo GH. Daí que “[...] a literatura e a poesia em particular nasceram do mito [...]” (NUNES, 2009, p. 291). A literatura, portanto, está ancorada a esse tempo primevo, lugar onde a linguagem desgastada pelo uso encontra-se em sua forma originária. A arte literária, de acordo com Benedito Nunes (2009), entende-se mitogênica, pois cria temas, espaços, personagens provenientes da esfera mítica. “E com isso descobriu as suas próprias raízes no mito, tratado com muita liberalidade, como fez Goethe, misturando [...] entidades pagãs e cristãs” (NUNES, 2009, p. 292-293), e como faz Raduan Nassar em seus textos, recuperando e atualizando determinados mitos cristãos e pagãos, conforme veremos mais adiante. Nas palavras de Benedito Nunes (2009), Lavoura arcaica é um romance mitomórfico e, aqui, acrescentaríamos os demais textos de Nassar, pois o escritor lança mãos de mitos do repertório bíblico e os reformula. Na esteira deste pensamento,
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Umberto Galimberti (2003) afirma que o mito é a busca, recuperação, reelaboração das origens: “[...] o seu olhar volta-se para o passado ou para o presente como retorno do passado [...]” (GALIMBERTI, 2003, p. 83). Esse retorno ao passado no mundo hodierno pode ser desprezado pela sociedade ávida por respostas exatas e embasadas no cientificismo. A epígrafe deste subcapítulo é clara ao tratar como todos estamos exauridos pela razão e que o conteúdo mítico continua entre nós, no interior de nossas práticas sociais e individuais. Nesse sentido, a literatura que não tem qualquer responsabilidade com o cientificismo ou com os fatos históricos converte-se num poderoso instrumento na transmissão dos mitos.
Não é fácil investigar o trabalho do mito numa cultura, a nossa atual, governada inteiramente pelas normas rígidas da racionalidade que produz identidade, funções, linguagens elaboradas para empregar nos vários circuitos, já predispostos, da comunicação. Nesse contexto, o mito produz fuga de sentido que se distancia muito do código, arrastando consigo a atenção inquieta de quem, percebendo-o, é transportado desse desvio de sentido para uma ordem totalmente diferente de significados, para outra verdade completamente distinta (GALIMBERTI, 2003, p. 46).
É nessa fuga de sentido, nesse distanciamento de significado, nessa ordem outra, nesse entre-lugar19 de razão e nonsense, que a literatura pode presentificar-se, dar-nos a conhecer uma verdade outra, oculta pelo verniz científico dos séculos e, de forma deliberada ou não, fazer-nos descobrir a nós mesmos e o lugar onde estamos. O mito, ainda de acordo com o pensamento de Umberto Galimberti (2003), revela novos sentidos, novos mundos, põe em suspensão nosso modo ordinário de pensar e viver. Em outras palavras, arroja-nos a um outro tempo e lugar (talvez ao não-tempo e ao nãolugar) e nos apresenta novas possibilidades para o nosso imaginário tão moldado à velha razão, “Criando um sentido contíguo ao sentido estabelecido [...]” (GALIMBERTI, 2003, p. 46). Raduan Nassar convoca-nos, então, a espiar o mundo por uma fresta perpassada pelo mito, apresentando essas novas possibilidades sobre o homem, a sociedade, nós mesmos e nossas relações com o outro. Nesse sentido, o mito em conluio com a literatura pode nos trazer respostas que os conhecimentos da razão não podem fazê-lo ou não são suficientes. 19
De acordo com a pesquisadora Nubia Jacques Hanciau (2005), o termo entre-lugar é um conceito elaborado por Silviano Santiago, nos anos 1970, quando vivia nos Estados Unidos. Trata-se de um espaço intermediário a meio caminho, com fronteiras muito imprecisas – o lá e o cá, onde um e outro (se) coabitam.
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Ainda em relação ao novo olhar sobre o mundo empreendido por Nassar, podemos verificar o que André, o herói do romance, e Lula, o irmão mais jovem, ambos personagens de Lavoura arcaica, pensam sobre a família. André carrega, entre outros, reminiscências do mito do filho pródigo do texto bíblico e o de Édipo, da mitologia grega20. O primeiro, em Lavoura arcaica, segundo Benedito Nunes (2009), trata-se da parábola invertida, pois a reconciliação entre André e Iohána não acontece. O segundo, de acordo com Sabrina Sedlmayer (1997), encenado por primeira vez em 430 a. C. representa o filho que ousou transgredir a hierarquia entre pai e filho, mãe e filho. O protagonista do Lavoura é uma junção de sujeitos: Andréfilho-pródigo-edípico e, por conseguinte, outra versão desses mitos que permeiam há tanto nosso imaginário. “André, em toda a narrativa, transgride diferenças [e] assassina valores assentados pela tradição [...]” (SEDLMAYER, 1997, p. 68). Outro dado interessante ainda em relação à família diz respeito ao estudo empreendido por Sedlmayer (1997) ao lançar mão do mito da horda primitiva para entender o comportamento de André em relação ao pai. Queremos, no entanto, pensar por outra perspectiva a maneira como o patriarca conduz o clã; o pai da narrativa de Nassar não é um fac-símile freudiano, pois o patriarca primevo, caso sentisse ciúmes do filho, ou o mataria ou o castraria ou ainda o expulsaria do seio familiar para não disputar nenhuma das mulheres das quais era dono e senhor. Há alguns pontos em que ambos os pais se equiparam, no entanto, o mais importante aqui é entender como o escritor recupera e re-atualiza essa linguagem mítica e a traz para outro tempo e espaço. Na contramão do pai da horda, Iohána afirma:
[...] só através da família é que cada um em casa há de aumentar sua existência, é se entregando a ela que cada um em casa há de sossegar os próprios problemas, é preservando sua união que cada um em casa há de fruir as mais sublimes recompensas; nossa lei não é retrair mas ir ao encontro, não é separar mas reunir, onde estiver um há de estar o irmão também...” (Da mesa dos sermões.) (NASSAR, 1989, p. 148). 20
A recuperação e a atualização desses dois mitos endossam nosso pensamento em relação a Raduan Nassar lançar mãos de mitos cristão e pagão, aqui representados respectivamente pelo filho pródigo e o Édipo. Deste modo, podemos afirmar o quão indubitavelmente é a potência do verbo empreendido por Raduan Nassar, que cria uma urdidura textual que converge elementos do Cristianismo e da cultura helênica da antiguidade. Em outras palavras, o escritor brasileiro consegue, por assim dizer, congregar diferentes tons culturais no conjunto de sua obra. A convergência entre essas duas culturas não é algo da ordem do insólito, pois conforme discutimos no primeiro capítulo desta tese, seguindo as proposições de Werner Jaeger, a religião cristã estrutura-se, entre outros elementos, com os do mundo grego.
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Para o pai não existe felicidade para além do espaço familiar, no entanto, essa proteção e afetos escamoteiam as verdadeiras intenções, pois o que há aqui é um claro processo de castração de todos os membros familiares em relação aos seus desejos. Não encontrar felicidade fora de casa significa a manutenção da estrutura patriarcal. Iohána, nesse sentido, usa sua retórica/sermões para convencer os membros familiares, mas a rebelião de André e a que já se instaura em Lula indicam que o discurso paterno não é de todo eficaz. Se Galimberti (2003) tem razão ao afirmar acerca da impossibilidade de interpretação do mito e que este apenas pode trazer uma experiência, os membros da família e inclusive Iohána tocam-no por vivenciá-lo e não interpretá-lo. O mito da horda ninguém explica, mas muitos o vivenciam com uma nova estrutura. O leitor, inclusive, é partícipe desse novo formato mítico, pois entra em contato ao experienciar a vida das personagens de Lavoura. Northrop Frye (2004) afirma, em relação à Bíblia, que não seria possível influenciar21 um texto literariamente se o que influencia não fosse ele próprio literário. É “[...] um livro que teve uma fértil influência na literatura inglesa, desde os escritores anglo-saxões até os poetas mais jovens do que eu [...]” (FRYE, 2004, p. 15). Se os livros que conformam o cânon bíblico contêm, entre outros elementos, um arsenal mítico; este, como outros eventos da escritura sagrada, também migraria para o texto literário. Podemos entender a questão como um ponto de confluência entre os discursos literários: o mito que está na Bíblia é resgatado e re-elaborado pela literatura. Frye (2004), utilizando as proposições de Giambattista Vico, nos faz saber acerca da história como um elemento cíclico e de três idades: a mítica ou a dos deuses, a heroica ou aristocrática e a do povo. Cada um desse período tem uma linguagem própria, a saber, respectivamente, poética, heroica ou nobre e a vulgar. Interessa-nos aqui o primeiro ciclo histórico, isto é, o poético que diz respeito aos mitos e aos deuses. A idade dos deuses é a mesma dos mitos e o registro arquitetado sobre eles é uma forma de fazer literatura, assim, deuses e mitos são poesia. “É muito difícil para muitas de nossas mentes do século XX acreditar que a poesia é algo genuinamente primitivo e não uma maneira artificial de decorar e distorcer a ‘prosa’ ordinária” (FRYE, 2004, p. 49). Northrop Frye tem razão ao situar o mito tão longínquo que nem sequer podemos precisar, num tempo em que a poesia sequer tinha sido pensada como 21
Influência aqui não se trata de dívida em relação ao texto precedente, mas de processos de diálogos que ocorrem entre os discursos literários.
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uma tipologia textual, mas já formava parte do imaginário social em forma de elementos mítico e divino. Northrop Frye (2004) identifica duas acepções para o termo mito. A primeira mythos refere-se ao enredo, à narrativa, à ordenação das palavras numa dada ordem. A segunda associada a algo que não é propriamente verdadeiro. A primeira acepção da palavra é quase inexistente, ficando a mitologia relegada a questões que não estão relacionadas à verdade. “[...] ‘a Bíblia conta uma estória’ e ‘a Bíblia é um mito’, são essencialmente a mesma afirmação” (FRYE, 2004, p. 58). De todos modos, o mito, parece-nos,
não
será
extinguido,
pois
ora
se
apresenta
como
uma
história/narrativa/sequência de palavras, ora com um conteúdo que não se vincula necessariamente à realidade, isto é, sem compromisso com a verdade.
Certas estórias parecem ter um significado peculiar: são as que contam para a sociedade o que é importante para esta saber, seja sobre seus deuses, sua história, leis, seja sobre sua estrutura de classe. Podem-se chamar estas estórias de mitos num sentido segundo, que as distingue daqueles do populário – que são contadas para diversão ou outra finalidade ainda menos central. Aquelas se tornam “sagradas” e distintas das “profanas”, e fazem parte do que a tradição bíblica chama de revelação. Pode ser que esta distinção não exista em muitas sociedades “primitivas”, mas mais cedo ou mais tarde ela se implanta, e uma vez implantada ela talvez dure séculos. Na Europa Ocidental as estórias bíblicas tiveram esse significado mítico central pelo menos até o século XVIII. Neste sentido segundo, portanto mítico significa o contrário de “não exatamente verdade”: significa levar consigo uma seriedade e uma importância especiais. As estórias sagradas ilustram uma preocupação social específica; as estórias profanas têm uma relação muito mais distante com essa preocupação; até em alguns casos não tem nenhuma, pelo menos em sua origem (FRYE, 2004, 59).
O mito independentemente de uma avaliação que o conformaria como um relato da verdade ou falso tem o poder de se fixar no interior de uma determinada sociedade e permanecer nela muito tempo. Depois de alocado no interior da sociedade, quem é que pode dizer que um elemento mítico é uma mentira? A mitologia no imaginário social parece não passar por nenhum questionamento – não apenas de veracidade, mas também de onde é proveniente, quem a criou e por quê. Esses mitos trazem notícias sobre os deuses, a criação do mundo/do homem, as formas de organização social, etc. Pensemos no veto ao incesto em muitas culturas, que funciona como uma espécie de lei que quando quebrada causa verdadeiro horror. Essa interdição aparece em algumas religiões e é veementemente endossadas por adeptos a elas ou não. É um dado
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social/cultural aceito por muitos que não questionam, não têm interesse em saber de onde é proveniente e quem elaborou tal mito-proibição. Esse mito em Lavoura arcaica está em muitos dos núcleos narrativos que conformam o romance, indicando a recuperação desse elemento por parte do escritor brasileiro; e está tão marcado que a segunda parte do romance inicia-se com um fragmento do Corão – “Vos são interditadas vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs” – e, conforme já mencinado, crentes ou não aceitam esse mito e compactuam com a proibição. Isso porque “[...] mitos desenham o contorno de uma área específica da cultura humana [...]” (FRYE, 2004, p. 60). Em Lavoura não é diferente, jamais seria aceito numa família patriarcal-tradicional-religiosa. A literatura é uma descendente direta do mito, nasce dele, e traz em seu código genético os genes de seus progenitores, resgatando-os, reelaborando-os, recriando-os em forma de ficção essa verdade instituída que não necessita passar pelo crivo do verdadeiro ou falso e tampouco da razão. Assim, “[...] mito e literatura já são inseparáveis no épico Gilgamesh, que é muito mais antigo do que qualquer parte da Bíblia; também o são em Homero, que, grosso modo, é contemporâneo das partes mais antigas do Antigo Testamento” (FRYE, 2004, p. 61). Desde uma das primeiras obras literárias da humanidade – Epopeia de Gilgamesh ou Épico de Gilgamesh a mitologia já se presentificava e isso se desdobrou até a literatura de nossos dias. Daí que a literatura inevitavelmente faz parte do mito e do desenvolvimento dele. Um mito importante no “Antigo Testamento” tem a ver com o êxodo; há uma série de passagens e de personagens que o vivenciam; ele ultrapassa as fronteiras narrativas do “Antigo” e instaura-se no “Novo”. Para Northrop Frye (2004), o êxodo é o mito de libertação do povo de Israel em relação ao Egito; é a metáfora da libertação do povo oprimido e escravizado; Egito, por outra parte, tem a ver com desolação, tristeza, opressão, escravidão, prisão. Esse mito trata da libertação não apenas de Israel, mas de determinadas personagens bíblicas que vão do Gênesis ao Apocalipse; o êxodo, então, pode ser considerado um tema central na Bíblia. Para J. P. Fokkelman (1997), o segundo livro do Pentateuco, tal como o Gênesis, tem um fundamento que servirá para toda a Bíblia, pois os eventos mais importantes do Êxodo aparecem nos outros livros. Os israelenses, por uma intervenção divina, conforme consta do capítulo 14 do Êxodo, tornam-se livres do cativeiro inimigo; na sequência passam a caminhar pelo deserto, num período de quarenta anos, em direção à Terra Prometida, Canaã. Chegam a
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essa terra sob o comando de Josué que assume o posto de Moisés, após a morte deste (vide primeiro capítulo de Josué). Desde a saída de Abraão de suas terras e do meio dos seus em direção a uma terra, onde Deus indicaria, como consta no primeiro livro bíblico até a chegada dos salvos (os santos do Senhor, que guardaram suas vidas em santidade) à nova Jerusalém, cidade santa, Terra Prometida, há a temática do êxodo.
E levou-me em espírito a um grande e alto monte, e mostrou-me a grande cidade, a santa Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus/ Ela brilhava com a glória de Deus, e o seu brilho era semelhante a uma pedra preciosíssima, como o jaspe cristalino/ [...] A cidade não necessita nem do sol, nem da lua, para que nela resplandeçam, pois a glória de Deus a ilumina, e o Cordeiro é a sua lâmpada (Apocalipse, 21, 10-23).
Se consideramos a saída de Abraão em Gênesis e a entrada dos fiéis na nova Jerusalém no Apocalipse e entendemos esse percurso como um êxodo, isto é, uma libertação, devemos, então, “[...] considerar que o mito central da Bíblia é um mito de libertação, de qualquer ponto de vista que se leia” (FRYE, 2004, p. 77). Parece-nos que a questão torna-se clara ao entendermos as propostas do êxodo/libertação observadas no texto bíblico; por mais que esse conjunto imenso de livros não ofereça coerência entre eles, há um mito-tema que o perpassa de capa a capa. O conjunto da obra de Raduan Nassar também apresenta um êxodo por parte das personagens: abandonam o “Egito”, lugar de escravidão, e deambulam pelo deserto, território das intempéries, em busca da Terra Prometida, de um locus amoenus, onde possam encontrar paz e harmonia. O redator do conto de “Aí pelas três da tarde” numa espécie de surto de pura lucidez, vislumbra evadir-se do trabalho-Egito em direção a sua casa – a Terra Prometida. “Nesta sala atulhada de mesas, máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes [...] aplicando-se em ideias claras apesar do ruído e do mormaço [...]” (NASSAR, 1997, p. 71). Esse é o lugar-cativeiro, onde alguns homens exercem diariamente uma função burocrático-repetitiva – escrevem sobre os problemas que afligem o homem moderno. Na realidade falam de si mesmos, do tedioso mundo bancário, repetitivo, engessado em práticas que não dão respostas categóricas às questões existencialistas da humanidade. O narrador sugere a um dos escreventes que saia em direção à sua casa, abandonando o ambiente desconfortável e o amontoado de papéis sobre a mesa e dê:
69 [...] um largo “ciao” ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiverem em casa [...] e suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas [...] e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo (NASSAR, 1997, p. 72-73).
Conforme se observa no excerto, a personagem do conto encontraria em casa, na Terra Prometida, uma espécie de paraíso, onde a paz e a harmonia são possíveis. No entanto, sabe-se que esse lugar perfeito é fantasioso, pois se assim não fosse, os israelenses, após a entrada em Canaã, não teriam mais problemas com, pelo menos, seu lugar pátrio; isso se confirma pelo fato de que esse povo foi desterrado e dispersado pelo mundo diversas vezes. No conto “Aí pelas três da tarde”, a fantasia pode ser entendida pelo modo como o narrador conduz as ações da personagem; estas não são concretizadas, senão no plano do desejo, por isso o imperativo como forma verbal, incitando que a personagem reaja à forma de vida que leva. Se a mitologia, de acordo com o pensamento fryriano, tem a função de olhar para a humanidade e suas inquietações, não é por acaso que as personagens – representações dessa sociedade inquieta – de Raduan Nassar carregam consigo determinados mitos. André abandona o “Egito” para se libertar dos desmandos e da opressão paternos, torna-se um errante pelo deserto com o objetivo de encontrar o paraíso.
Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo” [...] haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: “estamos indo sempre para casa” (NASSAR, 1989, p. 35-36). [...] não era com estradas que eu sonhava, jamais passava pela cabeça abandonar a casa, jamais tinha pensado antes correr longas distâncias em busca de festas pros meus sentidos; entenda, Pedro, eu já sabia desde a mais tenra puberdade quanta decepção me esperava fora dos limites da nossa casa” [...] (NASSAR, 1989, p. 69). _ Vou sair de casa, André, amanhã, no meio da tua festa, mas isso eu só estou contando pra você (NASSAR, 1989, p. 179).
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Os três excertos de Lavoura arcaica tratam da questão do êxodo, da fuga ou saída em direção a outros lugares. No primeiro o herói explicita os motivos de sua partida e eles não têm a ver senão com a maneira como Iohána conduz a família. André sente uma raiva intensa e dela não pode falar, pois está silenciado – igual aos demais membros da família – pelo patriarca. Um dado importante no segundo fragmento, um diálogo entre os irmãos, diz respeito acerca da fantasiosa relação entre Egito vs. Terra Prometida; o próprio André é enfático ao afirmar que não encontraria grandes descobertas, felicidades e um paraíso para além de sua casa. Na última citação é o irmão mais jovem quem declara o desejo de empreender o êxodo – libertar-se do jugo da família, da autoridade do patriarca e sair em busca da nova terra, vislumbrando felicidades e experiências que jamais poderia ter, vivendo no Egito-paterno. No conto “Menina a caminho” podemos entender a caminhada da personagem central como uma espécie de êxodo. O texto inicia-se com a menina já percorrendo os caminhos da cidade – “Vindo de casa, a menina caminha sem pressa, andando descalça no meio da rua [...]” (NASSAR, 1989, p. 09) – ela perpassa por vários lugares e, conforme elucidado antes, sofre uma série de violência; daí que essa caminhada extensa da personagem nassariana relaciona-se com a errância dos israelitas no deserto. A personagem sai de casa para empreender, por efeito de sugestão, uma tarefa dada pela mãe: tratar de dizer algo a seu Américo, o dono do armazém, como uma forma de vingança. Ao cumprir a missão, volta para casa, lugar onde deveria ser acolhida e cuidada, mas presencia uma violência extrema entre seus pais, logo, a casa, enquanto Terra Prometida, não existe. Nos textos bíblicos as personagens que empreendem o êxodo alcançam, de certa forma, chegar à Terra Prometida: Abraão abandona sua terra pátria, Harã, e encontra Canaã; os israelitas que peregrinam quarenta anos no deserto também voltam para Canaã; Cristo, depois de ter “os pés gastos até os ossos por força de haver caminhado por todas as estradas do nosso inferno” (YOURCENAR, 1983, p. 113), encontrou-se com Deus, seu pai; e a igreja, os santos remidos em Cristo, no dia do Senhor, num porvir, entrará na cidade santa, a nova Jerusalém, encerrando assim, o ciclo do êxodo para a humanidade. Em relação à estrutura do mito do êxodo na Bíblia, as personagens Abraão, os israelitas, Cristo, alcançam a dádiva da Terra Prometida e os santos do Senhor ainda a
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alcançarão. Elas, antes de tomar posse do território dado por Deus, passam por uma série de adversidades e a maior de todas elas é a crucificação de Jesus para garantir a completude do último êxodo. Para Frye (2004), as narrativas que compõem o conjunto de livros da Bíblia estão estruturadas em forma de “U” – queda e ascensão. O homem perde o paraíso edênico e todos os elementos contidos nele, no Gênesis, e o recupera, na totalidade, no Apocalipse.
De todos os movimentos ascensionais [...] a forma originária e modelar é a da libertação do Egito e da criação da nação de Israel, que foi parte dela. Como os vários declínios de Israel, graças à apostasia e coisas semelhantes, são menos atos do que incapacidade de agir, somente as ascensões e restaurações são eventos reais. Como o Êxodo é a libertação definitiva e o tipo de todo o resto, pode-se dizer que miticamente, ele é a única coisa que de fato acontece no Antigo Testamento (FRYE, 2004, p. 208-209).
O mito bíblico do êxodo estrutura-se nesse “U” em relação à saída dos israelenses que erram pelo deserto e chegam à Terra Prometida; esse mito torna-se, então, um arquétipo para os outros livros do “Antigo Testamento” e, por conseguinte, do “Novo” e, na sequência, dos textos literários que lançam mão das escrituras sagradas para se materializarem. Raduan Nassar empreende um projeto estético-mítico, conforme observado em Lavoura arcaica e nos contos “Aí pelas três da tarde” e “Menina a caminho”, semelhante ao da narrativa bíblica. O autor brasileiro não apenas atualiza o mito, mas também o inverte22. Se Northrop Frye entende que a forma “U” estrutura o mito que perpassa os textos bíblicos, queremos nomear para os três textos de Nassar a forma de um “U” invertido, pois as personagens não encontram a Terra Prometida como ideal de paraíso; não alcançam a dádiva esperada para depois das agruras e sequidão do deserto. O “U” nassariano indica, ademais, o fracasso das personagens em levar a termo o êxodo, pois não têm ascensão, permanecem na escravidão do Egito, nas sombras do jugo opressor do qual não podem se livrar porque estão sempre voltando para casaegito. Estamos sempre voltando para o Egito. 22
Benedito Nunes (2009) entende o Lavoura como uma inversão do mito do filho pródigo; Leyla Perrone-Moisés (1996), como a versão negra da parábola do filho pródigo, endossando essa discussão acerca da re-criação mítica em Raduan Nassar.
72 Este reino de Deus é um mundo idealizado, metaforicamente idêntico [...] com o Jardim do Éden e a Terra Prometida, inclusive a futura Terra Prometida de Israel restaurada e o Apocalipse no Novo Testamento [...] Tradicionalmente o paraíso terreno é um ver perpetuum23 [...] um mundo onde o outono e a primavera dançam de mãos dadas, há flores e frutas sem inverno, onde os habitantes humanos estão na flor da idade, sem envelhecimento nem senilidade (FRYE, 2004, p. 100-101).
Nas proposições de Frye a Terra Prometida é o lugar ideal por excelência no imaginário cultural, indica que a humanidade busca incessantemente um paraíso. Em relação ao conto “Aí pelas três da tarde” tem-se a impressão de que a personagem – ao chegar em casa, deitar-se na rede e se sentir embalado pelo mundo – abandonou a escravidão do trabalho burocrático e alcançou as benesses do paraíso, no entanto, os episódios do conto, como já observamos, são projeções do narrador para a personagem; as ações não se concretizam em realidade, pois são sugestões do que poderia ser feito caso o redator empreendesse seu êxodo. Um dado interessante a ser apontado ainda em relação à forma em “U” invertida do êxodo de Nassar pode ser observado em Um copo de cólera; nesta novela a personagem feminina está sempre voltando para a casa do algoz. Em outras palavras, a jornalista abandona o Egito por um tempo, mas sempre volta, como num ciclo sem fim e isso pode ser entendido se observamos os capítulos primeiro e último da narrativa, ambos são nomeados como “A chegada”, indicando uma contínua partida e subsequente volta.
E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço [...] (NASSAR, 1992, p. 09). E quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse ainda aberto, pois a tarde, fronteiriça, já avançava com o escuro [...] notei também que a porta do terraço se encontrava escancarada, o que poderia parecer mais um sinal, redundante, quase ostensivo de que ele estava à minha espera [...] (NASSAR, 1992, p. 83-84).
Em ambos os excertos, o tema é o mesmo: a sempre presença da jornalista na casa do chacareiro; a personagem feminina ignora, de certa forma, toda a violência empreendida contra ela pelo namorado e volta; melhor, está sempre voltando, o 23
Perpétua Primavera, (conforme a N. T, do livro Código dos códigos: a Bíblia e a literatura, de Frye, 2004, p. 101).
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constante retorno. Estaria a jornalista com esperanças de que em quarenta anos de partidas e retornos à chácara se tornaria a Terra Prometida?
2.4. O Evangelho segundo Raduan Nassar: a crucificação Mas cada um cumpre o [seu] Destino (Fernando Pessoa) [...] desde menino, eu não era mais que uma sombra feita à imagem do destino [...] (Raduan Nassar) Para Ana o dia de todos os sóis fazendo arranhuras em minha sombra descalça sobre a terra morna esperando os passos da última dança que fenderam a roda esta a tomei por minha o alfanje não me matou apenas alargou meus velhos silêncios expiação da culpa em meu corpo dilacerado não quero reparos essa dor me pertence e não a dou a outrem o tempo das lavouras irrompe em minha voz azul-clara com perfume úmido das folhas o veto ao amor e à vida deveriam constar de minha estela funerária a minha lavra (F. A. N.)
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Fazer uma análise acerca da paixão de Cristo nos quatro primeiros livros do “Novo Testamento” nos faz acreditar que Jesus é o grande herói dessas narrativas. Os quatro evangelistas, com diferentes abordagens e estratégias de escritura, para alcançar públicos distintos, narram momentos da história do Messias, com o objetivo de levar as boas novas24, isto é, fazer com que todos conheçam o filho de Deus e o sacrifício por meio do qual os homens – que assim creem – sejam salvos. Há entre os Evangelhos uma divisão – aceita pelo menos no âmbito da crítica literária – os sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), que conforme as palavras de Terry Eagleton (2009), apresentam uma escrita simples, não artificiosa e dirigidos a um público mais geral; João, em contraste com os outros três, escrito por volta de 90 do primeiro século, apresenta um texto profundo de cunho poético-filosófico, carregado de imagens – uma complexa poética teológica. Essas diferenciações entre os Evangelhos têm a ver com determinados detalhes de algum momento das ações de Jesus, supressões de personagens e as minúcias de como estas atuam no interior do texto bíblico. Tais divergências não devem ser entendidas como distorções históricas ou erros, senão como diferentes versões de uma mesma história25 em que uma completa, aprofunda, endossa e é depositária da outra. Divergências à parte, não é possível negar um rastro de unidade, margeando os Evangelhos, indicando a passagem do homem-Deus pela terra, zombando das leis do Estado, indicando outra perspectiva sobre o companheirismo, a atenção ao próximo, o amor, a salvação, ademais da temática central: a crucificação. Este evento representa de modo geral, em todos os Evangelhos: Mateus 27, Marcos 15, Lucas 23 e João 19, com algumas diferenciações, a estrutura do sacrífico de Cristo. Frank Kermode (1997), no ensaio Introdução ao Novo Testamento, faz uma análise desses livros, principalmente dos Evangelhos e de como estes estão estruturados a partir do “Antigo Testamento” e a escritura que emerge desta prática é a da adaptação/adequação, mas também, e principalmente, anuncia uma nova religião – o Cristianismo.
Ao considerar tais questões, temos mais uma vez de nos lembrar de que a Bíblia dos autores do Novo Testamento era a Bíblia hebraica (e suas traduções e paráfrases gregas e aramaicas). Sobre esse texto fundador foi sobreposto um forte kerygma oral, a proclamação cristã, 24
O termo evangelho (do grego to evangelion) significa as boas novas. O que não equivale a dizer que a Bíblia em sua completude (reunião de livros) apresenta-se como uma estrutura de unicidade e sem contradições entre os temas e as ações das personagens. 25
75 mas as Escrituras, o fundamento escrito, eram especialmente importantes para os evangelistas como escritores (KERMODE, 1997, p. 407).
O pensamento de Kermode remete-nos ao primeiro capítulo da tese, onde se discute acerca da materialização do texto literário; este não existe “[...] no sentido hebraico de fazer algo do nada, mas na acepção grega é produzir dando forma à matéria bruta preexistente, ainda indeterminada, em estado de mera potência” (NUNES, 2016, p. 22). A literatura, então, arquiteta-se a partir de outros textos já existentes. Com os textos sagrados – também literários – do “Novo Testamento” não é diferente; os escritores lançam mão, além das mensagens orais dos eventos de Cristo, da escritura do “Antigo Testamento” que, de certa forma, molda o “Novo”. O “Novo Testamento”, em muitos momentos, não pode ser entendido na ausência do “Antigo”, pois ambos complementam-se, relacionam-se; daí que a “[...] narrativa cristã do século I não podia ter sido construída independente da Bíblia hebraica [...] e os evangelistas gozavam de um grau considerável de liberdade de composição na invenção e disposição de elementos narrativos” (KERMODE, 1997, p. 409). Isso não significa que no “Novo Testamento” não contenham livros originais; o fato de haver uma escritura precedente não coloca os textos dos evangelistas em um patamar inferior. Um dos temas mais intrigantes que compõe os Evangelhos talvez seja o da crucificação de Jesus Cristo. A crítica especializada tem posicionamentos divergentes: não estão claros até os nossos dias quais são os reais motivos da crucificação; se existe ou não qualquer tipo de crime cometido pelo filho de Deus – condenado à morte – ainda não há uma resposta concreta na qual é possível afirmar Cristo é assassinado por...
Na verdade, o porquê de Jesus ter sido crucificado ainda é um mistério. Decerto, não foi porque ele afirmava ser o filho de Deus. Jesus fez essa afirmação nos Evangelhos apenas em uma passagem [...] Mesmo que Jesus tivesse chamado a si mesmo Filho de Deus outras vezes mais, não ficaria evidente o que ele estava querendo dizer com isso. Em um sentido do termo, não seria nada mais que afirmar o óbvio. Todos os judeus eram filhos e filhas de Deus (EAGLETON, 2009, p. 10).
Se todos os judeus são sem exceção os filhos da promessa, os eleitos do próprio Deus, e Jesus Cristo, sendo um judeu de nascimento, não poderia haver sido condenado por isso, ainda que o dissesse intermitentemente. Essa afirmação não deveria condená-
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lo, pois é provável, como nos dias de hoje, que os crentes em Deus, independentepertencer a uma religião ou não, consideram-se filhos e protegidos por esse pai divino. Eagleton discute ainda acerca de outros motivos para a crucificação: um deles é o fato de Cristo ter afirmado ser o rei dos judeus. O que endossa esse pensamento diz respeito às inscrições dispostas na parte superior da cruz: Em Mateus, 27, 37, lê-se: “ESTE É JESUS, O REI DOS JUDEUS”; em Marcos, 15, 26, está escrito: “O REI DOS JUDEUS”; no livro de Lucas, 23, 38, vê-se: “ESTE É O REI DOS JUDEUS”; já na escritura de João, 19, 19, está: “JESUS DE NAZARÉ, O REI DOS JUDEUS”26. Se as inscrições na cruz dos condenados à morte indicam o crime praticado, não nos parece incoerente afirmar que Jesus é executado pelo fato de ser o rei dos judeus. A crucificação é uma prática romana e não judaica que consiste na morte do criminoso de forma bastante cruel/dolorida; este leva consigo a inscrição de seu próprio nome e a natureza do crime. No entanto, como aceitar essa acusação sobre Cristo, levando em conta que ele não busca e tampouco se identifica com os elementos da realeza, convivendo, antes, com a escória da sociedade? O espaço de enunciação onde Cristo circula está sob domínio político romano, mas as leis (incluindo-se as religiosas) são judaicas e aqueles não intervêm nas decisões desses, caso não houvesse qualquer conflito que ameaçasse a estabilidade política; daí que a condenação de Jesus Cristo é de responsabilidade de romanos e judeus. Esse jogo político perpetrado por romanos e judeus em que nenhum deles quer se responsabilizar pela crucificação de Cristo dificulta o entendimento acerca dos reais motivos que o levam à condenação.
Não fica inteiramente claro quais eram as acusações contra Jesus. Os relatos dos Evangelhos sobre essa matéria são inconsistentes, e é possível que os próprios evangelistas estivessem tão inseguros em relação aos aspectos legais do caso quanto nós. Não foram, afinal, testemunhas oculares desses acontecimentos, como também não presenciaram qualquer outro episódio da vida de Jesus. Não estamos lidando com relatos de primeira mão (EAGLETON, 2009, p. 16).
Embora não haja evidência concreta do que Cristo tenha feito, afirmar ser o rei dos judeus poderia ser entendido como uma blasfêmia para o povo judeu e como sedição para os romanos, o que poderia justificar nosso pensamento anterior sobre o conluio entre judeus e romanos de levar Jesus à crucificação. Cabe ressaltar, porém, que 26
Na tradução da Bíblia elaborada por João Ferreira de Almeida, as inscrições estão dispostas como na citação acima, em caixa alta.
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os membros do conselho do governo dos judeus (sinédrio) não chegam a um consenso se Cristo blasfema ou não. Nesse sentido, “Tudo indica que ele foi condenado antes por insubordinação, e entregue, como um perigo para a ordem pública, aos poderes seculares que os próprios membros do sinédrio tanto abominavam” (EAGLETON, 2009, p. 18). De acordo com Eagleton (2009), a condenação à cruz não representa apenas uma maneira horrível de se morrer em flagelos, mas também exibir ao público a impotência, a fragilidade, humilhando o supliciado – uma espécie de correção didática, pois serviria como advertência a quem ousasse se insurgir contra as estruturas sociais estabelecidas. Se não há uma prática criminosa que justifique adequadamente a morte de Cristo, o que se pode inferir sobre assassinato de um inocente? Parece-nos que há uma relação entre a paixão/o amor e a morte. Cristo, sujeito do mais puro amor, por amar o mundo, é crucificado. Ana, percorrendo os mesmos caminhos do filho de Deus, pela incontrolável paixão incestuosa por seu irmão, também é crucificada. Já vimos que a crucificação de Cristo não visa apenas à morte, mas também à degradação do sujeito, expô-lo à humilhação, à ridicularização, às injúrias dos presentes. Nesse sentido, partes da estrutura da crucificação se relacionam com Lavoura arcaica, Um copo de cólera e o conto “Menina a caminho”.
Então Pilatos tomou a Jesus, e mandou açoitá-lo./ Os soldados teceram uma coroa de espinhos, puseram-na em sua cabeça, e vestiram-no com um manto de púrpura./ Aproximando-se dele, diziam: Salve, Rei dos Judeus! E davam-lhe bofetadas./ De novo Pilatos saiu e lhes disse: Vede! Eu vo-lo trago fora para que saibais que não acho nele crime algum./ Quando Jesus saiu, trazendo a coroa de espinhos e o manto de púrpura, Pilatos lhes disse: Eis o homem!/ Vendo-o os principais sacerdotes e os seus guardas, gritaram: Crucifica-o! Crucifica-o! Mas Pilatos respondeu: Tomai-o vós, e crucificai-o. Eu não acho nele crime algum./ Responderam os judeus: Nós temos uma lei, e segundo essa lei ele deve morrer, porque se fez filho de Deus./ Tendo Pilatos ouvido esta declaração, mais atemorizado ficou./ Entrando de novo no pretório, disse a Jesus: de onde vens? Mas Jesus não deu resposta./ Disse Pilatos: Não me respondes? Não sabes que tenho autoridade para te soltar, e autoridade para te crucificar? Respondeu Jesus: Nenhuma autoridade terias contra mim, se de cima não te fosse dada. Aquele, porém, que me entregou a ti maior pecado tem./ Desde então Pilatos procurava soltar a Jesus, mas os judeus continuavam a gritar: Se soltares a este, não és amigo de César. Qualquer que se faz rei se opõe a César./ Ouvindo Pilatos essas palavras, levou Jesus para fora e sentou-se no tribunal, no lugar chamado Pavimento, em hebraico chamado Gábata./ Era o dia da preparação da páscoa, e quase à hora sexta. Disse Pilatos aos judeus: Eis o vosso Rei./ Mas eles gritaram: Fora! Fora! Crucifica-o! Perguntou-lhe Pilatos: Hei de crucificar o vosso Rei? Responderam os principais sacerdotes: Não temos rei, senão César./ Finalmente Pilatos
78 o entregou para ser crucificado./ Então os soldados tomaram a Jesus. Ele próprio, levando a sua cruz, saiu para o lugar chamado Caveira, que em hebraico se chama Gólgota,/ onde o crucificaram, e com ele outros dois, um de cada lado e Jesus no meio. [...] Mais tarde, sabendo Jesus que tudo estava consumado, e para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede!/ Estava ali um vaso cheio de vinagre. Embeberam de vinagre uma esponja, colocaram-na numa vara de hissopo, e chegaram-na à sua boca./ Quando Jesus recebeu o vinagre, disse: Está consumado! E inclinando a cabeça, entregou o espírito./ Como era o dia da preparação, os judeus, para que os corpos não ficassem na cruz durante o sábado, porque esse sábado era um grande dia, rogaram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas, e fossem tirados./ Foram os soldados e quebraram as pernas do primeiro e do outro que com ele fora crucificado./ Mas chegando-se a Jesus, e vendo-o já morto, não lhe quebraram as pernas./ Contudo, um dos soldados trespassou-lhe o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água./ [...] Estas coisas aconteceram para que se cumprisse a Escritura [...] (João, 19, 1-36. Grifo nosso ).27 [...] Ana (que todos julgavam na capela) surgiu impaciente numa só lufada, os cabelos soltos espalhando lavas, ligeiramente apanhados num dos lados por um coalho de sangue (que assimetria mais provocadora!), toda ela ostentando um deboche exuberante, uma borra gordurosa no lugar da boca, uma pinta de carvão acima do queixo, a gargantilha de veludo roxo apertando-lhe o pescoço, um pano murcho caindo feito flor da fresta escancarada dos seios, pulseiras nos braços, anéis nos dedos, outros aros nos tornozelos, foi assim que Ana, coberta com as quinquilharias mundanas da minha caixa, tomou de assalto a minha festa, varando com a peste no corpo o círculo que dançava, introduzindo com segurança, ali no centro, sua petulante decadência, assombrando os olhares de espanto, suspendendo em cada boca o grito, paralisando os gestos por um instante, mas dominando a todos com seu violento ímpeto de vida, e logo eu pude adivinhar, apesar da graxa que me escureceu subitamente os olhos, seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com destreza gestos curvos entre as frutas e as flores dos cestos, só tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento, mais ondulante, as mãos graciosas girando no alto, toda ela cheia de uma selvagem elegância, seus dedos canoros estalando como se fossem, estava ali a origem das castanholas, e em torno dela a roda passou a girar cada vez mais veloz, mais delirante, as palmas de fora mais quentes, e mais intempestiva, e magnetizando a todos, ela roubou de repente o lenço branco do bolso de um dos moços, desfraldando-o com a mão erguida acima da cabeça enquanto serpenteava o corpo, ela sabia fazer as coisas, essa minha irmã, esconder primeiro bem escondido sob a língua sua peçonha e logo morder o cacho de uva que pendia em bagos túmidos de saliva enquanto dançava no centro de todos, fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação, e logo entoados em língua estranha começaram a se elevar os versos simples, quase um cântico, nas vozes dos mais velhos [...] Ana sempre mais ousada, mais petulante, inventou um novo lance alongando o braço, e, com graça calculada (que demônio mais versátil!), roubou de um circundante a sua taça, logo derramando sobre os ombros nus o vinho lento, obrigando a flauta a um apressado retrocesso lânguido, provocando a ovação dos que a cercava, era a voz 27
Os quatro evangelhos tratam da prisão e crucificação de Cristo com algumas diferenças, optamos, no entanto, pelo relato de são João porque, além de ser o que mais de adequa à análise que pretendemos com as obras de Raduan Nassar, é o mais poético-filosófico, como já elucidamos anteriormente.
79 surda de um coro ao mesmo tempo sacro e profano que subia, era a comunhão confusa de alegria, anseios e tormentos, ela sabia surpreender, essa minha irmã, sabia molhar a sua dança, embeber sua carne, castigar a minha língua no mel litúrgico daquele favo, me atirando sem piedade numa insólita embriaguez, me pondo convulso e antecedente [...] Pedro, sempre taciturno até ali, buscando agora por todos os lados com os olhos alucinados, descrevendo passos cegos entre o povo imantado daquele mercado – a flauta desvairava freneticamente, a serpente desvairava no próprio ventre, e eu de pé vi meu irmão mais tresloucado ainda ao descobrir o pai, disparando até ele, agarrando-lhe o braço, puxando-o num arranco, sacudindo-o pelos ombros, vociferando uma sombria revelação, semeando nas suas ouças uma semente insana, era a ferida de tão doída, era o grito, era sua dor que supurava (pobre irmão!), e, para cumprir-se a trama do seu concerto, o tempo, jogando com requinte, travou os ponteiros: [...] a testa nobre de meu pai, ele próprio ainda úmido de vinho, brilhou um instante à luz morna do sol enquanto o rosto inteiro se cobriu de um branco súbito e tenebroso, e a partir daí todas as rédeas cederam, desencadeando-se o raio numa velocidade fatal: o alfanje estava ao alcance de sua mão, e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe em meus olhos!) [...] (NASSAR, 1989, p. 188-192. Grifo nosso).
Na primeira e segunda extensas citações vemos respectivamente a crucificação de Cristo perpetrada e exigida pelo povo a Pilatos, e o assassinato de Ana executado pelo pai. Em ambas narrativas é possível observar o público como partícipe dos eventos, numa espécie de histeria coletiva. Na crucificação Pilatos recebe ameaças, é acusado de inimigo do rei (Tibério César), caso não concordasse com a morte de Jesus e, por mais tentativas que o governador faça para salvá-lo, não há consenso, o povo segue irredutível. Também Ana, personagem de Lavoura, causa uma grande comoção na festa de André, ao assaltar a comemoração do modo como o faz. Todos a imaginam na capela em preces, mas, com as indumentárias que pertenciam às prostitutas de André, invade a roda e, ao que tudo parece, dança para o irmão. As pessoas no círculo, como que contagiadas por Ana, começam a intensificar os movimentos, os ruídos dos instrumentos; há uma exaltação à dançarina por sua excitante performance carregada de gestos sensuais: (“a roda passou a girar cada vez mais veloz, mais delirante”). Desde o início da narrativa de são João nota-se a estrutura da crucificação, que se constitui de muitos maus tratos e sofrimentos dolorosos ao crucificado. Não basta apenas a morte, o réu deve ser exposto à humilhação pública: passa por injurias, é agredido não apenas pelos executores, mas também por pessoas comuns; ironizam-no
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afirmando que como salvador, não consegue salvar-se nem a si mesmo28; pede água e lhe dão vinagre; colocam uma coroa de espinho na cabeça que o machuca durante todo o processo crucificatório; ao dar-se conta que Cristo já estava morto, um dos soldados perfura seu corpo com uma lança. Jesus é visto como um sujeito abjeto e por isso deve ser eliminado da forma mais cruel possível para que fique de testemunho e exemplo para todo aquele que se insurgir contra a política do Estado. Ao que parece – e Pilatos é categórico ao afirmar – não há nenhum crime que pese contra o crucificado, mas a forma de pouco se me dá, desprezível, como Cristo trata seus acusadores, parece-nos, o sentencia à morte. O diálogo que o governador tem com Jesus Cristo, nos dá a impressão de que este deve desculpar-se por algo e, por conseguinte, aquele poderia salvá-lo da morte. O Messias nada faz, senão desdenhar de todos e a crucificação é perpetrada. Ana é morta num espaço privado, mas com a presença de muitas pessoas, por ocasião da festa de André. Não sofre torturas, mas semelhante à crucificação de Cristo, todos presenciam o momento em que o alfanje a transpassa. O filho de Deus e Ana não se defendem, não se justificam, aceitam com resignação o que o destino lhes reserva – a morte como um preço que devem pagar pela paixão que sentem; Jesus, por amor à humanidade para salvá-la da perdição; a personagem de Raduan Nassar, pela paixão incestuosa que sente por seu irmão. Um dado interessante sobre as mortes das personagens bíblica e nassariana diz respeito ao destino de ambas. Elas não podem fugir a ele; estão ancoradas à predestinação fatal. Cristo em muitos momentos no “Novo Testamento” refere-se a seu destino, isto é, está ciente de como sua vida terminará; ele próprio faz menção a isso: “Ainda não chegou minha hora” (João, 2, 4). E: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu filho unigênito [...]” (João, 3, 16), para morrer na cruz a fim de salvar o mundo. O ultimo verso do texto de são João confirma esse pensamento acerca de Jesus (“Estas coisas aconteceram para que se cumprissem as escrituras”). O destino de Ana, tal como o de Jesus, também estava predestinado, embora seja André, e não a vítima, o conhecedor da tragédia que recai sobre a família (“para cumprir-se a trama de seu concerto, o tempo, jogando com requinte”). Todo o capítulo 15 de Lavoura arcaica trata sobre o destino, mais precisamente sobre o maktub alcorânico do qual ninguém pode escapar. 28
Conforme se lê em Mateus, 27, 40: “[...] salva-te a ti mesmo! Se és Filho de Deus, desce da cruz”.
81 [...] que encenações as do destino usando o tempo (confundia-se com ele!) [...] desde menino, eu não era mais que uma sombra feita à imagem do destino [...] foi um milagre, querida irmã, e eu não vou permitir que este arranjo do destino se desencante, pois eu quero ser feliz [...] foi uma milagre, querida irmã, foi um milagre, eu te repito, e foi um milagre que não pode reverter [...] (NASSAR, 1989, p. 118120. Grifo nosso). [...] que paixão desassombrada, que espasmos pressupostos! afundei no corredor pisando numa passadeira de perigo, um tremor benigno me sacudia inteiro, mas nenhum ruído nos meus passos, nenhum estilhaço, nenhum gemido no assoalho, logo me detendo onde tinha de me deter, estava escrito: ela estava lá, deitada na palha, os braços largados ao longo do corpo [...] e foi numa vertigem que me estirei queimando ao lado dela, me joguei inteiro numa só flecha [...] (NASSAR, 1989, p. 103. Grifo nosso).
Os excertos acima demonstram o pensamento do narrador em relação à predestinação, ao destino, ao maktub, ao está escrito entre André e Ana: ambos estão predestinados a vivenciar a paixão; esta, um arranjo do destino e o tempo encarregar-seia para que a união entre os irmãos se concretizasse. Ana também tinha um destino para si – pagar com a própria vida, assim como Jesus, pela paixão que lhe é interditada. Paixão e morte no texto bíblico e no romance de Raduan Nassar se estruturam “para cumprir-se a trama” do destino. André nos faz saber que a trama do destino (o que já estava escrito) traz Ana até a casa velha para a celebração do amor entre eles, que segundo o herói é um milagre do qual não há como se desrealizar. Se André, conforme se observa no primeiro excerto, está aferrado ao próprio destino, pois se confunde/se mistura a ele, não existe possibilidade de fuga; o que “está escrito” deve ser realizado, pois “cada um cumpre o [seu] Destino”, como afirma o sujeito lírico de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa (2005). Para André Luis Rodrigues (2006), essa expressão (“está escrito”) tem ressonâncias bíblicas, e isso pode ser observado no discurso do filho de Deus. Quando Cristo encaminha-se para o deserto para uma peregrinação de quarenta dias e é tentado três vezes pelo diabo, as respostas de Jesus às investidas do diabo em dissuadi-lo em relação a seu propósito espiritual são categóricas: à primeira tentação, o filho de Deus diz: “[...] Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mateus, 4, 4. Grifo nosso); ao segundo intento de Satanás, “Respondeulhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus” (Mateus, 4, 7. Grifo nosso); e a derradeira resposta de Cristo ao diabo é: “[...] Vai-te, Satanás! Pois está
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escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás” (Mateus, 4, 10. Grito nosso), afugentando-o. A expressão utilizada por Cristo é o mais eficaz dos argumentos, pois com ela vence todas as tentações empreendidas por Satanás: “O que quer que o diabo faça ou diga, ele será sempre derrotado, pois assim (pre)determinou o Criador” (RODRIGUES, 2006, p. 37). Com as personagens de Lavoura dá-se o mesmo – tudo está determinado a se deslizar a um destino do qual não há possibilidades de alterações, por mais que os membros da família invistam contra; se assim não fosse, os sermões diários de Iohána durante as refeições, a constante vigilância de Pedro sobre todos, teriam alterado o destino trágico que se abateu contra a família. Ainda na esteira do pensamento de André Rodrigues (2006), o “está escrito” utilizado por Jesus remete-se a seu pai, o próprio Deus; é a palavra revelada aos profetas e que, num tempo determinado, deveria ser cumprida. E, de igual modo, o maktub do avô também representa a escritura de Deus. Nesse sentido, tanto o Alcorão como a Bíblia são, entre outras, as “fontes” da escritura nassariana e representam, com a mesma estrutura semântica, respectivamente o maktub e o “está escrito”. Cristo é morto, segundo a vontade de seu pai, isto é, Deus entrega a sacrifício o que lhe é mais precioso – seu filho – para a redenção da humanidade. Nesse sentido, seria Deus o assassino de seu filho? Talvez Lavoura arcaica nos indique uma resposta quando o pai Iohána mata a filha. A única maneira que Deus tem para reestabelecer um mundo de justiça “[...] é sacrificar aquilo que Lhe é mais precioso, Seu próprio filho – nesse sentido, Deus, ele mesmo, é o derradeiro Abraão” (ŽIŽEK, 2015, p. 28). De igual modo, na narrativa nassariana o patriarca busca reestabelecer a ordem desestabilizada pela relação incestuosa entre os irmãos. Em sua forma mais elementar, o sacrifício repousa sobre a noção de troca. Ofereço ao Outro algo que me é precioso para receber de volta do Outro algo que me é ainda mais vital (as tribos “primitivas” sacrificam animais ou mesmo humanos, de modo que os deuses as recompensem, com chuva suficiente, vitória militar, etc.) (ŽIŽEK, 2015, p. 35).
Em relação ao sacrifício de cruz fica evidente que Cristo é o objeto de troca; é dado pelo resgate da humanidade, da salvação desta, do livramento da morte eterna. Mas a quem Cristo é oferecido? Para Slavoj Žižek (2015), o Outro aqui é o diabo, pois “[...] Deus teve de pagar ao Diabo, nosso ‘possuidor’ quando vivemos em pecado, a fim
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de que o Diabo nos libertasse” (ŽIŽEK, 2015, p. 29). Cristo dado como sacrifício resgatou-nos, então, das garras de Satanás. Ana, diferentemente de Cristo, é sacrificada para expiar sua própria culpa/pecado, e é oferecida a Deus; o objeto a ser recuperado é a ordem familiar. Reestabelecida a ordem, o patriarca continuaria sendo o grande líder da família; isso nos faz pensar que para além da eliminação do demônio do incesto, o painarciso quer manter-se no posto de guardião da ordem. De acordo às palavras de Slavoj Žižek e Boris Gunjević (2015), hodiernamente tudo é permitido àqueles que agem em nome de Deus; isso equivale a afirmar que em nome de Deus há permissão para matar, subjugar, aterrorizar milhares de inocentes: “[...] tudo é permitido (para aqueles que se legitimam como servos de Deus)” (ŽIŽEK; GUNJEVIĆ, 2015, p. 39). Nesse sentido, Iohána é legitimado por leis moral-religiosas para empreender o assassinato de Ana; a legitimação utilizada para esse ato homicida é a relação incestuosa entre os irmãos, reprovada por Deus29. É estranho pensar sobre um Deus, cujo amor à humanidade é incondicional, mas entrega seu único filho à crucificação e aceita o assassinato praticado em seu nome. Também o conto “Menina a caminho” e a novela Um copo de cólera podem ser pensados pela perspectiva da crucificação de Cristo. Embora não haja nessas duas narrativas a eliminação letal dos corpos, como em Lavoura arcaica, existe uma estreita relação entre a violência perpetrada contra o filho de Deus e as personagens femininas – a costureira e a namorada do chacareiro; estas, como Jesus, são expostas e agredidas diante de algumas pessoas, sofrem injúrias, são xingadas, ameaçadas, humilhadas. Essas mulheres são vítimas de seus próprios companheiros, homens com quem convivem. Igualmente acontece com Cristo, pois são seus compatriotas que exigem de Pilatos a crucificação.
A casa está tomada, mas a voz forte de Zeca Cigano, sobrepondo-se ao berreiro das crianças e os gritos da mulher, de repente explode: “Cadela!” Marido e mulher se pegam num rude bate-boca que se prolonga até que um silêncio inesperado, de curta duração, faz apertar, uma contra a outra, as mãos da vizinha junto à cerca. Não demora, ela ouve a primeira chicotada, acompanhada de uma falsa inquisição: “Quem é que te ofendeu?” E ouve a segunda chicotada, acompanhada também de uma falsa inquisição: 29
A epígrafe que abre a segunda parte de Lavoura arcaica é um verso extraído do Alcorão: “Vos são interditadas: vossas mães, vossas filhas e vossas irmãs”, indicando em que Iohána se justifica para matar a filha. Ana e André não fazem menção à regra alcorônica e aquela paga com a vida por essa infração à lei religiosa.
84 “Quem é que me ofendeu?” A tala da cinta vibra no ar, um estalo terrível quando o couro desce na bunda da costureira. A vizinha não se contém e chora crispando as mãos na madeira da cerca. Pelo vão falho entre duas ripas, se esforça por passar pro quintal vizinho, vencendo o obstáculo à custa de um rasgão no vestido. Corre com dificuldade, alcança a escadinha que dá acesso à cozinha, entra na casa pelos fundos, passa pelas crianças em desespero com a cabeça apertada entre as mãos, vai direto ao quarto do casal: “Piedade pra tua mulher, Zeca, piedade!” [...] “Você está louco, Zeca? Piedade! Piedade! Piedade!” suplica aos gritos, mas é repelida c’um safanão no peito. A mão já no ar, o Zeca Cigano prende o novo golpe, vendo com súbito espanto a boca da mulher que sangra (NASSAR, 1997, p. 46-47).
A costureira, conforme se observa, sofre maus tratos públicos – todas as personagens que formam parte desse núcleo narrativo presenciam, sem muito ou nada poder fazer em relação à agressão física e simbólica empreendida por Zeca Cigano. Ora, não bastasse a violência extrema, (“A mão já no ar, o Zeca Cigano prende o novo golpe, vendo com súbito espanto a boca da mulher que sangra”), o homem a agride de forma simbólica – “cadela” –, subjuga-a, desumaniza-a, e a mulher, por nada poder fazer, “entrega-se” ao sofrimento até que o agressor se canse. Tampouco os intentos da vizinha servem para salvar a costureira da violência do marido; aquela também é agredida: “A vizinha se atira contra ele: ‘Você está louco, Zeca? Piedade! Piedade! Piedade!’ suplica aos gritos, mas é repelida c’um safanão no peito” (NASSAR, 1997, 47). Há uma violência generalizada que, parece-nos, justificase pelo ódio do marido em relação à mulher; não fica claro no texto que esta tenha cometido qualquer delito para sofrer uma punição – senão a suspeita não declarada de um relacionamento extraconjugal – o que nos faz pensar na inocência da costureira, pois não é possível afirmar em que consiste seu crime, tal como acontece em relação à crucificação de Cristo. Nesse sentido, “O sacrifício é, em última instância, o gesto pelo qual visamos compensar a culpa imposta [...]” (ŽIŽEK, 2015, p. 40), indicando que a culpabilidade é algo imposto por outrem e este é quem executa o sacrifício ao culpado. Já discutimos em outro momento deste trabalho que não existe uma resposta consensual entre a crítica que afirme em que consiste o crime de Jesus Cristo que o leva à crucificação; daí que tanto o filho de Deus como a costureira são massacrados mais pela culpa imposta pelo outro do que por um delito concreto. N’Um copo de cólera a personagem feminina também é vítima, tal como a costureira, sofre violência física, assédio e injúrias que denigrem sua imagem pessoal e
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conduta moral. Os motivos pelos quais a personagem masculina empreende a agressão à namorada são banais; tudo começa com uma discussão aparentemente ordinária e vai tomando proporções gigantescas até que a violência extrema é desencadeada; é a partir desse conflito que o chacareiro justifica a agressão empreendida contra a mulher, logo, podemos inferir que também nessa narrativa a mulher é inocente, mas culpabilizada pelo outro que a vitimiza.
[...] minha arquitetura em chamas veio abaixo, inclusive os ferros da estrutura, e eu me queimando disse “puta” que foi uma explosão na boca e minha mão voando outra explosão na cara dela [...] (seria sim no esporro e na porrada!), por isso tornei a dizer “puta” e tornei a voar a mão, e vi sua pele cor-de-rosa manchar-se de vermelho, e de repente o rosto todo ser tomado por um formigueiro, seus olhos ficaram molhados, eu fiquei atento, meus olhos em brasa na cara dela, ela sem se mexer [...] (NASSAR, 1992, p. 69-70). [...] e eu vi então que eu tinha definitivamente a pata em cima dela [...] e só fiquei um tempo olhando pra cara dela entorpecida e esmagada debaixo dos meus pés, examinando, quase como um clínico, e sem qualquer clemência, o subproduto da minha bruxaria [...] (NASSAR, 1992, p. 74-75).
A agressão à personagem feminina é explícita – apanha no rosto e caída no chão tem a cabeça presa pelos pés do agressor. A violência empreendida está para além do ataque físico, o chacareiro a leva à última instância e é o próprio agressor quem diz: “[...] não basta sacrificar um animal, é preciso encomendá-lo corretamente em ritual [...]” (NASSAR, 1992, p. 76). A mulher é desumanizada, convertida numa espécie de animal (corpo abjeto), logo, qualquer tipo de violência pode ser empreendida contra ela. O sujeito que perde a humanidade torna-se propício à violência, ao sacrifício, à eliminação letal do corpo, pois não há nenhum problema em eliminar o não-humano, o animal outro, conforme veremos mais adiante. As personagens de Um copo de cólera e do conto “Menina a caminho”, respectivamente a personagem feminina e a costureira, sofrem uma série de injúrias, assédios, violência física e simbólica. São sujeitos-personagens expostos ao público – a personagem feminina aos funcionários da chácara; a costureira a seus familiares e à vizinha; ambas não recebem (ou não podem receber), como Jesus Cristo, nenhum auxílio dos que estão próximos e se entregam à violência por não terem condições de se defender. Talvez a violência empreendida contra Ana, de Lavoura, seja a que mais se aproxima com a de Cristo, pois ambos têm a eliminação total do corpo. À personagem
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nassariana não é dada a oportunidade de defesa, sequer de dizer acerca de seus sentimentos em relação a André, e tal como o filho de Deus, é condenada por seu pai à morte pela paixão que sente pelo irmão, em meio a uma multidão de pessoas, mais a presença de sua mãe.30 É interessante notar que as pessoas (multidão) que presenciam a morte de Ana e de Cristo são partícipes de uma festa; uma festa negra, diríamos, que culmina com a morte das personagens. Aquela é assassinada na festa em comemoração ao retorno de André à fazenda; o filho de Deus é crucificado, conforme Terry Eagleton (2009), às vésperas da festa do feriado de Páscoa. Há uma subversão da prática festiva tanto em Lavoura arcaica como na Bíblia, pois o que deveria ser comemoração e alegria transforma-se em luto, dor, silêncio.
2.5. Animal-bestializado: o homem em Raduan Nassar Não ter nascido bicho é uma minha secreta nostalgia. Eles às vezes clamam do longe muitas gerações e eu não posso responder senão ficando inquieta. É o chamado (Clarice Lispector) Acerca da desumanização do ser, um trabalho bastante interessante é o ensaio Literatura e animalidade, de Maria Esther Maciel, onde a pesquisadora trata de apontar a relação entre animais humanos e não humanos no interior do texto literário. Sobre os não humanos nada podemos afirmar de sua subjetividade, pois não somos capazes de acessar/compreender seus signos. Nós, os humanos, não os entendemos, mas somos capazes de submetê-los a toda espécie de violência: confinando-os, torturando-os, escravizando-os, mutilando-os e matando-os em série. Maciel (2016) faz um recorte no tempo para indicar historicamente onde tudo começa, e remonta a Montaigne, no já distante século XVI, em seus Ensaios, perpassando por escritores que lidam com o tema, até chegar a Derrida, em seu O animal que logo sou. 30
Em todos os textos dos evangelistas aparece a presença das mulheres que acompanham a crucificação de Jesus Cristo: Mateus, 27, 56; Marcos 15, 40; Lucas, 23, 49. No entanto, é são João quem narra claramente a presença da mãe de Deus, que permanece junto à cruz sofrendo com ele: “Junto à cruz de Jesus estava a sua mãe, a irmã dela, e Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena” (João, 19, 25).
87 Ninguém mais pode negar seriamente e por muito tempo que os homens fazem tudo o que podem para dissimular essa crueldade, para organizar em escala mundial o esquecimento ou o desconhecimento dessa violência que alguns poderiam comparar aos piores genocídios (DERRIDA, 2002, p. 52).
Diante das palavras do filósofo está evidente as ações destrutivas do homem em relação aos animais não humanos, e, como forma de não corromper a autoimagem de humano que é, dissimula, cria artifícios, nega a crueldade empreendida contra o outronão-eu. O homem se vê, então, detentor de um poder sem equivalente em qualquer outra espécie. Para Maria Esther Maciel (2016), na esteira das proposições de Montaigne, a superioridade do homem é reafirmada nos tempos modernos no antropocentrismo renascentista; daí que o homem alocado no centro de tudo recebe o poder para fazer qualquer coisa, inclusive perpetrar as mais terríveis formas de violência. Para além da falta de outridade ao animal não humano, o homem é capaz de empreender atos de crueldade contra o próprio homem.
Ao recriminar a tortura e a morte cruel dos bichos (ele cita seu próprio desconforto diante do sacrifício de um frango), Montaigne não deixa de associar – como fizeram Plutarco e Ovídio – a crueldade dos homens contra os animais e a crueldade dos homens contra os próprios homens (MACIEL, 2016, p. 34).
Há uma analogia entre a violência contra os bichos e a contra os homens, pois como não relacionar a morte em série de bois em confinamento ou de uma multidão de galinhas nas granjas com o primeiro genocídio do século XX perpetrado contra os armênios ou a bomba atômica lançada sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, ou ainda o bombardeio sobre a população de Guernica? Como não encontrar semelhanças na prática laboratorial com ratos ou outros animais e os experimentos empreendidos contra os judeus e, sobretudo, os homossexuais nos campos de concentração nazistas? Desvencilhar o bicho de todo e qualquer atributo humano traduz-se na legitimação para a violência atroz. Não há dúvidas de que com base nesse tipo de pensamento ególatra se produziu um dos maiores genocídios da história: o indígena empreendido pelos europeus no século XVI nas Américas. Nesse sentido, “[...] as práticas de violência dos humanos contra os humanos [são] consequências da relação de poder/dominação entre homens e animais [...]” (MACIEL, 2016, p. 51).
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Literatura e animalidade nos faz pensar nas fronteiras limítrofes – se é que elas existem – entre o homem e o bicho. A autora, ademais, recupera uma narrativa de Guimarães Rosa, o conto “Meu tio Iauaretê”, e nos mostra os deslimites entre o homem e o bicho. Esse conto:
[...] narra a estória de um onceiro que, de tanto conviver com as onças, acaba por interagir com elas, assumindo suas características (unhas, cheiro, braveza etc.) e transformando-se, após esse processo de interação, num matador de homens. Ou seja. O Iauaretê se torna um homem-onça [...] (MACIEL, 2016, p. 72).
Como em Guimarães Rosa, as obras de Raduan Nassar colocam em xeque a dicotomia homem vs. bicho. O humano antropocêntrico da razão elimina o outro – o seu outro. Em que se transforma o humano Iohána ao matar a filha? A personagem masculina, de Um copo de cólera, ao violentar a jornalista a ponto de ela permanecer imóvel com o rosto sob os pés do agressor? Zeca Cigano ao agredir tão severamente a costureira até sangrar? Em que tipo de bicho essas personagens humanas se transformam? A qual animal bravio e selvagem os gestos desses homens ancoram-se? Não temos uma resposta satisfatória para pensar/enquadrar esses sujeitos-personagens, mas, é certo, eles não escapam à selvageria que destrói o outro. Por que essas personagens agem dessa forma com as mulheres, utilizando a violência física e simbólica? Que conhecimento têm sobre si mesmos e sobre o outro – o outro-mulher – para empreender um poderio que a ameaça, a enclausura, a assedia, a injuria e de tal forma até transformá-la num ser abjeto, dissidente. “Porque” – Terry Eagleton nos dá a resposta exata – “o patriarcado ainda não foi derrubado” (EAGLETON, 2011, p. 04). Se na Idade Média, o homem justifica a violência contra o outro por intermédio da fé cristã, o Renascimento utilizando a razão como mote para os novos tempos, tampouco aplaca o espírito destrutivo da humanidade. O correr dos séculos cambia as paisagens urbanas, as culturas ao redor do mundo, mas a violência não é extinta. Derrida (2000) afirma que o mandado de não matar promulgado por Deus nunca foi entendido em sua plenitude, e, por mais contraditório que possa parecer, matamos em nome de nosso poderio conferido por Deus, os animais não humanos e, de certo modo, nos autojustificamos ao exterminar o homem, pois, parece-nos, e o que é pior, encontramos na justiça uma forma de perdão para o crime.
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É interessante notar que o Deus que proíbe o assassinato é o mesmo que no Gênesis, conforme indica Derrida (2000), confere ao homem superioridade sobre os outros animais31. É, então, a partir desta legitimação no princípio dos tempos que o homem passa a exercer seu poderio e os reflexos desta prática não estão apenas na literatura, mas também nos engendramentos sociais ao redor do mundo. A dubiedade aqui atribuída a Deus em relação às suas ações é a mesma que se observa em Iohána, personagem de Lavoura arcaica:
[...] mão nenhuma em nossa casa há de fechar-se em punho contra o irmão acometido: os olhos de cada um, mais doces do que alguma vez já foram, serão para o irmão exasperado, e a mão benigna de cada um será para este irmão que necessita dela, e o olfato de cada um será para respirar, deste irmão, seu cheiro virulento, e a brandura do coração de cada um, para ungir sua ferida, e os lábios para beijar ternamente seus cabelos transtornados, que o amor na família é a suprema forma da paciência; o pai e a mãe, os pais e os filhos, o irmão e a irmã: na união da família está o acabamento dos nossos princípios [...] hão de ser esses, no seu fundamento, os modos da família [...] (NASSAR, 1989, p. 61-62).
Iohána é tão contraditório quanto Deus – sobre este tema trataremos de forma mais detalhada no capítulo IV –; este concede poder supremo ao homem e o proíbe que extermine o seu outro; o patriarca em diversos momentos no romance exalta a união da família: o amor, a caridade, a benevolência e apregoa que esses elementos devem ser praticados por todos; um sempre deverá estar disposto a socorrer o outro que necessite. A família de Lavoura é uma espécie de religião, e o amor e a (re)união entre os fiéis são os dogmas exigidos pelo deus Iohána. No entanto, é o próprio deus quem destrói sua igreja, assassinando a filha, destruindo o amor e a união que supostamente os mantinham em unidade. O deus-pai, o gestor da união familiar, é quem produz a grande cisão irreparável; se assim não fosse, os membros da família exasperados não convocariam, numa espécie de rito, um lamento litúrgico-lírico: Pai! e de outra voz, um uivo cavernoso, cheio de desespero
31
Pai!
No primeiro capítulo do livro de Gênesis, Deus afirma “[...] Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra” (Gênesis, 1, 26). A dominação do homem dada pelo próprio Deus, conforme se observa, é absoluta, pois contempla todo o espaço da terra e os que nela habitam.
90 e de todos os lados, de Rosa, de Zuleika, e de Huda, o mesmo gemido desamparado Pai! eram balidos estrangulados Pai! Pai! onde a nossa segurança? onde a nossa proteção? Pai! e de Pedro, prosternado na terra Pai! e vi Lula, essa criança tão cedo transtornada, rolando no chão Pai! Pai! onde a união da família? Pai! [...] Iohána! Iohána! Iohána! (NASSAR, 1989, p. 193-194).
No subcapítulo O verbo sagrado afirmamos que em nenhum momento o patriarca é arguido por seu gesto assassínio, não lhe é solicitada nenhuma explicação, o que poderia parecer uma incoerência se levamos em consideração o modo como os membros da família reage à tragédia. O excerto acima demonstra, mais que qualquer tipo de cobrança ou explicações dirigidas a Iohána, a família em coro, carpindo, de modo ritualístico, a morte de Ana. Um ritual que, conforme as palavras do narrador, evoca “[...] um lamento milenar que corre ainda hoje a costa pobre do Mediterrâneo [...]” (NASSAR, p. 1989, 194). O clã evoca esse lamento por não acreditar que o guardião da união da família, o deus Iohána, empreende a derrocada do discurso ancestral sobre o amor e a irmandade que unem os membros familiares.
Os espaços em branco no excerto acima é a representação do silêncio, daquilo que não pode ser nomeado, o “fracasso” da linguagem propriamente dito; esta nem sempre é capaz materializar o evento que a precede. As personagens, nesse sentido, por não conseguirem nomear o gesto paterno, convocam o silêncio que, logo, é substituído por gritos, vocativos agonizantes, língua estrangeira (a língua materna da mãe). Nesse fragmento há “um verbo áspero”, há “a dor arenosa do deserto” (NASSAR, 1989, p. 194).
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2.6. Os silêncios nassarianos Não tente mais me contaminar com a tua febre, me inserir no teu contexto, me pregar tuas certezas, tuas convicções e outros remoinhos virulentos que te agitam a cabeça. Pouco se me dá, Paula, se mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o nome da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio (Raduan Nassar) Para Eleonora Frenkel, num ensaio sobre o silêncio, “Os espaços em branco no poema ‘Um lance de dados’ (1897) propõem um esforço para criar os vazios contidos nas palavras e as esperas em seus deslocamentos e contatos. O movimento da escritura inclui o silêncio, procura dar a ele uma materialidade” (FRENKEL, 2012, p. 50). Embora o Lavoura não seja um poema, senão um romance, pelo menos aqui queremos tratá-lo assim, é possível pensar que a função dos espaços/silêncios substituem o que não pode ser nomeado, o que não é possível ser descrito em linguagem, conforme já observado quando da morte de Ana. O uivo cavernoso de todos os membros da família para expressar a dor carregada de desespero não caberia em palavras, por isso o silêncio, dizendo o que não pode ser dito habitualmente; é o próprio inaudito. Desta hibridez de uivos, silêncios e linguagem de carpir, nada sabemos em concreto, mas supomos, preenchemos com significados que nos sejam próximos, tentamos escrever a leitura, como nos sugere Roland Barthes (2004). Entender o assassinato de Ana como um gesto de loucura por parte do pai remete-nos às proposições elaboradas por Michel Foucault, em seu A história da loucura, onde o autor trata de relacionar a loucura – na era da Antiguidade Clássica – e o silêncio. Na materialização da loucura: Não há possibilidade alguma de qualquer diálogo 32, de qualquer confronto entre uma prática que domina a contranatureza e a reduz ao 32
A palavra diálogo no texto de Foucault, pensando ainda nas contradições de Iohána, nos possibilita afirmar que o patriarca que sempre usou a palavra e o diálogo empreende um ato do qual ela é eliminada, isto é, não há diálogo; a passagem de Lavoura que segue endossa esse pensamento: “– Conversar é muito
92 silêncio e um conhecimento que tenta decifrar as verdades da natureza. O gesto que conjura aquilo que o homem não pode reconhecer permaneceu estranho ao discurso no qual uma verdade surge para conhecimento (FOULCAULT, 1978, p. 191-192).
É este silenciamento foucaultiano que está presente no excerto acima de Lavoura arcaica: um gesto que não pode ser mensurado, tratado num diálogo doméstico ou na mesa dos sermões paternos. O gesto de cólera-loucura de Iohána está contra a natureza do que se espera do guardião da família, logo, “estranho ao discurso” e, por conseguinte, silenciado. O que resta da festa de comemoração pela reconciliação entre André e a família, senão “[...] gestos silenciosos, violências sem palavras, comportamentos estranhos [...]”? (FOUCAULT, 1978, p. 262). É interessante notar que nada – após a morte de Ana – é dito. Ao gesto paterno o mais completo silêncio. O romance de Nassar não se fecha com a festa de André, há ainda o capítulo derradeiro em que o narrador, em memória ao pai, transcreve parte dos sermões, mas sobre Ana, um espaço vazio, uma lacuna que se traduzem de per si. O patriarca tão afeito ao diálogo e à conversação entre os membros da família, já nada pode dizer. Na narrativa “Esse mesmo diálogo é agora desfeito, o silêncio é absoluto, não mais existe entre a loucura e a razão uma língua comum” (FOULCAULT, 1978, p. 541). A exaltação ao silêncio, à palavra categórica, sintética, em detrimento às falácias que nada dizem, caracterizam o conjunto da obra de Raduan Nassar. É o movimento da escritura que inclui o silêncio e o escritor entende que há lugares impenetráveis para a escrita e que o silenciamento deve ser convocado. Entender esses domínios impenetráveis é ter a consciência de que a linguagem “falha” e que o inefável é, de fato, inescrevível. Ademais de Lavoura arcaica, nota-se um silenciamento em outros textos nassarianos: n’Um copo de cólera e nos contos “Menina a caminho” e “Hoje de madrugada”. O silêncio que figura no primeiro romance de Nassar – cuja função é substituir o que não pode ser dito/explicado, ou ainda a falta de diálogo quando os gestos de violência não podem ser contidos – também está presente nestas outras três narrativas. Após a violência exercida pelo chacareiro contra a personagem feminina, do Copo, e esta sair gritando e xingando, há um silêncio proeminente que paira sobre todo importante, meu filho, toda palavra, sim, é uma semente; entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a força do verbo em primeiro lugar [...]” (NASSAR, 1989, p. 162).
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o espaço de enunciação narrativa. A personagem masculina é resgatada pelos empregados Mariana e Antônio, ambos segurando-o pelos braços, calados, sem pronunciar palavra sobre o conflito entre o casal, o levam para dentro de casa.
[...] fiquei um tempo ali parado, olhando o chão como um enforcado, o corpo enroscado nas tramas da trapaça, estraçalhado nas vísceras pela ação do ácido, um ator em carne viva, em absoluta solidão – sem plateia, sem palco, sem luzes [...] (NASSAR, 1992, p. 78-79. Grifo nosso).
A personagem masculina, seu Antônio e dona Mariana nada dizem acerca do conflito de extrema violência. Parece-nos que todos eles estão acostumados a ela, pois parece um ritual ensaiado como num teatro e todos sabem exatamente como atuar em seus respectivos papéis. O que nos faz pensar que tal espetáculo costuma acontecer com frequência diz respeito à circularidade ou à forma espiralada como a obra está construída. Conforme já mencionamos, a novela começa e termina com o mesmo nome para o primeiro e o último capítulos – “A chegada” – o que, por efeito de sugestão, nos indica uma repetição de tudo: na chegada, no jogo de sedução erótico, na prática sexual, no arrefecimento dos corpos, na instauração de um conflito qualquer como desculpa para culminar na violência. No último capítulo d’Um copo de cólera nada se diz sobre a violência anterior praticada pela personagem masculina e como o primeiro capítulo também é “A chegada” e, de igual modo, traz um silenciamento sobre a última visita da jornalista. Visita a qual não se tem acesso, mas é possível supor, intuir a repetição dos eventos de forma deliberada entre as personagens. No conto “Menina a caminho” a personagem central encerra-se num mutismo em toda a narrativa, assim, tudo o que se sabe da menina é dito pelo narrador. A menina fala apenas quando é convocada a fazê-lo: primeiramente por seu Américo dono do armazém – “‘Que que você quer aqui, menina?’” (NASSAR, 1997, p. 43) – a quem diz um recado da mãe e, em seguida, a esta quando perguntada sobre a reação de seu Américo: “‘[...] que que aquele ordinário te fez? Conta, conta logo, anda!”’ (NASSAR, 1997, p. 45). Ao longo do conto há diferentes núcleos narrativos – com episódios e personagens diferentes que completam a estrutura global do texto – onde, na maioria deles, figuram as mesquinharias e a sordidez dos sujeitos-personagens que, de alguma forma, projetam-se de forma violenta contra alguém ou contra a própria menina. Esta
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nada diz ou faz, silencia-se diante às atrocidades que presencia. O silêncio converte-se numa espécie de resposta aos gestos que desrespeitam o outro. O que o agressor e as personagens – a menina, a vizinha – que presenciam a violência contra a costureira dizem? Não há falas/diálogos; o silêncio impera sobre a casa e as ações são mudas. E ao fim, “A menina [...] anda pela casa em silêncio, não se atreve a entrar no quarto da mãe. Deixa a casa e vai pra rua, brincar com as crianças da vizinha da frente” (NASSAR, 1997, p. 49). Essa passagem é o último parágrafo do conto, indicando a atmosfera de silêncio sobre a casa, ou ainda, o silenciamento de todas as personagens: a costureira no quarto, Zeca Cigano sai da casa e permanece em silêncio do lado de fora, a vizinha se retira com os dois filhos menores da costureira e a menina deixa a casa em direção à rua. São sujeitos compostos de silêncios pelo fato de não terem o que dizer diante dos acontecimentos e tampouco empreenderem um diálogo entre si para as devidas justificativas. No conto “Hoje de madrugada”, o sentido do silêncio não tem a ver com uma violência física, tampouco substitui uma dor atroz, mas antes, causado pela degradação de uma relação desgastada pelos anos de convivência, pela rotina que destrói todas as euforias e embaça a visão para qualquer entusiasmo. O silenciamento entre o casal – “Ela não dizia nada, eu não dizia nada” (NASSAR, 1997, p. 54) – tem a ver com o tratamento dado a outro tipo de violência, a da indiferença por parte do homem em relação à mulher; esta implora por afetos e como resposta a seu pedido, considerado patético pelo homem, recebe desprezo e mais silêncios. Durante praticamente toda a narrativa o casal está em contato um com o outro num cômodo da casa – o escritório do marido, no entanto, nenhuma conversação é empreendida entre eles, a não ser por um parco bilhete escrito pela mulher: “[...] ‘vim em busca de amor’ [...]” (NASSAR, 1997, p. 55), e, em seguida, uma resposta que também vem por escrito: “[...] ‘não tenho afeto para dar’[...]” (NASSAR, 1997, p. 55). Após o intento malogrado de diálogo, a mulher passa, então, a tocar o homem para despertar nele algum sentido, sentimento, desejo. Tal intento é, porém, rechaçado. O marido, como resposta aos toques, desvencilha-se de todos eles, desprezando as investidas eróticas da mulher.
Quando ela veio da janela, ficando de novo a minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos [...] tampouco me
95 surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos, subindo afoito, me queimando a perna com sua febre [...] mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira (NASSAR, 1997, p. 56-57).
A começar pelo título do texto de Nassar – “Hoje de madrugada” – em que se supõe silêncio e muitos dormem – tudo é silenciamento, distâncias, indiferenças e vazios. Essa atmosfera corrobora com os gestos das personagens, onde marido e mulher comunicam com silêncio seus respectivos desejos: ele, o desprezo e o alijamento à mulher; ela, afetos, toques, afagos, sexo. Nessa comunicação truncada ela diz o que ele “não ouve”, ele, por sua vez, responde o que ela “não entende”. Ainda em relação ao silêncio, o que está disposto na Bíblia sobre o sofrimento da mãe e dos outros familiares de Cristo pela morte de cruz? O que essa mulher diz acerca de perder um filho em condições sacrificiais? Ao longo das narrativas dos quatros evangelistas não há notícias acerca do luto dos membros da família (tampouco da mãe) do filho de Deus; os sentimentos dela de dor, luto, solidão, sofrem uma elipse. É sabido que em muitas passagens ao longo dos textos que conformam a Bíblia a voz da mulher é silenciada, aqui, no entanto, queremos pensar que o silêncio de Maria está ancorado nas proposições de Frankel e Foucault. A crucificação cometida contra Jesus Cristo, conforme dito anteriormente, não se justifica por algum crime que ele tenha cometido. É um gesto desumano, cruel e por que não dizer uma loucura perpetrada pela falta de razão de seus compatriotas e romanos. A loucura que leva Cristo à morte não tem explicação, é silenciada, como também o são a dor e o luto de Maria, a mãe, e dos companheiros. O silenciamento dos mais próximos é o discurso-resposta à violência extrema contra o filho de Deus. A dor – para os que amam Cristo não apenas como salvador/redentor da humanidade, mas também como irmão, amigo, filho, parente, – é uma espécie de território sagrado, silenciado, impenetrável. Vejamos os excertos do texto sagrado em que figuram essa questão:
Estavam ali, observando de longe, muitas mulheres que tinham seguido Jesus desde a Galiléia, para o servir./ Entre elas estavam Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e de José, e a mulher de Zebedeu (Mateus, 27, 55-56). Algumas mulheres estavam olhando de longe. Entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, o menor, e de José, e de
96 Salomé./ Na Galiléia estas mulheres tinham-no seguido e servido. Estavam também ali muitas outras mulheres que tinham subido com ele para Jerusalém (Marcos, 15, 40-41). Todas as multidões reunidas para este espetáculo, vendo o que havia acontecido, voltaram batendo no peito./ Entretanto todos os seus conhecidos, e as mulheres que o haviam seguido desde a Galiléia, estavam de longe contemplando estas coisas (Lucas, 23, 48-49). Junto à cruz estava a sua mãe, a irmã dela, e Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena (João, 19, 25).
Embora haja uma aparente contradição entre os três primeiros evangelistas e o último pela informação do distanciamento ou não das mulheres presentes no dia da crucificação33, elas, a mãe de Jesus Cristo, alguns amigos e seguidores, observam o gesto sacrificial resignados pela distância, no silenciamento causado pela dor e pelo extremo sofrimento do outro. Se existem queixas, reclamações, insultos de revolta e ódio, contra os que perpetram a morte do filho de Deus, não é possível saber, pois estão ao longe. A crucificação de Cristo é um dos últimos episódios das narrativas dos Evangelhos; depois destes segue o livro de Atos, supostamente escrito pelo apóstolo João. Esse livro registra as primeiras ações, conversões, milagres – a estruturação do Cristianismo – e não há notícias sobre a angústia do luto dos que amam ou convivem com Jesus quando vivo; daí o silêncio imperativo. Não nos parecem despropositadas as afirmações acerca do possível sofrimento de Maria, a mãe, e dos que são mais próximos do filho de Deus; é certo que tal sentimento existe, mas não está declarado, é silencioso. Talvez, igualmente sucede às personagens nassarianas, o silêncio das personagens bíblicas substitua o que ninguém gostaria de dizer/revelar. Dito de outro modo, o que não há condições de ser materializado com palavras é preferível o silenciamento. Assim, a família de Lavoura arcaica; as personagens masculina e feminina de Um copo de cólera; as personagens costureira, vizinha, menina e Zeca 33
Uma possível explicação dada a essa contradição no texto bíblico e aceita por uma parcela considerável da crítica eclesiástica diz respeito ao deslocamento das mulheres em relação à distância/aproximação da cruz de Jesus Cristo. Num primeiro momento as mulheres-personagens da Bíblia, mais precisamente de João, 19, 25, estão alocadas ao pé da cruz e por razões não explicitadas – mas conforme a citação abaixo, supomos que temam por suas vidas – deslocam-se e passam a assistir à crucificação de longe juntamente com outras pessoas. Observemos as palavras de Warren W. Wiersbe, em seu Comentário bíblico expositivo: Novo Testamento: "Um grupo de mulheres e o apóstolo João permaneceram algum tempo próximos da cruz. (Posteriormente, juntaram-se a um grupo de amigos do Messias que se encontrava mais afastado da cruz [Mt 27: 55, 56; Mc 15: 40, 41]. João cita especificamente quatro mulheres: Maria, a mãe de Jesus; Salomé, irmã de Maria e mãe de Tiago e João; Maria, esposa de Clopas e também Maria Madalena. Foi preciso grande coragem para permanecerem junto de Cristo em meio a tanto ódio e escárnio, mas a presença desses seguidores fiéis deve ter sido fonte de ânimo para Jesus" (WIERSBE, 2006, p. 495. Grifo nosso).
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Cigano de “Menina a caminho”; homem e mulher do conto “Hoje de madrugada”; as personagem dos Evangelhos, silenciam-se por não conseguir empreender um discurso que dê conta de revelar/materializar o que sentem. São, como já apontamos, sujeitospersonagens do silêncio; forjados no/pelo silêncio. As estéticas nassariana e sagrada colocam em xeque as falácias vazias e por cima destas alocam o silêncio que diz muito, pois “A palavra se liberta de sua necessidade de figurar, a narrativa se despoja da obrigação de se fazer inteligível, de fazer sentido” (FRENKEL, 2012, p. 62). Isso não significa o fim ou a derrocada do sentido ou uma recusa ao entendimento, mas antes, uma abertura infinda para as significações intermediadas pelos silêncios.
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CAPÍTULO III AS PERSONAGENS SAGRADO-NASSARIANAS
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3.1. Jesus Cristo e as personagens nassarianas: sujeitos da insurgência contra as estruturas social, cultural e cosmogônica Cristo não quis apenas cercar-se de lunáticos, ele mesmo quis passar aos olhos de todos por demente, percorrendo assim, em sua encarnação, todas as misérias da degradação humana: a loucura torna-se assim a forma última, o último degrau do Deus feito homem, antes da realização e da libertação da cruz. (Michel Foucault) [...] eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios, mas que existia uma outra medicina (a minha!) [...]. (Raduan Nassar) No capítulo anterior discutimos a inexistência de um crime concreto cometido por Jesus Cristo, que o levasse à condenação de morte na cruz; o que existe são várias atitudes – não infrações – que despertam o ódio entre o povo e os líderes religiosos judeus. O filho de Deus desestabiliza o discurso religioso e empreende outro mais humanístico e revolucionário que leva em consideração a dignidade da pessoa humana independentemente de suas ações. Colocar-se em contato, ao invés de alijar-se, com leprosos, bandidos, cobradores de impostos, mulheres de moral duvidosa, gente, de modo geral, de vida precária, não seria digno do filho de Deus, segundo o posicionamento da aristocracia religiosa judaica. Como não consta uma acusação plausível, talvez o conjunto das ações de Cristo, acima elencado, incorra em sua morte de cruz: “Alguns estudiosos consideram que a atuação de Jesus era mais que suficiente por si mesma para justificar sua prisão e execução” (EAGLETON, 2009, p. 15).
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É interessante notar que Jesus não tem em mãos nenhum poder bélico ou seguidores que possam construir um exército para empreender uma insurreição. Dito de outro modo, a empresa revolucionária praticada por Cristo está menos no âmbito do poder institucionalizado que no campo das ideias. A condenação, então, do líder religioso está na insubordinação que poderia levar seus seguidores a desestabilizar a ordem, a provocar a insurreição contra o establishment.
[...] o próprio Jesus tende a ficar na companhia daqueles (prostitutas, cobradores de impostos, e similares) que são egregiamente malcomportados. Esses estão fora da lei – não no sentido em que o estão, por definição, os não-judeus, mas no sentido em que suas vidas constituem um estado crônico de transgressão da lei. Como um ato de omissão que convincentemente teria chocado um judeu ortodoxo da época, Jesus nem mesmo pede a esses homens e mulheres que busquem o perdão antes de convidá-los a lhe fazer companhia. Para um profeta judeu, já é extraordinário misturar-se com tal corja; mais ainda ver nela os sinais do Reino de paz e justiça que se aproxima (EAGLETON, 2009, p. 21-22).
As palavras de Terry Eagleton a partir da leitura dos Evangelhos dão notícias de como Jesus Cristo vive, circula e atua na sociedade onde está. Não há dúvidas de que o Salvador é um revolucionário ao se aproximar e amar sujeitos marginalizados – a escória social. Ele é “[...] um espinho no flanco do sistema e um açoite para os ricos e poderosos” (EAGLETON, 2009, p. 26), por isso atrai de tal modo, com suas ações, o olhar dos líderes religiosos, logo, seu destino não poderia ser outro, senão a morte de cruz. É importante atentar que, e isso nos parece claro, Jesus por intermédio de suas ações escandaliza os defensores da tradição política e religiosa dos judeus. Daí que o filho de Deus incita a própria morte para que se cumpra a palavra das escrituras sagradas. Jesus Cristo é, nesse sentido, um estrategista: age de maneira a ser condenado sem cometer nenhum crime. O Messias está em descompasso com a sociedade vigente na qual está alocado; não apenas desdenha da ordem social, cultural, religiosa, estabelecida, como inscreve outro modus operandi aos que desejam segui-lo. Embora Cristo ame o Pai e cumpra todas as ordens divinas, propõe uma nova religião, outro modo de ver e de se relacionar com o outro. Isso também representa, de certo modo, outro descompasso, pois como entender a missão de Jesus – obedecer ao Deus da religião judaica e de igual modo desdenhá-la?
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Jesus Cristo é, então, o sujeito que desestabiliza uma estrutura não apenas religiosa, mas também sociocultural, invertendo determinados valores resguardados pelos guardiões da lei mosaica. Subverter qualquer estrutura posta como uma verdade dada e acabada, inclusive na agoridade, obriga o sujeito da subversão a pagar um alto preço. Seria o Messias uma personagem moderna se levamos em consideração suas ações? Se o comparamos com outros heróis de narrativas mais contemporâneas, Cristo não estaria tecendo as mesmas tramas para se impor contra um sistema social agonizante para o homem? André de Lavoura arcaica está em descompasso com a família, o sistema patriarcal, a forma como o pai conduz o clã familiar, a severidade do patriarcado, a falta de voz, o jugo paterno opressor, logo, podemos aproximá-lo ao próprio Cristo que durante todo o tempo que esteve entre os homens percorreu um caminho que vai na contra mão ao da sociedade. Ademais do narrador do Lavoura, pensemos também na personagem masculina de Um copo de cólera, sujeito deslocado do mundo e das proposições discursivas circundantes na sociedade; na personagem central de “Menina a caminho”, criança posta à margem por não estar enquadrada em nenhum espaço da mesquinha cidade interiorana, por onde circula; no narrador do conto “Ventre seco”, que nada espera de quem quer que seja, desinteressa-se por todo e qualquer assunto sobre a sociedade, as pessoas ou qualquer outra coisa; no redator de “Aí pelas três da tarde”, que é aconselhado pelo narrador a abandonar tudo para se livrar do peso esmagador da rotina imposta pelo cotidiano; nas personagens bacharel e Lucila, respectivamente dos contos “O velho” e “Monsenhores”34, que tampouco se sentem enquadradas aos engendramentos sociais aos quais pertencem e preferem caminhar na contramão do sistema posto: a primeira torna-se vítima de um sistema político por não se deixar 34
O projeto apresentado ao Programa de Pós-graduação em Letras, nível doutorado, do IBILCE/UNESP, em 2014, tinha como corpus as três obras do escritor Raduan Nassar: o romance Lavoura arcaica, a novela Um copo de cólera e o livro de contos Menina a caminho. Os contos acima elencados “O velho” e “Monsenhores” vieram a público em dezembro de 2016, com a publicação de Obra Completa, de Nassar, que além dos três livros, mais três textos foram acrescidos à obra do escritor, os dois contos já mencionados e um ensaio político-filosófico intitulado “A corrente do esforço humano”. Após a realização da leitura dos textos, até então inéditos, parece-nos imprescindível que sejam incorporados ao corpus desta tese para uma maior abrangência daquilo que queremos entender como o projeto estético nassariano. Para mais informações sobre Obra completa, vide: NANTES, Flávio Adriano. “Obra completa de Raduan Nassar”, In: Unespciência, n. 83, março de 2017. Disposto também no site (http://www.unespciencia.com.br/2017/03/literatura-83/). O texto na íntegra está disposto no capítulo V – Anexos – desta tese.
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subornar; a outra escolhe a loucura para se desvencilhar da ordinariedade da vida cotidiana de uma dona de casa. Para Georg Lukács (2000), houve um tempo na Antiguidade Clássica Grega em que o mundo foi pensado de forma homogênea: o homem alocado no interior de uma cultura fechada, onde a vida é imanente e nenhuma intempérie seria capaz de tirá-lo desse estado de coisas. O sujeito épico ou o herói épico é esse homem da total harmonia com o cosmus; não existe um abismo intransponível entre o seu interior e a exterioridade do mundo circundante. Esse homem, por não questionar suas ações e o sentido da vida, aceita o destino que lhe é posto e o vivencia. Sequer o tempo representa um problema em si, pois a palavra de ordem é cumprir o destino. Na cultura grega a estrutura é acabada, fechada, ou seja, o herói não tem nenhum conflito que lhe seja desconhecido, pois “[...] épica é vida, imanência, empiria [...]” (LUKÁCS, 2000, p. 53), logo, tudo lhe é familiar. O espaço do qual estamos tratando: É um mundo homogêneo, e tampouco a separação entre homem e mundo, entre eu e tu é capaz de perturbar sua homogeneidade. Como qualquer outro elo dessa rítmica, a alma encontra-se em meio ao mundo; a fronteira criada por seus contornos não difere, em essência, dos contornos das coisas: ela traça linhas precisas e seguras, mas separa somente de modo relativo; só separa em referência a e em benefício de um sistema homogêneo de equilíbrio adequado [...] (LUKÁCS, 2000, p. 29).
A aceitação da vida e do destino é tão intensa no interior dessa cultura fechada que, embora o homem conheça os contornos que o separam dos outros e do próprio mundo, a homogeneidade, a totalidade vigente, o mundo perfeito, acabado e fechado, não são dissipados. Esse mundo seria impensável no interior do conjunto da obra de Raduan Nassar pelo fato de as personagens estarem em total descompasso com a realidade social da qual formam parte. Pensemos no locus de enunciação de Lavoura arcaica, onde André, o herói nassariano, diferentemente do da épica, sente-se desterritorializado, alheio em relação aos outros membros familiares. Percebe o abismo imensurável que carrega na alma por não aceitar/entender/compactuar com o sistema imposto, despreza o Maktub35 35
O herói de Nassar despreza ou pelo menos subverte o Maktub familiar predicado pelo avô. André usa o próprio termo (está escrito) para justificar o amor em relação a Ana, alegando que o destino de ambos está ancorado à concretização da relação incestuosa.
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árabe da família, que funciona como uma espécie de bússola para a vida. Observemos o excerto abaixo enunciado por André ao ser arguido pelo pai por ter fugido de casa:
[...] acontece que muitos trabalham, gemem o tempo todo, esgotam suas forças, fazem tudo que é possível, mas não conseguem apaziguar a fome. [...] Eu tenho uma história, pai, é também a história de um faminto, que mourejava de sol a sol sem nunca conseguir aplacar sua fome, e que de tanto se contorcer acabou por dobrar o corpo sobre si mesmo alcançando com os dentes as pontas dos próprios pés, sobrevivendo à custa de tantas chagas, ele só podia odiar o mundo (NASSAR, 1989, p. 159-160).
André, ao falar para o patriarca acerca de sujeitos que trabalham de sol a sol e não conseguem aplacar a fome, ademais de dizer que também tinha a história de um faminto (sermão que o pai proferia durante as refeições: “Era uma vez um faminto” (NASSAR, 1989, p. 79)), não trata de outro sujeito senão de si mesmo por não se sentir pertencido à família, por não ter lugar à mesa familiar. Sente-se alheio e excluído, abandonado à própria sorte, aos prazeres que busca para aplacar a solidão que o assola. Assim como o narrador de Lavoura, a personagem masculina d’Um copo de cólera também se vê em desacordo com a sociedade, os membros dela e a maneira como está estruturada. O chacareiro não acredita nas instituições que ordenam as sociedades; estas, de acordo com o seu posicionamento, estão de certo modo destruídas e não há o que fazer para que possam ser salvas36. Ademais, execra as instituições legitimadas, não acredita nas relações humanas e tampouco em debates que tratam acerca da criação de uma sociedade mais humanizada. Ao contrário disso, vê esses debates como uma falácia que alguns lançam mão seja para se promover, ou para sustentar uma atitude hipócrita. Isso se explica quando o narrador se propõe “[...] a pensar que dogmatismo, caricatura e deboche são coisas que muitas vezes andam juntas, e que os privilegiados como você, fantasiados de povo, me parecem em geral travesti de carnaval [...]” (NASSAR, 1992, p. 50). A personagem de Um copo de cólera mantém um posicionamento niilista, pois desconstrói o status quo de verdade absoluta para uma série de elementos postos como adequados para a sociedade. 36
Raduan Nassar (ou talvez sua persona) tem um posicionamento semelhante ao de seus personagens. Em entrevista concedida ao Cadernos de Literatura Brasileira, ao ser perguntado: “Você também acha que há um excesso de verdade no mundo? Ao que responde: “Se há escassez ou excesso de verdade, isso não ia mudar a vocação deste mundo. Me desculpe, mas este planeta estava destinado desde sempre a ser a caca do Universo. Não deu outra” (NASSAR, 1996, p. 27). É importante mencionar que, ademais desta inferência, em diversos momentos da extensa entrevista dada por Nassar, ele se posiciona cético e desesperançado em relação às sociedades e seus engendramentos.
104 [...] são outras agora minhas preocupações, é hoje outro o meu universo de problemas; num mundo estapafúrdio – definitivamente fora de foco – cedo ou tarde tudo acaba se reduzindo a um ponto de vista, e você, que vive paparicando as ciências humanas, nem suspeita que paparica uma piada: impossível ordenar o mundo dos valores, ninguém arruma a casa do capeta; me recuso pois a pensar naquilo em que não mais acredito, seja o amor, a amizade, a família, a igreja, a humanidade; me lixo com tudo isso! [...] (NASSAR, 1992, p. 55).
Salta aos olhos o posicionamento da personagem que desacredita nas instituições e nas pessoas. Tudo está posto como algo irreparável, submerso ao caos e à contínua destruição. Nada que se diga ou faça poderá salvar a humanidade porque “Ninguém dirige aquele que Deus extravia” (NASSAR, 1992, p. 07)37 ou “ninguém arruma a casa do capeta”. Talvez a cultura grega da qual trata Lukács nunca tenha existido de forma fechada. É possível que o mundo da totalidade, dado, acabado não passe de uma representação ou uma realidade mítica: o herói que não se interroga, não vislumbra transcender o mundo, quer apenas habitá-lo existe apenas no interior da épica grega. Por outra parte, se esse mundo de fato existiu, ele ruiu, desapareceu: o homem abandona a imanência do ser, transcende e já não se vê em acordo/harmonia com o mundo onde habita. Por em marcha a atividade do pensamento significa abrir cisões, criar abismos intransponíveis entre “eu” e o mundo, entender que não há luz elucidativa, precisa – nem mesmo na psicanálise – para o interior cavernoso e carregado de sombras do homem. Com esses câmbios culturais mais a presença da tragédia e da filosofia na sociedade helênica “Nosso mundo tornou-se infinitamente grande [...]” (LUKÁCS, 2000, p. 31) e perdeu sua totalidade. As modificações na cultura grega alcançaram e atingiram o resto do mundo, pois este “[...] tornou-se grego no correr dos tempos, mas o espírito grego, nesse sentido, cada vez menos grego [...] perdeu-se para sempre” (LUKÁCS, 2000, p. 33). A cultura e o mundo mudaram e, por conseguinte, a épica também; esta, em termos genéricos, tornou-se o que mais tarde se convencionou chamar de romance. Para Lukács (1999), o romance apresenta características da grande poesia épica e ganha outros contornos trazidos pela burguesia, classe para a qual o romance é criado. Com a nova configuração do mundo: o homem atomizado, cindido entre o mundo e os demais, tornou-se um ser solitário – o novo herói romanesco. Nesse sentido, a 37
A citação acima é uma das epígrafes que abre a novela Um copo de cólera.
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personagem do Copo afirma: “[...] não tenho medo de ficar sozinho, foi consciente que escolhi meu exílio, me bastando hoje o cinismo dos grandes indiferentes... [...]” (NASSAR, 1992, p. 55). O sujeito, agora, age para si e responde apenas por suas ações, o que indica a suspensão da coletividade – totalidade do mundo. A solidão de André de Lavoura, o exílio da personagem masculina d’Um Copo, o total despertencimento da criança de “Menina a caminho” em todos os lugares da cidade, demonstram o quanto as personagens de Raduan Nassar podem ser entendidas por intermédio dos rasgos que compõem esse novo herói, o romanesco, que já não se enquadra aos lugares, aos padrões sociais, culturais, éticos, morais. Este novo gênero que, segundo Lukács (1999), nasce com Cervantes e Rabelais, e alcança o apogeu a partir da segunda metade do século XVIII, cujo mote tem a ver com a representação do quotidiano da sociedade burguesa, é considerado uma tipologia literária menor por não ter uma forma definida (a forma sem forma) e sofrer continuadas alterações, além de abarcar outras formas literárias, o que lhe confere o caráter heterogêneo. Seguindo esse pensamento, não seria um equivoco afirmar que o romance é um gênero literário “problemático” e, nesse sentido, a estrutura também está ligada ao herói romanesco.
[...] todos os horrores, todas as abominações da acumulação primitiva na Inglaterra, todo o desmoronamento moral e o arbítrio do absolutismo na França são desmascarados em imagens impiedosamente realistas. “Pode-se dizer que, [...] pela primeira vez, a realidade quotidiana é conquistada na literatura” (LUKÁCS, 1999, p. 102).
Se gênero é “problemático”, o herói também o é. Ambos são heterogêneos, fragmentados, atomizados e continuam sofrendo constantes modificações. O romance, então, mostra-se como “[...] o ‘peixe ensaboado’ da literatura: não há nada mais difícil de se pegar” (RAMA, 2001, p. 41), isto é, aquele que não se deixa classificar em estruturas categóricas. Em um mundo problemático e caótico já não é possível conceber a grande épica da cultura fechada, que representava o espaço da totalidade, dos elementos postos e acabados. O herói romanesco sai para as flâneries no sentido de aplacar seus desejos por entender seu lugar, seu conteúdo anímico, o sentido de sua existência. No entanto, é vã tal busca, e, ao fracassar, retorna ao seu interior de densas trevas existencialistas e pura solidão.
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André sai da fazenda e empreende uma viagem para distanciar-se dela, da família, do patriarcado proposto por Iohána. Nessa viagem não vislumbra apenas se alijar de um sistema castrador, mas também descobrir novos mundos ou o mundo que imagina existir e que não tem acesso, pois de acordo com os preceitos do pai, o mundo, para além das cercas da casa, é lugar de trevas, de perdição, onde a paixão e o desejo são imperantes: “[...] o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame de nossas cercas [...]” (NASSAR, 1989, p. 56). Essa inclinação por novos mundos, o atirar-se à paixão, aos desejos do corpo, não está apenas em André, mas também em Lula, o irmão mais jovem. O mundo do qual o patriarca busca alijar todos os membros da família existe e eles sabem disso – principalmente André e Lula – e querem vivenciá-lo. Observemos nos excertos as falas das duas personagens:
[...] o horizonte da vida não era largo como parecia, não passando de ilusão, no meu caso, a felicidade que eu pudesse ter vislumbrado para além das divisas do pai [...] (NASSAR, 1989, p. 24). _ Foi só você partir, André, e eu já vivia empoleirado lá na porteira, sonhando com estradas, esticando os olhos até onde podia, era só na tua aventura que eu pensava... Quero conhecer muitas cidades, quero correr todo este mundo, vou trocar meu embornal por uma mochila, vou me transformar num andarilho que vai de praça em praça cruzando as ruas feito vagabundo; quero conhecer também os lugares mais proibidos, desses lugares onde os ladrões se encontram, onde se joga só a dinheiro, onde se bebe muito vinho, onde se comentem todos os vícios, onde os criminosos tramam os seus crimes; vou ter a companhia de mulheres, quero ser conhecido nos bordéis e nos becos onde os mendigos dormem, quero fazer coisas diferentes, ser generoso com meu próprio corpo, ter emoções que nunca tive; e quando a intimidade da noite me cansar, vou caminhar a esmo pelas ruas escuras, vou sentir o orvalho da madrugada em cima de mim, vou ver o dia amanhecendo estirado num banco de jardim; quero viver tudo isso, André, eu vou sair de casa para abraçar o mundo [...] (NASSAR, 1989, p. 180-181).
No primeiro fragmento André relata sua experiência sobre sair de casa, vivenciar outras coisas que na fazenda seria impossível pela constante vigilância do patriarca e de Pedro, e demonstra sua frustração, pois as fantasias mundanas que tinha antes de sua partida são ilusórias – não encontra a felicidade que não tinha em casa. André, conforme já elucidamos acima, é o herói romanesco que sai para flanar, livrar-se da angustiante clausura de seu lugar, mas percebe que nada acontece e que não existe possibilidade de preencher o vazio existencial.
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Lula, assim como André o fez, também quer experienciar o mundo intensamente, usar o corpo para ações prazerosas, exaltar os desejos e as paixões, deambular sem direção. A personagem não quer se fixar em nenhum lugar, mas antes conhecer muitas cidades, frequentar lugares onde circulam pessoas com índole duvidosa – vagabundos, bandidos, jogadores, criminosos. A exceção de Lula, que ainda acredita nos prazeres que habitam o mundo para além da casa paterna, André e a personagem masculina de Um copo de cólera alcançam o entendimento, pela via da experiência, acerca da impossibilidade em aplacar os desejos. Essas personagens romanescas, assim, como Jesus Cristo, não se enquadram na estrutura familiar, não aceitam os discursos institucionalizados, não acreditam nas relações, em pontos de vista, negociações, em nada que tenha a intenção de organizar e/ou estruturar qualquer elemento na sociedade. Seria o filho de Deus um herói romanesco por ter semelhanças tão próximas às personagens nassarianas? As narrativas sagradas nos dão notícias do modo errante como Cristo atua em terras palestinas; modo, que nos parece, tão contemporâneo como o das personagens de Raduan Nassar. Para Lukács (2000), a forma do romance, diferentemente da épica, busca colocar em relevo as aspirações, os desejos mais profundos do sujeito, pois ele está sempre à procura de algo e trilha caminhos para se assenhorar de seu objeto do desejo e para alcançá-lo não há um balizador que desperte a consciência, indicando aprovação ou não. Nesse sentido, André desafia as leis do pai e da religião (“Vos são interditadas: vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs” – epígrafe que abre a segunda parte de Lavoura arcaica retirada do Alcorão, Surata IV, 23) para alcançar seu desejo: “Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome” explodi de repente num momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, “era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos” gritei de boca escancarada, [...] liberando a palavra de nojo trancada sempre em silêncio [...] (NASSAR, 1989, p. 109-110).
Num jorro lírico e convulso de palavras, a personagem expõe seu grande desejo como uma enfermidade que o acomete e da qual não há remédio. Revela um segredo perturbador e insuspeitado na casa: o amor incestuoso entre os irmãos, indicando um sujeito em desacordo e desarmonia com o mundo do patriarca. É o herói romanesco deslocado, subversor das regras, sem lugar e distanciado da casa paterna.
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Ainda que por outra perspectiva, o mesmo acontece com personagem de “Aí pelas três da tarde”, incitado pelo narrador a abandonar tudo: o trabalho, as pessoas à sua volta, as obrigações cotidianas, a não se importar com o que os demais irão pensar dessa atitude insana e sem explicações. O redator, então, sairia de cena pelo desconforto em relação ao mundo circundante, pelo tédio que o cotidiano provoca, por estar em descompasso com a vida ordinária de todos os dias: “[...] largue tudo de repente sob os olhares à sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso [e] dê uma largo ‘ciao’ ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida [...]” (NASSAR, 1997, p. 72). A personagem é convocada pelo narrador a abandonar a vida cotidiana, a que tudo indica não lhe é aprazível, e entregar-se a seus desejos que em nada estão de acordo com o que a sociedade espera de um cidadão comum; este tem uma série de obrigações instituídas social e culturalmente e dela não pode fugir, caso queira estar enquadrado, pertencido e reconhecido como um sujeito “adequado”. Expressar, pois, os seus desejos mais profundos, como o fazem André, a personagem masculina do Copo e o escrevente, indica o desacerto com as regras postas, o lugar onde estão e as pessoas com as quais convivem. Ainda de acordo com as proposições lukacsianas, os heróis da épica contam com o apoio dos deuses para enfrentar o destino que lhes é reservado: “[...] seja o esplendor do declínio ou a fortuna da fama que lhes acena ao final do caminho [...] eles jamais avançam sozinhos, são sempre conduzidos” (LUKÁCS, 2000, p. 87). Já os do romance perderam os deuses e habitam num mundo abandonado por eles, logo, “[...] a psicologia do herói romanesco é a demoníaca [...]” (LUKÁCS, 2000, p. 89). Daí que ele se encontra na completa solidão e não pode contar com a solidariedade divina, pois os deuses estão “mortos”. A personagem protagonista de “Menina a caminho” e as condições as quais está submetida nos dão o tom exato do abandono, da solidão, da completa falta de outridade. A menina não pode contar com ninguém, não recebe senão um desprezo contundente de quase todas as pessoas com quem cruza durante sua caminhada solitária. Estaria em descompasso com os que vivem na cidade ou com os que a assediam? Por não se enquadrar num determinado modelo de classe, ter os caracteres da pobreza incrustrados ao corpo, pertencer a uma família de moral duvidosa, de acordo com os preceitos da população, a protagonista está em total desacordo com as demais
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personagens. Não há espaço para ela nos lugares onde circula, não pertence àquele modus operandi dos habitantes da pequena cidade. “O ventre seco”, texto que também compõe a coletânea de Menina a caminho, pela forma como está estruturado, é possível nomeá-lo de conto epistolar38. O narrador, por intermédio de uma escritura bastante formal, dirige-se a Paula, sua namorada, para dissolver o relacionamento e para tal elenca as razões, enumerando quinze tópicos. O conto inicia-se com o seguinte período: “1. Começo te dizendo que [...]” (NASSAR, 1997, p. 61), indicando que o remetente da carta irá comunicar algo ao receptor – “[...] te advirto, Paula: a partir de agora, não conte mais comigo como tua ferramenta” (NASSAR, 1997, p. 62) – as razões de não querer mais formar parte da vida da interlocutora. Na epístola empreendida pelo narrador é possível observar, entre outros, os caracteres que compõem o herói romanesco, aquele em descompasso com o seu lugar. Os três fragmentos abaixo elencados nos fazem saber acerca dos sentimentos da personagem:
5. Sem suspeitar da tua precária superioridade, mais de uma vez você me atirou um desdenhoso “velho” na cara. Nunca te disse, te digo porém agora: me causa enjoo a juventude, me causa muito enjoo a tua juventude, será que preciso fazer um trejeito com a boca para te dar a ideia clara do que estou dizendo? É bastante tranquilo este depoimento, é sossegado, ao fazê-lo, me acredite, Paula, não me doem os cotovelos. Está muito certa aquela tua amiga frenética quando te diz que sou “incapaz de curtir gentes maravilhosas”. Sou incapaz mesmo, não gosto de “gentes maravilhosas”, não gosto de gente para abreviar minhas preferências (NASSAR, 1997, p 63-64). 7. Farto também estou das tuas ideias claras e distintas a respeito de muitas outras coisas, e é só pra contrabalançar tua lucidez que confesso aqui minha confusão, mas não conclua daí qualquer sugestão de equilíbrio, menos ainda que eu esteja traindo uma suposta fé na “ordem”, afinal, vai longe o tempo em que eu mesmo acreditava no propalado arranjo universal (que uns colocam no começo da história, e outros, como você, colocam no fim dela), e hoje, se ponho o olho fora da janela, além do incontido arroto, ainda fico espantado com este mundo simulado que não perde essa mania de fingir que está de pé (NASSAR, 1997, p. 64-65). 38
É interessante notar que o gênero epistolar está muito presente nos textos bíblicos, e tem a função de instruir as comunidades cristãs de diferentes lugares e o mais proeminente no ofício de escrever cartas é o apóstolo são Paulo, cujo conteúdo está centrado na admoestação e exortação de seus irmãos de fé. Nesse sentido, o conto de Nassar se aproxima da escritura epistolar paulina, pois o narrador-emissor-da-carta de “Ventre seco”, ademais de romper com a namorada, dá instruções concretas para que ela não se aproxime mais dele: “Não me telefone, não estacione mais o carro na porta do meu prédio, não mande terceiros me revelarem que você ainda existe [...] Teu baby-doll, teus chinelos, tua escova de dentes, e outros apetrechos da tua toalete, deixei tudo numa sacola lá embaixo, é só mandar alguém pegar na portaria com o zelador” (NASSAR, 1997, p. 66-67).
110 11. Não tente mais me contaminar com a tua febre, me inserir no teu contexto, me pregar tuas certezas, tuas convicções e outros remoinhos virulentos que te agitam a cabeça. Pouco se me dá, Paula, se mudam a mão de trânsito, as pedras do calçamento ou o nome da minha rua, afinal, já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio (NASSAR, 1997, p. 66).
Nos excertos 5º, 7º, 11º, da extensa carta destinada a Paula, há um efeito de inesperado ocasionado pelas razões que levam a personagem a romper com a namorada. Não há uma mágoa aparente – sequer o fato de ser chamado de velho lhe representa uma injúria – causada por um gesto da interlocutora que provoque um sentimento de ira/cólera; daí a maneira pausada, lúcida, que o narrador expõe seus motivos. Queremos pensar que o real motivo do rompimento está ancorado no que estamos discutindo acerca do herói em desacerto com a realidade, em desacordo com as proposições estabelecidas e postas no contexto social. Se assim não fosse, não diria categoricamente não gostar de gente, ou melhor, de “gentes maravilhosas”. Não gostar de pessoas é igual ou equivalente a não querer estar em contato, conviver, propor qualquer tipo de troca. O emissor da carta tampouco acredita nas ideias que circulam no interior das ciências nem em instituições que têm a função de organizar e estabelecer a ordem social. Não vê nenhuma possibilidade de reestabelecer uma ordem universal perdida; daí o mundo estar fadado ao fracasso em que se encontra. O último excerto, 11º, é a continuação do 7º porque o narrador segue afirmando que certezas e convicções não passam de falácias inúteis que em nada mudarão o que já está posto e que prefere não opinar – ao modo do escrivão Bartleby, personagem de Herman Melville – sobre nada, dando ao mundo o silêncio sobre todas as coisas. É bastante semelhante o modo como se posiciona o protagonista de “O ventre seco” e o da personagem masculina de Um copo de cólera; ambos empreendem um discurso dirigido às mulheres com as quais se relacionam e no interior deste demonstra um pensamento de completa descrença nas pessoas, instituições, nas proposições da ciência – sobretudo humanas –, em sentimentos, nos agenciamentos que propõem uma mudança redentora para um mundo caótico. Os heróis de Um copo de cólera e “Ventre seco” estão em consonância entre si e em relação aos caracteres que conformam o herói do romance luckacsiano, assim, parece-nos que a personagem do conto migra para a novela e nesse movimento o verbo ganha maior tensão e força, tornando-o colérico, convulso, assimétrico, violento.
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“Ventre seco”, em outras palavras, é uma “[...] espécie de embrião da novela Um copo de cólera” (LEMOS, 2010, p. 97). As palavras de Masé Lemos endossam o que anos mais tarde, na Revista Cult, cuja edição de n. 224 está dedicada a Raduan Nassar, André Luiz Rodrigues afirma sobre o conto: ‘“Ventre seco’ é uma espécie de redução minimalista de Um copo de cólera [...]” (RODRIGUES, 2017, p. 29). O apontamento de André Rodrigues sobre o conto não deve ser entendido como uma escritura menor, escassa de recursos estéticos e/ou carregada de lacunas, mas antes como algo em maturação, desenvolvimento, semente sob a terra. Já nos dois contos que conformam a “Safrinha” dispostos em Obra completa, não nos parece adequado o termo problemático – herói problemático – mas antes, o sujeito em descompasso/desacordo, como estão as personagens bacharel e Lucila, respectivamente dos contos “O velho” e “Monsenhores”. Em “O velho”, a personagem bacharel é um hóspede que vive numa pensão cujos proprietários são dois velhos, marido e mulher, e exerce a função de fiscal e pelo fato de exercer esse cargo passa a ser chantageado e ameaçado de morte. De acordo com as palavras do velho, o bacharel tem um comportamento irrepreensível, não se deixa subornar e ainda assim algumas pessoas da cidade tentam incriminá-lo. “Já tentaram subornar esse moço, Nita, e isso não é segredo pra ninguém, só que ele não é sujeito de suborno, eu disse, não é como outros que passaram por aqui e que se vendiam até por um trago de fernete. Mas isso eles não querem entender, nunca que vão aceitar isso, um funcionário público que cumpre seus deveres com o estado e com o povo” (NASSAR, 2016, p. 368).
Por efeito de sugestão é possível afirmar que o bacharel sofre uma tentativa de aliciação para que um grupo seja beneficiado ou obtenha favores escusos. Conforme se observa na passagem acima, todos os outros funcionários públicos que ocuparam o mesmo cargo do bacharel se corromperam, aceitaram algum tipo de benefício, indicando um estado generalizado de corrupção estatal do qual a personagem se desvia e não compactua. O narrador descreve o funcionário público como um sujeito tímido, misterioso, causando um efeito de estranheza nos que com ele convivem. Esse estranhamento pode ser visto quando o comparamos aos funcionários anteriores, os corruptos. “Reconheço só pelo arranque o carro dos que estão à minha caça, não aceitam que eu contrarie seus interesses” diz de modo intempestivo o
112 jovem coletor, a voz firme, fazendo-se ouvir excepcionalmente naquela mesa. “Não cedi a eles, quando se apresentavam como amigos, não me vendi depois, quando se diziam realistas, tentam agora me difamar como inimigo. Se não me dobrar a essa chantagem, matam” diz o moço e se tranca (NASSAR, 2016, p. 376).
A estranheza aqui deve ser entendida pelo modo como o funcionário público se posiciona perante seus chantagistas, pois todos os outros que ocuparam antes dele o mesmo cargo foram corruptíveis, se venderam por qualquer coisa (“até por um trago de fernete”). A personagem do conto, como muitas outras nassarianas, vai na contra mão de um determinado sistema imposto por regras sociais, culturais, idiossincráticas, políticas. O que o torna o herói desamparado, desprotegido, em descompasso, sem que ninguém possa salvá-lo. Os deuses que outrora guiavam os passos do herói épico, nada podem fazer. A divindade, alijada do herói romanesco, faz com que ele entre em colapso com o mundo e seus engendramentos e passe a vagar erroneamente pelo mundo e em conluio com o demônio para realizar seus desejos individuais, mas é traído por esta entidade que tripudia do sujeito quando da conquista de um desejo que se esvanece na velocidade do tempo. Nesse sentido, quem seria esse demônio? Talvez nada mais que o próprio interior humano. “Monsenhores”, conto que também compõe a “Safrinha”, em linhas gerais, aparentemente representa a vida cotidiana de duas amigas donas de casa: Lucila e Ermínia; esta, a narradora, com alguns longos fluxos de consciência, nos dá detalhes de sua vida e de sua amiga, mais precisamente sobre os trabalhos domésticos de ambas. Num desses momentos de trabalho, Ermínia é chamada com urgência para ir à casa de Lucila e Luca, seus compadres. Ao chegar depara-se com uma atmosfera de mistério: luzes apagadas, silêncio, casa abandonada dos cuidados domésticos; observa Luca, recolhido em si mesmo com um olhar de desesperação e alcança:
[...] Lucila num dos cantos do quarto, de cócoras, o olhar perdido [...] fiquei olhando demoradamente pra ela na esperança de encontrar um ponto de luz naquele seu olhar embaçado que não me enxergava, sofrendo ao vê-la encurralada no canto, a saia do vestido tinha descido pro colo, deixando as pernas, magríssimas, descobertas [...] (NASSAR, 2016, p. 396-397).
Lucila escolhe a loucura para perpetrar seu silêncio em relação ao mundo, abandonando assim, a vida cotidiana. Prefere o silêncio e a escuridão de seu quarto à vida gasta, sem sentido, pelas horas. A personagem encontra-se sozinha, perde a
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comunicação com o mundo circundante. Segundo as palavras da amiga, Lucila entra “[...] irremediavelmente num túnel de onde não sairia nunca mais [...]” (NASSAR, 2016, p. 397). Daí não ser inadequado afirmar que para essa mulher a loucura doa menos que exercer um papel social “adequado”. Um dado interessante a ser considerado, ainda em relação à vida ordinária de Ermínia, tem a ver com o fato de a narradora ao falar de si, dizer também de Lucila, pois se conhecem há muito e são amigas desde os tempos da escola.
[...] eu que tinha me proposto desde aquele dia dos monsenhores de vir à casa de Lucila, mas também é tudo tão corrido, é uma loucura, nem naquele dia, nem no seguinte, nem em outro, incrível como a gente se pega com o tempo, minhas crianças me deixam malucas, por cima tinha ainda a cocozeira do Zitinho, o meu mais novo, o dia inteiro com diarreia, imagine se o Miro não me faz largar a escolinha rural logo depois do nascimento do Tito, que é meu segundo, imagine só... imagine o que não seria agora, se possível alguma ordem [...] (NASSAR, 2016, p. 391). [...] o Miro tem razão quando diz que a gente não deve pensar muito, que é besteira eu ficar quebrando a cabeça, que nem é da minha conta ficar bulindo nessas coisas, que meu problema são só a casa e as crianças, nada mais que isso, a casa e as crianças (NASSAR, 2016, p. 393).
No primeiro fragmento, Ermínia, elucubrando consigo mesma, explica que a completa falta de tempo tem a ver com o motivo pelo qual não pode visitar a amiga. Esta, dias antes na casa da narradora, já demonstrava que algo não estava bem: um desacerto entre o sujeito e a contingência, um descompasso com a vida, um conflito imenso consigo mesma por ter o que não deseja e desejar o que não lhe é possível. Tanto na primeira como na segunda passagem da narrativa, está claro o lugar que a mulher ocupa na sociedade – o espaço doméstico e as atribuições que ele exige. Lucila e Ermínia ocupam esse espaço e suas vidas estão restritas a cuidar da casa e dos filhos, nada mais que isso, como o marido da narradora enfatiza mais de uma vez, enquadrando-a a uma prática orientada pelo sexismo patriarcal que dicotomiza as funções entre homens e mulheres, gerando desta forma, divisões e, por conseguinte, violência de gênero. Ermínia dá o tom exato para o que estamos pensando acerca da função da mulher quando diz que o marido fez com que ela deixasse a escola onde trabalhava, abandonando não apenas a profissão, mas talvez também um sonho de realização pessoal.
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Parece-nos que diferente de Ermínia, Lucila não está satisfeita com as obrigações, o sexismo, as leis patriarcais que lhe são impostas. Essa insatisfação não é recente, pois segundo a narradora, ao recordar os tempos de escola com a amiga:
[...] não queria acreditar, e foi então que sua imagem inteligente, petulante, desafiadora, me explodiu na memória, dizendo no nosso tempo de curso normal, naquele seu jeito exuberante, cheia de rebeldia, “nós não passamos de umas fêmeas menstruadas”, e eu ali, arcada, fiquei balbuciando em solidariedade feito uma tonta “fêmeas menstruadas”, “fêmeas menstruadas”, e repetia aquelas palavras de outro tempo [...] (NASSAR, 2016, p. 397).
É de um sistema patriarcal imposto às mulheres que Lucila se alija, montando às asas da loucura para alcançar a liberdade de um outrora roubada pelos engendramentos sociais. Assim como essa personagem, André e Lula, de Lavoura; a personagem masculina do Copo; o redator de “Aí pelas três da tarde”; a criança de “Menina a caminho”; o narrador de “O ventre seco”; a personagem bacharel de “O velho”; e Jesus Cristo, estão todos – cada um a seu modo – em descompasso com o lugar, o tempo, a cultura, o status quo; daí os conflitos que enfrentam, os assédios, as injúrias, e o desejo de se desterritorializar de seu lugar em direção a outro, vislumbrando uma vida mais vivível, respirável, reconhecível (Butler, 2016).
3.2. Erotismo, corpo, palavra: a lavra das paixões A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a sua direita me abrace. (O cântico dos cânticos) [...] pensei ainda no salto perigoso do reverso, quando ela de bruços me oferecia generosamente um outro pasto, e em que meus braços e minhas mãos, simétricos e quase mecânicos, lhe agarravam por baixo os ombros, comprimindo e ajustando, área por área, a massa untada dos nossos corpos [...]. (Raduan Nassar) No banheiro, a menina se levanta da privada, os olhos pregados no espelho de barbear do pai,
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guarnecido com moldura barata, como as de quadro de santo. Puxa o caixote, sobe em cima, desengancha o espelho da parede, deitando-o em seguida no chão de cimento. Acocora-se sobre o espelho como se sentasse num pênico, a calcinha numa das mãos, e vê, sem compreender, o sexo emoldurado. Acaricia-o demoradamente com a ponta do dedo, os olhos sempre cheios de espanto. (Raduan Nassar) Ao longo dos tempos sempre houve um desejo por parte de escritores, poetas, sexólogos, entre outros, em tratar por intermédio da linguagem os temas concernentes ao desejo, ao sexo, à sexualidade, ao erotismo. Por outro lado, desde tempos remotos existiu também uma forte vigilância de determinados setores sociais e aparelhos do Estado para censurar a criação de objetos em diferentes linguagens que tivessem aqueles conteúdos. A inquisição católica solicitava explicações a quem infringisse as santas leis; Flaubert precisou dar explicações à justiça sobre a prática afetivo-amorosa de Madame Bovary, em seu romance homônimo à personagem; mais recentemente, José Saramago teve sérios problemas em seu próprio país por ocasião da escritura de O evangelho segundo Jesus Cristo; Lavoura arcaica sofreu algumas retaliações por conta de seus conteúdos que agridem/questionam, entre outras coisas, o modelo tradicional de família. Da Idade Média à agoridade, o controle sobre o erótico dá-se pelo conluio entre as instituições religiosas e o Estado, como forma de preservar uma ética e uma verdade – que se querem incontestes – sobre a prática sexual dos sujeitos. Essas instituições, cada uma a seu modo, têm suas formas de combate sobre o que podemos inferir como os usos dos corpos.
O controle e as restrições aos textos considerados eróticos não são, todavia, acontecimentos recentes ou mesmo esporádicos. Nem tampouco privilégio exclusivo do Brasil. O grande censor da história, a Igreja Católica, já os situava no domínio das realizações humanas ideologicamente perigosas (DURIGAN, 1985, p. 22).
A prática sexual situa-se, então, na esfera do perigoso. É um elemento nefasto para a sociedade, que pode corromper os valores éticos e morais estabelecidos por instituições, como a igreja e o Estado. Para burlar a censura, artistas, poetas, escritores,
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lançam mão do erótico para escamotear os conteúdos de representação sexual, que aparecem na esfera do implícito, do não-dito, das entrelinhas, do balbucio e, desta forma, alocam-se na produção cultural das sociedades e passam a ser aceitos, convivendo com as produções reverentes que não afetam a moral e nem podem prejudicar o caráter do sujeito. O maior censor da história tem em seu livro sagrado, a Bíblia, diversas passagens que tratam da sexualidade: intrigas amorosas, prática incestuosa, traições. Vide o Cantico dos cânticos, um livro erótico por excelência; a trama entre Herodes, Herodias e Salomé39; a narrativa de Tamar e seu sogro, entre tantas outras. Como é possível a instituição da censura ser proprietária de textos que, nos parecem, depõem contra ela? Octavio Paz, em seu A dupla chama, afirma que os poemas salomônicos representam uma das mais belas obras eróticas que se tem notícia, no entanto, são lidos de forma alegórica: para os judeus, a união entre Israel e Jeová Deus, e, para os cristãos, a de Cristo e a Igreja. O que se tem, nesse sentido, é um problema de exegese canônica apregoada pela igreja, com o intuito de ocultar de seus textos sagrados os conteúdos eróticos.
[...] enquanto Salomão se contentava em decantar a sua favorita no Cântico dos cânticos, comparando-a a uma bela corça, etc. e tal, os exegetas católicos trataram de fazer uma leitura alegórica disso como a profecia do surgimento da Igreja Católica, e o amor de Cristo por ela. Transformando o texto salomônico em alegoria, legitimavam desse jeito a instituição em que estavam e da qual viviam. (KOTHE, 1986, p. 27).
Se o erotismo pode ser entendido como uma forma de apropriação dos elementos em torno à sexualidade, Octavio Paz tem razão de tratá-lo como a poética corporal, pois não é mera prática sexual animalizada no sentido stricto de reprodução; é, antes, cerimônia, rito, representação. “O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito [...]” (PAZ, 1994, p. 12). A sexualidade, o desejo, a união entre os corpos, o prazer, a fala ou o silêncio, estão presentes no erotismo para além do princípio primitivo do sexo que visa apenas à reprodução. 39
São Mateus (14, 1-12) e são Marcos (6, 14-29) narram os eventos em que Herodes se casa com Herodia, sua cunhada e mãe de Salomé; está, sobrinha e enteada, no banquete da festa dada àquele, dança de forma a seduzir o padrasto e tio que lhe promete qualquer desejo. Salomé lhe pede, então, incitada por sua mãe, num prato, a cabeça de João Batista que se posiciona contra a união de Herodia e Herodes, afirmando ser um casamento ilícito.
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A poesia por si só já representa o erotismo da linguagem, logo, o texto eróticoartístico tem uma dupla face erótica. “[...] a poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela própria, em seu modo de operação, já é erotismo” (PAZ, 1994, p. 12). Na esteira dessas proposições, afirmamos que Raduan Nassar empreende uma escritura erótica por excelência pelo manejo com as palavras e também por tratar acerca do amor, do desejo, da união entre os sujeitos da paixão – os irmãos Ana e André de Lavoura arcaica; os namorados de Um copo de cólera. Também o casal do conto “Hoje de madrugada”; o redator de “Aí pelas três da tarde”; a personagem-mulher-loira e o bacharel do conto “O velho”, estão, de algum modo, enlaçados à perspectiva do erótico. O romance Lavoura arcaica inicia-se com uma descrição erótica de André, num quarto de pensão. O espectador é convidado a entrar na narrativa, jogando desde o início com o narrador o jogo da erótica textual:
Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul, violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde nos intervalos da angústia, se colhe de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo [...] minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da fronte [...] o floco de paina insinuava-se entre as curvas sinuosas da orelha [...] (NASSAR, 1989, p. 09-10).
O excerto acima demonstra o trabalho de Raduan Nassar, manipulando as palavras para erotizar o corpo e seus elementos no quarto-catedral. André cria com o seu corpo a liturgia/o rito corpóreo na solidão desse quarto-inviolável-sagrado. A cena da masturbação é belíssima: não figura nenhuma palavra literal para descrevê-la, senão outras que a metaforizam: áspero caule, palma da mão, rosa branca. O que endossa o pensamento de Octavio Paz antedito em que afirma ser o erótico uma metáfora ou transfiguração da sexualidade. Com a personagem Ana não é diferente, ela aparece pela primeira vez, antes apenas mencionada, em uma das festas da família e entra em cena com uma enorme carga de sensualidade e erotismo, atraindo os olhares para si e incitando os desejos de André que a observava de longe:
[...] todos eles batiam palma reforçando o novo ritmo, e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de campônia, a flor vermelha
118 feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com destreza gestos curvos entre as frutas e as flores dos cestos, só tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento, mais ondulante, as mãos graciosas girando no alto, toda ela cheia de uma selvagem elegância, seus dedos canoros estalando como se fossem, estava ali a origem das castanholas, e em torno dela, a roda girava cada vez mais veloz, mais delirante, as palmas de fora mais quentes, e mais intempestiva, e magnetizando a todos [...] fazendo a vida mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação [...] (NASSAR, 1989, p. 30-31).
O extenso fragmento põe em evidência a personagem Ana, a cigana que dança para todos (especialmente para André), em uma das festas da família, e com desenvoltura movimenta o corpo – serpenteando lentamente, as mãos acima da cabeça – exibindo-o numa explosão de sensualidade. Ana de forma deliberada e libidinosa oferece ao olhar dos convivas magnetizados um corpo erotizado, desejável. Atua de modo diferente ao das demais irmãs, castas; diferente também porque (“mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo"). André, ao indicar que Ana e ele tinham a peste no corpo mais que qualquer outro membro da família, demostra que seus corpos são erotizados, impulsionados por um desejo irrefreável, como que possuídos pelo demônio do desejo, e embalados por esse desejo unem seus corpos num gesto incestuoso, de ruptura com a interdição: a lavoura dos corpos. Também a personagem masculina de Um Copo de cólera posiciona-se de modo bastante erótico; ao expor seu próprio corpo, utilizando a mesma estratégia de Ana, o faz para despertar o desejo da namorada. É sabido do narrador que a personagem feminina tem um desejo intenso pelo corpo dele e com isso em mente planeja os detalhes do que podemos mencionar aqui como prática erótica para atrai-la à relação sexual.
[...] eu me sentei na beira da cama e fui tirando calmamente meus sapatos e minhas meias, tomando os pés descalços nas mãos e sentindo-os gostosamente úmidos como se tivessem sido arrancados à terra naquele instante, e me pus em seguida, com propósito certo, a andar pelo assoalho, simulando motivos pequenos pra minha andança no quarto, deixando que a barra da calça tocasse ligeiramente o chão ao mesmo tempo que cobria parcialmente meus pés com algum mistério, sabendo que eles, descalços e muito brancos, incorporavam poderosamente minha nudez antecipada [...] e eu, sempre fingindo, sabia que tudo aquilo era verdadeiro, conhecendo, como conhecia, esse seu pesadelo obsessivo por uns pés, e muito especialmente pelos
119 meus, firmes no porte e bem feitos de escultura, um tanto nodosos nos dedos, além de marcados nervosamente no peito por veias e tendões, sem que perdessem contudo o jeito tímido de raiz tenra, e eu ia e vinha com meus passos calculados, dilatando sempre a espera com mínimos pretextos [...] (NASSAR, 1992, p. 12-13).
Salta aos olhos a maneira estratégica como o narrador constrói uma atmosfera erótica, utilizando os objetos do corpo, as roupas e o lugar, convergindo tudo para si, inclusive o leitor a participar de uma espécie de ménege à trois, pois os envolvidos: narrador, personagem feminina e receptor/leitor são partícipes da sedução planejada minuciosamente e perpetrada pela personagem masculina. A personagem-narradora sabe o caminho que deve trilhar para a união dos corpos e é nesse caminho que queremos pensar a estruturação do erotismo. A demora empreendida (“dilatando sempre a espera com mínimos pretextos”) é a maneira encontrada para levar o erotismo à máxima potência, tal como acontece com o texto literário: “Literatura é a linguagem carregada de significado [...] é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível” (POUND, 2006, p. 32). A personagem masculina com a namorada erotiza em grau máximo as palavras, os corpos, o leitor. Na esteira das proposições acerca do erotismo, não há como não reconhecer os ecos d’O cântico dos cânticos nos textos de Raduan Nassar: em Lavoura, o amor entre os amantes dá-se em meio a cheiros, sabores, unguentos. Uma verdadeira celebração ao amor brindada com vinho aromático: “Cantares, como Lavoura, oscila entre o lirismo e o drama para encenar o canto nupcial, momento em que o encontro amoroso é festejado com óleos, alabastros e mel” (SEDLMAYER, 1997, p. 53). Como é possível um texto-poema – tão desconforme em relação aos outros livros no que diz respeito ao conteúdo secular, amoroso, de união entre os corpos dos protagonistas – conformar a Bíblia, livro proeminentemente ortodoxo-religioso? Sedlmayer (1997) afirma que os três livros atribuídos a Salomão (Provérbios, Eclesiastes e O cântico) ficaram durante algum tempo excluídos do conjunto canônico bíblico e só entraram no cânone após uma interpretação alegórica e figurada, que atribuiu, conforme já disposto acima, a Cristo a figura de Salomão e à Igreja a de Sulamita, amenizando desta forma os conteúdos profano-eróticos. Para Julia Kristeva (1998), o texto salomônico difere-se dos outros que compõem o canon bíblico por não haver nele um amor-lei, amor-obrigação, amorimposição para com Deus, mas um canto, uma oblação quase pagã ao amor entre o
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homem e a mulher. Nesse sentido, queremos pensar que o poema funciona, em termos estéticos, como um paradigma para o amor, o desejo, o corpo, a sexualidade, o erotismo, assim, os amantes Sulamita e Salomão saltam do texto sagrado e alocam-se em Lavoura e metamorfoseiam-se respectivamente em Ana e André. No texto salomônico os corpos, o desejo, a aproximação, a união dos amantes são representados por metáforas. Também a comunicação entre eles dá-se por intermédio de metáforas; estas são elaboradas a partir de elementos do mundo natural. “Os amantes buscam um ao outro por meio do mundo e da linguagem [...] A metáfora liga eu e outro, homem e natureza, signo e referente” (LANDY, 1997, 328).
Enquanto o rei está assentado à sua mesa, exala o meu nardo o seu perfume./ O meu amado é para mim um ramalhete de mirra; morará entre os meus seios./ Como um ramalhete de hena nas vinhas de EnGedi, é para mim o meu amado./ Como és formosa, ó amiga minha! Como és formosa! Os teus olhos são como os das pombas./ Quão formoso és, ó amado meu! Quão amável és! [...] (O cântico dos cânticos, 1,12-16).
No fragmento os amantes evocam um ao outro por meio de uma linguagem metafórica com elementos do mundo/natureza. A amante entre aromas refere-se a seu amado como um ramalhete de mirra, que habitará entre seus seios, ou seja, estará sempre entre seus braços, na junção dos corpos, em íntima união. Em seguida, o amante toma a palavra e exalta a beleza de sua amada e, na sequência, a amante retoma o discurso para também se referir à beleza do amado. A mútua exaltação entre eles feita a partir de elementos do mundo e da natureza (En-Gedi, oásis localizado a oeste do mar morto; ramalhete de mirra e hena, vinhas, pombas) os aproximam e os unem. É sabido e aceito pela crítica literária que o texto literário sempre nasce a partir de outros textos e nunca de um vácuo ou vazio literário. Estrutura-se não no sentido hebraico (haja), mas no grego (fazer). Este fazer é uma espécie de apropriação do alheio, “roubo” de palavras, de ideias, de estruturas para a concretização do objeto artístico. Não se trata, no entanto, de questões da velha crítica que diz respeito à filiação, à paternidade, à dívida, mas de livre trânsito entre os textos que são postos em circulação. Tampouco tem a ver com meras cópias ordinárias, mas um ato de recriação/re-elaboração de elementos. Michel Schneider pergunta-se de que é feito um texto? Ao que responde:
121 Fragmentos originais, montagens singulares, referências, acidentes, reminiscências, empréstimos voluntários. De que é feita uma pessoa? Migalhas de identificação, imagens incorporadas, traços de caráter assimilados, tudo (se é que se pode dizer assim) formando uma ficção que se chama o eu (SCHNEIDER, 1990, p. 15).
Não se sabe com exatidão de que é feito um texto ou uma pessoa. Ou melhor, são feitos de elementos tão variegados, divergentes, distintos, que não é possível precisar nossa composição nem a dos textos. A escritura é uma espécie de desarquivar de memória; esta contém o nosso “eu” plasmado de tantos outros, logo, esse conteúdo desarquivado também será híbrido, impreciso, enigmático. Freud (2011) comparou nosso inconsciente ao bloco mágico, lugar de acúmulo de todos os eventos aos quais muitos são esquecidos pelo sujeito. A escritura é, em partes, reflexo desse bloco e a origem do conteúdo não pode ser precisado nem pelo próprio escritor. Deste modo, Nassar lança mão d’O cântico, e dá, em outro contexto, a seus personagens uma carga de erotismo, sensualidade, desejo, prazer, tal qual Salomão o faz.
[...] Te vestirei então de cetim branco com largas palas guarnecidas de galões dourados, ajustando nos Teus dedos anéis cujas pedras guardam os olhares de todos os profetas, e braceletes de ferro para Teus punhos e um ramo de oliveira para Tua nobre fronte; resinas silvestres escorrerão pelo Teu corpo fresco e limpo, punhados de estrelas cobrirão Tua cabeça de menino como se estivesses sobre um andor de chão de lírios; e alimentos tenros Te serão servidos em folhas de parreira, e uvas e laranjas e romãs frescas, e, de pomares mais distantes, colhidas da memória dos meus genitores, as frutas secas, os figos e o mel das tâmaras, e a Tua glória então nunca terá sido maior em toda a Tua história [...] (NASSAR, 1989, p. 106). O teu umbigo é como uma taça redonda a que não falta bebida. O teu ventre é como monte de trigo, cercado de lírios./ Os teus dois seios são como dois filhos gêmeos da gazela./ O teu pescoço é como a torre de marfim. Os teus olhos são como as piscinas de Hesbom, junto à porta de Bate-Rabim. O teu nariz é como a torre do Líbano, que olha para Damasco./ A tua cabeça é como o monte Carmelo. Os cabelos da tua cabeça são como a púrpura; o rei está preso pelas suas tranças./ Quão formosa, e quão adorável és, ó amor em delícias!/ A tua estatura é semelhante à palmeira, e os teus seios aos cachos de uvas (O cântico dos cânticos, 7, 2-7).
Em uma análise contrastiva entre os dois fragmentos, fica evidente a aproximação entre os textos tanto na estrutura como na temática: os protagonistas masculinos dirigem-se a suas amadas, utilizando metáforas (elementos da natureza), além de exaltar a beleza (“Tua nobre fronte”. “Quão formosa és”) e os objetos
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corpóreos das amadas (dedos, punhos, cabeça, umbigo, ventre, seios, pescoço, olhos, nariz, cabelo). No texto de Raduan Nassar, o corpo é enfeitado, preparado (erotizado), deve estar limpo e fresco para a grande celebração – o amor – que será, de acordo com o amante-narrador, a maior glória para Ana. Já no salomônico, o corpo é metaforizado – comparado a lugares e a elementos da natureza também com o objetivo de enaltecê-lo (ventre como monte de trigo, pescoço como torre de marfim, olhos como piscina) como um caminho para a união dos corpos. Parece-nos que tanto em Lavoura como n’O cântico existe o que podemos denominar de lei-do-amor: uma espécie de gramática para a prática amorosa, um código de conduta para o amor e para o elemento erótico. E de acordo com essa lei, nos dois textos, há exaltação à beleza, ao corpo, ao amor; são exaltados também os sujeitos da paixão que participarão de um banquete: o do amor em delícias, envoltos a unguentos, cheiros, sabores. Para Octavio Paz (1994), o ato erótico desprende-se do sexo, é sexo e é outra coisa, o que endossa nosso pensamento sobre a atuação dos protagonistas dos textos, que está para além da mera sexualidade reprodutiva. As metáforas de ambos os textos são “[...] uma série intrincada de conexões entre a beleza do Amante ou da Amada e o mundo. Quanto mais elaborada e remota a comparação, mais universal a figura que ele ou ela será” (LANDY, 1997, p. 332). Na esteira dessas proposições, podemos afirmar que as metáforas salomônicas são desreferencializantes, pois podem ser utilizadas em diferentes objetos e desistoricizantes pelo fato de poder ser alocadas em diferentes contextos e épocas. Raduan Nassar, então, detém o que denominamos de inteligência estética, isto é, re-cria um texto tão antigo como o salomônico, desterritorializando o erótico e reterritorializando-o num contexto outro – rural brasileiro habitado por uma família de migrantes libaneses.
[...] num ledo sítio lá do bosque, debaixo das árvores de copas altas, o chão brincando com seu jogo de sombra e luz, teria águas de fontes e arrulhos de regatos a meu lado, folhas novas me adornando a fronte, o mato nos meus dentes me fazendo o hálito, mel e romãs à minha espera [...] Ana a meu lado, tão certo, tão necessário que assim fosse, que eu pensei, na hora fosca que anoitecia, descer ao jardim abandonado da casa velha, vergar o ramo flexível de um arbusto e colher uma for antiga para os seus joelhos [...] (NASSAR, 1989, p 114-115). Para onde foi o teu amado, ó mais formosa entre as mulheres? Que direção tomou o teu amado, e o buscaremos contigo?/ O meu amado desceu ao seu jardim, aos canteiros de bálsamo, para se alimentar nos jardins e para colher os lírios [...]/ Os teus dentes são como o rebanho
123 de ovelhas que sobem do lavadouro, e das quais todas produzem gêmeos, e não há estéril entre elas [...]/ Desci ao jardim das nogueiras para ver os renovos do vale, para ver se floresciam as vides, e brotavam as romeiras (O cântico dos cânticos, 6, 1-11).
Após a exaltação e a preparação do corpo para o amor, procede-se à ambientação, o locus (jardim) – para a concretização desse amor – que deve ser perfeito: luz, águas, ruído de fonte, árvores de copas altas, lírios e bálsamo. Para Francis Landy, o jardim, além de lugar que circunda os amantes, é a metáfora para a própria amada. Esse ambiente, com seus cheiros, temperos e delícias, representa o corpo da amada – a mulher como fonte erótica e de desejo sexual. A magnitude do corpo é outra vez retomada, ele deve ser agradável (hálito de romã, dentes brancos como os das ovelhas) e os amantes tendo os corpos preparados para a celebração do amor devem penetrar esse lugar de delícias, o jardim – o que também pode ser entendido como o próprio corpo da amada. Em Um copo de cólera também é perceptível o território propício para a concretização do amor. Desde o princípio da novela nota-se o lugar enquanto elemento que compõe o erótico, pois o primeiro capítulo da novela se encerra com os namorados indo em direção ao quarto – “[...] a gente se encontrou de novo no corredor, e sem dizer uma palavra entramos quase juntos na penumbra do quarto” (NASSAR, 1992, p. 11) – lugar onde o narrador faz uma extensa descrição de seu corpo de forma erotizada e, em seguida dá-se a junção dos corpos descrita em todo o segundo capítulo – “Na cama”.
[...] eu, fechando minha mão na sua, arrumava-lhe os dedos, imprimindo-lhes coragem, conduzindo-os sob meu comando aos cabelos do meu peito, até que eles, a exemplo dos meus próprios dedos debaixo do lençol, desenvolvessem por si sós uma primorosa atividade clandestina, ou então, em etapa adiantada, depois de criteriosamente vasculhados nossos pelos, caroços e tantos cheiros, quando os dois de joelhos medíamos o caminho mais prolongado de um único beijo, nossas mãos em palma se colocando, os braços se abrindo num exercício quase cristão, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a carne macia do coração, e de olhos fechados, largando a imaginação nas curvas desses rodeios, me vi também às voltas com certas práticas, fosse quando eu em transe, e já soberbamente soerguido da sela do seu ventre, atendia a um dos seus (dos meus) caprichos mais insólitos, atirando em jatos súbitos e violentos o visgo leitoso que lhe aderia à pele do rosto e à pele dos seios, ou fosse aquela outra, menos impulsiva e de lenta maturação, o fruto se desenvolvendo num crescendo mudo e paciente de rijas contrações, e em que eu dentro dela, sem nos mexermos, chegávamos com gritos exasperados aos estertores da mais alta exaltação, e pensei ainda no salto perigoso do reverso, quando ela de bruços me oferecia generosamente um outro pasto, e em que meus braços e minhas mãos, simétricos e quase mecânicos, lhe agarravam por baixo os ombros,
124 comprimindo e ajustando, área por área, a massa untada dos nossos corpos, e ia pensando sempre nas minhas mãos de dorso largo, que eram muito usadas em toda essa geometria passional, tão bem elaborada por mim e que a levava invariavelmente a dizer em franca perdição “magnífico, magnífico, você é especial”, e eu daí entrei pensando nos momentos de renovação, nos cigarros que fumávamos seguindo a cada bolha envenenada de silêncio, quando não fosse ao correr das conversas com café da térmica (escapávamos da cama nus e íamos profanar a mesa da cozinha), e em que ela tentava me descrever sua confusa experiência do gozo, falando sempre da minha segurança e ousadia na condução do ritual, mal escondendo o espanto pelo fato de eu arrolar insistentemente o nome de Deus às minhas obscenidades [...] (NASSAR, 1992, p. 14-16).
O narrador ao esperar que a jornalista retorne do banheiro, apresenta aos leitores num fluxo de consciência uma espécie de tratado sobre o erotismo: os detalhes que unem os corpos, a descrição pormenorizadas deles, as metáforas, o êxtase, o gozo, os ruídos e as palavras proferidas por ambos – elementos que se convergem numa explosão erótica. É o movimento do corpo para além do sexo; é sexo e imagem; sexo e corpo em simbiose; sexo e performance como num teatro: os corpos tramando uma narrativa carregada de desejo, êxtase, transe, provocando nas personagens uma espécie de alucinação que os retira da contingência, levando-os ao lugar dos desejos, o locus do amor, do erotismo. Os protagonistas de Um copo de cólera são dois sacerdotes de um ritual erótico-religioso e ambos empreendem um culto ao corpo, ao amor, ao prazer. Um dado interessante a ser apontado sobre o profano tem a ver com o elemento crístico utilizado pelo narrador quando compara, no momento do sexo, seus braços e os da personagem feminina com a cruz de Jesus Cristo (“os braços se abrindo num exercício quase cristão”). A profanação dá-se, ademais, na constante evocação de Deus no momento em que profere obscenidades. No excerto acima de Um copo de cólera não se observa elementos concretos em relação a determinados objetos do corpo e nem do ato sexual entre as personagens. Todas as informações sobre a prática erótico-sexual estão dadas a partir de um minucioso trabalho com as palavras e também de um jogo de metáforas carregado de imagens, indicando uma literatura erótica por excelência. E o casal de namorados prossegue com o ritual: Debaixo do chuveiro eu deixava suas mãos escorregarem pelo meu corpo, e suas mãos eram inesgotáveis, e corriam perscrutadoras com muita espuma, e elas iam e vinham incansavelmente, e nossos corpos molhados vez e outra se colavam pr’elas me alcançarem as costas num
125 abraço, e eu achava gostoso todo esse movimentos dúbio e sinuoso, me provocando súbitos e recônditos solavancos, e vendo que aquelas mãos já me devassavam as regiões mais obscuras – vasculhando inclusive os fiapos que acompanham a emenda mal cosida das virilhas (sopesando sorrateiras a trouxa ensaboada do meu sexo) [...] e eu ali, todo quieto e largado a seus cuidados, eu sequer mexia um dedo pra que ela cumprisse sozinha esse trabalho, e eu já estava bem enxaguado quando ela, resvalando dos limites da tarefa, deslizou a boca molhada pela minha pele d’água, mas eu, tomando-lhe os freios, fiz de conta que nada perturbava o ritual [...] e era extremamente bom ela se ocupando do meu corpo [...] eu só sei que me entregava inteiramente em suas mãos pra que fosse completo o uso que ela fizesse do meu corpo (NASSAR, 1992, p. 21-24).
A passagem acima é quase a íntegra do capítulo n’“O banho”, onde as personagens, ainda numa atmosfera de intenso erotismo, não têm pretensão de se retirar da igreja dos desejos – quarto/banheiro. O ritual não se dissipa de forma abrupta (“nada perturbava o ritual”), pelo contrário, estendem o mais que podem. E está evidente no texto literário o quanto esse ritual é prazeroso para o casal de namorados (“e eu achava gostoso todo esse movimento”). Daí que ambos estão completamente envolvidos nesse banho-cerimônia, onde um entrega-se ao outro sem nenhuma reserva (“eu só sei que me entregava inteiramente em suas mãos pra que fosse completo o uso que ela fizesse do meu corpo”). Durante o banho não há sexo (cópula), o que endossa as palavras de Octavio Paz já elucidadas nesse trabalho ao tratar do erotismo como um evento para além da prática sexual, mas algo que contém também cerimonia, rito, performance. As personagens, então, num jogo mútuo de sedução, erotismo, sexo, prazer, articulam uma poética do corpo. Está evidente que a relação sexual, o corpo, os objetos que o compõem, são poetizados, ritualizados, metaforizados, carregados de imagens e o amor, sentimento que funciona como motor para a concretização do erótico, é, de igual modo, poetizado, tratado de forma não convencional, deslizado da linguagem ordinária. Observemos os protagonistas do amor em Lavoura arcaica e no Cântico dos cânticos:
[...] Ana, tudo começa no teu amor, ele é o núcleo, ele é a semente, o teu amor pra mim é o princípio do mundo e eu fui dizendo numa insistência obsessiva, me fazendo crédulo, embora cansado dos meus gemidos, eu tinha os ossos perturbados! “entenda, Ana, que a mãe não gerou só os filhos quando povoou a casa, fomos embebidos no mais fino caldo dos nossos pomares, enrolados em mel transparente de abelhas verdadeiras, e, entre tantos aromas esfregados em nossas peles, fomos entorpecidos pelo mazar suave das laranjeiras [...] (NASSAR, 1989, p. 130).
126 Que belos são os teus amores, ó minha irmã, noiva minha! Quão melhores são os teus amores do que o vinho, e o aroma dos teus bálsamos do que o de todas as especiarias!/ Favos de mel manam de teus lábios, noiva minha! Mel e leite estão debaixo da tua língua, e o perfume dos teus vestidos é como a fragrância do Líbano./ [...] o nardo, o açafrão, o cálamo e a canela, com toda a sorte de árvores de incenso; a mirra e o aloés, com todas as principais especiarias./ És a fonte dos jardins, poço das águas vivas, ribeiros que correm do Líbano (O cântico dos cânticos, 4, 10-15).
O narrador do texto de Nassar expressa à irmã seu amor e o que ele representa (o princípio do mundo). Para André nada é mais importante, perfeito, sublime que o amor. Para tentar convencer a irmã a vivenciar com ele esse sentimento, o herói usa o Maktub do avô de forma subversiva, afirmando a Ana que o amor dos dois está escrito, predestinado, pois a matriarca que os gera, os alicia (“no mais fino caldo dos nossos pomares”)40 desde o nascimento. No texto salomônico o protagonista refere-se a sua amada como irmã, mas tratase de uma metáfora que os une ainda mais. Os amantes que são “estrangeiros” encontram-se no jardim e identificam-se como irmãos que partilharam o amor materno e o leite do mesmo peito, para assim, eliminar as distancias, a falta de intimidade, a vida pregressa que tiveram antes de se unirem no jardim. “A esposa que vem de longe é identificada com a irmã que partilhou de suas origens [...] uma irmã é metaforicamente uma esposa” (LANDY, 1997, p. 335). Diferentemente das personagens bíblicas, André e Ana, como irmãos, não necessitam eliminar distâncias, nasceram no seio da mesma família, cresceram juntos e se conhecem intimamente. Embora haja uma diferença parental entre as personagens (Sulamita/Salomão, que não são irmãos de fato vs. Ana/André, que são irmãos consanguíneos), ambos o textos – bíblico e nassariano – demonstram que os laços de irmandade é um agente propiciador para a concretização do amor. Ademais do Lavoura e d’Um copo de cólera, há três contos que podem ser pensados por uma perspectiva erótico-literária: “Hoje de madrugada”, “Aí pelas três da tarde”, “O velho”. Esses textos não têm a mesma perspectiva de desejo/paixão como acontecem no romance e na novela, mas as personagens empreendem um jogo erótico sempre em relação a uma outra personagem. 40
Esta expressão com referências diretas ao Cântico dos cânticos se trata de uma metáfora utilizada por André para tratar acerca do aliciamento perpetrado pela mãe; expressa os afetos, os carinhos e os toques da matriarca em relação aos filhos. Em outras palavras, para o protagonista, a erotização dos corpos dos filhos é iniciada pela mãe e esses afetos funcionam como um fio que enreda e une os irmãos.
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Em “Hoje de madrugada”, o narrador nos dá notícias de um fato que ocorre entre ele e sua mulher numa madrugada qualquer; a personagem entra no escritório do marido com o claro propósito de seduzi-lo: “Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola [...]” (NASSAR, 1997, p. 54). No primeiro parágrafo do conto já é perceptível um movimento de erotismo: a mulher, num gesto deliberado, vestida de camisola, busca chamar para si a atenção de quem a vê. O marido que (não) a observa afirma ser o corpo da mulher, obsceno, o que indica que já esteve na companhia dele em outros momentos. No interior do texto supor a obscenidade detrás das roupas não significa uma fantasia sexual com a mulher, senão um contato já concretizado entre ambos. Mas na madrugada específica em que se realizam os eventos entre o casal, o marido a despreza, mas ela não desiste de seu intento em seduzi-lo:
Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca (NASSAR, 1997, p. 56).
É clara a intenção da mulher em seduzir o marido e o faz com gestos bastante eróticos, utilizando pontos erógenos estratégicos: as unhas arranhando a nuca, os dedos que passeiam por regiões da cabeça e pescoço e penetram os cabelos, como se estivesse pedindo para ser penetrada. O homem, no entanto, se mantém irredutível, não se deixa seduzir: “[...] fechei minha mão no alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido [...]” (NASSAR, 1997, p. 56), e para se livrar da mulher: “Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar” (NASSAR, 1997, p. 56). A primeira tentativa da mulher (já de camisola) é a de pedir afeto, a segunda está na erotização do corpo do marido; na sequência ela empreende uma terceira e última tentativa de seduzi-lo:
Quando ela veio da janela, ficando de novo a minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote [...] e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos, subindo afoito, me queimando a perna com sua febre (NASSAR, 1997, p. 56-57).
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Os gestos eróticos por parte da mulher em relação ao marido continuam “agressivos”, pois ela não se importa com os rechaços empreendidos pelo homem e segue na busca por afetos. Nessa última tentativa não são as mãos, mas os pés utilizados na sedução e uma vez mais a personagem toma de assalto o corpo do homem, penetrando os pés na densidade dos pelos, indicando, por meio dos gestos eróticos – como num rito sexual –, um forte desejo. O homem despreza uma vez mais a mulher e “diz” em silêncio que não a quer, não a deseja e tampouco quer se relacionar sexualmente com ela, por mais que invista na sedução: “Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sob a cadeira” (NASSAR, 1997, p. 57). Embora não haja um efetivo encontro entre o casal – sexo – existe um jogo erótico e de sedução por parte da mulher. Em outras palavras, o sexo é inexistente, mas o erotismo é preponderante, o que confirma uma vez mais as palavras de Octavio Paz, que o erótico está para além da prática sexual, mas tem a ver com rito, estratégias corpóreas e discursivas, metáfora, imaginação, poética. O conto “Aí pela três da tarde” é uma escritura de apenas um parágrafo, logo sem muita falácia, o que não supõe superficialidade ou mutismo. Queremos aqui fazer um recorte no texto para pensar o erotismo em relação à personagem central, o jornalista que é incitado pelo narrador (“largue tudo de repente” (NASSAR, 1997, p. 72)) a ir para casa, sentir-se livre das amarras sociais, desvencilhar-se inclusive das roupas e gozar o sentimento de liberdade – é nesse ponto exato do conto que o corpo passa a ser erotizado/poetizado:
[...] suba sem demora ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes mínimas, quem sabe até em pelo, mas sem ferir o pudor (o seu pudor, bem entendido) [...] (NASSAR, 1997, p. 72).
O modo como é descrito o movimento da retirada da roupa e o efeito que isso gera ao corpo está estruturado de modo poético; o corpo, antes um objeto ordinário no sentido de comum é estetizado, ganha outra perspectiva, a do erótico. E numa espécie de gradação, a personagem liberta-se dos sapatos, depois fica “em vestes mínimas” e por que não despido (“em pelo”).
129 Feito um banhista incerto, assome depois com sua nudez no trampolim do patamar [...] Nada de grandes lances. Desça, sem pressa, degrau por degrau [...] circule pela casa toda como se andasse numa praia deserta [...] e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo mundo (NASSAR, 1997, p. 72-73).
Diferentemente da personagem do conto “Hoje de madrugada”, a de “Aí pelas três da tarde” não tem nenhum intuito de relacionar-se no que diz respeito a sexo com alguém. O que não significa que não possa haver erotização, pois a personagem passa a se movimentar nua pela casa e esse movimento é lento, permitindo que todos à sua volta possam vê-la. Percebe-se, ademais, a ternura no fazer, indicando que o jornalista empreende uma sedução; quer seduzir a todos. É erotismo, sedução, poética – a estetização do corpo para o outro. O conto “O velho” também pode ser pensado por uma perspectiva erótica empreendida por uma mulher-personagem em relação ao jurista. Ela figura no texto, ocupando a função, dada por um grupo de bandidos, de seduzir o funcionário para corrompê-lo. Aparentemente o caráter erótico passaria desapercebido à narrativa, pois não é, por assim dizer, o tema central. Uma leitura, no entanto, mais atenta demonstra como a questão do erótico representa um dos fios da urdidura que tece a trama.
Neste mesmo instante, uma loira de vermelho, a blusa do vestido com decote avantajado, colo e braços muito brancos, salta do banco traseiro como se procurasse ventilação, despregando seguidamente com a ponta dos dedos o tecido colado em parte à proeminência dos fartos seios (NASSAR, 2016, p. 370).
Na primeira aparição da mulher o erótico já figura na descrição do narrador que nos faz saber acerca da roupa sensual (decote avantajado), a cabeleira loira, o colo e os braços muito brancos. Além do decote, o vestido vermelho, em contraste com a pele muito branca, é apertado (“o tecido colado em parte à proeminência dos seios fartos”) e deixa os braços à mostra. Pensando no papel que a mulher deve exercer, ela usará o artifício do erotismo para seduzir o jurista e alcançar seus objetivos. Ademais de todos os elementos corpóreos que compõem a construção do erotismo, há também o perfume inebriante da mulher loira, como um elemento a mais operando na sedução.
130 [...] o perfume, estranho e suspeito, espalhando-se pela atmosfera escura. [...] o perfume se insinua em tudo: nas paredes, nas colunas de madeira enroladas por retorcidas trepadeiras, na fantasia falha da balaustrada. “Tem um cheiro forte de perfume em nossa casa, Nita” murmura intrigado (NASSAR, 2016, p. 379).
O perfume (estranho e suspeito = a sedutor) percebido pela personagem velho o intriga e toma conta da casa: parede, colunas, misturando-se às plantas, ao ar, à cerca da casa, tomando conta de tudo, enlaçando/seduzindo. É interessante notar que o elemento perfume (enquanto emanação aromática do corpo e de um determinado ambiente) pertence ao campo semântico do erótico. Sulamita e o rei Salomão, Ana e André, as personagens de “O velho”, têm seus corpos envoltos em cheiros aromáticos. Aquelas quatro primeiras personagens endossam esse pensamento, pois estão imersos em ambientes carregados de unguentos, alabastros, resinas perfumadas, incensos, aroma de plantas e frutas.
Afundando na cadeira, no outro extremo, o velho ouve primeiro o ruído discreto da maçaneta se abaixando, vê a meia folha da porta se abrindo, e se retesa quando a luz do quarto se acende sem ser acionada pelo moço, paralisando-o no instante em que ele ia transpor a soleira. Antes que recue, certa mão desenvolta surge pelo vão da porta e, alongando-se num braço obscenamente branco de mulher, enlaça por trás a cintura do moço, puxando-o pra dentro. E a mesma mão, sinuosa, fecha a porta, trancando-a à chave (NASSAR, 2016, p. 380381).
O velho testemunha o momento exato em que a mulher, aquela descrita de forma erótica, utilizando os recursos de sedução de que dispõe, atrai o bacharel e o arrasta para o interior do quarto. Por efeito de sugestão e a levar em conta alguns pontos do fragmento acima (“certa mão desenvolta surge pelo vão da porta e, alongando-se num braço obscenamente branco de mulher, enlaça por trás a cintura do moço, puxando-o pra dentro” e “a mesma mão, sinuosa, fecha a porta, trancando-a à chave”), a mulher consegue, por intermédio de um movimento erótico, concretizar a tarefa de seduzi-lo, perpetrando assim, a junção entre o corpo dela e o do rapaz. Raduan Nassar, como Prometeu que rouba o fogo sagrado dos deuses do Olimpo e o oferta aos mortais, ardilosamente surrupia o erotismo das santas escrituras e o entrega, por intermédio de seus textos, aos leitores que todos os dias devoram suas palavras que nunca morrem ou acabam, mas se renovam igual ao órgão do deus devorado todos os dias pela águia.
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O erotismo na literatura é um elemento milenar-arcaico, sem data, nem lugar, vem desde os tempos da criação dos textos do Antigo Testamento. O erotismo sagrado desdobrando-se, então, no interior dos tempos chega e filia-se ao conjunto da obra do escritor brasileiro: Lavoura arcaica, Um copo de cólera, “Hoje de madrugada” “Aí pelas três da tarde”, “O velho” – textos eróticos por excelência.
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CAPÍTULO IV A LAVOURA DE DEUSES
ouviste falar daquele homem louco que, depois de acender uma lanterna em plena luz da manhã, correu para o mercado e se pôs a gritar sem parar: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? Como lá se encontrassem muitos que não acreditavam em Deus, provocou gargalhadas. “Perdeu-se, talvez?”, disse um. “Extraviou-se como uma criança?”, acrescentou outro. “Ou está escondido? Tem medo de nós? Foi viajar? Emigrou?”, bradavam e riam em grande bulício. O louco pulou no meio deles e os transpassou com o olhar: “Aonde foi Deus?”, clamou. “Vou dizer-vos! Nós o matamos – vós e eu! Somos todos seus assassinos! Mas como o fizemos? Como podemos esvaziar o mar bebendo até a última gota? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? O que fizemos para desatar esta terra da corrente de seu sol? Aonde ela vai agora? Aonde vamos nós, distantes de todo o sol? Não é nosso um eterno precipitar-se? E para trás, de lado, para a frente, de todos os lados? Ainda existe um em cima e outro em baixo? Não estamos talvez vagando como através de um nada infinito? Não sopra sobre nós o espaço vazio? Não faz sempre mais frio? Não é sempre noite, e sempre mais noite? Não são necessárias lanternas em pleno dia? Não ouvimos o rumor dos coveiros que estão sepultando Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação de Deus? E no entanto os deuses estão se decompondo! Deus está morto! E nós o matamos! Como encontraremos paz, nós, o mais assassinos dos assassinos! Tudo o que de mais sagrado e de mais poderoso o mundo possuía até hoje perdeu o seu sangue sob os nossos punhais. Quem limpará de nós esse sangue? Com que água poderemos lavar-nos? Que festa sacrificial, que rito purificador deveremos instituir? Não é demasiada para nós a magnitude dessa ação? Não devemos nós também tornar-nos deuses para parecer pelo menos dignos dela? Mas houve ação maior, e quem nascer depois de nós pertencerá por isso mesmo a uma história mais elevada do que qualquer outra já ocorrida.” Nesse ponto o homem louco calou-se e fixou novamente o olhar nos seus ouvintes. Também eles estavam calados e o olhavam estupefatos. No fim, jogou ao chão a lanterna, que se quebrou e se apagou. “Venho cedo demais”, continuou. “Ainda não chegou o meu tempo. Esse grande evento ainda está a caminho e não chegou aos ouvidos dos homens. Raio e trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, as ações precisam de tempo, mesmo depois de ter sido realizadas, para ser vistas e reconhecidas. Esta ação ainda está sempre mais distante dos homens que as estrelas mais distantes – e no entanto foram eles que a relizaram!” Conta-se ainda que nesse mesmo dia o louco invadiu diversas igrejas, em todas entoando o seu Requiem aeternam Deo. Preso e interrogado, diz-se que apenas respondeu: “Que mais são essas igrejas além de tumbas e sepulcros de Deus?” (Friedrich Nietzsche)
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4.1. Deus: uma construção Pois eu também recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão,/ e, tendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo que é entregue por vós; fazei isto em memória de mim./ Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice dizendo: Este cálice é a Nova Aliança no meu sangue; fazei isto todas as vezes que beberdes em memória de mim. (I Coríntios) A epígrafe que abre o Capítulo IV, disposta no A gaia ciência, especificamente o aforismo 125, de Friedrich Nietzsche, trata de uma narrativa que tem como protagonista um louco que brada ao povo acerca da morte de Deus cujo assassino somos “nós”. Por que o filósofo dá esse pronunciamento a um demente? Seria, como consta do senso comum, pelo fato de que com os loucos está a verdade mais pura? De fato Deus está morto e não há quem conduza a humanidade – seu próprio assassino – órfã e sem saber que rumo tomar? Não estamos certos se o próprio Nietzsche acredita na morte de Deus ou se nesses termos, ele anuncia um mundo que já não pode ser mais regido apenas pela perspectiva da teologia, mas por perspectivas outras, como a ciência, por exemplo. Ora, se a ciência, o humanismo, a moral, a justiça, etc., estão ancorados à teologia, como é possível afirmar acerca da morte de Deus? Ele não morreu, pelo menos não completamente. Morreu e não morreu. Morreu, mas está entre nós (?). “[...] a morte de Deus, que Nietzsche proclama, é a morte de uma época histórica em que a humanidade produziu a si mesma em nome de Deus” (GALIMBERTI, 2003, p. 144-145). Se a humanidade ultrapassa as épocas, ela também o faz com a cultura, a religião e o próprio Deus. Assim, talvez a morte não seja de Deus, senão de uma ideia sobre ele; daí que de tempos em tempos Deus acaba por ser assassinado, mas ressuscita, tal como acontece com as ideias. Em outros termos: “Se efetivamente Deus se fez homem, no homem e nas suas práticas procuramos o rosto de Deus. A operação é inteiramente religiosa [...]” (GALIMBERTI, 2003, p. 149). Como poderia Deus estar morto se ele é o
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próprio homem?41 Deus efetivamente não poderia estar morto e se está deixou muitos
substitutos; entre eles, o próprio homem. Em Lavoura arcaica é possível observar a substituição de Deus: a deidade é substituída pelo avô, depois por Iohána e, na sequência, Pedro, o primogênito, já demonstra ser o próximo na sucessão.
[...] na doçura da velhice está a sabedoria, e, nesta mesa, na cadeira vazia da outra cabeceira, está o exemplo: é na memória do avô que dormem nossas raízes, no ancião que se alimentava de água e sal para nos prover de um verbo limpo, no ancião cujo asseio mineral do pensamento não se perturbava nunca com as convulsões da natureza; nenhum entre nós há de apagar da memória a formosa senilidade dos seus traços, nenhum entre nós há de apagar da memória sua descarnada discrição ao ruminar o tempo em suas andanças pela casa; nenhum entre nós há de apagar da memória suas delicadas botinas de pelica, o ranger das tábuas nos corredores, menos ainda os passos compassados, vagarosos, que só se detinham quando o avô, com dois dedos no bolso do colete, puxava suavemente o relógio até a palma, deitando, como quem ergue uma prece, o olhar calmo sobre as horas; cultivada com zelo pelos nossos ancestrais, a paciência há de ser a primeira lei desta casa, a viga austera que faz o suporte das nossas adversidades e o suporte das nossas esperas [...] (NASSAR, 1989, p. 59-60).
O pai à mesa traz ao contexto dos sermões a memoria do avô e exige – como uma ordem teológica – que a memória deste permaneça viva entre os membros da família (“nenhum entre nós há de apagar da memória”). Conforme se observa no excerto, o avô é uma espécie de deus no que diz respeito ao modo de atuar e o lugar que ocupa à mesa – a cabeceira.42 O avô de Lavoura, de acordo às palavras de Iohána, parece um ser inabalável, detentor da resposta categórica, exata, verdadeira, sagrada, para qualquer sujeito da família (“se alimentava de água e sal para nos prover de um verbo limpo”). Não se deixa abater pelas intempéries naturais e tampouco pelos conflitos que possam surgir no interior da família. O avô-deus é o substituto do Deus Supremo; aquele, num dado momento, sai de cena, mas se mantém vivo, por intermédio da memória resguardada por Iohána; este, ao morrer, permanece vivo, tal como o avô, pelo processo memorialístico empreendido por André. O avô mesmo morto continua atuando: vigia os membros da família, discorre 41
No primeiro capítulo do Gênesis já aparece o que estamos denominando aqui como um elemento substituto para Deus: “Então disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança [...]” (Gênesis, 1, 26). Se a deidade pode ser encontrada no rosto do próprio homem, afirmar acerca de sua morte literal (inexistência) seria no mínimo uma incoerência teológica. 42 Como o nome mesmo demonstra, cabeceira é o lugar onde se posiciona a cabeça; esta, segundo o Dicionário de símbolos (2012), detém a autoridade de governar, ordenar e instruir. Não é um mero dado contingencial o avô e o pai (significando aqui gerações que chefiam a família) sentarem-se um de frente para o outro, ocupando as duas cabeceiras da mesa.
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acerca do certo e errado, justo e injusto, etc. A presença do avô (tanto vivo como morto) pode parecer discreta, mas não passa desapercebida, arrebata a atenção de todos. Um exemplo, ainda no fragmento acima, acerca da imortalidade divina tem a ver com o discurso de Iohána ao afirmar “cultivada com zelo pelos nossos ancestrais, a paciência há de ser a primeira lei desta casa”, demostrando assim, uma prática exercida por gerações que não permite que a família se desvincule dos preceitos que se ancoram à deidade. Dito de outra forma, é a eterna presença de Deus ou de substitutos que exercem a função de “primeira lei desta casa”. Nessa perspectiva, o avô e Iohána são ao mesmo
tempo substitutos
de Deus
(representam-no no plano terrestre) e
respectivamente o deus-avô e o deus-pai pelas funções exercidas no interior da família. Sobre a morte e a manutenção da memória de Iohána: (Em memória de meu pai, transcrevo suas palavras: “e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poço”) (NASSAR, 1989, p. 195-196).
Toda a citação acima, o que está entre aspas, é a compilação ipsis litteris de um fragmento do sermão paterno disposto no capítulo 09 e recuperado pelo narrador, no capítulo 30. O pai, depois de assassinar a filha, morre num momento não preciso e cuja causa não figura em nenhum momento no texto literário, tem a memória resguardada, continua vivo em André e, por conseguinte, de alguma forma na família. A memória do patriarca resguardada por André, parece-nos, está na ordem do insólito, pois como é possível que a memória (o próprio Iohána) se mantenha viva se levamos em consideração que André o desafiou todo o tempo: desobedeceu a lei paterna, entregou-se às paixões, desestabilizou os alicerces supostamente sólidos da família pela relação incestuosa com Ana, foi o maior opositor do status quo paterno? Se atentamos para o sentimento do protagonista em relação ao pai – “(tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!)” (NASSAR, 1989, p. 35) – é no mínimo contraditório o posicionamento em resguardar a memória. É que os deuses não morrem. Caem, mas sobrevivem. Mantêm-se operantes porque “Não se pode
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continuar com o cristianismo tal como se apresenta, tampouco é possível continuar sem ele, no entanto” (EAGLETON, 2016, p. 126). Se substituímos o termo “cristianismo” por Deus/Jesus, esta estrutura empreendida por Eagleton não sofreria muitas alterações; daí uma existência para além da morte. Terry Eagleton (2016), pensando acerca das proposições de Nietzsche, afirma que a civilização está num limbo: o descarte da divindade e, ao mesmo tempo, a manutenção dos valores religiosos. Se Deus morreu, o homem ainda não se deu conta, pois continua agindo como se estivesse entre “nós”. Se a divindade/religião forjou, entre outros, a própria cultura na qual os homens se movimentam como poderia estar morta? Sua morte significaria, então, a destruição de todo um alicerce sociocultural? A humanidade sobreviveria a isso? “Então é chegada a hora de abrir mão da fantasia consoladora de que é possível dispensar Deus sem acabar com o homem” (EAGLETON, 2016, p. 145). Para Terry Eagleton (2016), há vários elementos que fazem com que Deus permaneça vivo – uma vida que se mantém de forma artificial –, entre eles está a moral, o maior de todos eles. Não é possível prescindir da deidade sem abalar toda uma estrutura construída em cima de seus desígnios. Deus, nesse sentido, está ligado ao homem, ainda que este não o saiba ou não o queira. Se o território ao qual o homem está alocado tem seus elementos forjados na religião (em nosso caso a judaico-cristã) é-lhe impossível desvencilhar-se de Deus e de seus códices.
Nossas concepções de verdade, virtude, identidade e autonomia, nosso senso da história como algo bem configurado e coerente, tudo isso tem profundas raízes teológicas. Não tem sentido supor que poderiam ser desvinculados dessas origens e permanecer intactos. A moral, por exemplo, precisa, assim, se repensar [...] (EAGLETON, 2016, p. 145146).
Os sentimentos mais nobres da humanidade, como indica o ensaísta britânico, têm seu nascedouro em Deus, na religião, assim, quando alguém se propõe a tratá-los o faz conscientemente ou não a partir de um modelo teológico. É nítido o modo religioso como Iohána conduz a família: todo seu discurso tem base em questões morais; em outras palavras, é o sujeito moralizante, o que moraliza os membros familiares. A personagem num gesto de constante falácia insiste, entre outros temas, acerca da verdade: “[...] era o pai que dizia sempre é preciso começar pela verdade e terminar do mesmo modo [...] era assim que ele os começava sempre, era essa a sua palavra
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angular”43 (NASSAR, 1989, p. 43). Os sermões paternos, conforme as palavras do narrador, exaltam a verdade, venerando-a e exigindo que cada um na casa não abra mão desta conduta. A verdade, para o patriarca, a sua verdade pessoal, é a palavra de ordem. Ademais da verdade, a ordem, a virtude, a paciência, a razão, o recato, são elementos com os quais o pai empreende seu discurso e ações ante a família. O longo diálogo entre Iohána e André, quando do retorno deste à casa do patriarca, demonstra o quanto as palavras do pai estão ancoradas a uma estrutura moralizante, religiosa, teológica. _ Meu coração está apertado de ver tantas marcas no teu rosto, meu filho; essa é a colheita de quem abandona a casa por uma vida pródiga (NASSAR, 1989, p. 158). _ É para satisfazer nosso apetite que a natureza é generosa, pondo seus frutos ao nosso alcance, desde que trabalhemos por merecê-los. Não fosse o apetite, não teríamos forças para buscar o alimento que torna possível a sobrevivência. O apetite é sagrado, meu filho (NASSAR, 1989, p. 159). Faça um esforço, meu filho, seja mais claro, não dissimule, não esconda nada do teu pai, meu coração está apertado também de ver tanta confusão na tua cabeça. Para que as pessoas se entendam, é preciso que ponham ordem em suas ideias. Palavra com palavra, meu filho (NASSAR, 1989, p. 160). _ É egoísmo, próprio de imaturos, pensar só nos frutos, quando se planta; a colheita não é a melhor recompensa para quem semeia; já somos bastante gratificados pelo sentido de nossas vidas, quando plantamos, já temos nosso galardão só em fruir o tempo largo da gestação [...] (NASSAR, 1989, p. 162). _ Refreie tua costumeira impulsividade, não responda desta forma para não ferir o teu pai. Não é um ponto de vista! Todos nós sabemos como se comporta cada um em casa: eu e tua mãe vivemos sempre para vocês, o irmão para o irmão, nunca faltou, a quem necessitasse, o apoio da família! (NASSAR, 1989, p. 167). _ Nesta mesa não há lugar para provocações, deixe de lado teu orgulho, domine a víbora debaixo da tua língua, não dê ouvidos ao murmúrio do demônio, me responda como deve responder um filho, seja sobretudo humilde na postura, seja claro como deve ser um homem, acabe de uma vez com esta confusão [...] não é a tua palavra soberba que vai demolir agora o que levou milênio para se construir [...] (NASSAR, 1989, p. 168).
Praticamente todo o capítulo 25 de Lavoura arcaica configura-se no discurso da (inter)(in)compreensão44 entre Iohána e André, e os seis excertos deste capítulo 43
Os termos – palavra angular – empregados por Raduan Nassar têm referência direta ao texto bíblico que se refere a Jesus Cristo comparado à pedra angular: “A pedra que os edificadores rejeitaram tornou-se a pedra angular” (Salmos, 118, 22). O filho de Deus é, portanto, o que sustenta a base, a estrutura fundamental da humanidade, tal como a palavra de Iohána também o é para a família.
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dispostos acima são fragmentos da fala do pai; este, conforme se observa, posiciona-se de forma a não permitir que o filho esteja do lado oposto às severas leis da família. A todo momento é repreendido pelo patriarca que dissimula ter interesse pelos reais motivos que levaram André a abandonar a casa. Empregamos o termo dissimular por entender que o pai quer saber qual é o problema que André traz consigo (“Faça um esforço, meu filho, seja mais claro, não dissimule, não esconda nada do teu pai”), não para ajudá-lo a resolver, pois o real desejo de Iohána é aplicar a lei moralizante, caso a conduta do filho não esteja de acordo com as leis estabelecidas. Ora, André não esconde os motivos pelos quais se evade da fazenda, mas o faz de forma dissimulada, utilizando o mesmo recurso do pai; este, por sua vez, não consegue entendê-lo, gerando entre eles o diálogo dos surdos. Nos seis fragmentos do discurso paterno – que acontece com ambos sentados à mesa e, como não poderia deixar de ser, Iohána sentado à cabeceira – está esparsado um claro posicionamento moral-religioso. No 1º, o preço que o sujeito pródigo paga por abandonar a casa/a família. No 2º, a recompensa aos que trabalham e não esmorecem; a paciência também figura como uma virtude para o homem que espera e refreia seus desejos. No 3º, aparece, como em outros momentos, a questão da verdade; o pai exigindo que André seja coeso, claro, verdadeiro. No 4º, figura outra vez o tema recompensa aos que semeiam/trabalham; apregoa, ademais, acerca dos sentimentos negativos que os homens cultivam: egoísmo, imaturidade. No 5º, o sermão continua em torno ao sentimento inadequado: impulsividade; e Iohána se posiciona como um deus que não deve ser contrariado, questionado, mas reverenciado como detentor da verdade suprema, do amor e da proteção à família (“eu e tua mãe vivemos para vocês”). No 6º, aparece outra vez o sentimento indigno que o homem guarda – orgulho; a verdade é mais uma vez exigida (“seja claro como deve ser um homem, acabe de uma vez com essa confusão”). O pai faz menção ao demônio – maior inimigo/rival de Deus e, consequentemente, da família e de Iohána –, afirmando que as palavras de André estão inspiradas nele. Para Terry Eagleton, assim como para Niezsche, Deus de fato está morto e a sociedade em geral é seu assassino, “[...] mas nosso verdadeiro crime não é tanto o deicídio, mas a hipocrisia” (EAGLETON, 2016, p. 146), pois o que existe de fato é uma 44
Sobre o discurso da (inter)(in)compreensão ou diálogo dos surdos entre pai e filho, vide a dissertação de mestrado A lavoura híbrida de Raduan Nassar, de autoria de Flávio Adriano Nantes, defendida em 2007, no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. https://sistemas.ufms.br/sigpos/portal/trabalhos/buscarPorCurso/page:23/cursoId:82.
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moral repressora, castradora, assim, “estamos” mais voltados ao fenômeno moralizante que a Deus. Atentemos para as proposições de Iohána – seu maior desejo está em moralizar a família, manter vivos os códices de honra de seus ancestrais, estar sempre no controle e na vigilância de todos, comandar a vida dos filhos e da mulher. A que deus o patriarca adora e exige adoração, senão a si mesmo? (“_ Refreie tua costumeira impulsividade, não responda desta forma para não ferir o teu [deus]”). O termo empregado por Eagleton – hipocrisia – é bastante oportuno, pois se enquadra à postura de Iohána que mata a filha em nome da moral ferida da família. O amor por ele apregoado insistentemente (“O amor, a união e o trabalho de todos nós junto ao pai era uma mensagem de pureza austera guardada em nossos santuários, comungada solenemente a cada dia [...]” (NASSAR, 1989, p. 22)) não passa de uma veleidade em se manter neste lugar de deus-pai. Se “[...] a crucificação é uma crítica da arrogância do humanismo” (EAGLETON, 2016, p. 148), a morte de Ana é, então, um deboche do amor e da proteção à família.
Cultura e moral são fruto de uma bárbara história de débito, tortura, vingança, comprometimento e exploração – em suma, de todo o terrível processo pelo qual o animal humano é eviscerado e debilitado para se adequar à sociedade civilizada. [...] A moral nasceu da violência e da autorrepressão. Sua morada é aquele espaço interior da culpa, da doença e da consciência pesada que alguns gostam de chamar de subjetividade (EAGLETON, 2016, p. 153).
Ana, enquanto sujeito ficcional, representa um sem número de pessoas que tem suas vidas extirpadas para que a moralidade, ancorada à religião, seja estabelecida enquanto lei de conduta – um elemento tido como indispensável no interior das sociedades. Quantas cabeças rolaram, “bruxas” morreram, sangue de mulheres adúlteras derramado, homens apedrejados, vidas sacrificadas, corpos queimados vivos, estupros “sagrados” e outros crimes contra a pessoa humana foram cometidos ao redor do mundo em nome da moral religiosa? A igreja e outras instituições moralizantes têm uma obrigação moral – não a religiosa, mas ético-humanitária – de contabilizar seus crimes e desculpar-se publicamente, não como um ato de remissão, mas para que a moral, como pensada/estruturada hoje, seja desconstruída e reestruturada ao modelo de Jacques Derrida, proposto em seu Da gramatologia (2011). Esse gesto (pedido de perdão) é uma necessidade vigente no hodierno, pois a moralidade atua desde tempos que não há como precisar; está travestida de outros valores e continua vitimando determinados sujeitos.
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Essa moral ancorada à religião a qual estamos tratando foi condição necessária para a sobrevivência da humanidade? Quem é que sabe, pode ou tem condições de responder? Havia, enfim, necessidade de um deus-pai na formação da família? Terry Eagleton não responde essas questões, mas nos dá outras para as quais podem surgir alguns lampejos:
Quanto tempo precisaria durar uma futura ordem [social] e com que vigor teria de florescer para que fosse reparado um passado que pesa como um pesadelo no cérebro dos que estão vivos? Se existe uma luz no fim do túnel, que dizer dos que morreram pelo caminho ou se perderam pelos desvios, dos que não serão resgatados por algum tipo de redenção política, mas tiveram seus próprios nomes apagados dos registros históricos? (EAGLETON, 2016, p. 157).
Já não há quem enxugue as lágrimas da humanidade. Deus, a religião, a moral, a cultura não podem, pois trabalham em conluio para a manutenção do status quo social. Deus não deve estar morto porque continua, por intermédio da religião e de outros elementos, servindo a algumas poucas pessoas e rechaçando outras para lugares sem a luz divina; aquelas não querem o fim da religião, ainda que não acreditem em Deus ou não tenham fé, para a manutenção de seus privilégios; já os outros, acreditando ou não em Deus, buscam ser incluídos na sociedade. A existência de uma luz no fim do túnel à qual (se) indaga o ensaísta para o reconhecimento de muitos que “[...] trabalham, gemem o tempo todo, esgotam suas forças, fazem tudo que é possível, mas não conseguem apaziguar a fome” (NASSAR, 1989, p. 159), está no extirpar das injustiças, na inclusão de sujeitos com ou sem religião/fé no rol da sociedade. Na esteira desse pensamento, “[...] o preço que pagamos pela civilização é alto demais, o refinamento para poucos significa sofrimento para muitos. Do ponto de vista de Rousseau, as artes e as ciências têm sido em grande medida agentes da corrupção moral” (EAGLETON, 2016, p. 155). Muito a proposito a menção de Eagleton a Rousseau porque as coisas das artes não têm de fato nenhum compromisso com a moral, a religião, a ética ou outros elementos nos quais a sociedade está alicerçada. Ao contrário, estão para desestabilizar todos esses constructos sociais45. 45
Se assim não fosse, a instituição Santander Cultural não teria cancelado a exposição de arte "Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira", com 270 obras relacionadas à questão dos Gender Studies, de mais de 80 artistas, entre eles, Adriana Varejão, Ligia Clark e Cândido Portinari, na cidade de Porto Alegre, em setembro de 2017, por forte pressão de grupos religiosos e do MBL
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Vivo ou morto a presença de Deus é notória para teístas ou ateus e faz-se presente em diversos espaços institucionais públicos e privados; ele continua manipulando a existência humana, vigiando e punindo os que não seguem suas leis. Esse mesmo Deus sofre, por outro lado, uma série de críticas – juntamente com os que se propõem a executar seus códigos de conduta –, como bem o faz o escritor Raduan Nassar, por intermédio de seus textos. Levando em consideração o projeto estético nassariano, estamos certos de que o escritor brasileiro entende que as práticas religiosas estão travestidas de uma moral ancorada à deidade e preservada pelo homem – o homem-deus. Este usa, então, os códices da religião para impor às pessoas uma determinada moralização e, por conseguinte, sujeição; escapar a esses princípios é incorrer num risco grave de punição e o maior exemplo disso encontramos em Lavoura arcaica por representar sujeitos subjugados por um deus-pai que impõe sua religião e os preceitos dela.
4.2. Yahweh/Iohána: os deuses da contradição Ah! Caicó arcaico Em meu peito catolaico Tudo é descrença e fé Ah! Caicó arcaico Meu cashcouer mallarmaico Tudo rejeita e quer (Chico César) Já mencionamos neste trabalho acerca da incongruência na miscelânea de textos que conformam a Bíblia e isso se estende também a um dos maiores protagonistas desse livro – o Deus dos judeus e cristãos. Um dos fatores que faz com que a deidade tenha uma estrutura tão contraditória diz respeito ao fato de as escrituras sagradas serem um conjunto de texto escrito em épocas, culturas e de autoria divergentes. Não seria estranho observar, então, que esse mesmo rasgo que conforma a personagem divina também esteja em Iohána, o patriarca de Lavoura arcaica. Se na Bíblia “a linguagem é fluida, transitória e literária, não rígida, fixa e científica” (ARNOLD apud EAGLETON, 2016, p. 126), como esperar de suas personagens coerência, e mais, como esperar que as personagens surgidas a partir das (Movimento Brasil Livre). Mais detalhes: http://www.jb.com.br/cultura/noticias/2017/09/11/santandercancela-mostra-de-arte-apos-pressao-do-mbl/
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do texto sagrado também o sejam? Nesse sentido, a partir de um pensamento basilar da Teoria Literária, podemos afirmar que tanto a personagem bíblica – Jeová, como a de Raduan Nassar – Iohána são personagens redondas, aquelas que atuam de forma a desestabilizar com a expectativa do leitor. Como é possível conciliar o Deus guerreiro, vulcânico, vingativo, ególatra, raivoso, que entregou seu filho à crucificação com o abba Pai46, o Deus do amor, da proteção, da bondade, que fez a terra e os firmamentos e o próprio homem? A impressão que temos é de que se trata de personagens distintas, mas não é o caso. Tratase de Javé – o Deus dos hebreus – que diz que não existir outro, senão ele mesmo; não admite que qualquer outra divindade seja evocada, adorada, sob pena de o povo eleito incorrer numa série de desgraças.
[Jesus] declarava não ter vindo trazer a paz, mas a espada, falava de dissolver as famílias e atear fogo à terra, antagonizava as autoridades religiosas da época com seu convívio com vigaristas e prostitutas, expulsava mercadores e cambistas do Templo, invoca as mais temíveis maldições contra os ultrapiedosos fariseus e advertia os companheiros de que se seguissem sua palavra seriam igualmente mortos pelo Estado. O mais impressionante é a ácida irracionalidade de um documento que nos exorta a entregar nossas vidas a bem de estranhos, não sua irradiação de doçura e luz. O escandaloso radicalismo de sua exigência nada tem de moderado ou mediano [...] (EAGLETON, 2016, p. 127-128).
Ora se Cristo afirma que veio para cumprir a lei de seu pai (Mateus, 5, 17-20), não deveria buscar estar em consonância com a estrutura religiosa e dar continuação a religião de Javé de forma a perpetuá-la? Isso não acontece; mesmo o filho de Deus afirmando o contrário, institui outra religião – o Cristianismo, assim, não só subverte a lei como descumpre com o legado do Deus Pai; este, por sua vez, aceita (conscientemente ou não) a proposta da “nova” religião. Outro dado importante a ser apontado nas proposições de Eagleton acima tem a ver com o que já mencionamos sobre o amor incondicional proposto por Deus e o que Jesus, enviado por ele, se propõe a fazer: um mar de sangue e lágrimas para os seus seguidores. Como é possível haver adoradores para uma deidade que não tem a menor responsabilidade com seus fieis? É a impressionante irracionalidade da qual Eagleton lança mão para pensar as ações tão estranhas, escandalosas, radicais, de Javé e, por conseguinte, de Jesus Cristo. Parafraseando o narrador nassariano quando da morte de 46
Abba ou aba do aramaico “o pai” ou “meu pai”. Esse termo é empregado por Jesus Cristo quando da crucificação: “Aba, Pai, todas as coisas te são possíveis. Afasta de mim este cálice” (Marcos, 14, 36).
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Ana: Deus, onde o amor? Onde a salvação do mundo? Onde a segurança de “nós” fieis? Onde a proteção espiritual? Deus, onde a união de seus filhos? Acerca do Deus da escritura sagrada “[...] nem mesmo Shakespeare inventou um personagem cuja personalidade é tão rica em termos de contradições” (BLOOM, 2006, p. 19). Essa deidade exige de seus fieis o humanamente impossível e é, no entanto, humano, demasiadamente humano: arrepende-se de ter criado o homem; ameaça seus seguidores caso se prostituam (adorem) outros deuses; liberta o povo eleito da prisão no Egito e das garras de Faraó e deliberadamente o faz perambular quarenta anos pelo deserto no Sinai; Moisés, representante oficial de Deus entre os hebreus e escritor da Torah, é proibido por seu próprio Deus de entrar na terra prometida, Canaã. Parece uma brincadeira de muito mau gosto por parte de Deus excluir o líder do povo de ser partícipe da terra que havia sido prometida. Jeová em uma de suas aparições afirma que cumprirá a promessa feita aos filhos da aliança e que Moisés verá e não entrará nela porque morrerá antes (Deuteronômio, 32, 48-52). Essa profecia dada a Moisés acerca da visão da terra, da exclusão e morte do líder se cumpre em Deuteronômio 34, 1-7. A justificativa de Deus em não permitir a entrada de Moisés em Canaã tem a ver com a infidelidade do líder em algum momento dos quarenta anos em que habitava o deserto. Em outros termos, é o rancor divino que não permite que Moisés, depois da peregrinação pelo Sinai, entre na terra prometida, indicando, conforme já mencionado, a humanidade de Deus. Também Iohána, o deus-pai da família, é a personagem da incongruência: [...] o avô, ao contrário dos discernimentos promíscuos do pai – em que apareciam enxertos de várias geografias, respondia sempre com um arroto tosco que valia por todas as ciências, por todas as igrejas e por todos os sermões do pai: “Maktub” (Nassar, 1989, p. 91).
André, ao recuperar, por intermédio da memória, o modus operandi do avô em relação à família e aos engendramentos que regem o mundo, indica a razão que explica os gestos dúbios do patriarca; este já não atua de igual modo que o avô, não tem competência (“discernimentos promíscuos”) para conduzir a família. Dito de outro modo, é “[...] uma desordem moral e um patriciado incapaz de liderança espiritual [...]” (EAGLETON, 2016, p. 121). Iohána forma parte dessa confraria dos que não têm condições de governar de acordo com os paradigmas de seus ancestrais. Essa
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impossibilidade dá-se pelo processo de transculturação47 (“apareciam enxertos de várias geografias”) ao qual o patriarca está submetido. De igual modo que Iohána está contaminado por diferentes recortes culturais e tenta de forma agônica manter vivas as remotas engrenagens que sustentam o alicerce familiar, Yahweh, devido às palavrosas narrativas empreendidas por tantas mãos acerca de si, conforma-se, de acordo às palavras de Harold Bloom (2006), num Deus de complexidade infinita, labiríntica e para sempre inexplicável.
Quando reflito acerca de Javé, gostaria de saber de onde ele veio, bem como por que demorou tanto tempo para revelar seu nome. Ficamos conhecendo suas várias personalidades [...] mas permanecemos atônitos diante de seu caráter. [...] Javé, que tanto sofre por qualquer ingratidão, e é extremamente ciumento, chega à insanidade, durante os quarenta anos em que conduz os israelitas pelo deserto, na louca jornada do Egito até Canaã. Uma geração perece, mas seus filhos alcançam a Terra Prometida. O próprio Moisés, profeta de Javé, vislumbra a terra, mas nela não é admitido (BLOOM, 2006, p. 143).
As palavras do crítico norte-americano demonstram o quanto Deus é uma divindade humanizada: trata a humanidade como um jogo para sua distração – não se apresenta ou tarda muito ao fazê-lo, ou ainda pior, empreende séculos de longos silêncios. Enfurece-se quando do não cumprimento estrito de sua lei; os que a subvertem são severamente punidos – é-lhes sonegada a presença da divindade que num momento nunca fixo e exato resolve reaparecer, perdoar e propor uma nova aliança: “[...] a qualidade mais surpreendente de Javé: sua estranheza” (BLOOM, 2006, p. 145). Iohána também sente ciúmes de seu clã, isto é, não admite que nenhum membro familiar se prostitua com as paixões que, segundo ele mesmo, estão para além das cercas da casa; pune os filhos que se desviam dos rígidos preceitos da família: [...] era essa pedra que tropeçávamos quando crianças, essa a pedra que nos esfolava a cada instante, vinham daí as nossas surras e as nossas marcas no corpo, veja, Pedro, veja nos meus braços [...] ele sempre dizendo coisas assim na sua sintaxe própria, dura e enrijecida pelo sol e pela chuva [...] (NASSAR, 1989, p. 43).
Como esses deuses são semelhantes: castigam, punem, ameaçam com um discurso que causa pavor, amam a sua própria lei e a perpetuação da moral entre os 47
Termo atribuído ao antropólogo cubano Fernando Ortiz Fernández e muito desenvolvido por Ángel Rama para designar não a perda de uma cultura ou substituição de uma por outra, mas a junção, adaptação, hibridez, entre as diferentes culturas em que um determinado sujeito é exposto.
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seus. Yahweh e Iohána são humanos. O primeiro humaniza-se como sua própria criação; o segundo é o humano que vislumbra exercer a função de um deus, o deus-pai. A onipresença de Deus sobre a terra, mais especificamente o olhar perscrutador sobre os filhos-adorares, funciona como uma espécie de vigilância em relação às ações deles. Também a casa de Iohána é constantemente vigiada por vários olhares: o avô, o patriarca, Pedro. Os três fracassam, não conseguem estar em todos os lugares, não cumprem a divina missão de ser onipresente. Para a nossa cultura o que de mais grave é empreendido por Iohána, jogando por terra os sermões de amor e de união entre os familiares, está ligado ao assassinato de Ana. Diante da morte, o modo arbitrário e déspota de conduzir a família torna-se irrelevante. Deus, igualmente arbitrário como o patriarca de Lavoura, é o responsável pela morte de seu próprio filho: “[...] Javé sacrifica Jesus e, de fato, o abandona, ao menos neste mundo” (BLOOM, 2006, p. 159). Como seria possível perpetrar perdão a essas duas personagens? Como desconsiderar o gesto assassínio de ambos? Como compreender suas ações e silenciar-se diante deles? Não há possibilidade de perdão. É humanamente impossível não sentir os sofrimentos causados por Deus e por Iohána. Ainda que não haja uma manifestação declarada contra os dois, claro está que, seguindo o pensamento de Jack Miles (2009), eles não são santos. Há um histórico de assassinatos que pesa sobre as costas de Deus; no remoto Gênesis Abraão recebe a incumbência de Jeová para sacrificar o filho Isaque e entregálo como sacrifício (Gênesis, 22, 1-13). A trágica morte do filho de Davi, rei de Israel; este, por haver pecado, recebe como castigo de Deus a morte do filho (II Samuel, 12, 119). Na terra Uz, Deus se comporta como um verdadeiro genocida, permitindo que Satanás mate todos os filhos de Jó (Jó, 1, 18-19). No último livro que compõe a Bíblia, Apocalipse, quando toda profecia bíblica se cumprir, Deus terminará sua carreira, condenando os infiéis à morte “no lago que arde com fogo e enxofre” (Apocalipse, 21, 8). Note-se que Deus tem em alta conta Abraão; Davi é o homem segundo o coração de Deus; Jó, homem reto e íntegro; a humanidade tão amada por Deus e por ela entrega seu único filho à crucificação. Assim, como é possível conciliar todos esses afetos com as ações genocidas perpetras por Jeová? “Não faz muito sentido dizer que ‘Javé é amor’, ou que devemos amar Javé. Ele não é, nunca foi e jamais será amor” (BLOOM, 2006, p. 196). Se Deus não é amor, o que seria, onde estaria, a que se prestaria, por que suas vivências estão em torno ao silêncio e ao mistério?
146 [...] a minha resposta é a de um crítico literário, e se fundamenta na força e no poder da única personalidade literária que, tratando-se da vivacidade e notoriedade, ultrapassa até Hamlet, Falstaff, Iago, Lear e Cleópatra. [...] é a representação mais convincente de alteridade transcendental que já encontrei na vida. [...] é mesmo absolutamente humano, e não é, de maneira alguma, um sujeito agradável [...] (BLOOM, 2006, p. 198).
Falar sobre Deus é falar de uma imensidão de incongruências que desestabilizam quem se propõe à empresa. A maneira como Deus atua ao longo das narrativas bíblicas causa colapsos no entendimento dos que querem, seja qual for a perspectiva, entendê-lo. De modo muito honesto, mal sabemos de quem estamos falamos, logo, qualquer leitura que se faça da divindade é sempre aberta, inacabada, efêmera. Não há como conhecê-lo profundamente. No entanto, com essas pequenas fagulhas de informações, é impossível amá-lo, venerá-lo, vislumbrá-lo como o Deus Pai. O amor a ele é possível porque o Deus que habita as páginas da Bíblia não é, em última instância, o mesmo dos púlpitos das diversas comunidades religiosas ao redor do mundo. Jeová deixou de ser humano e passou à deidade por intermédio dos discursos religiosos e os que proferem tais discursos precisam de um exercício significativo para colocá-lo na esfera dos afetos, do amor, da compaixão, da santidade. Se o Deus das escrituras sagradas não é nenhum santo, conforme já mencionamos, Iohána tampouco o é. Aquele salta da escritura sagrada e ao passar de um texto a outro não muda de sexo, como acontece com a passagem por baixo do arco-íris, mas sofre uma metamorfose e transforma-se no patriarca de Lavoura arcaica. A transformação, no entanto, não faz com que descarte seus antigos empreendimentos e com as recordações recolhidas nos porões de sua memória estabelece seu reino numa fazenda e governa soberanamente até o dia em que comete o assassinato contra a filha. Talvez não seja de todo incoerente pensar que ele ainda esteja (na memória de seus fieis familiares) assentado no alto e sublime trono da mesa dos sermões familiar.
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IN(CONCLUSÕES)
[...] que ninguém vos engane, mas ainda não é o fim. (Mateus, 24, 4-6) Em algum momento deste trabalho, afirmamos que a obra de Raduan Nassar nunca deixa de falar; seria, então, uma incongruência tentar dar uma conclusão definitiva para o que propomos discutir. Dito de modo muito honesto: pouco temos para concluir, pois já pululam em nós uma série de questões outras sobre o exímio conjunto da obra do escritor brasileiro concernentes à religião e a outras temáticas. Tampouco temos qualquer pretensão de que esta tese seja entendida como uma resposta categórica para o traço religioso que perpassa pela escritura nassariana; antes, que seja entendida como um texto que mais pergunta que afirma, mais elucubra sobre a estética de Nassar que dá respostas, mais se perde no verbo sagrado nassariano que propõe caminhos. Assim, resta-nos falar sobre as in(conclusões) que alcançamos entender ao longo da pesquisa que desenvolvemos sobre o conjunto da obra de Raduan Nassar e a relação dela com a escritura sagrada dos judeus e cristãos. A cultura, enquanto fenômeno mutável, é passível de sofrer contaminações, ser influenciada e assimilar elementos diversos; entre eles, os da religião. A cultura, então, do lugar que se convencionou chamar de mundo ocidental está afetada pela religião judaico-cristã. Há eventos, estruturas, conceitos, na cultura, que se relacionam com os textos sagrados dos judeus e cristãos – a Bíblia. Desta forma, tornam frágeis as proposições que legislam sobre a laicidade do Estado-nação, como no caso brasileiro, por exemplo. Entender a relação entre a cultura e a religião, mais que isso, pensar que aquela se forja com elementos desta, nos permite pensar que a literatura enquanto um constructo da cultura igualmente se relaciona com a religião. Se a literatura é partícipe da religião, logo, deixa-se “contaminar” pelos escritos desta religião; estes, para além do status de texto sagrado, também são considerados um elemento literário; isso se dá porque “[...] nenhum livro poderia ter uma influência literária tão pertinaz sem possuir, ele próprio, características de obra literária. Mas a Bíblia era tão obviamente mais do que uma obra literária, seja lá o que este ‘mais’ signifique” [...] (FRYE, 2004, p. 14).
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Daí podermos afirmar que a Bíblia, entendida como um discurso literário, influencia a obra de Raduan Nassar. Tratamos de identificar como algumas temáticas e estruturas contidas na Bíblia dialogam com os textos nassarianos. Os livros da sabedoria religiosa, cuja função é admoestar/exortar/instruir os leitores, ecoam em Lavoura arcaica, Um copo de cólera, nos contos “Menina a caminho” e “Hoje de madrugada”. O conteúdo mítico tanto do Judaísmo como do Cristianismo é recuperado, reestruturado, e alocado num outro espaço/tempo por Raduan Nassar. As ressonâncias da crucificação de Jesus Cristo são ouvidas nas obras do escritor brasileiro – os sofrimentos perpetrados contra o filho de Deus são, resguardas as diferenciações, os mesmos empreendidos contra Ana do Lavoura; a costureira do conto “Menina a caminho”; e a personagem feminina do Copo. Esta violência extrema contra as personagens bíblica e nassarianas estão pensadas a partir do conceito de animalização/bestialização do homem que vitima e destrói o outro. Após a perpetração da violência, o silêncio é convocado e instaurado por não haver palavras que a expliquem e a justifiquem. Não há o que dizer diante da morte de Cristo e de Ana, tampouco sobre a violência extrema contra a costureira e a personagem feminina. Lançamos mão de algumas personagens bíblicas para empreender um estudo contrastivo entre elas e de algumas das de Raduan Nassar. Buscamos entender como elas – as do texto sagrado e as nassarianas – se aproximam e se tornam tão semelhantes que às vezes confundimos umas às outras. Cristo, de acordo com nossa leitura, é o sujeito da insurgência que desafia toda uma estrutura ética, moral, social, cultural e religiosa de seu tempo. Nas pegadas do Messias, as personagens de Raduan Nassar, a saber: André de Lavoura arcaica; a personagem masculina de Um copo de cólera; a protagonista de “Menina a caminho”; o narrador de “O ventre seco”; o redator de “Aí pelas três da tarde”; o bacharel d’“O velho”; Lucila de “Monsenhores”, também, cada um a seu modo, se insurgem contra o modus operandi do lugar onde estão. Por que Cristo e as personagens de Nassar se posicionam contra o establishment? Não se sentem enquadrados, têm um sentimento de despertencimento, são sujeitos desterritorializados, não aceitam/compactuam com o status quo no qual estão submersos. Essas personagens do levante não passam incólumes à reação do sistema, pagam por desafiá-lo ou por dizer que estão contra o que está posto. São os sujeitos da dissidência postos à margem, rechaçados socialmente; não podem fazer parte
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da sociedade onde estão, devem ser invisibilizados, silenciados e, em última instância, ter o corpo eliminado. Na sequência, para compreender o erotismo na obra de Raduan Nassar, buscamos num antigo texto sagrado dos judeus – O cântico dos cânticos –, de autoria atribuída ao rei Salomão, as raízes desse elemento que, segundo Octavio Paz (2004), não é apenas sexo, mas sexo e poesia, sexo e cerimônia e rito, sexualidade transfigurada. Empreendemos uma relação entre o Cântico dos cânticos e Lavoura arcaica, Um copo de cólera, “Hoje de madrugada”, “Aí pelas três da tarde”, “O velho”, e desta relação, no âmbito estrutural e temático, entendemos que esse texto fundador – O cântico – funciona como um paradigma para a escritura erótica. Desse texto fundador Raduan Nassar lança mão, atualizando-o e empreendendo uma “nova” escritura erótica, onde é possível visualizar a sexualidade, o amor, o êxtase erótico para além dos enquadramentos do amor-lei, amor-obrigação, amor-imposição. O escritor propõe, em suma, uma ablação, tal qual faz o rei Salomão, ao amor, ao erotismo, à sexualidade. A lavoura sagrada de Raduan Nassar, como não poderia deixar de ser, traça um perfil entre o Deus Jeová e o deus Iohána: duas personagens extremamente contraditórias, ególatras, amantes de si mesmos e de seu próprio governo, e que de santos nada têm. O avô, Iohána, Pedro – personagens de Lavoura arcaica – ocupam no interior da família a mesma função que o Deus da escritura sagrada judaico-cristã: vigiar incansavelmente a todos, impor as leis, as regras, o que é certo e errado para todos, sem levar em consideração o outro, suprimindo vozes e silenciando a todos que não compactuam com seu governo. É que o Deus da Bíblia e o de Lavoura vivem num sistema teocrático e nada para além de seus desejos/desígnios deve ser levado em consideração. In(concluímos) que o conjunto da obra de Raduan Nassar apresenta profícua relação com os escritos sagrados judaico-cristãos e ambos os textos são um mundo de significações, que não se esgota, não deixa de falar, não se enquadra num sistema classificatório, mas antes, está sempre se revelando/renovando a partir das pesquisas empreendidas. Dito de outro modo, depois de quase quarenta anos, a crítica literária continua empreendendo esforços para compreender uma obra tão exígua como a de Raduan Nassar, mas igualmente densa, complexa, profunda, como um iceberg.
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ANEXOS
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Anexo I - Obra completa, de Raduan Nassar, e as vozes insurgentes que ecoam em seus textos48 Supondo-se que todo homem seja portador de uma exigência ética, não há como estar de acordo com a dominação de uns sobre outros. Penso, como muitos, que seja possível imaginar caminhos diferentes para as relações entre indivíduos e entre povos, e penso mesmo que não existe nada mais belo e comovente do que perseguir utopias. (Raduan Nassar) [...] eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios, mas que existia uma outra medicina (a minha!) [...]. (Raduan Nassar) Nos últimos dias do passado 2016, observei uma série de queixas nas redes sociais e em lugares outros sobre as intempéries que se abateram sobre o Brasil e outras sociedades ao redor do mundo: da prática política brasileira à morte de determinadas celebridades; da demissão de alguns profissionais midiáticos ao preço alto dos combustíveis; da Síria devastada ao assassinato de um jovem estudante por seu pai por se rebelar contra a “ordem” estabelecida. Há, no entanto, os que enxergam algumas alegrias em meio às trevas desse famigerado ano – aquelas alegrias difíceis, como nos fez saber Clarice Lispector, mas alegrias... No último mês de 2016, por exemplo, chegou até as minhas mãos a Obra completa, do escritor Raduan Nassar, livro de 462 páginas, com foto do escritor (pelo fotógrafo e cineasta Klaus Mitteldorf), notas 48
A presente resenha sobre a Obra completa, de Raduan Nassar, foi publicada por primeira vez no site da Reitoria da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, e, na sequência, por decisão dos responsáveis, surgiu a versão impressa na Revista Unespciência, n. 83, maio de 2017. Pelo fato de termos acrescentado à tese dois dos três textos inéditos que aparecem no mercado editorial em novembro de 2016, pensamos que essa resenha, que sofreu pequenos ajustes, poderá auxiliar os membros da banca a compreender a leitura que empreendemos acerca dos novos textos, a saber: “O velho” e “Monsenhores”.
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informativas elaboradas por Raduan para a primeira edição de Lavoura arcaica e Um copo de cólera, publicadas respectivamente pelas editoras José Olympio Editora e Livraria Cultura Editora, uma extensa fortuna crítica sobre a obra de Nassar: dissertações de mestrado, teses de doutoramento, ensaios, artigos, resenhas, entre outros, nas mais diferentes áreas do saber humanísticas. O leitor que já conhece o romance Lavoura arcaica (1975), a novela Um copo de cólera (escrita em 1970 e publicada em 1978) e Menina a caminho (uma coletânea de contos escritos entre as décadas de 1960/1970 e publicada somente em 1997), tem agora na Obra Completa o que o próprio autor designa como “Safrinha”: dois contos e um ensaio político-filosófico, intitulados respectivamente de O velho, Monsenhores e A corrente do esforço humano. Não seria nenhuma novidade afirmar que os textos de Nassar, especificamente os três primeiros livros, estão na contra mão de um sistema arcaico e bastante petrificado que hierarquiza as relações entre determinados sujeitos. Dito de outro modo, essas relações de poder estabelecidas histórica, cultural e socialmente: pai e demais membros familiares; homem sobre a mulher e outros atores sociais mais fragilizados; o forte que subjuga o mais fraco; a constante violência simbólica à qual muitos estão submetidos diuturnamente. E como Nassar desestabiliza essas relações instituídas cujo poderio pertence apenas a um? André, personagem de Lavoura arcaica, desafia o patriarca da família, Iohána, demonstrando que outros discursos, além dos do pai, são possíveis; desmantela toda a estrutura familiar ao entregar-se à paixão incestuosa por Ana, sua irmã; põe a nu as angústias e dores de todos os membros da família – a começar pela mãe (personagem sem nome – apenas mãe –, indicando sua completa inexistência no que diz respeito a ter direito à voz que ecoe no interior da casa) até chegar a Lula, filho mais jovem – por estarem subjugados pelo pai. “Pedro, meu irmão, eram inconsistentes os sermões do pai”, eu disse de repente com a frivolidade de quem se rebela, sentindo por um instante, ainda que fugaz, sua mão ensaiando com aspereza o gesto de reprimenda, mas logo se retraindo calada e pressurosa, era a mão assustada da família saída da mesa dos sermões; que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa [...] (NASSAR, 2016, p. 50-51).
O herói da narrativa denuncia, conforme se observa no excerto, esse pai opressor que assola os ombros de todos, com o discurso-sermão, tal como uma espécie de pedra
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sem polimento. A derrocada da família dá-se quando o patriarca descobre, por intermédio de Pedro, o irmão primogênito, a relação incestuosa entre André e Ana; está é assassinada pelo pai com um alfanje, na tentativa última de preservar a família, eliminando o demônio do incesto de sua casa. Intento, no entanto, fracassado, pois ao tentar reestabelecer a ordem, acaba por arruiná-la definitivamente. Em Um copo de cólera, quem ousa insurgir-se contra o poderio masculino ou fazer frente ao andocentrismo é a personagem feminina que vai até as últimas consequências na tentativa de se fazer ouvir, ter direito à fala para r(existir) ante a personagem masculina. Homem e mulher mantêm um relacionamento sob algumas convenções acertadas por ambos; isto não está explícito na novela, mas por efeito de sugestão – a constante presença da moça na casa do chacareiro – o leitor poderá deduzir os arranjos na relação entre eles. Um texto extremamente enxuto, mas de uma densidade exacerbada e excitante (no duplo sentido do termo), pois o casal relaciona-se sexualmente, conforme uma minuciosa descrição disposta no capítulo “Na cama” carregada de lirismo, imagens, metáforas. Após a trama sexual, advém uma discussão corriqueira sobre umas saúvas que destruíram a sebe da chácara da personagem masculina e o conflito aparentemente ordinário transformou-se numa guerra discursiva estrondosa entre os dois. O chacareiro começa a atacar a personagem feminina, evidenciando como nas relações de gênero, a mulher é um ser inferiorizado, objetado e abjeto. A personagem feminina é ridicularizada em sua profissão: “[...] ‘você aí, você aí’ eu disparei de supetão ‘você aí, sua jornalistinha de merda’ [...]” (NASSAR, 2016, p. 240); qualquer opinião que emita é extremamente execrada, pois o chacareiro acredita ser ela um sujeito idiotizado – uma mulher: “[...] ‘não é você que vai me ensinar como se trata um empregado’ [...]” (NASSAR, 2016, p. 236), ou ainda, “[...] ‘nunca te passou pela cabeça que tudo que você diz, e tudo que você vomita, é tudo coisa que você ouviu de orelhada [...]” (NASSAR, 2016, p. 243-44). O que endossa nosso pensamento sobre as relações de gênero – aqui precisamente violência de gênero – tem a ver com o que o homem-chacareiro pensa sobre a mulher como um ser inferiorizado: “[...] fui pr’uma área em que ela se gabava como femeazinha livre, é ali que eu a pegaria [...]” (NASSAR, 2016, p. 238), ademais: “[...] você só trepava como donzela, que sem minha alavanca você não é porra nenhuma, que eu tenho outra vida e outro peso [...]” (NASSAR, 2016, 244). Nas palavras da personagem masculina, a mulher não é uma cidadã livre, tampouco pode
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circular democraticamente em todos os espaços sociais; é sempre inferior ao homem, inclusive sexualmente, pois a personagem nassariana exalta seu falo em detrimento da prática sexual da mulher; esta, como se observa, não tem o mesmo valor do homem que detém outro valor e outra vida melhores que os da mulher. Para além da relação entre as personagens, Um copo representa o modo fascista/opressor como o chacareiro conduz tudo em seu patriarcado-chácara: [...] bastou dona Mariana abrir a boca pr’eu desembestar “eu já disse que o horário daqui é das seis às quatro, depois disso eu não quero ver a senhora na casa, nem ele na minha frente, mas dentro desse horário eu não admito, a senhora está entendendo? e a senhora deve dizer isso ao seu marido, a senhora está me ouvindo” e o meu berro tinha força [...] que a dona Maria não sabia o que fazer [...] (NASSAR, 2016, 233).
É visível como o chacareiro exerce seu poderio não apenas em relação à mulher (seja pela violência simbólica, física, de gênero), mas também com os trabalhadores, sujeitos silenciados diante do patrão, da possibilidade de desemprego, da falta de moradia, etc. Daí que dona Maria e o marido submetem-se aos desmandos e aos pequenos poderes (Foucault) da personagem masculina que se comporta como um ditador em relação àquelas pessoas que estão ao seu entorno. Em Menina a caminho, livro de contos, uns bastante extensos, outros menos e um de apenas uma lauda. Nesses textos literários, as personagens buscam respostas para suas vidas fatigadas e engolidas pelos engendramentos sociais e os meandros da contingência; estão explicitamente a caminho, em busca de seus desejos e para tal, precisam enfrentar a sociedade e suas estruturas de poder. Nesse sentido, parece-me que cada conto é a representação de uma microesfera da sociedade, onde as relações conflituosas entre as pessoas são evidentes. O conto de nome homônimo ao do livro narra a história de uma menina pobre, descalça, despenteada, suja – um corpo dissidente – que caminha pelas ruas de uma pequena cidade do interior e vivencia toda sorte de violência simbólica. Tem a missão de dar um recado de sua mãe ao dono do armazém, seu Américo, e ao fazê-lo: ‘“Puxa daqui, puxa já daqui, sua cadelinha encardida, já agora senão te enfio essa garrafa com fogo e tudo na bocetinha, e também na puta da tua mãe, e na puta daquela tua mãe...’” (NASSAR, 2016, p. 321). Ao dar o recado da mãe a seu Américo, a protagonista do conto retorna para casa e presencia, entre todas as outras, a maior violência, a praticada por seu pai contra sua
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mãe que é severamente agredida com um chicote e xingamentos. No interior desses textos, os sujeitos ficcionais: Ana, de Lavoura; a personagem feminina, d’Um copo de cólera; mãe e filha, de Menina a caminho, são todos submetidos à violência masculina, ao patriarcado, onde o homem “recebe” poderes e privilégios sobre a mulher. Nessa perspectiva, quero pensar, então, num projeto est(ético) elaborado por Raduan Nassar que denuncia a violência contra a mulher, o proletário, o sujeito mais indefeso e mais frágil. Ademais, o escritor brasileiro dá voz a todos esses sujeitos, como uma forma de insurgência, que perturbam os ouvidos/sentidos do leitor que se permite ouvir os narradores nassarianos. Em Obra Completa, de Raduan Nassar, são acrescidos três textos até então inéditos no Brasil, que compõem a “Safrinha” (os contos: O velho, escrito em 1958, publicado na França em 1998, em Des nouvelles du Brésil, 1945-1998; Monsenhores, escrito em 1958, sem referência de onde e quando fora publicado pela primeira vez; “A corrente do esforço humano”, ensaio escrito em 1981, publicado na Alemanha em 1987, em Lateinamerikaner über Europa) e com a leitura, percebo de imediato a continuação de um projeto estético: o trabalho profundo com as palavras, as imagens mais engenhosas, a temática perturbadora, a vida precária de determinadas personagens, a densidade enxuta que dão ao leitor a palavra exata/categórica, tal como já é sabido, por intermédio de seus textos anteriores. Com o ensaio não é diferente. Há quem diga que o texto do intelectual se diverge do discurso do escritor, como se fosse possível desvencilhar um do outro. O ensaio de Nassar trata acerca da cultura brasileira e de como esta foi e continua subjugada pelos países hegemônicos e está atravessado por uma construção poéticoliterária que em muitos momentos titubeio se estou diante de um texto ensaístico ou literário. N’O velho, o leitor, num primeiro momento, tem a impressão de se deparar com a vida prosaica de um casal de idosos, dono de uma pensão, mas ao seguir os passos do narrador, dá-se conta de que um mistério toma conta de toda a narrativa do qual ninguém tem acesso completo, mas pequenas pistas. Esse mistério está envolto a um advogado honesto e irrepreensível, hóspede na casa do casal, que trabalha na cidade e passa a receber chantagens não se sabe de quem nem por quê. “Reconheço só pelo arranque o carro dos que estão à minha caça, não aceitam que eu contrarie seus interesses” diz de modo intempestivo o jovem coletor, a voz firme, fazendo-se ouvir excepcionalmente
163 naquela mesa. “Não cedi a eles, quando se apresentavam como amigos, quando se apresentavam como inimigos, não me vendi depois, quando se diziam realistas, tentam agora me difamar como inimigo. Se não me dobrar a essa chantagem, matam” diz o moço e se tranca (NASSAR, 2016, p. 376).
Tenho a impressão a partir desse excerto de estar diante de uma alegoria nacional – o Estado-nação e seu sistema operacional que ainda hoje é vigente: a sociedade encontra-se de algum modo acorrentada pelas práticas que engendram injustiças, desigualdades sociais, corrupção, eliminação dos sujeitos que não se enquadram. Para a filósofa Hannah Arendt (2011), não é possível, hoje, lutar contra as engrenagens do Estado; este tem a seu favor um arsenal bélico de alta destruição e esmagaria qualquer grupo organizado que se insurgisse. Parece-me que o que resta é aceitação passiva dos desmandes à qual os cidadãos estão submetidos, tal qual faz o velho do texto de Raduan: “O velho suspende a investigação [...]” (NASSAR, 2016, p. 379). E: “O velho volta a sentar, descendo a mão espalmada pelo rosto, como se enxugasse o suor desde o alto da testa [...] Mole, distenso, fecha os olhos. “Farras” murmura, e adormece (NASSAR, 2016, p. 381). A personagem entende que seria uma perda de tempo se angustiar por algo que não pode resolver e se entrega ao embalo da vida corriqueira ao se dar conta de que o jovem incorruptível, por efeito de sugestão, entrega-se à sedução da moça que está em conluio com os inimigos chantagistas. Diante disso, as últimas palavras do narrador: “O velho não se perturba, não perde a serenidade de agora. Nada no seu semblante revela aflição [...] Olha pro alto. O céu, como um fruto, está maduro. E há em tudo um clima silencioso de espera” (NASSAR, 2016, p 382-83). Em Monsenhores, também há uma clima de mistério instaurado diante da ordinariedade cotidiana de uma dona de casa, dona Ermínia, comadre de Luca e Lucila; esta amiga daquela desde os tempos do Curso Normal, dona de uma alegria contagiante e irreverente: “[...] foi então que sua imagem inteligente, petulante, desafiadora, me explodiu na memória, dizendo [...] naquele seu jeito exuberante, cheia de rebeldia, nós não passamos de umas fêmeas menstruadas [...]” (NASSAR, 2016, p. 397). O leitor, no entanto, ao adentrar a leitura, percebe que o cotidiano pode ser surpreendentemente desestabilizado pela irrupção de algo que não se espera ou, pelo menos, não se quer que aconteça. Essa atmosfera de mistério não se parece à do conto anterior, pois não há algo a ser resolvido/solucionado. Embora o conto tenha apenas um parágrafo e as informações
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sejam dadas numa enxurrada verbal, a narradora-personagem-Ermínia faz uma série de digressões sobre sua vida: o marido, os filhos, as tarefas domésticas, o encontro que teve com Lucila há menos de vinte dias, protelando assim, a informação sobre o que teria acontecido com sua amiga, causando no leitor um forte efeito de expectativa. Nos momentos finais de Monsenhores, o espectador é surpreendido com a loucura de Lucila descrita por sua amiga nesses termos: “[...] fiquei olhando demoradamente pra ela na esperança de encontrar um ponto de luz naquele seu olhar embaçado que não me enxergava [...] tive o pressentimento de que Lucila tinha entrado num túnel de onde não sairia nunca mais, se entregando a um fim sem volta [...]” (NASSAR, 2016, p. 397). A narradora, no entanto, já havia cifrado ao longo do conto algumas informações acerca do que supostamente aconteceria com a amiga, na ocasião em que se encontraram aproximadamente vinte dias antes: já se encontrava calada, triste, alheia a tudo. “[...] disse ‘Lucila!’, mas ela nem me olhava, o rosto de fazer pena, e sem mais deixou a cozinha [...] voltei a chamá-la, mas ela nem sequer ergueu os olhos, até que, daquele jeito desligada, saiu pra rua [...] e eu, só pensando naquela esquisitice [...] (NASSAR, 2016, p. 390). A literatura nassariana mais que dar qualquer resposta põe uma série de perguntas que questiona o nosso ser alocado dentro de um espaço social e a maneira como este nos engendra: como é possível alguém em suas perfeitas faculdades físicas e mentais de repente entrar num surto de loucura? O que é possível fazer quando somos assolados por um quadro assim? E se de repente “eu” entrasse nesse mesmo túnel que Lucila, como uma maneira de sair à francesa dos engendramentos da vida cotidiana pela porta dos fundos da loucura? O último texto de Raduan Nassar, em sua Obra Completa, o ensaio A corrente do esforço humano, trata, entre outros, de nosso frágil-pejorativo pensamento sobre nós mesmos. Frágil porque compramos, endossamos, aceitamos, difundimos ideias importadas sobre quem e como somos; pejorativo por acreditar que nossa cultura e os produtos que emergem dela (intelectuais ou materiais) são infinitamente inferiores em relação aos provenientes de outras geografias: aquelas hegemônicas, mais precisamente a Europa. Acreditamos (e lamentavelmente a academia também) que somos um povo indefinido por nossa hibridez, mestiçagem, mistura de raças/sangues e não nos atentamos que toda cultura é híbrida, logo, o povo alocado nela também o é: “[...] ainda hoje, apesar de mudanças de atitudes, brasileiros, inclusive letrados, continuam a interiorizar ideias colonialistas [...]” (NASSAR, 2016, p. 412). A essa falta de reflexão
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eu diria de senso, que Nassar nos chama a atenção – o europeu, por exemplo, é tão miscigenado como os latino-americanos. Vide a mistura de sangue que os habitantes da Península Ibérica – nossos colonizadores – sofreram antes de se tornarem o que são. O dado interessante é que esses mesmos povos híbridos inventaram teorias acerca dos colonizados, inferiorizando-nos justamente por esse rasgo de miscigenação.
Sem a menor dúvida, os colonizadores europeus poderiam realizar sua “tarefa histórica” sem maiores rodeios – a ferro e fogo – como efetivamente fizeram. Coube porém a intelectuais europeus, o que choca mas não surpreende, elaborar uma imagem dos povos que justificasse e legitimasse essa dominação, convertendo-a em “tarefa civilizatória” (NASSAR, 2016, p. 410).
Essas proposições ensaísticas nassarianas dariam para jogar um pouco de luz sobre seus próprios textos literários. Nassar, ao se insurgir contra o poderio dos países hegemônicos e o pensamento deles que nos subjugam, nos colocam num espaço inferior, nos escravizam, ridicularizam nossa produção cultural, intelectual, industrial, faz com que suas personagens também se insurjam contra a “ordem” patriarcal severa, castradora, despótica perpetrada por Iohána, por exemplo, em Lavoura arcaica. Também é perceptível a crítica elaborada pelo escritor contra o machismo, a violência de gênero, física, simbólica, a valoração do homem sobre a mulher, a androgenia, o andocentrismo, no qual as personagens do conto “Menina a caminho” (mãe e filha), personagem feminina, de Um copo de cólera, Ana, de Lavoura, estão submetidas. Raduan Nassar ao longo de todos os seus textos (literários ou não) demonstra uma fidelidade à sua escrita num projeto est(ético) que está para além das convenções e paradigmas exigidas por certos setores da crítica literária vigente. Sua literatura desmascara a forma arbitrária como determinadas minorias ainda são tratadas na sociedade e, o que me parece muito preocupante, com o aval do Estado-nação. Nassar é o tipo de escritor que nos desestabiliza, nos desconforta, nos constrange, nos assusta, nos arroja para além de nossos muros sociais e nos proporciona um pensamento mais humanizado, onde é possível sentir a dor e escutar a voz do outro. Espero que outros textos apareçam e nos tomem de assalto para inclui-los a essa Obra (que, espero, não seja) Completa.
Anexo II - Raduan Nassar vence o Camões 2016
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A literatura não deixa de ser uma forma de tentar, num espaço muito confinado, que é o texto, organizar um mundo que não é exatamente uma reprodução do real, mas um mundo que você imagina. Existe, no texto, essa tentativa de compensar o desequilíbrio e a desordem instalada em toda à sua volta. (Raduan Nassar) “Não entendi esse prêmio, minha obra é um livro e meio”, disse Raduan Nassar à Folha de S. Paulo, nesta segunda feira (30/05/2016), por ocasião do Prêmio Camões 2016, referindo-se ao compacto conjunto de sua obra: Lavoura arcaica, de 1975, Um copo de cólera, de 1978 e Menina a caminho, de 1997. Talvez Nassar tenha razão ao afirmar sobre o conjunto de sua obra como um livro e meio – um romance, uma novela e alguns contos esparsados elaborados ao longo dos anos 60 e reunidos em livro – pelo fato de se tratar da palavra imperativa, sem artifícios desnecessários ou truques narrativos. Os textos de Nassar são, como sugeriu Julio Cortázar, “esses grãos de areia no imenso mar da literatura [que] continuam aí, palpitando em nós” (CÓRTAZAR, 2006, p. 155). Compactuamos com as palavras do crítico e escritor argentino, pois Lavoura arcaica, por exemplo, chegou até as minhas mãos ainda nos anos da graduação e, desde então, praticamente toda minha produção científico-acadêmica está atravessada pelas obras o escritor brasileiro. Depois de publicar Lavoura arcaica e Um Copo de cólera, Nassar retirou-se da cena literária para não mais voltar; mudou-se para uma fazenda para criar galinhas e vaca; falou publicamente que necessitava, para saldar as contas com a sua cultura e idiossincrasia ancestral, trabalhar com a terra. Faz quase 40 anos que o escritor fechou a conta com a literatura e afirma categoricamente ter dito tudo o que pensa e sabe nesses três livros. 49
Este texto foi escrito a pedido dos gestores do site oficial da Reitoria da Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho” UNESP, por ocasião do Prêmio Camões concedido ao escritor brasileiro Raduan Nassar, anunciado na segunda-feira, do dia 30 de maio de 2016. O texto original publicado no site da Universidade sofreu algumas alterações de ordem morfossintática para ser posto nos Anexos dessa tese. Refletir acerca da importância do Prêmio e o que ele representa para a Literatura Brasileira, ademais de por em movimento nosso pensamento generalizado-en passant são as razões pelas quais este texto está disponibilizado para a banca de avaliação.
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É unanimidade entre a crítica literária destacar a exiguidade do conjunto da obra de Raduan Nassar, bem como considerá-lo uma voz de grande locução e dicção própria no interior da literatura brasileira contemporânea. Nesse sentido, penso que embora haja um número reduzido de obras, existe, por outra parte, um projeto estético ancorado não apenas ao trabalho com as palavras, mas também em questões políticas, culturais, sociais, filosóficas. Assim, há um fio invisível e indissociável que perpassa toda a obra do escritor e um leitor mais atento poderá observá-lo: o veto ao desejo e à paixão, a frustração devastadora diante de uma demanda não alcançada, a insurgência de personagens centrais contra a ordem estabelecida por quem detém o poder, mulheres e outras minorias sociais sujeitas aos assédios e às injúrias provocadas por alguém que se coloca no “direito” de vitimá-las. É justamente guiado por esse fio que o leitor passa a conhecer o trabalho minucioso com as palavras – o artesão do verbo, que produz uma enxurrada de metáforas, nem sempre alcançada à primeira vista; uma pontuação “estranha” capaz de criar um efeito desenfreado de leitura para os mais desavisados. Às vezes, ainda que agarrados ao fio, levamos uns solavancos com as notícias que os narradores nos fazem saber. Em Lavoura, a personagem narradora, André, declara amar sua irmã Ana; esta, por fazer com que o patriarca da família seja ferido em seus preceitos, é assassinada por ele, que elimina com o golpe de um alfanje o demônio do incesto – “[...] e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais pressuposto [...])” (NASSAR, 1989, p. 192) – que invadira sua casa. O narrador diz, ademais, ser a mãe a grande culpada – a aliciadora – pelo amor entre os irmãos e pela derrocada da família: “[...] te exorto a reconhecer comigo o fio atávico desta paixão: se o pai no seu gesto austero, quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição” (NASSAR, 1989, p. 136). Um copo de cólera traz a explosão do verbo à máxima potência e irrompe junto com os gestos das personagens masculina e feminina. A força da palavra se reflete nas ações exasperadas do homem e da mulher: um encontro aparentemente tranquilo entre o casal se transforma na cólera e na ira de ambos, revelando a brutalidade da personagem masculina que agride a feminina com crueldade e prazer. De igual modo, podemos observar esse trabalho com as palavras no conto “Menina a caminho”: a explosão das ações e do verbo se dá simultaneamente. E assim, por intermédio, da tensão e força desse verbo colérico, nos inteiramos das ações das personagens de Raduan Nassar.
168 A casa está tomada, mas a voz forte de Zeca Cigano, sobrepondo-se ao berreiro das crianças e os gritos da mulher, de repente explode: “Cadela!” Marido e mulher se pegam num rude bate-boca que se prolonga até que [se] houve a primeira chicotada, acompanhada de uma falsa inquisição: “Quem é que te ofendeu?” E ouve a segunda chicotada, acompanhada também de uma falsa inquisição: “Quem é que me ofendeu?” A tala da cinta vibra no ar, um estalo terrível quando o couro desce na bunda da costureira (NASSAR, 1997, p. 46).
Conforme se observa no extenso excerto acima, o verbo demonstra a cólera das personagens que chega ao extremo – a violência física empreendida contra a mulher; esta, por efeito de sugestão, teve um relacionamento extraconjugal e é ofendida pelo amante, conforme se verifica nas arguições de Zeca Cigano à mulher. As duas perguntas da personagem masculina dirigidas à costureira seriam idênticas, não fosse a substituição do pronome pessoal “te” por “me”; daí, podemos empreender a leitura de que a personagem feminina é ofendida pelo amante e, por conseguinte, a masculina também pela traição que sofre. Esse episódio sem muita falácia demonstra nosso pensamento sobre a tensão e a força do verbo empreendidas por Raduan Nassar. E ele afirma: “Dei conta de repente de que gostava de palavras, de que queria mexer com as palavras. Não só com a casca delas, mas com a gema também” (NASSAR, 1996, p. 196, p. 24). Lavoura apareceu no mercado editorial em 1975 e o Copo em 1978. O primeiro já tem 40 anos, o segundo apenas 03 anos mais jovem e as narrativas de ambos continuam bastante atualizadas, seja pela crítica que continua inventando novas leituras, seja pela relação entre os textos nassarianos com a cultura, a idiossincrasia, os engendramentos sócio-político e histórico hodiernos das sociedades ao redor do mundo. Entre tantas outras temáticas, Lavoura representa o modelo familiar tradicional – pai, mãe, filhos, e nos revela que esse modelo pode ser falível, também, como qualquer outro. Nesse sentido, podemos pensar no direito igualitário de determinados sujeitos adquirirem e/ou construírem outros rearranjos familiares que não apenas o tradicional. Para o escritor, “A família continua sendo um filão e tanto para um escritor de ficção. Não tem quem não se toque, não blasfeme contra a família, não tem quem não chore de nostalgia. O que prova que todo mundo tem pelo menos um pezinho bem plantado nela [...]” (NASSAR, 1996, p. 29).
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No mês em que Raduan Nassar recebeu o Prêmio Camões, uma adolescente foi severamente violentada por mais de 30 homens no Rio de Janeiro; o que escancara a violência que as mulheres, no século XXI, ainda são vítimas. Estas têm o que é de mais privado –seu corpo – usurpado, subjugado, mutilado e sem possibilidade de defesa frente a outro/s corpo/s – o masculino. Em Um copo de cólera, a personagem feminina não é apenas agredida fisicamente, mas também humilhada por ser mulher, em sua profissão, tem sua inteligência ultrajada, é comparada a algo vil, um objeto sem qualquer valor – a coisificação do outro. Nessa perspectiva, a novela nassariana tem muito a contribuir com as discussões empreendidas pelos Gender Studies; estes um tema urgente na pauta político-social para a construção de igualdade entre os gêneros. A obra de Nassar não pode ser enquadrada num isto ou aquilo, dando a entender uma dicotomia que limite a abrangência temática e morfossintática. Em outras palavras, sua produção literária é um “isto e aquilo” simultaneamente – bem ao gosto de Jacques Derrida, que propõe a desconstrução de qualquer modelo dicotômico, exaltando a différence num mesmo objeto. Assim, escritor brasileiro não arquiteta seu constructo literário apenas com um verbo colérico e ruidoso, mas também de silêncios: “Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) [...]” (NASSAR, 1989, p. 35). É nítido o silenciamento das personagens de Lavoura arcaica, da personagem central do conto “Menina a caminho”, da mulher que implora, em silêncio, por afetos a seu homem, no conto “Hoje de madrugada”. De Ana, nada se sabe; em nenhum momento é dado a ela a oportunidade de expor seus sentimentos em relação à família, a André, ao pai. Conforme as palavras de Pedro, o irmão primogênito “[...] ninguém em casa consegue tirar nossa irmã do seu piedoso mutismo [...]” (NASSAR, 1989, p. 39). Aqui, além do silêncio, revela-se a hipocrisia de Pedro travestida de zelo à família (como também o faz Iohána, o patriarca), pois esse silenciamento faz parte de uma imposição familiar patriarcal, não parte de Ana. A criança de “Menina a caminho”, ao longo do trajeto que percorre em toda a narrativa, sofre uma série de violência empreendida por pessoas ordinárias com quem entra em contato ou simplesmente se aproxima. Em resposta às agressões – xingos, assédios, injúrias, humilhações, separação de classe – ela dá seu imutável silêncio. Em Lavoura, André percebe o poder do silêncio, denuncia a falácia paterna, não segue os preceitos de quem diuturnamente está com a palavra e não a dá a ninguém; é o senhor absoluto, o patriarca, o dono por excelência do falo que não circula. É
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justamente por isso que Iohána não poder ser ouvido por seus familiares, pois “Não se pode levar a serio alguém que continue indefinidamente a bradar contra tudo e todos” (PERRONE-MOISÉS, 1996, p. 77). Ainda em relação à exaltação ao silêncio, o narrador diz que o avô é o autor de um autêntico discurso, da palavra exata, categórica, que traz o entendimento a todas as coisas:
(Em memória do avô, faço este registro: ao sol e às chuvas e aos ventos, assim como a outras manifestações da natureza que faziam vingar ou destruir nossa lavoura, o avô, ao contrário dos discernimentos promíscuos do pai – em que apareciam enxertos de várias geografias, respondia sempre com um arroto tosco que valia por todas as ciências, por todas as igrejas e por todos os sermões do pai: "Maktub50.") (NASSAR, 1989, p. 91).
O fragmento acima é todo o capítulo 15 do Lavoura e demonstra o quanto André aprecia o discurso parco do avô em detrimento da verborreia paterna, mais machuca que ensina, mais atrapalha que ajuda, mais desnorteia que conduz e não traz a luz, que dissipe as trevas, tão exaltada pelo pai. No conto “Hoje de madrugada”, narrado em primeira pessoa por uma personagem masculina, é instaurado o silêncio por parte do narrador e sua mulher. Na madrugada, enquanto os demais dormem silenciosamente, marido e mulher ocupam o mesmo espaço da casa, sem nenhuma comunicação entre eles. Ela pateticamente, implorando por afeto e o faz por intermédio de um bilhete: “Foi uma caligrafia rápida e nervosa, foi uma frase curta que ela escreveu [...] ‘vim em busca de amor’” (NASSAR, 1997, p. 54-55). Ao que o marido responde também por escrito: “[...] não tenho afeto para dar [...]” (NASSAR, 1997, p. 55). O silêncio para a mulher é estridente, angustiante, desesperador, pois acompanha a espera de uma demanda que não vem. Nesse conto, o silêncio, assim como o verbo colérico que jorra, desestabiliza a personagem que o recebe, a inquieta por esperar por uma informação ou um gesto que nunca vem. Para Raduan Nassar, talvez o silêncio seja tão importante que ele próprio preferiu, como sua personagem de “Aí pelas três da tarde”, um redator de jornal, retirarse da cena escritural, abandonando a literatura e deixando-se embalar por outras motivações. Seu silenciamento contundente, como o de suas personagens, não permite ao escritor fazer aparições públicas, dar entrevistas, tampouco comparecer a eventos50 Está escrito.
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literários. Sobre a literatura diz não ter mais nada a acrescentar. Assim, de gritos e silêncios compõem-se Raduan Nassar e sua obra sem muitos paralelos na literatura brasileira. O Camões 2016, o mais importante prêmio literário para obras em língua portuguesa, atribuído a Raduan Nassar, entende, com um júri altamente qualificado, o rigor e a qualidade do projeto poético nassariano, o lugar que o conjunto da obra ocupa nas questões políticas e sociais e a oposição contra qualquer tipo de conservadorismo. Poderíamos empreender laudas e laudas para endossar ou legitimar a obra de Raduan Nassar e alocá-lo à categoria de um escritor dos excelentes, no entanto, o Prêmio galardoado ao brasileiro o faz por si só e endossa nossas palavras e as das críticas nacional e internacional.
Anexos III - Transcrição da carta de Rayyane Tabet
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Sósia Da primeira vez que ouvi falar no Brasil, ele era um número. Desde quando me lembro, foi dito que havia 7 milhões de libaneses vivendo no Brasil. Nem um a mais, nem um a menos. Exatamente 7 milhões. Sendo isso quase o dobro da população do Líbano, esse número sempre foi usado como narrativa nacional de uma diáspora bem-sucedida que, um dia, viria resgatar o país de si mesmo. Se pudéssemos esperar só mais um pouco, se conseguíssemos sobreviver à atual crise, todos os libaneses do Brasil viriam correndo de volta nos ajudar! Era como se cada cidadão tivesse um duplo que vivesse por lá, um duplo que dava sentido à experiência que se vivia em nosso país. Acabei crescendo e me dando conta de que essa história não era verdadeira, mas resolvi continuar acreditando nela. No dia 22 de janeiro de 2016, fui convidado a participar da 32ª Bienal de São Paulo. Alguns dias depois, quando tentava me consolar com a ideia de que precisaria recusar o convite por falta de tempo, fui almoçar com minha irmã. Ela demorou a chegar, então entrei em uma livraria vizinha para passar o tempo. Fui à seção de clássicos e escolhi o livro mais fino que encontrei. Era Um copo de cólera, de Raduan Nassar; um romance escrito por um autor brasileiro de origem libanesa nos anos 1970, que acabara de ser lançado em inglês. O livro nunca havia sido traduzido para o árabe. Então comecei a pensar em como Raduan Nassar soaria na voz de seus antepassados. O que significaria levar aquele texto para o Líbano? 51
A carta escrita por Rayyane Tabet está disponível na página oficial da 32ª Bienal de São Paulo, onde é possível visualizar mais informações sobre o trabalho do artista libanês. http://www.32bienal.org.br/pt/participants/o/2594.
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E se a diáspora retornasse como uma história que não se parecia com nenhuma outra narrativa clássica de sucesso e riqueza e anseios por um país perdido? E se voltasse como uma história escrita no auge da ditadura militar no Brasil, sobre amor, desejo e ódio? Foi então que me dei conta de que não conseguiria evitar lidar com essa história e aceitei o convite para participar da exposição.
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Carta de Rayyane Tabet