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®BuscaLegis.ccj.ufsc.br REVISTA Nº 3 Ano 2 - 1.º semestre de 1981 - p. 120-132
Critíca do Direito e Criticísmo Ontognoseológico (em homenagem a MIGUEL REALE) Luiz Fernando Coelho Professor do CPGD-UFSC SUMÁRIO-. 1. Introdução. 2. Teoria tridimensional do direito e criticismo ontognoseológico. 3.Realismo crítico e dialética da complementariedade. 4.Tridimensionalidade específica e teoria crítica do direito. 1. Introdução Na história da filosofia podem-se distinguir as doutrinas fechadas, que constituem sistemas mais ou menos completos e articulados de, idéias. Prendem se geralmente a um fundador, e que se desenvolvem, seja pelo preenchimento de lacunas teóricas, seja pela simples contestação; e doutrinas abertas, formadas por movimento de idéias que ultrapassam a personalidade, e doutrina do fundador, quando é o caso, e que, embora possam ter nele sua fonte originária, quase sempre se constituem em grupos de doutrinas abertas para a crítica e suscetíveis de constante enriquecimento, sem que isso traduza necessariamente a contestação. As cosmovisões religiosas estão no primeiro grupo, bem como os sistemas filosóficos que pressupõem uma crença religiosa, também alguns dos grandes sistemas da filosofia ocidental, como o pitagorismo, o platonismo e, no mundo moderno, o criticismo kantiano e o idealismo absoluto de Hegel; as teorias filosóficas em geral correm esse risco de hermetismo, senão pelo dogmatismo de seus iniciadores, ao menos pela intransigência de seus seguidores, os quais acabam por entender que o sistema a que aderiram é o máximo em perfeição e verdade científica. Entre as grandes expressões de uma filosofia aberta acham-se o peripaterismo e o estoicismo e, atualmente, o existencialismo e o marxismo, este, malgrado o risco de dogmatização em face do radicalismo de uma ala ortodoxa de seus seguidores, que mais o utilizam como ideologia do que o estudam como fator de enriquecimento cultural e humanístico. Na filosofia do direito, o normativismo lógico de Hans Kelsen e a teoria egológica do direito, de Carlos Cossio, parecem constituir sistemas fechados, pela pressuposição de uma antologia do direito que condiciona dogmaticamente toda a elaboração epistêmica posterior. Embora situada no complexo mais amplo do culturalismo fenomenológico, a teoria tridimensional do direito, de Miguel Reale, não constitui sistema fechado em seu hermetismo, porque a própria antologia elaborada pelo mestre da Universidade de São Paulo não comporta nenhuma forma de dogmatismo jurídico ou filosófico, mas o enriquecimento doutrinário haurido na crítica que o próprio tridimensionalismo suscita. A antologia a que me refiro é o criticismo ontognoseológico, que constitui o primeiro fundamento de um realismo jurídico crítico no âmbito mesmo da teoria tridimensional, mas que não é incompatível com a epistemologia crítica posterior referida ao direito, inclusive a que eu mesmo venho elaborando em torno do
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problema da interpretação jurídica e de uma teoria geral do direito desvinculada da noção de ordem, mas de caráter crítico e prospectivo, porque voltada para a construção do direito e da sociedade. Essas articulações constituem o objetivo do presente estudo, o qual, mais do que uma homenagem ao maior dos filósofos brasileiros, no ano em que, aos setenta anos, afasta-se da cátedra universitária que tanto honrou, embora não da atividade docente e intelectual, tem o sentido de um reencontro com minhas próprias origens filosóficas. 2. Teoria tridimensional do direito e criticismo ontognoseolóqico. O aspecto mais relevante da teoria tridimensional do direito, eis que configura o fundamento ontológico de uma teoria geral do direito efetivamente voltada para a concreção da experiência histórico-cultural do direito, é a noção de que o conhecimento jurídico integra em unidade dialética as condições objetivas e subjetivas com que o fenômeno jurídico - fato, valor e norma - ocorre na experiência. Partindo do conceito de intencionalidade, na fenomenologia de Husserl, evita Reale a radicalização do dualismo entre natureza e espírito, e afirma a correlação transcendental subjetivo-objetiva, isto é, ontognoseológíca, "que não permite se reduza o sujeito ao objeto, ou vice-versa, visto como algo haverá sempre a ser convertido em objeto e, ao mesmo tempo, algo haverá sempre a atualizar-se no tocante à subjetividade, através de sínteses empíricas que se ordenam progressivamente no processo cognoscitivo" (l). Tal correlação entre o sujeito e o objeto, que constitui o núcleo da ontognoseologia jurídica, é desenvolvida em três momentos básicos da obra realeana, transcendendo o enfoque Puramente jusfilosófico para configurar uma teoria geral do conhecimento. Esses três momentos são, no meu entender, seu trabalho didático principal, "Filosofia do Direito (2) , de 1953, "0 Direito Como Experiência" (3), de 1968, e "Experiência e Cultura '(4), de 1997. Tal cronologia bem revela a maturação de um trabalho filosófico que ultrapassa os limites do pensamento jurídico e culmina em uma filosofia geral de extraordinário alcance. Já em "0 Direito como Experiência", nos três ensaios iniciais, verifica-se a superação do apriorismo e transcendentalismo de bases kantianas e husserlianas. Reale considera primeiramente a filosofia transcendental como o início da libertação da filosofia do direito, das preocupações reducionistas e satorizantes características do empirismo positivista, e que permanece no neopositivismo contemporâneo, em suas várias expressões. Todavia, tanto em Kant quanto em Husseri os conceitos de transcendental e a priori são insuficientes para situar o problema da juridicidade enquanto concreção, situado no complexo da experiência ética, isto porque, se coube ao primeiro o mérito de enfatizar a função ativa e constitutiva do espírito na ordenação dos dados que se apresentam ao conhecimento- e ao segundo a inclusão do real, em sua fenomênica concreção, no conceito de transcendental (a priori material), como que num retorno à coisa-em-si enquanto síntese do ego e do mundo de que ele é consciente, é em Reale que o transcendental abre-se à plenitude da experiência, como categoria lógica determinante e determinada nos pianos da práxis e da históría (5) . Eis aí, não somente a superação do transcendentalismo e do apriorismo como subjetividade pura e retorno à própria gênese fenomênica da subjetividade, como também a definição dessa gênese como experiência histórico cultural no sentido dos valores que a condicionam e constituem; mais ainda, a superação da irredutibilidade do ser ao dever-ser, tentada num primeiro momento por Hegel ao estabelecer a co-implicação do real com o racional; quanto a este aspecto, já em 1940 preconizava Reale o abandono da antítese entre ser e dever-ser. "0
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direito como fenômeno - escrevia ele em Fundamentos do Direito'- só pode ser compreendido como síntese de ser e dever- ser" (6). Dessa maneira, sujeito e objeto se co-implicam na experiência cognoscitiva, a qual engendra uma reflexão transcendental baseada na correspondência entre a intencionalidade da consciência e o signficado das intencionalidades objetivadas na história (7). Essa teoria geral do conhecimento, configurando um criticismo ontognoseológico, é o sustentáculo da teoria tridimensional do direito, e se completa com a dialética da complementariedade, outra importante contribuição de Reale ao pensamento filosófico universal. Não passou desapercebido o alcance inexaurível do criticismo ontognoseológico, irradiando-se pela totalidade da experiência histórica e não ficando circunscrita à filosofia propriamente jurídica; tanto é que, em "Experiência e Cultura", obra da maturidade plena, desenvolve o mestre seu filosofar para além do direito, penetra na história, na arte e na religião, enfatizando o caráter pluralista da filosofia contemporânea, opondo-se aos impertinentes reducionismos que volta e meia invadem o debate intelectual (8). Situei o criticismo ontognoseológico no contexto de "Experiência e Cultura" por ser este livro a síntese e a grande obra filosófica de Reale, e para lembrar que ele não é somente o jusfilósofo que influenciou uma geração de pensadores do direito - como ficou patente no recente Encontro de Filosofia do Direito, de João Pessoa - mas é sobretudo o filósofo, de quem pode ser afirmado não somente ter ensejado o desenvolvimento de uma filosofia brasileira contemporânea, como também haver configurado o momento culminante de um dos mais expressivos movimentos da filosofia ocidental. 3. Réalísmo crítico e díalética da complementariedade. O realismo crítico já estava presente em "Fundamentos do Direito" (9), obra com que Reale concorreu à catedra de Filosofia do Direito na Universidade de São Paulo, em 1940. "Parece-nos, em suma, - dizia Reale- que uma compreensão mais exata da natureza e dos fundamentos do Direito resultou do fato de nos termos colocado em uma posição de realismo crítico, entre a unilateral preferência dos juristas sociólogos pelo fato e a unílateralidade dos juristas técnicos seduzidos pela norma." (10) Posteriormente, em artigo publicado na Revista Brasileira de Filosofia, esclarecia tratar-se de um realismo ontognoseológico, no sentido de superar a antinomia entre "realismo e idealismo". Realismo, "na medida e enquanto a subjetividade transcendental outorga sentido ao real, em função de estruturas imanentes a este; e é ontognoseológico enquanto o objeto só o é por sua essencial correlação à consciência mesma" (11). Assim, a validade da norma é implicada pela funcionalidade do contexto histórico que condiciona sua eficácia, o que explica suas mutações semânticas, embora dentro de sua estrutura permanente tridimensional. A tridmensionalidade do direito - fato, valor e norma - é então definida com específica e concreta, ou seja, em unidade dialética, como intencionalidade, objetiva nas realidades referidas a valores. A noção de tridimensionalidade específica é um progresso em relação ao tridimensionalismo genérico e abstrato da escola de Baden e do culturalismo de Hall, Recaséns e Cossio, entre outros, com quem Reale polemiza, em 1968 com "Teoria Tridimensional do Direito" (l2), monografia que estabelece a síntese de toda a produção filosófico-jurídica anterior, revelando as circunstâncias do aparecimento do tridimensionalismo específico. Nesta obra um trecho chamou-me especialmente a atenção, pela referência, em nota de rodapé, à epistemologia
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crítica de Bachelard, um dos autores que cultivo com grande interesse. "A meu ver, -escreve Reale -acorrelação existente entre sujeito e objeto é de implicação-polaridade, que governa todo o processo espiritual, tanto no plano teorético como no da práxis, podendo, em resumo, dizer-se que na dialética do tipo aqui exposto, há uma correlação permanente e progressiva entre dois ou mais termos, os quais não se podem compreender separados uns dos outros, sendo, ao mesmo tempo, irredutíveis uns aos outros; tais elementos distintos ou opostos da relação, por outro lado, só têm plenitude de significado na unidade concreta da relação que constituem, enquanto se correlacionam e dessa unidade participam" (l3) - Na nota de rodapé que se segue,, estabelece Reale a comparação entre o conceito de implicação polaridade com o enunciado por Bachelard como "princípio de complementariedade, aplicável nas ciências naturais, com a função de desvelar as meras aparências de contradições, ou seja, "o processo operatório pelo qual se trata de desvelar a aparência de uma exclusão recíproca de termos críticos, os quais se revelam à análise dialética como irmãos gêmeos, como pares que se afirmam uns em função dos outros, ou pelo menos entrando no mesmo conjunto" (l4). Em outro contexto, recorda Reale a tese bachelardiana sobre a necessidade de uma "antologia do Complementar menos asperamente dialética que a metafísica do contraditório" (l5). Veremos no próximo item as implicações que a articulação entre o pensamento de Bachelard e o de Reale suscita. Por ora, convém fixar que a dialética de implicação-polaridade vai além da metodologia da ciência do direito como processo de compreensão da experiência histórico-axiológica, mas se difunde na práxis, como metodologia do direito; sem embargo da equivocidade do termo, é a essa dimensão da dialética realeana que atribuo o alcance do realismo crítico, inserindo-o no conjunto das teorias do realismo jurídico, voltado para a hermenêutica jurídica. Em "Estudo de Filosofia e Ciência do Direito", de 1978, sintetiza reale sua teoria hermenêutica, em texto que o mestre teve a gentileza de reproduzir no prefácio ao meu livro "Lógica Jurídica e Interpretação das Leis" (l6). A hermenêutica jurídica do tridimensionalismo enfatiza o caráter unitário da interpretação jurídica, que é inexoravelmente de natureza axiológica, ainda que lógico-formal na aparência. A interpretação ocorre no contexto global do ordenamento, não podendo extrapolar a estrutura objetiva resultante da significação unitária e congruente dos modelos jurídico-positivos. É condicionada pelas mutações históricas do sistema jurídico, em sentido retrospectivo e prospectivo, tendo por pressuposto a recepção dos modelos jurídicos válidos segundo exigências racionais, ainda que geneticamente vinculada a fatores alógicos. E finalmente, enfatiza-se a destinação ética do processo hermenêutico, subordinado aos valores éticos da pessoa e da convivência social, numa compreensão global do mundo e da vida, em cujas coordenadas se situa o quadro normativo objeto de exegese (l7). Evidentemente cada uma dessas características poderia merecer reflexão a parte, tal a fecundidade da hermenêutica de Miguel Reale; todavia, dados os limites deste estudo, procurarei ater-me ao problema da natureza histórico concreta do ato interpretativo, cujas implicações possibilitam a passagem do realismo crítico realeano a uma teoria crítica do direito de caráter prospectivo e voltado para a construção da ordem social. 4. Tridimensionalídade específica e teoria crítica do direito. Como afirmei no início, a teoria tridimensional do direito é uma dessas filosofias abertas, que não somente se auto-desenvolve coerentemente com suas premissas essenciais, como também comporta novas elaborações, teoréticas, ainda que em desacordo com aquelas premissas essenciais. Estou assim suficientemente à vontade
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para tentar articular o que eu mesmo entendo por crítica do direito, com elementos da teoria tridimensional que incorporo à elaboração teórica pessoal, e a partir do que ficou esclarecido nos itens anteriores. Parece-me que o núcleo da atual filosofia é o problema ideológico, conjugado com uma decisiva opção realista, mas voltada para o social e o político. trata-se da restauração do humanismo no seu sentido mais profundo, onde' não se privilegias metafísica e o transcendentalismo; surge da constelação de que séculos de meditação transcendente[ pouco ou nada significaram pela felicidade humana, e que não é indagando acerca da "impossibilidade da metafísica na crítica da razão pura" que se vai dar "pão a quem tem fome e água a quem tem sede" (l8). Não se trata porém de um neopositivismo, nem materialismo inconseqüente; o que a filosofia está a absorver é um ideal eudemonístico articulado com a realidade social, relacionando a atividade intelectual, a especulação filosófica em todos os níveis, com a transformação da sociedade, lembrando que o filósofo tem também sua parcela de responsabilidade na promoção humana: e que o jurista, antes de ser o guardião da ordem social, é o construtor dessa ordem e o responsável pela sua qualidades com Roscoe Pound, pode-se afirmar que o trabalho do jurista é uma social, e que a ordem social é o resultado visível de seu trabalho. Assim, a crítica do direito é o núcleo para onde convergem esses expressivos movimentos da filosofia contemporânea, os quais estão presentes na teoria tridimensional do direito, mas que todavia ainda não lhes extraiu todas as conseqüências. Tais expressões podem ser consubstanciadas pelo menos em quatro direções, a saber: a) a epistemolgia crítica, b) a filosofia da linguagem, c) a filosofia marxista, e d) a teoria da ideologia; todas tendo por denominador comum a reafirmação do humanismo, decantado no presente século pela filosofia da existência - Sartre é sem dúvida a mais vigorosa afirmação do humanismo existencialista - pelo personalismo, pelo marxismo e pelo culturalismo. Da epistemologia crítica, especialmente em Bachelard e Popper, acolhe a crítica do direito a noção de que a experiência científica não é de nenhum modo neutra, mas engajada em função dos dados de que o pensamento científico dispõe, inclusive dados ideológicos, o que leva à construção do objeto que pretensamente descobre em sua racionalidade. A epistemologia contemporânea desmistificada a pretensão de verdade absoluta da ciência em geral, e forma novos paradigmas epistêmicos para as ciências sociais, já que o apego ao método pode obstaculizar a elaboração científica. A dialética realeana insere-se nesse contexto da epistemologia crítica, não se limitando à metodologia científica tradicional, inadequada para a compreensão unitária do direito em sua concreção de fato, valor e norma. Do mesmo modo, pode-se estender à experiência histórico-social, abrangendo a experiência ética e a jurídica, as considerações a respeito da neutralidade ideológica da ciência, conduzindo à constatação de que a ideologia é necessariamente um dos componentes dessa experiência em sua dialeticidade, o que está implícito na concepção tridimensional, quando contempla a questão dos valores. Penso também que a dimensão construcional da ciência em relação a seu objeto está implícita no criticismo ontognoseológico, mas a teoria tridimensional não lhe atribui o alcance que é realmente apropriado, no sentido de que o jurista, engajado na experiência ético-jurídica, é um construtor da ordem social e não o mero observador e descritor de uma ordem imanente; tal insuficiência do tridimensionalismo realeano em parte se explica pelo vigor com que Reale valoriza a experiência cultural da humanidade em termos de uma herança civilizadora que se incorpora ao patrimônio axiológico; experiência que ocorre sob a forma categorial, isto é,
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racionalmente ordenada, e pré-categorial, que corresponde à espontaneidade da vida humana em suas relações na sociedade, forma posta em relevo por Capograssí. O conjunto dessas formas da experiência, que são concomitantes e não excludentes nem sucessivas, constitui o processo histórico-cultural, o conjunto de intencionalidades objetivadas, bens culturais em suma "que são enquanto devem ser" (realidades referidas a valores). A ênfase ao processo histórico-cultural traz implícita a idéia de uma ordem objetiva e preestabelecida, como passado a impor-se ao presente, e sugerindo uma evolução tranqüila e linear a compor o patrimônio cultural da humanidade. Esse historicismo axiológico de Reale está apoiado em importantes observações da antropologia fenomenológica, particularmente, na tese estruturalista da tendência natural do homem à ordem (19). Coerentemente com tais premissas, lemos em "0 Direito como experiência": "Ora, a apontada 'exigência de ordem' deve estar na base do pensamento dos filósofos, sociólogos e juristas ao tratarem da experiência jurídica pré - categorial. máxime em sendo o direito a experiência social em que prevalece por excelência o valor da ordem e da segurança. O direito é, na realidade, uma expressão natural da ordem do pensamento como ordem das vontades coexistentes, o que se manifesta em todas as formas da experiência jurídica, até se aperfeiçoar, graças às categorizações da ciência, como realização ordenada e garantida da convivência humana segundo valores de alteridade "(20) No estágio atual da teoria tridimensional, não se leva em conta que a apontada "exigência de ordem" é fruto de uma ideologia que vê na racionalidade algo imanente, e que define essa racionalidade como coerência lógicoformal; (21) como as contradições, embora também racionalmente elaboradas, mas passíveis de serem consideradas i manentes, opõem-se a essa noção de ordem, não contempla o criticismo ontognoseológico, nem os mitos que obstaculizam o pensamento científico, os obstáculos epistemológicos a que se refere Bachelard, nem as transformações qualitativas que podem levar a autêntico repúdio de uma teoria científica- e o historicismo axiológico silencia sobre o problema da revolução, embora tenha implícita a possibilidade de resistência às leis injustas, quando situa o valor da pessoa como condição transcendental de toda a experiência ético-jurídica (22). Mas voltando às origens do tridimensionalismo realeano, lemos em "Fundamentos de Direito", que a sociedade é, em um certo sentido, uma ordem na incessante procura do bem" (23); o que implica a necessária harmonia entre justica e ordem: tese retomada no plano epistemológico, ao relacionar a complexidade da Jurisprudência com o problema da liberdade e da justiça. articulado com o da certeza (24) e com a ordem e a segurança (25) . Liberdade, justiça, certeza, ordem e segurança, eis os cinco valores fundamentais dimanados do valor-fonte, a pessoa humana, que, no contexto do pensamento realeano, padece de um idealismo um tanto ingênuo, que omite o poder, o egoísmo e todas as formas de negação da pessoa humana como autênticos motores do chamado desenvolvimento social, inclusive a corrupção política. E, assim, faltou ao tridimensionalismo, apesar da acuidade com que situa os valores na história, uma dimensão crítica mais corajosa, no sentido do real histórico, o que pode acarretar o risco, tão comum às teorias jurídicas idealistas, de transformar-se em mais uma fonte de legitimação da ordem social, qualquer que ela seja; risco esse que evidentemente não compromete o tridimensionalismo como uma das doutrinas científicas mais completas do Pensamento contemporâneo, pois, como filosofia aberta, pode perfeitamente abrigar o sentido prospectivo de crítica social e política e engajamento humanístico efetivo. Mas para isso torna-se necessário articular a dialética de implicação polaridade com as contribuições da filosofia
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da linguagem, tratada de modo despiciendo na teoria tridimensional; a ela, refere-se Reale tão-somente para enfatizar o aspecto semântico da interpretação da norma jurídica, portadora de significado autônomo, embora variável em função dos fatos e valores nela dialeticamente integrados- Em outro contexto, esclarece que a interpretação jurídica não se reduz a uma análise lingüística, devendo desenvolver-se segundo exigências da razão histórica entendida como razão problemática (26), o que evidentemente traz à coração o problema da operacionalidade da linguagem como instrumento de comunicação jurídica. Todavia, não passou desapercebida a importância da linguagem no processo ontognoseológico. Citando Lukács, lembra Reale que "as formas básicas da vida humana, o trabalho e a linguagem, têm, essencialmente, sob muitos aspectos, o caráter de objetivações" (27) Mas alonga-se na consideração do trabalho, apoiado em Marx e Lukács (28), quando se poderia aplicar à linguagem, a tese realeana referida ao trabalho, ou seja, que ele não pode produzir-se senão como ato teleológico (29). Aí está o núcleo, talvez o que há de mais significativo na teoria tridimensional, núcleo do criticismo ontognoseológico e do historicismo axiológico, com profundas repercussões, e que pode inserir a teoria de Reale no âmago das discussões da filosofia lingüística e da teoria da ideologia, senão da filosofia marxista, apesar de rejeitada pelo mestre paulista. A filosofia da linguagem revela o alcance operacional da linguagem científica e desmistifica a ilusão de que os enunciados das ciências sociais possam ter conteúdo semântico definido; mais ainda, ela clarifica o caráter retórico da linguagem das ciências sociais, principalmente do direito e da política, revelando que as transformações semânticas de sentido, referidas por Reale no tocante ao significado das normas jurídicas, respondem na verdade a condições pragmáticas, de caráter ideológico e histórico-social. Na verdade o historicismo axiológico de Reale conduz à ilação do sentido operacional, ou funcional, da linguagem e meta-linguagem do direito, ainda mais se levarmos em conta a interdisciplinariedade que deflui de sua dialética e noção de tridimensionalidade específica. Quanto à filosofia marxista, ela está presente, não somente na absorção do sentido teleológico do trabalho pelo tridimensionalismo, como também na dialética de complementariedade, que só aparentemente se opõe à dialética hegeliano-marxista da contradição (30). Em Reale, o repúdio à dialética marxista deflui do caráter de imanência que o marxismo ortodoxo atribui à contradição, conduzindo a um determinismo histórico onde a ideologia aparece como um efeito inexorável dos modos de produção e a luta de classes como algo inerente à natureza humana Mas negar o sentido de imanência da contradição não implica negá-la como possibilidade ontognoseológica e nem como um fato histórico que possa ter suas causas investigadas pela ciência e pela filosofia. Penso que a dialética de implicação-polaridade destrói tão somente o caráter exclusivista da dialética hegeliano-marxista, apresentada pelo senso comum como a única possível, o que é evidentemente um erro. Mas a dialética realeana a integra na dimensão de totalidade que atribui ao processo ontognoseológico, onde "há uma correlação permanente e progressiva entre dois ou mais fatores, que não podem compreender-se separados um do outro, sendo ao mesmo tempo cada um deles irredutível ao outro, de tal maneira que os elementos da relação só alcançam plenitude de significação na unidade concreta da relação que constituem, enquanto se correlacionam e participam daquela unidade" (31). Ora, a contradição é não somente uma das formas possíveis de vislumbrar o total, como também um dos aspectos da realidade social que não pode ser ignorado no contexto histórico. Concordo todavia em que o fluxo da história é de certa forma moldado pelo pensamento, e que, nesse contexto, a contradição é também uma categoria gnóstica e não algo imanente e inexorável. Isto é perfeitamente coerente com o pensamento realeano, já que a dialética da complementariedade é uma dialética pluridimensional, que se
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desdobra em várias perspectivas (32). Não seria a contradição uma destas perspectivas e, portanto, apta a integrar-se na dialética da complementariedade? Lembro aqui as palavras de Ortega y Gasset, de que "la perspectiva es uno de los componentes de la realidad" (33). Em conclusão, pode-se asseverar que o tridimensionalismo realeano, como filosofia aberta, não se opõe às grandes contribuições do pensamento contemporâneo, mas está apto a absorvê-los e enriquecer-se com uma aproximação muito maior da verdade. Pode-se constatar essa ilação em relação à teoria da ideologia, a qual estabeleceu a separação entre a realidade concreta e a realidade construída pela imaginação dos homens, através da mitologia, da religião, da ciência e da filosofia, e revelou que a objetividade das ciências sociais se concentra muito mais no real imaginário. Com a teoria tridimensional do direito fica patenteado que a ideologia é um dos componentes da realidade social, manifesta na dimensão axiológica do trabalho como construtor dessa realidade. O que não se pode admitir no trabalho científico, é que a ideologia permaneça inconsciente. O que o tridimensionalismo então procurará desenvolver, é a maneira de assumir a ideologia ao torná-la consciente, para então elaborar uma instância crítica voltada para o valor fundamental, que é a pessoa humana, na sua dignidade individual e social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(l) REALE, Miguel - Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo: Saraiva, 1968, p. 88. (2) REALE, Miguel - Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 4@ ed. 1965. (3) REALE, Miguel - O Direito como Experiência. São Paulo: Saraiva, 1968. (4) REALE, Miguel - Experiência e Cultura. São Paulo: Livraria Editora de Ciências Humanas Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 1977. (5) O Direito como Experiência, pág. 25. (6) REALE, Miguel - Fundamentos do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda. e Editora da Universidade de São Paulo, 2a edição, 1972,p.302. (7) Teoria Tridimensional do Direito, p. 80. (8) Scantimburgo, João de - Experiência e Cultura - O grande livro de Miguel Reale; in Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXVIII, fasc. l 10, abril/maio/junho de 1978, pp. 199 e s. (9)Fundamentos do Direito, ct. (10) Idem, p. 302. (11) REALE, Miguel - Conversa com meus Críticos. Revista Brasileira de Filosofia, vol. XIX, fasc. 74, abril/maio/junho de 1969, p. 234.
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(12) Teoria Tridimensional do Direito, ct. (13) Idem p. 90. (14) Idem, ibidem. (15) O Direito como Experiência, p- 138. (16) COELHO,. Luiz Fernando- Lógica jurídica e Interpretação das Leis. Rio de Janeiro: Forense, 2a ed. 1981. V. prefácio de Miguel REALE. (17) Idem. (18) Salmo 146.7. (19) LÉVI-STRAUSS, Claude - La Pensée Sauvage, Paris, 1962. REALE, O Direito como Experiência, ct. pp. 43/44. (20) O Direito corno Experiência, p. 45. (21) CHAUÍ, Marilena - Crítica e Ideologia, in Cadernos da SEAF, no 1. (22) Teoria Tridimensional do Direito, p. 80. (23) Fundamentos do Direito, p. 309. (24) O Direito como Experiência, p. 35. (25) Idem, p. 43. (26) Prefácio ao meu livro Lógica jurídica e Interpretação das Leis, Pt. (27) O Direito como Experiência, p. 45. (28) Idem, p. 46. (29) Ibidem. (30) REALE, Miguel -Dialética da Experiência jurídica. Revista Brasileira de Filosofia, vol. XXX, fasc. 115, julho/agosto/setembro de 1979, p. 239. (31) Experiência e Cultura, p. 166. (32) REALE, Miguei - Ciência do Direito e Dialética, comunicação ao XV Congresso Internacional de Filosofia, realizado em Varria, Bulgária, de 17 a 22 de setembro de 1973. Publicada na Revista Brasileira de Filosofia, no 91, 1973, p. 261.
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(33) ORTEGA Y GASSET, El Tema de Nuestro Tiempo.
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