Pensamento econômico brasileiro: Escola Desenvolvimentista

Pensamento econômico brasileiro: Escola Desenvolvimentista O surgimento do pensamento desenvolvimentista no Brasil está intimamente relacionado ao sur

Author Maria Fernanda Salgado Olivares

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Pensamento econômico brasileiro: Escola Desenvolvimentista O surgimento do pensamento desenvolvimentista no Brasil está intimamente relacionado ao surto industrial em andamento desde o final do século XIX. Nas três primeiras décadas do século XX esse processo se intensificou no eixo São Paulo–Rio em virtude de vários fatores. Em primeiro lugar, a defesa dos interesses do pólo agroexportador do café, que orientou a República Velha, implicava várias medidas de valorização do produto, entre as quais o recurso freqüente às desvalorizações da moeda. A elevação dos preços dos produtos importados, combinada a um acelerado processo de urbanização ocorrido nesse período, abriu espaço para o surgimento de um incipiente setor industrial voltado à produção de bens de consumo populares, especialmente nas áreas têxtil e de alimentos.

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Com o agravamento das dificuldades de importação durante a Primeira Guerra Mundial, o setor se expandiu, ampliando sua presença no setor de bens de consumo, ao mesmo tempo que teve de enfrentar os problemas decorrentes da impossibilidade de renovação do parque produtivo, só superados com o final da guerra, nos primeiros anos da década de 1920. Até o final da década de 1920, esse surto industrial avançou condicionado às necessidades do sistema agroexportador e como uma resposta “espontânea” às crises internacionais que abriam novas oportunidades para os empreendedores nativos. A crise de 1929, as respostas adotadas pelas nações à crise no decorrer da década de 1930 e a Segunda Guerra Mundial provocaram transformações profundas na evolução da indústria no Brasil. No decorrer desses quinze anos, as relações de troca internacionais sofreram um abalo gigantesco, a ponto de provocar uma revisão profunda nos ideais livre-cambistas que dominavam as relações internacionais. A grande instabilidade do mercado mundial fortaleceu a convicção, entre todas as nações, de que a continuidade de desenvolvimento passava, necessariamente, por um esforço de mobilização nacional. A retomada do ideário nacionalista foi generalizada no Ocidente, existindo situações nas quais ele se tornou extremo e agressivo, caso do nazifascismo, e outras nas quais a preocupação com a reconstrução das economias nacionais

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não excluía medidas visando reativar o mercado mundial, caso dos Estados Unidos e da Inglaterra. No Brasil, o colapso do mercado mundial em 1929 catalisou os conflitos intra-oligárquicos e produziu uma convergência entre várias classes e grupos sociais que se opunham tanto às práticas políticas das frações oligárquicas lideradas por São Paulo e Minas Gerais quanto ao modelo agroexportador que submetia o conjunto da nação às necessidades de reprodução do capital vinculado ao negócio cafeeiro. Essa convergência agregou a classe média, os trabalhadores urbanos, a média oficialidade do Exército (tenentismo), frações das oligarquias ligadas ao mercado interno, frações da intelectualidade e o nascente contingente de empresários industriais que encararam esse momento político como uma oportunidade de tirar o setor industrial do papel de coadjuvante no cenário econômico nacional. Coube a Getúlio Vargas a habilidade política para articular esse conjunto de interesses num movimento que acabou chegando ao poder em 1930 por um golpe de Estado. De imediato, os grupos que chegaram ao poder em 1930 adotaram medidas que visavam a fortalecer o poder central e promover uma modernização do Estado sob a égide de uma ideologia nacionalista. Do ponto de vista econômico, o novo pacto de poder reafirmava seu compromisso com a cafeicultura, mas sinalizava que o desenvolvimento do país passava pelo apoio à indústria. Apesar de essa orientação ter se evidenciado apenas a partir do Estado Novo (1937), sua simples enunciação consistia numa grande novidade, pois a industrialização se tornava, pela primeira vez, uma questão de Estado. Coube ao pensamento desenvolvimentista o papel decisivo de articular a ideologia do nacionalismo, em franca ascensão, com a defesa da industrialização.

22.1 As idéias precursoras de Roberto Cochrane Simonsen (1889-1948) Roberto Simonsen nasceu em Santos, em 1889, filho de uma família de comissários de café. Cursou a Escola Politécnica e formou-se engenheiro em 1910. Foi empresário em vários ramos de atividade, tais com construção, frigoríficos, borracha e cafeicultura (Casa Comissária Murray Simonsen Co.). Também foi presidente de associações de classe, como do Sindicato Nacional dos Combustíveis Líquidos, do Instituto de Engenharia de São Paulo, da Confederação Industrial do Brasil, e líder da dissidência com a Associação Comercial de São Paulo, que resultou na criação do Centro das Indústrias do

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Estado de São Paulo (Ciesp), em 1928. Foi fundador da Faculdade de Engenharia Industrial (FEI) e da Escola Livre de Sociologia e Política (1933), onde ministrou aulas sobre a história econômica do Brasil. Integrou a mobilização empresarial em São Paulo no movimento de 1932, foi eleito deputado para a Constituinte de 1934, mantendo-se como deputado até 1937. Durante o Estado Novo, assumiu posições em órgãos importantes do Estado, como o Conselho da Expansão Econômica do Estado de São Paulo e o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial.1 Foi eleito senador em 1946 pelo Partido Social-Democrata (PSD). Nesse período compreendido entre o final da guerra e seu falecimento, idealizou o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e o Serviço Social da Indústria (Sesi), órgãos da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) dedicados a melhorar a qualificação dos operários e afastá-los da influência das ideologias de esquerda. Em 1946-47, durante a reação liberal do governo Dutra, criou no Conselho Nacional da Indústria (CNI) o Conselho Econômico e o Departamento Econômico, liderados por Rômulo de Almeida e Celso Furtado2, os quais, especialmente o último, foram responsáveis pelo aprimoramento e sofisticação de várias idéias de Simonsen, além de dotarem o pensamento desenvolvimentista de um consistente quadro teórico, convergente com os estudos de Prebisch e da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), fundada em 1948, no ano do falecimento de Simonsen. Suas principais obras são História econômica do Brasil 1500/1820, de 1937; Evolução industrial do Brasil, de 1939; e Ensaios sociais, políticos e econômicos, 1943. A principal obra de Simonsen foi História econômica do Brasil. Cobrindo o período da colonização até as vésperas da Independência, o estudo traça um amplo painel da economia colonial, baseado no programa do curso de História Econômica do Brasil que ele ministrava na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, criada por ele. Do ponto de vista metodológico, sua principal referência era Sombart, cuja obra Modern capitalism, de 1902, era considerada pelo autor a fase culminante dos estudos econômicos.

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SIMONSEN, Roberto. Evolução industrial do Brasil e outros estudos. Seleção de textos de Edgard Carone. São Paulo: Nacional/Ed. da USP, Brasiliana, v. 349, 1973. BIELSCHOWSKY, Ricardo. O pensamento econômico brasileiro, o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 5. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

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A análise se desenvolve orientada por algumas referências importantes. Uma delas é que a colonização do Brasil se iniciou à sombra da civilização européia, sendo necessário, portanto, compreender os aspectos econômicos daquela civilização para identificar as orientações e os fatores externos que regeram a nossa formação. Além disso, admitindo-se que a era colonial forjou a base da estrutura unitária do país, trata-se de determinar o papel da economia nesse processo. Dentre os inúmeros aspectos importantes abordados por Simonsen na obra, merece destaque a ênfase que ele atribuiu ao suposto papel desempenhado por São Paulo na construção e na integração das várias regiões, que resultariam no território nacional, e ao papel que ainda poderia caber ao “Estado no reerguimento da economia nacional”, tudo isso afirmado em 1937, data da publicação da obra. Ele defendia que a História econômica deveria ser evolutiva e comparativa, e seu principal foco teria de ser na investigação da “origem dos muitos entraves que dificultaram e dificultam a nossa evolução progressista”.3 Para o autor, esse estudo era necessário, mas não suficiente, pois as nações que progrediram e se encontravam na vanguarda do desenvolvimento foram aquelas que superaram a sua desorganização e fixaram uma consciência nacional, definiram suas aspirações, suas necessidades e os caminhos para atingi-las. Simonsen destacava que o Brasil ainda não tinha atingido essa consciência nacional e que um dos objetivos da Escola Livre de Sociologia e Política e de seu programa de cursos era contribuir para a formação da consciência coletiva de nossas necessidades, para gerar as ações “unitárias e persistentes para o progresso da nossa terra”.4 Entre as principais aspirações que deveriam mobilizar a consciência nacional estava a da industrialização. Simonsen foi o precursor da idéia de que a industrialização plena do país (com a constituição de um setor de indústria de bens de consumo, bens de capital e indústria de base) era a condição necessária para superar seu atraso e promover seu desenvolvimento. Defendia que os mecanismos de mercado não podiam ajudar e, no limite, criavam dificuldades para a modernização industrial. No caso do Brasil, ela só seria bem-sucedida por ações intervencionistas traduzidas em protecionismo e planejamento. Fazia questão de destacar que os interesses da agricultura e dos Estados Unidos não seriam

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SIMONSEN, Roberto. História econômica do Brasil, 1500-1820. São Paulo: Nacional, 1937, p. 53 Id.

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contrariados com o desenvolvimento industrial, pois, no primeiro caso, o progresso técnico incrementa a produtividade e os ganhos da agricultura e, no segundo, aumenta a demanda por máquinas e equipamentos dos países centrais. Sua defesa do planejamento visava a demonstrar que ele não era antagônico à democracia, pois havia uma tendência no pós-guerra a identificar liberalismo econômico com liberalismo político e este, com democracia. Ela argumentava também que a industrialização contribuía para atenuar os efeitos das crises externas, pois a expansão das atividades assalariadas urbanas criava um mercado alternativo para a produção agrícola nacional, já que a demanda externa não crescia no ritmo da oferta. Ainda nessa linha das relações entre a agroexportação e a demanda internacional, identificou uma tendência de queda na produção per capita exportada comparativamente às necessidades de consumo via importação, que cresciam ininterruptamente, abrindo a possibilidade de crises cambiais. De certa forma, ele enuncia o problema da deterioração dos termos de troca, desenvolvidos posteriormente por Prebisch. Também defendeu o controle do comércio exterior, pela restrição de aquisições de bens de consumo em troca de facilidades para a importação de bens de capital necessários ao desenvolvimento nacional. Essas idéias contribuíram, mais tarde, para a adoção do câmbio diferencial. O intervencionismo que ele propugnava não deveria se limitar a direcionar recursos para setores prioritários, mas implicava investimentos diretos do Estado nos setores básicos da economia que estavam fora do alcance dos investimentos da iniciativa privada. Simonsen também foi um ferrenho opositor do lugar que as potências ocidentais lideradas pelos Estados Unidos conferiram à América Latina na ordem econômica mundial no pós-guerra. Sua análise do Plano Marshall demonstrava que, na estratégia desenhada pelos Estados Unidos para reconstruir a Europa, cabia à América Latina o papel de fornecedor de matérias-primas, produtos agrícolas e semicoloniais ao continente, tarefas que reiteravam seu papel tradicional na divisão internacional do trabalho e mantinham as condições de atraso econômico nas quais esses países se encontravam. Ele chamava atenção para o fato de que a reconstrução da Europa estava sendo conduzida de forma a impor um retrocesso econômico à América Latina. Defendia uma modificação no plano, de tal maneira que os Estados Unidos fornecessem máquinas e equipamentos aos países da América Latina, como contrapartida das

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suas exportações de matérias-primas e produtos agrícolas. Nessa ocasião, ele chegou inclusive a lançar mão do argumento de que reforçar a expansão das atividades agrícolas na América Latina implicava promover uma realocação da mão-de-obra dos setores industriais, de maior produtividade, para setores agrícolas de menor produtividade. Prebisch retomou o tema posteriormente, sofisticou o argumento e apresentou-o como justificativa para defender o protecionismo às atividades industriais. Apesar de as idéias apresentadas por Simonsen padecerem de uma sistematização teórica consistente, é inegável que ele mapeou a maior parte dos problemas relevantes da industrialização em países periféricos, a tal ponto que pode ser considerado o primeiro grande ideólogo do desenvolvimentismo brasileiro.

22.2 As idéias econômicas revolucionárias de Celso Furtado Celso Monteiro Furtado nasceu em Pombal, no sertão do Estado da Paraíba, em 1920, transferindo-se para o Rio de Janeiro, aos 19 anos, onde se formou em Direito pela Universidade do Brasil, em 1944. No mesmo ano, foi convocado para a Força Expedicionária Brasileira (FEB) e enviado para a Itália, servindo na Toscana como intérprete no V Exército norte-americano. Com o final da guerra e seu retorno ao Brasil, retomou os estudos e decidiu inscrever-se no doutorado em economia na Universidade de Paris, onde permaneceu no período de 1946 a 1948. Concluiu o curso com uma tese sobre a economia colonial brasileira.5 Ao retornar ao Brasil, teve uma breve passagem pelas áreas de análise e aconselhamento econômico da CNI, criadas por Roberto Simonsen, cuja obra exerceu sensível influência no entendimento de Furtado sobre a economia brasileira. Em 1949, começou a trabalhar como economista para a ONU, na Cepal, sob a direção e orientação de Raul Prebisch, contribuindo para a elaboração e sofisticação de inúmeras teses cepalinas. Seu desempenho na Cepal o credenciou para liderar o Grupo Misto Cepal – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). A comissão trabalhou por dois anos (1954-55) na elaboração de um diagnóstico da economia brasileira e apresentou, como resultado de suas análises, inúmeras propostas que serviram de base para os programas governamentais de desenvolvimento implantados nos anos seguintes. Convidado pelo professor Nicholas Kaldor,

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FURTADO, Celso. A economia brasileira. Rio de Janeiro: A Noite, 1954.

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lecionou em 1957-58 no King’s College de Cambridge, aproveitando o período para redigir o seu estudo mais importante, Formação econômica do Brasil, publicado em 1959. No retorno ao Brasil, foi nomeado pelo presidente Juscelino Kubitschek para presidir o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), criado em 1956. Baseado nos estudos e pesquisas realizados até aquela altura e nos seus próprios pontos de vista sobre os problemas econômicos da região, redigiu o estudo conclusivo do GTDN, Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste, documento que serviu de base para a criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), sediada em Recife, da qual Furtado se tornou o primeiro superintendente. Permaneceu no cargo até 1962, quando foi transferido para Brasília e acumulou o cargo de ministro do Planejamento. À frente do ministério, imerso numa grave crise econômica, política e social, elaborou e apresentou o Plano Trienal, cujos objetivos principais de controle da inflação e retomada do desenvolvimento não foram atingidos. O golpe militar de 1964, que depôs o governo João Goulart, cassou seus direitos políticos por dez anos. No exílio, fez inúmeras conferências no Chile e em universidades norte-americanas sobre os problemas do desenvolvimento. Em 1965, assumiu, por decreto presidencial, a cátedra de desenvolvimento econômico na Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Paris, tornando-se o primeiro estrangeiro nomeado para uma universidade francesa. Permaneceu na Sorbonne por vinte anos. Foi professor visitante da American University (Washington), da Columbia University (Nova York), da Universidade de Cambridge, da Universidade Católica de São Paulo e Fellow do King’s College. Foi também membro do Conselho Acadêmico da Universidade das Nações Unidas, em Tóquio, diretor de pesquisas da École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, onde dirigiu vários seminários sobre temas de economia brasileira e internacional. Com a anistia, em 1979, e a devolução do poder aos civis, em 1985, Furtado voltou a se integrar à vida política do país. Convidado por Tancredo Neves, participou da elaboração do Plano de Ação do governo, cujas orientações econômicas ficaram muito distantes das idéias defendidas pelo economista. Isolado das decisões econômicas mais delicadas e importantes do novo governo civil, acabou aceitando o cargo de embaixador do Brasil em Bruxelas, na Comunidade Econômica Européia. Também participou da comissão de estudos

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que apresentou o projeto da Constituição e assumiu o Ministério da Cultura, renunciando em meados de 1988. Na década de 1990, integrou várias comissões criadas pela ONU nas áreas de desenvolvimento e ética. Em 1997, a Maison des Sciences de l’Homme e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) organizaram um congresso internacional, “A contribuição de Celso Furtado para os estudos do desenvolvimento”, que contou com a participação de especialistas de vários países, entre os quais França, Estados Unidos, Itália, Polônia, Suíça, México e Brasil. Nesse mesmo ano, foi criado o Prêmio Internacional Celso Furtado pela Academia de Ciências do Terceiro Mundo, sediada em Trieste, na Itália, ofertado ao melhor estudo científico elaborado no Terceiro Mundo sobre economia política, além de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras. Foi indicado para Doutor Honoris Causa das universidades Técnica de Lisboa, Estadual de Campinas (Unicamp), federais de Brasília, do Rio Grande do Sul, da Paraíba e da Université Pierre Mendès-France, de Grenoble, na França. Entre as suas principais obras destacam-se: A economia brasileira, 1954; Perspectivas da economia brasileira, 1958; Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste, 1959; Formação econômica do Brasil, 1959; Desenvolvimento e subdesenvolvimento, 1961; Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, 1966; Formação econômica da América Latina, 1969; Análise do “modelo” brasileiro, 1972; O Brasil pós-“milagre”, 1981; Transformação e crise na economia mundial, 1987; Brasil, a construção interrompida, 1992. Celso Furtado é o economista brasileiro mais lido e conhecido em todo o mundo e o maior expoente do pensamento econômico desenvolvimentista. Destaca-se também como intelectual criativo, original e de imensa capacidade executiva, caso raríssimo na história da intelectualidade brasileira, marcada por uma forte tradição bacharelesca (na qual o conhecimento é essencialmente fator de ostentação e diferenciação de classe) e pela propensão de adesão incondicional às teorias elaboradas nos grandes centros econômicos e de produção acadêmica. Os aspectos essenciais do pensamento econômico de Celso Furtado podem ser desdobrados da sua obra clássica, Formação econômica do Brasil. A obra pode ser considerada uma empreitada bem-sucedida e convincente de compreensão da história econômica do Brasil, numa perspectiva a um só tempo estruturalista e keynesiana.

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O componente estruturalista se evidencia no reconhecimento de que as teorias econômicas gerais, elaboradas nos grandes centros de difusão científica, não eram capazes de explicar adequadamente inúmeros fenômenos particulares das nações pobres, situadas na periferia do sistema capitalista. Era necessário elaborar um novo método, uma nova abordagem capaz de dar conta das particularidades das trajetórias econômicas desses países, cujos elementos constituintes e as relações que mantinham entre si eram diferentes dos existentes nos países desenvolvidos. A inspiração keynesiana aparece no papel de destaque que Furtado dedica à demanda e ao mercado interno como fator dinâmico do crescimento e do desenvolvimento econômico. Manifesta-se também no reconhecimento do papel relevante que cabe ao Estado na condução do crescimento e do desenvolvimento. O estudo cobre o período dos séculos XVI ao XX e está dividido em cinco partes. As três primeiras apresentam uma análise da estrutura da economia colonial, partindo dos seus fundamentos, passando pelas fases da economia escravista açucareira (séculos XVI e XVII) e da mineração (século XVIII). A quarta parte analisa os problemas relacionados à transição da matriz colonial escravista exportadora para o sistema de trabalho assalariado e as implicações relevantes decorrentes da independência e da adoção do trabalho livre (século XIX). A última trata da transição para o sistema industrial ocorrida no decorrer do século XX. Todo o exame do período colonial empreendido por Furtado é acompanhado de freqüentes comparações com as circunstâncias das colonizações espanhola, inglesa, e mesmo portuguesa em outras áreas do Império. Dessa forma, ele demonstrou, como, em cada caso, as determinações geográficas, demográficas, econômicas, a trajetória histórica, enfim, moldaram a formação econômica de cada região, definindo particularidades fundamentais para a compreensão dos processos distintos da evolução econômica posterior. Do conjunto da abordagem, a um só tempo histórica e teórica, convém destacar e desdobrar alguns pontos que foram elaborados de maneira insuperável por Furtado. Ele foi o responsável pelo refinamento do argumento de que o subdesenvolvimento não corresponde a um estágio do desenvolvimento, sendo, basicamente, um resultado do desenvolvimento capitalista na periferia. A expansão

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econômica das nações centrais desde a Revolução Industrial incorporou áreas nas quais vigoravam relações econômicas pré-capitalistas. O resultado foi o surgimento de sistemas econômicos híbridos, heterogêneos, que preservavam pólos de baixa produtividade, vinculados às formas tradicionais de produção, e pólos de alta produtividade, vinculados ao mercado mundial. A característica essencial do subdesenvolvimento não consiste, portanto, num baixo grau de assimilação do progresso técnico, mas na cristalização de uma estrutura dual, que impossibilita a generalização do progresso técnico pelo conjunto do sistema econômico. O autor argumentava inclusive que o “grau de subdesenvolvimento” podia ser obtido medindo-se a heterogeneidade do sistema econômico, e essa podia ser expressa por uma relação entre quantidade de mão-de-obra empregada nos setores pré-capitalistas e mão-de-obra total. Ficava implícito que um país que incorporasse tecnologia moderna mas preservasse a estrutura dual, permaneceria subdesenvolvido. A hipótese da Cepal, que considerava a industrialização como o caminho para o desenvolvimento, foi aprofundada por Furtado com a explicação da dinâmica do processo. Baseado no caso concreto dos efeitos do “crash” de 1929 no Brasil, ele demonstrou que a crise cambial desencadeou um impulso de substituição de importação e que a crise do setor exportador produziu um deslocamento dos investimentos desse setor para os vinculados ao mercado interno, tornando-o o centro dinâmico do sistema econômico. Sua explicação para a inflação brasileira consiste numa outra contribuição relevante à teoria estruturalista. Segundo seu exame do problema, um dos elementos do fenômeno inflacionário em países da periferia está associado às reações do sistema econômico aos ciclos de substituição de importações. Ele afirma que nos países periféricos há um descompasso entre a esfera da demanda e a da oferta. Enquanto a pressão de demanda sobre a oferta interna se faz sentir rapidamente diante das primeiras dificuldades de importação, a oferta tende a reagir lentamente, em virtude da pouca diversificação dos recursos técnicos, e de maneira rígida, pois tem capacidade limitada de produção. Além disso, a dinâmica da substituição da importação tende a tornar o desequilíbrio externo crônico, pois, à medida que um tipo de bem importado é substituído, a demanda interna se desloca para outro tipo (dos bens de consumo não-duráveis para os duráveis e destes para os bens de capital). Essa dinâmica tende a manter constante a pressão sobre as importações. No caso de baixo

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crescimento ou queda do preço das exportações, o país se vê às voltas com uma crise cambial, desvalorização da moeda e elevação dos preços. Como a raiz da inflação reside nesses desequilíbrios que fazem parte da própria natureza do subdesenvolvimento, ela só pode ser superada a longo prazo, pelo equacionamento desses desequilíbrios. Por essa via, Furtado justifica o papel decisivo que cabe ao planejamento em economias periféricas, pois só por meio dele é possível identificar os setores frágeis e programar medidas de antecipação que permitam dotar a estrutura produtiva de flexibilidade para atender às necessidades da demanda. A necessidade do planejamento surge, portanto, como um desdobramento das condições do subdesenvolvimento e das medidas que precisam ser adotadas para superá-lo. Do seu ponto de vista, a única instituição capaz de levar adiante essa imensa tarefa de programação do crescimento seria o Estado. Por intermédio dele, os agentes nacionais poderiam controlar as decisões mais importantes e necessárias à industrialização, organizar um sistema abrangente de planejamento dedicado à captação e à alocação dos recursos e mobilizar os pesados investimentos exigidos. Nesse aspecto, a iniciativa privada nacional e o Estado não podiam prescindir do capital estrangeiro. Este, porém, da perspectiva de Furtado, precisava ser controlado, pois não é possível se beneficiar do progresso técnico sem acesso à tecnologia gerada nos países desenvolvidos, mas, por outro lado, um ingresso indiscriminado de investimento externo cria um fluxo permanente de recursos para fora do país, colocando em risco o equilíbrio externo. Entre os principais desafios do planejamento estatal numa economia periférica, destacavam-se os desequilíbrios relacionados à apropriação regional e interpessoal da renda. No capítulo final de Formação, não fica margem a dúvida em relação à importância que o autor atribuía ao tema do desenvolvimento do Nordeste. Seria desnecessário insistir nesse ponto. Para Furtado, esse era o âmago do problema do subdesenvolvimento. Coube a ele, baseado nas pesquisas e em alguns estudos parciais elaborados pelo GTDN, a elaboração de uma síntese6 abrangente e articulada dos principais problemas da região, com inúmeras propostas para

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Trata-se de Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1959.

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enfrentá-las, como aproveitamento econômico do semi-árido, deslocamento da mão-de-obra excedente, estímulo à industrialização e intensificação da produção de alimentos. Os problemas relacionados à distribuição interpessoal da renda também ocuparam lugar de destaque na sua reflexão, especialmente no período pós-1964. Entretanto, mesmo antes do golpe, já havia constatado que as elites econômicas no Brasil se orientavam pelo lucro fácil, pelo rentismo improdutivo e pelo consumismo de luxo, e que tais hábitos impediam a tradução da concentração da renda em níveis mais elevados de poupança e investimentos. Diante disso, assumiu a defesa de uma política fiscal centrada na tributação do consumo conspícuo. Por esse mecanismo, os recursos arrecadados pelo Estado seriam canalizados e transformados em investimentos necessários ao desenvolvimento. Sobre a resistência das elites nativas em relação à reforma do sistema tributário, ele argumentou em 1962: O fato de que o Parlamento não capacite a administração para coletar os impostos de que necessita, e ao mesmo tempo amplie todos os dias os gastos do governo em função do desenvolvimento, traduz claramente a grande contradição que existe presentemente na vida nacional. Existe a consciência clara de que o desenvolvimento deve ser postulado como objetivo supremo de toda política econômica e, por isso, se votam as verbas e os planos de obras. Mas, como o Parlamento representa apenas uma fração da opinião pública nacional – aquela economicamente mais bem armada para vencer nas eleições, dentro do sistema eleitoral vigente –, o investimento público é financiado não com o esforço daqueles que se beneficiam dos frutos do desenvolvimento, e sim com o sacrifício daqueles que não têm acesso a esses frutos.7

Ele considerava que a distribuição da renda era fundamental para elevar a renda per capita ao nível da existente nos países desenvolvidos, ou, dito de outra forma, que a distribuição da renda era uma condição do desenvolvimento. Além do instrumento fiscal, Furtado considerava a reforma agrária medida decisiva para promover a distribuição da renda. Essa posição foi reforçada especialmente na época da elaboração do estudo que resultou na criação da Sudene. Sua linha de argumentação baseava-se no reconhecimento de que a estrutura agrária arcaica e as inclinações de consumo de luxo dos grandes proprietários não permitiam a formação de poupança nem a realização de investimentos em técnicas modernas que aumentassem a produtividade da agricultura. Nessas

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FURTADO, Celso. A pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1962.

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condições, a oferta de alimentos era insuficiente, elevando os preços e reduzindo os salários reais e o mercado interno para os produtos industriais. Por fim, a reiteração da demanda de artigos sofisticados e de luxo, aliada a um consumo deprimido pela renda de bens essenciais, orientava a “estrutura industrial num sentido perverso”.8 O fracasso do Plano Trienal e o golpe militar de 1964 tiraram da agenda as preocupações distributivas às quais Furtado dedicava cada vez mais atenção. No período que se seguiu ao golpe, a política econômica patrocinada pelos militares orientou-se por um aprofundamento em grande escala da concentração da renda. A análise do autor procura demonstrar que o processo em curso, de elevação em escala crescente das importações intensivas em capital de máquinas e equipamentos, tendia a produzir um descompasso acentuado entre os índices de crescimento do produto e do emprego, cujos efeitos eram um incremento da concentração da renda e do desemprego. A reiteração do ciclo tendia a agravar cada vez mais as desproporções entre o crescimento da oferta e a redução do mercado interno, até um ponto em que a produção não encontraria canais de escoamento, produzindo-se uma crise de realização, que estancaria o crescimento, conduzindo o sistema econômico à estagnação.9 O modelo explicativo de Furtado demonstrava que as estratégias de desenvolvimento alicerçadas em processos agudos de concentração da renda estavam condenadas ao fracasso apenas há um ano e meio do início de um dos maiores ciclos de acumulação da história do país, no qual os índices de crescimento e da concentração da renda atingiram níveis inéditos. O ritmo vertiginoso do crescimento econômico e o aprofundamento da concentração da riqueza e da renda, a partir de então, representavam a derrota parcial do projeto, a um só tempo teórico e político, pelo qual Celso Furtado vinha se batendo. Uma leitura atenta do conjunto de seus estudos demonstra que o objetivo central que o orientou foi contribuir para alterar a posição que os países periféricos, em especial o Brasil, ocupavam na divisão internacional do trabalho. A industrialização era encarada como único meio pelo qual o país poderia abandonar a sua condição de exportador de bens primários, superar

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BIELSCHOWSKY, Ricardo, op. cit., p. 161. FURTADO, Celso. Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina. Rio de Janeiro: Lia, 1969.

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a pobreza e impulsionar o desenvolvimento. Essa transição envolvia um desafio teórico e político. O teórico consistia em elaborar uma abordagem que atendesse aos critérios do rigor científico-acadêmico, condição indispensável para confrontar o pensamento econômico neoclássico, que legitimava a ordem estabelecida e era consagrado internacionalmente. O desafio político consistia em articular, por meio da análise teórica, os interesses dos agentes sociais nacionais comprometidos com a industrialização, instrumentalizando-os na luta contra as forças conservadoras internas e externas, de filiação neoliberal, que operavam para manter a tradição agroexportadora. Tratava-se, portanto, de apresentar um “programa” que fosse o mais abrangente possível e que garantisse a coesão dos agentes pró-industrialização em torno das principais tarefas necessárias ao desenvolvimento. Enfim, o desafio consistia num projeto nacional de desenvolvimento articulado em torno da industrialização. Um balanço das realizações desse projeto demonstra que ele foi parcialmente bem-sucedido. De fato, no decorrer da década de 1950, essa corrente do pensamento econômico brasileiro, da qual Celso Furtado é o maior expoente, pautou a atuação do Estado, dos segmentos empresariais, das camadas populares e da esquerda, contribuindo, de forma decisiva, para que etapas importantes da industrialização fossem cumpridas. No início da década de 1960, o país estava credenciado a ocupar uma posição ligeiramente distinta da que ocupava no passado, na divisão internacional do trabalho. À medida que o grau de coesão obtido entre as forças favoráveis à industrialização assegurou a derrota das forças antiindustrialistas e o cumprimento de algumas “metas” importantes do processo de modernização, criaram-se novos desequilíbrios e tensões, típicos de todo processo de desenvolvimento, que exigiam uma redefinição dos próximos objetivos e tarefas. Um dos aspectos implícitos nessa fase de redefinição, responsável pelo aprofundamento da polarização social, dizia respeito exatamente aos problemas da redistribuição da riqueza e da renda. Celso Furtado considerava que, nessa nova etapa, a superação do impasse econômico e distributivo e a retomada do crescimento exigiam uma redistribuição da riqueza e da renda benéficas ao fator trabalho, posição que confrontava as defendidas pelas lideranças empresariais. A tensão crescente entre os agentes que deram sustentação à industrialização em torno desse ponto, num quadro de crise econômica e exacerbação dos conflitos da Guerra Fria, pavimentou o caminho para o golpe de Estado e a redefinição

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do pacto industrialista por meio da rearticulação das forças conservadoras. A matriz econômica herdada da etapa anterior é reiterada, manu militari, pela via da concentração da riqueza e da renda. Essa derrota política de Celso Furtado não foi suficiente para ofuscar as inúmeras vitórias colhidas durante sua vida. É fundador da moderna economia política brasileira e o primeiro intelectual brasileiro a formular uma teoria e as propostas de política econômica, que foram referências para a intervenção do Estado e a ação da burguesia brasileira durante décadas, além de ser considerado o mais brilhante membro da Cepal, reconhecido internacionalmente por suas contribuições originais à teoria econômica. Seus estudos permanecem como referência obrigatória para todos os estudiosos dos problemas do desenvolvimento.

22.3 O desenvolvimentismo conservador de Roberto de Oliveira Campos Roberto Campos (1917-2001) nasceu em Cuiabá. Cursou Letras Clássicas, Ciências, Filosofia e Teologia nos seminários de Guaxupé e Belo Horizonte. Diplomou-se em Economia pela Universidade de George Washington, D.C., e pós-graduou-se pela Universidade de Columbia, Nova York. Ingressou no serviço público em 1939, por meio de concurso para a carreira diplomática. No magistério, foi professor de Moeda, Crédito e Ciclos Econômicos da Faculdade de Economia da Universidade do Brasil, no período de 1956 a 1961. No período de 1947 a 1949, foi conselheiro econômico da Delegação Brasileira Permanente na Organização das Nações Unidas. Assumiu, em 1955, o cargo de diretor-superintendente do BNDE e, de 1958 a 1959, atuou na presidência daquela instituição, da qual foi um dos fundadores e idealizadores. Ainda em 1959, foi nomeado Doutor Honoris Causa em Ciências Comerciais pela Universidade de Nova York. Foi embaixador nos Estados Unidos. Retornou ao Brasil em 1964 para assumir o Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica até 1967. Após passar pela iniciativa privada, retornou à vida pública, em 1983, na qualidade de senador da República, cargo que inauguraria um longo período de participação política no Congresso Brasileiro. Ao refletir sobre desenvolvimento econômico, Roberto Campos desenvolve sua tese de que existe uma incompatibilidade entre desenvolvimento econômico e redistribuição de renda. Nesse sentido, coloca o desenvolvimento como

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prioritário sobre as questões sociais e entende que a redistribuição do bemestar é uma “ilusão” que “consiste em buscar-se o desenvolvimento social, isto é, a distribuição do bem-estar, em ritmo mais rápido que o possibilitado pelo estágio de desenvolvimento econômico, e, freqüentemente, em detrimento deste”.10 Conseqüentemente, desenvolve sua idéia afirmando: [...] a opção pelo desenvolvimento implica a aceitação da idéia de que é mais importante maximizar o ritmo do desenvolvimento econômico do que corrigir as desigualdades sociais. Se o ritmo do desenvolvimento é rápido, a desigualdade é tolerável e pode ser corrigida a tempo. Se baixa o ritmo de desenvolvimento por falta de incentivo adequado, o exercício da justiça distributiva se transforma numa repartição da pobreza.11 A tecnologia agrícola matou o demônio malthusiano na primeira metade do século XX. E a tecnologia bioquímica o ressuscitou nesta segunda metade do século... Malthus, lembremonos, em seu ensaio sobre o princípio da população, de 1798, profetizara uma tragédia social, pelo fato de a população crescer geometricamente, enquanto os meios de subsistência cresciam apenas aritmeticamente. A reprodução superaria a subsistência, gerando uma situação explosiva, que poderia ser precariamente moderada por um freio positivo – a disciplina moral da castidade e do casamento tardio –, mas que, provavelmente, teria de ser contida pelos freios negativos – a guerra, a fome, a doença e a miséria... Essa visão apocalíptica [continua Campos] parecia ter sido destruída na virada do século, de um lado pelos enormes avanços na tecnologia agrícola – a genética de sementes, os fertilizantes e o trator – e, de outro, pelo espontâneo decréscimo da fertilidade humana em função da urbanização e do desenvolvimento econômico. Mas, se a tecnologia agrícola desmoralizara o malthusianismo, as novas técnicas médicas e higiênicas, e sobretudo dos antibióticos, fizeram cair a mortalidade em ritmo mais rápido que a fertilidade. De outro lado, os países que mais sofreram com a explosão populacional são os menos capazes de aplicar a moderna tecnologia agrícola.12

A incorporação da teoria da população, por parte de Campos, encaminhou-o, logicamente, para conclusões semelhantes, ou seja, de que é inútil redistribuir a renda entre as classes. Campos, então, conclui: Não só o Brasil é um país pobre no contexto internacional, mas a sua pobreza é agravada por uma injusta distribuição de renda. Entretanto, mesmo que a renda fosse irmãmente distribuída por toda a população, estaríamos apenas coletivizando a miséria. [...] Sendo a renda por habitante o quociente da divisão do produto global pela população, 10

11

12

CAMPOS, Roberto. “As quatro ilusões do desenvolvimento”. Discurso pronunciado na Conferência da Cepal em La Paz, em maio de 1957. In: Ensaios de história econômica e sociológica. Rio de Janeiro: Apec, 1963, p. 91. CAMPOS, Roberto. “Cultura e desenvolvimento”. Palestra proferida no Instituto Superior de Estudos Brasileiros do Rio de Janeiro e publicada no Digesto Econômico – março-abril de 1957. In: Ensaios de história econômica e sociológica, op. cit., p. 115. CAMPOS, Roberto. “Para não dizer que não falei de opções”. Rio de Janeiro, 16/18-XI-68. In: Temas e sistemas. Rio de Janeiro: Apec, aproximadamente 1970, p. 53.

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ele pode ser aumentado de três formas: pela elevação do dividendo, pela diminuição do divisor, ou por uma combinação dessas providências.13

Campos, finalmente, esboça as bases de sua teoria do crescimento do bolo concluindo: [...] ao contrário do que pensam os socialistas românticos, hoje em franca superprodução no nosso clero, o problema brasileiro não é meramente, nem sequer principalmente, de distribuição injusta da renda nacional. Mesmo que ela fosse irmãmente distribuída, objetivo impraticável em virtude da básica desigualdade dos dotes de inteligência e operacionalidade com que fomos brindados pelo Criador – ainda que fosse possível, repito, uma distribuição eqüitativa da renda, estaríamos apenas distribuindo a miséria. A rigor, estaríamos talvez agravando-a, pela diminuição dos estímulos para investimento. [...] Mas, por maior êxito que se obtenha na tarefa da justiça distributiva, o nosso problema básico e grave é a insuficiência de produção.14

O modelo take-off foi muito utilizado na obra de Campos: [...] a teoria da arrancada (take-off), imaginosamente formulada por Walt Rostow, vem como uma resposta à fraseologia obsoleta do manifesto comunista. Ao invés da evolução do feudalismo para a burguesia mercantil, o capitalismo industrial e o socialismo, teríamos, com aplicação muito mais genérica, independente de sistemas ideológicos, a transmutação da sociedade tradicional para a sociedade transacional, na qual se processaria a “arrancada” para o desenvolvimento, passando-se em seguida à sociedade industrial madura e à civilização de alto consumo.15

O grau de industrialização em que se encontrava o Brasil em fins dos anos 1950 significa, para Campos, uma fase de transição e de arrancada: [...] os requisitos econômicos da arrancada seriam, primeiramente, a criação de infraestrutura, principalmente no setor de transportes; em seguida, um surto na produção agrícola capaz de financiar a industrialização; em terceiro lugar, um nível de poupança de no mínimo 10% a 12% ao ano; em quarto lugar, a existência de capacidade de importar, seja mediante exportações, seja mediante o influxo de capital, para aquisição de equipamentos e matérias-primas; em quinto lugar, a emergência de setores de vanguarda “que deflagrem o processo de modernização”. Pressupõe-se, ainda, a existência de um núcleo empresarial capaz de absorver tecnologia.16

Dentro desse esforço de entender a economia brasileira à luz das teses de Rostow, Campos recomenda ainda três condições para uma arrancada sem 13 14 15

16

CAMPOS, Roberto. Temas e sistemas, op. cit., p. 54. CAMPOS, Roberto. “Perspectivas do fundo de quintal...”, 15.IV.69. In: Temas e sistemas, op. cit., p. 159. CAMPOS, Roberto. “Arrancada e colapso: a peripécia dos países em desenvolvimento”. In: SIMONSEN, M. H.; CAMPOS, Roberto. A nova economia brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. 23. CAMPOS, Roberto. A nova economia brasileira, op. cit., p. 23-24.

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tropeços: “expansão da infra-estrutura, aumento da produtividade agrícola e crescimento das exportações”.17 Os artigos de Roberto Campos – que vão dos ensaios escritos na década de 1950 e reunidos e publicados em 1963 sob o título Economia, planejamento e nacionalismo, até o título Além do cotidiano, publicado em 1985 – demonstram-nos o que vamos chamar de ecletismo dinâmico. Nos anos 1950, Campos privilegia em sua análise as concepções de corte estruturalista, passando, no início dos anos 1960 (momento de profunda crise econômica, política e social no Brasil), para uma efetiva “mescla”, em que, sem abandonar uma teorização com conteúdos estruturalistas na análise, passa efetivamente a criticar a escola estruturalista enquanto tal. Sobre a questão, destacamos pela relevância o texto “Duas opiniões sobre a inflação na América Latina”. Ainda no início dos anos 1960, chega a privilegiar aspectos importantes do grande corpo teórico “ortodoxo” e passa à crítica aberta, agora à Cepal, no título “Os ortodoxos inquietos”, demonstrando sua rota de sintonização com as teses defendidas, então, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), cuja política de estabilização fora elogiada por ele. Já no período que se abre com sua participação nas decisões de governo (1964), seu ecletismo dinâmico combina com as medidas de política econômica e de planejamento, medidas de combate à inflação de talhe monetarista (um dos propósitos explícitos do Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg) era cortar-atacar a demanda), com uma verdadeira ampliação das funções regulatórias do Estado e igualmente a ampliação do que chama de sistema produtivo estatal. Talvez seja ilustrativo desse fenômeno a criação de órgãos, instituições e empresas como: Empresa Brasileira de Telecomunicações S/A (Embratel), criada em 1965; Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), criada em 1966; Banco Central do Brasil, 1964; Sistema Financeiro da Habitação (SFH), 1964; Banco Nacional de Habitação (BNH), 1964. Para Campos, a industrialização traz consigo alguns “germes inflacionários” na medida em que o objetivo da industrialização é a elevação da renda; mas, com o aumento da renda, “existirá também incremento acelerado da procura de bens e serviços e, sobretudo, de produtos básicos da alimentação, pelo menos na fase inicial da elevação das rendas. Está aí um germe inflacionário intrínseco”.18

17 18

CAMPOS, Roberto. “O dilema das tesouras”, op. cit., p. 109. Id., p. 61.

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O segundo elemento inflacionário apresentado por Campos advém da urbanização: [...] o fenômeno da urbanização provoca mudanças de hábitos, quase sempre no sentido de maior propensão a consumir (e também a importar), devido exatamente à influência do mimetismo urbano. [...] Ao mesmo tempo, há maior propensão para investir, visto que a urbanização requer investimentos mais pesados em construção, transportes públicos, obras sanitárias etc., sem que haja acréscimo correspondente na propensão a poupar.19

No curto prazo, Campos aponta seu terceiro germe inflacionário, oriundo das necessidades de produção de equipamentos, sobre o qual afirma: Um terceiro germe inflacionário a curto prazo, inerente à industrialização, é o alongamento do período de produção. A industrialização faz com que certo número de fatores seja desviado da produção direta de artigos de consumo básico para a produção de equipamentos, aos quais permitirão de futuro a fabricação mais eficiente de bens de consumo, mas que, a curto prazo, tendem a exercer impacto inflacionário, porque existe pagamento de renda ao longo de todo o período de construção industrial, sem lançamento de produtos no mercado.20

Prosseguindo na análise das causas do processo inflacionário, Campos encaminha-se justamente para a afirmação de um dos pilares das concepções da escola estruturalista, qual seja, da inelasticidade da oferta agrária, apontada anteriormente. Ao analisar a estrutura da economia brasileira nesse aspecto, Campos conclui: “Ao que parece, então, dada a dificuldade de dilatação prévia da base agrária, temos de sofrer um processo de industrialização batizando com inflação, para depois, num segundo turno, nos voltarmos para a base agrária”.21 A solução apontada pelas teses estruturalistas se encaminha no sentido de aumentar a produtividade agrícola por meio de avanços tecnológicos no setor. Campos entende que a consciência tecnológica é, em primeiro lugar, um fenômeno mais industrial do que rural, donde conclui que é necessário se promoverem avanços tecnológicos primeiramente na indústria, e, portanto, as referidas pressões inflacionárias decorrentes da inelasticidade da oferta agrícola são inevitáveis no processo de industrialização dos países subdesenvolvidos. Vimos, até aqui, as principais causas estruturais existentes na análise de Campos, decorrentes do processo de industrialização dos países 19 20 21

CAMPOS, Roberto. “O dilema das tesouras”, op. cit., p. 61. Id., ibid. Id., p. 65.

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subdesenvolvidos. Ele aprofunda a análise da relação entre industrialização e inflação defendendo: Em primeiro lugar, o processo de desenvolvimento acarreta mudanças estruturais, ao deslocarem-se os fatores de produção primária para a produção secundária e terciária. Dada a imperfeição dos fatores de mercado e os obstáculos à mobilidade de fatores, a rápida diversificação e o crescimento da procura contrastam com um padrão de oferta relativamente inelástica de equipamentos, produtos intermediários e conhecimentos técnicos, necessários tanto à industrialização quanto à modernização das práticas agrícolas. Especialmente durante as fases de crescimento rápido, a mobilização da procura será, provavelmente, maior que a mobilidade da oferta.22

Um dos principais pilares de suas concepções, nesse aspecto, está alicerçado na tese segundo a qual a demanda antecede a oferta. Campos, então, argumenta: [...] uma razão possível para a forte tendência inflacionária, que se nota na maioria dos países subdesenvolvidos, resulta do fato de que o seu processo de desenvolvimento é motivado, em geral, mais pela procura do que pela oferta. Esse desenvolvimento não é um desenvolvimento “schumpeteriano”, que se origina do movimento de produção espontâneo de homens de empresa. É, antes, a aspiração das massas, na ânsia de melhorar o padrão de consumo, que leva os governos a assumir funções empreendedoras e a estimular os empresários particulares a embarcarem em projetos de desenvolvimento que ofereçam, pelo menos, uma promessa de aumentos futuros de consumo. Esse tipo de desenvolvimento derivado tem, realmente, uma tendência inflacionária congênita.23

No início dos anos 1960, momento em que a economia brasileira experimentou uma de suas maiores crises econômicas e políticas desde o imediato pós-guerra, a atitude teórica de Campos em relação à análise estruturalista da inflação altera-se. Se antes, como observamos até aqui, a análise do autor privilegiava os aspectos estruturais como causas fundamentais das pressões inflacionárias, agora, ele elabora uma refinada crítica, que busca caracterizar a origem dos pontos de estrangulamento, antes pela ação da política econômica dos governos, do que propriamente pelos desequilíbrios oriundos do próprio processo de industrialização. Representativo desse fenômeno é o ensaio “Duas opiniões sobre a inflação na América Latina”, de 1961, em que, depois de resumir suas versões sobre os conceitos básicos da escola estruturalista e da escola monetarista, Campos

22

23

CAMPOS, Roberto. “Inflação e crescimento equilibrado”. Trabalho apresentado à Mesa-Redonda da Associação Econômica Internacional. Rio de Janeiro, agosto de 1957, e publicado na Revista de Ciências Econômicas, 1960. In: Economia, planejamento e nacionalismo, op. cit., p. 130. CAMPOS, Roberto. “Inflação e crescimento equilibrado”. In: Economia, planejamento e nacionalismo, op. cit., p. 125.

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explora o argumento de que os chamados pontos de estrangulamento (produção de alimentos, transportes, energia etc.) foram, em grande parte, originalmente induzidos pela inflação e que, numa etapa posterior, passaram a incentivar a inflação. Para isso, intenta criar um modelo com o seguinte aspecto: [...] um modelo explicativo de um dos métodos possíveis de origem de estrangulamento poderia ser facilmente construído da seguinte maneira: 1) a procura excessiva decorrente das pressões no setor externo (excedentes de exportações em tempo de guerra que não foram compensados por taxas de exportação não gastas ou por importações) levou à inflação de preços; 2) houve tentativas de reprimir a inflação não pelo controle da procura excessiva geral, mas pelo controle de certos preços-chave (gêneros alimentícios básicos, transporte ferroviário, eletricidade, taxa de juros); 3) as poupanças e os investimentos privados voluntários foram desencorajados e substituídos após certo tempo pelo investimento público financiado por déficits; 4) a inflação foi agravada, surgiram estrangulamentos e casos de “rigidez estrutural”.24

Campos conclui que o estrangulamento da capacidade de importar, defendida pelos estruturalistas, encontra suas verdadeiras causas em: “a) impostos excessivos sobre as exportações em razão da taxa cambial ou das distorções nos preços; b) uma política de substituição de importações mal orientada; e c) um método inadequado de financiamento da substituição de importações”.25 Tenta, ainda, conciliar os postulados das duas escolas, com uma política econômica proposta, que atacasse os pontos de estrangulamento por meio de uma política fiscal e monetária ativa. Desse modo, conclui: A identificação de estrangulamentos é evidentemente de grande utilidade para que a política fiscal e monetária tenha um papel ativo ainda mais útil; e esta é a linha de reconciliação entre os “monetaristas” e os “estruturalistas”. Muito se pode fazer lançando mão das armas fiscais e monetárias, no sentido de corrigir estrangulamentos sem investimentos adicionais que iriam apenas agravar a procura excessiva; isso pode ser feito simplesmente por meio de alterações dos incentivos aos preços e reorientação dos investimentos do governo dos setores menos produtivos para os estrangulamentos (passagem de despesas militares para investimentos na agricultura).26

Do exposto acima, concluímos que as teses que ele defende em seu importante ensaio de 1961 significam um momento de transição, engendrado pela

24

25 26

CAMPOS, Roberto. “Duas opiniões sobre a inflação na América Latina”. In: HIRSCHMANN, Albert (org.). Monetarismo versus estruturalismo. Rio de Janeiro: Lidador Societas, 1967, p. 86 (primeira edição em língua inglesa em 1961). Id., p. 91. Id., ibid.

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crise econômica e política de então, ocasião em que passa a reconhecer, nas propostas de estabilização advogadas pelo FMI, uma saída plausível para a crise em marcha no início dos anos 1960. Campos desfecha, então, um ataque cerrado à escola estruturalista, por ocasião de sua defesa dos princípios do FMI. Em ensaio de 1967, argumenta: [...] as antigas explicações “estruturalistas” da Cepal – inelasticidade de receita de exportações de bens primários e da oferta de produtos agrícolas – estão hoje desmoralizadas. [...] Na realidade, a inelasticidade das exportações resulta, em grande parte, de taxas cambiais irrealistas; e a substituição de importações pela produção doméstica, para escapar à penúria cambial, justificaria uma pequena alta dos custos, e não a inflação desbragada de que fomos vítimas. Também a inelasticidade da oferta de produtos agrícolas decorre principalmente da tentativa de mascarar a inflação pelo tabelamento dos preços dos alimentos, a fim de aplacar a ira do consumidor urbano, ou da tributação da agricultura para subvencionamento da indústria.27

A questão da institucionalização política é das mais importantes para a busca de elucidação da totalidade do pensamento de Campos, uma vez que envolve diretamente a questão do conflito social. No caso específico dado pelos limites deste trabalho, envolve precisamente o tratamento que Campos dispensa à luta de classes no país, seus desdobramentos no que se refere à “instabilidade política” e as formas de participação política das classes e grupos sociais em relação ao tipo de desenvolvimento econômico brasileiro. Campos assinala, ainda, o que pensa das principais causas do surgimento da instabilidade política: A instabilidade política, que talvez constitua o maior obstáculo ao desenvolvimento econômico, é assim o resultado de complexas inter-relações. São particularmente vulneráveis as sociedades em rápido processo de modernização quando: 1. o ritmo de mobilização social é superior ao ritmo de desenvolvimento econômico, induzindo a frustrações sociais; 2. quando essa frustração social se transforma em exigência política ativista, não apenas das elites e da classe média, mas das massas; e 3. quando as instituições políticas e particularmente os partidos – como instrumento de coleta de aspirações, articulação de interesses e formação de programas – não têm capacidade para absorver, modelar, coordenar e satisfazer essas aspirações, ou criar símbolos substitutivos, reduzindo as frustrações ao nível tolerável.28

As considerações de Campos colocadas acima demonstram claramente seu caráter “autoritário”. Essa postura política está também presente em suas 27

28

CAMPOS, Roberto. “Duas opiniões sobre a inflação na América Latina”. In: HIRSCHMANN, Albert (org.). Monitarismo versus estruturalismo, p. 187-188. CAMPOS, Roberto. “Arrancada e colapso”. op. cit., p. 31.

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concepções acerca do Estado, em que ele entra em contradição em suas considerações ou suas tentativas de assimilar as teses do neoliberal Friedrich von Hayek, uma vez que para este o autoritarismo é razão do avanço das funções do Estado que se sobrepõe aos mecanismos de mercado. Para Campos, é grave e importante a melhoria do nível de institucionalização política. Ele entende que [...] não podemos depender nem exclusivamente de uma sanção pela eficácia – e, à luz dos precedentes históricos, qualquer reversão de tendência pode gerar frustrações antisistêmicas – nem conter indefinidamente o anseio das massas de participarem crescentemente do processo político. Pelo contrário, devemos utilizar, com um sentido de urgência, o tempo que nos foi concedido pelo sucesso econômico, para nos habilitar – mediante a institucionalização de um sistema político, dotado, como queria Lipset, de adaptabilidade, complexidade, autonomia e coerência em sua organização e formas de proceder –, para acolher e absorver as demandas de participação oriunda do corpo político.29

Para conquistar a chamada normalidade democrática, Campos entende que é necessário, além da consolidação do ritmo de desenvolvimento econômico, a obtenção de certas condições: Em primeiro lugar, suficiente popularização da revolução. Em segundo, ambiente internacional favorável, particularmente em nossa imediata área de segurança na América Latina. Em terceiro, uma renovação da classe política (congresso e executivos estaduais), a ser alcançada por qualquer dos três processos: a) cassação de subversivos e corruptos; b) cooptação horizontal, pela atração de tecnocratas e executivos para a área política; e c) recrutamento vertical, pela cooptação de políticos jovens, bafejados pelo apoio militar, ou pela eleição direta de elementos não compromissados com postulados demagógicos e revanchistas. Em quarto lugar, o controle satisfatório de surtos terroristas e extirpação de focos de guerrilhas revolucionárias.30

Roberto Campos representou, sem sombra de dúvida, um dos mais interessantes personagens da recente história econômica brasileira. Como economista e diplomata, sem contar com seu tino frustrado para jesuíta, fez carreira brilhante. Transformou-se em “homem de Estado” dos mais influentes. Emergiu como técnico militante e gestor de políticas de investimento nos anos 1950 (BNDE). O Roberto Campos dos anos 1950 e início dos anos 1960 é a expressão e o bom exemplo do economista que formula e que, ao mesmo tempo, é pragmático. Dentro dessa perspectiva, seu objetivo explicita-se na busca de soluções

29 30

CAMPOS, Roberto. “A opção política brasileira”. In: A nova economia brasileira, op. cit., p. 227-228. Id., p. 230.

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para uma economia de capitalismo periférico. Já no início de sua trajetória intelectual, revelou sua postura política explicitamente orientada no espectro político da manutenção do status quo. Na investidura do Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica, demonstrou mais uma vez seu traço autocrático característico, em que, ao mesmo tempo, formulou e implementou uma política econômica pragmática que, pela sua própria natureza, estava em harmonia com o processo bonapartista que então se instaurara. Após a experiência no primeiro escalão, aflui naturalmente para a iniciativa privada, sem, contudo, interromper sua atividade de ensaísta. É interessante notar que, do final dos anos 1960 em diante, o conteúdo ideológico intensifica-se crescentemente. Nos anos 1980, recebemos, de seus discursos e artigos como senador, um exótico neoliberalismo. Naquele momento, aparentemente ele representa uma certa descaracterização do ideólogo e economista desenvolvimentista atuante do passado. Ao tomar como paradigma de seus ensaios e discursos um neoliberalismo “à la Thatcher e Reagan”, parece vagar num mundo quase abstrato diante dos dilemas da periferia. Entretanto, sua apologia ao neoliberalismo em meados dos anos 1980 representava antes de tudo a vanguarda intelectual da classe dominante brasileira, cujo ideário iria tornar-se hegemônico nos anos 1990, após a abertura política e a eleição direta para o cargo de presidente da República. Com Roberto Campos, aprendemos que democracia, neoliberalismo e institucionalização política do status quo conformam um aparente paradoxo na nossa complexa especificidade histórica brasileira.

22.4 A teoria da substituição de importações de Maria da Conceição Tavares Os primeiros anos da década de 1960 no Brasil foram marcados por uma crise econômica cujos efeitos imediatos foram o aprofundamento dos conflitos sociais e da instabilidade política. Muitas análises produzidas no período procuraram compreender a natureza dessa crise e formular propostas para a superação das dificuldades. Dentre todas as análises, a coletânea de ensaios Da substituição de importações ao capitalismo financeiro, de Maria da Conceição Tavares, firmou-se como a principal referência, no plano nacional e internacional, para a compreensão dessa fase decisiva da história econômica do país.

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Maria da Conceição Tavares nasceu em Portugal (1930). Licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Lisboa, em 1953, e em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1960. Cursou pós-graduação em desenvolvimento econômico na Cepal e na Universidade de Paris. No período entre 1962 e 1975, trabalhou para a ONU realizando estudos sobre a América Latina. Em 1973, tornou-se professora titular da Unicamp; em 1975, livre-docente pela UFRJ e, em 1978, titular em Macroeconomia pela mesma universidade. No conjunto de sua obra, além da coletânea de ensaios, destacam-se: Acumulação de capital e industrialização no Brasil, de 1975; Ciclo e crise – o movimento recente da indústria brasileira, de 1978. No grupo dos economistas desenvolvimentistas, a autora foi a responsável pela elaboração da síntese mais rigorosa da experiência histórica de desenvolvimento pela via da substituição de importações, pelo ensaio de 1963, Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil, no qual examinou os aspectos gerais do processo na América Latina, enfatizando o caso do Brasil. Partindo da caracterização do modelo exportador, demonstrou como a interação entre o estrangulamento externo e a estrutura produtiva das economias periféricas desencadeou reações e criou os mecanismos de substituição de importações. Ressaltou, ainda, que o conceito de substituição de importações ultrapassava a acepção restrita que, em geral, se tinha do termo. Ele não correspondia apenas a um processo no qual a estrutura produtiva interna começa a produzir e a substituir artigos que enfrentam dificuldades de importação. O modelo de substituição de importações, como experiência histórica de desenvolvimento industrial, representa um movimento que se expressa no plano externo e interno das economias periféricas. No caso em que uma restrição externa induz o setor industrial local a produzir internamente, por exemplo, bens de consumo não-duráveis, os primeiros sintomas de atenuação da restrição externa resultam num deslocamento da demanda de importações em direção aos bens de consumo duráveis. Como as economias periféricas estão submetidas a uma tendência crônica ao estrangulamento externo (deterioração dos termos de troca), o setor industrial interno é periodicamente convocado a novos ciclos de substituição, que se traduzem pela produção de novos artigos e deslocamento da demanda de importações em direção aos bens de capital, bens intermediários, e assim por diante. Em cada ciclo, o decisivo não reside na substituição do produto importado pelo produzido internamente, mas no processo de diversificação, de aprofundamento da divisão técnica e social do trabalho que ocorre na estrutura produtiva interna.

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Segundo a autora, o processo de industrialização por substituição de importações avança produzindo desequilíbrios e submetido a contradições internas e externas, cuja natureza impede que a verticalização do parque industrial se complete. Ao analisar o caso do Brasil na segunda parte do ensaio, são apresentados os fatores de ordem interna e externa que favoreceram o processo de substituição e asseguraram índices de crescimento industrial e da economia como um todo superiores aos dos demais países da América Latina. Apesar das elevadas taxas de crescimento e do grau de diversificação industrial atingido, o desenvolvimento no período entre o imediato pós-guerra e o início da década de 1960 aprofundou desequilíbrios nos níveis setorial, regional e social. O desequilíbrio setorial resultou de um crescimento do setor terciário, e principalmente do secundário, muito superior ao primário e de forma sensivelmente desordenada, criando inúmeros pontos de estrangulamento. Na plano regional, o incremento da renda concentrou-se sobretudo no Sudeste, aprofundando as distâncias socioeconômicas com as demais regiões do país, e, no plano social, houve um aumento da marginalidade e da diferença entre a renda apropriada pela mão-de-obra do setor secundário relativamente ao primário. A experiência brasileira demonstrou que a incapacidade do setor moderno, de alta produtividade, de incorporar a mão-de-obra ofertada acentuou a dualidade do sistema econômico entre o setor dinâmico e o pólo atrasado, “subdesenvolvido”, concentrando vigorosamente a renda e privando amplas parcelas da população dos benefícios do processo de desenvolvimento. Preservada a trajetória recente de evolução do sistema econômico, a manutenção das taxas de crescimento passava a depender da exploração “a fundo do poder de compra das classes de alta renda” por meio do lançamento de produtos de luxo e de consumo conspícuo. Essa alternativa tende a orientar o desenvolvimento industrial num sentido cada vez mais perverso, uma vez que o setor dinâmico da economia se especializa na produção de artigos sofisticados, a despeito de as necessidades básicas da imensa parcela da população ainda não terem sido contempladas. Diante disso, a autora explica: O problema estratégico que se põe atualmente para a economia brasileira [...] é que o processo de substituição de importações já atingiu o seu estágio final e se apresenta a necessidade de transitar para um novo modelo de desenvolvimento verdadeiramente autônomo (em que o impulso do desenvolvimento surge dentro do próprio sistema) e no qual os problemas de estrutura [...] apontados terão de ser considerados.31

31

TAVARES, M. Conceição. “Ensaios sobre a economia brasileira”. In: Da substituição de importações ao capitalismo financeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977, p. 116.

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No caso do Brasil, Maria da Conceição Tavares considerava que a transição se defrontava, basicamente, com dois obstáculos. O primeiro relacionava-se ao montante de investimentos necessários para sustentar o próximo ciclo de substituição, muito superior às taxas históricas, pois exigia a importação de máquinas de capital intensivo. O segundo dizia respeito aos problemas de demanda. Conforme o estudo havia demonstrado, o processo de substituição de importação só ocorria quando, diante do estrangulamento externo, havia uma demanda relativamente ampla capaz de induzir a diversificação da estrutura produtiva para atendê-la. Nas condições em que se encontravam o mercado interno e o parque industrial instalado, o impulso de demanda não era capaz de induzir um novo ciclo de diversificação. Por outro lado, as indústrias de bens de consumo haviam se instalado recentemente e sua demanda a curto prazo por bens de capital seria inexpressiva. Assim, para que o processo pudesse ter continuidade, havia a necessidade de uma “demanda autônoma” por bens de capital que aproveitasse a capacidade instalada da indústria nacional de equipamentos ou forçasse a sua complementação. A produção interna desses bens liberaria divisas para a importação de matérias-primas e bens intermediários que o país não produzia. O único agente capaz de criar essa demanda autônoma é o Estado, por meio da mobilização de investimento público. A sua conclusão é que, diante do problema estratégico de [...] como transitar de um modelo de substituição de importação para um modelo auto-sustentado de crescimento [...] a variável decisiva estará no montante e composição dos investimentos governamentais; só o setor público, com seu peso relativo dentro da economia, tem capacidade de exercer uma demanda autônoma, capaz de se opor às tendências negativas que emergem do esgotamento do impulso externo.32

A autora foi a primeira a demonstrar que a crise do início dos anos 1960 correspondia ao esgotamento de um modelo de desenvolvimento que havia sustentado taxas elevadas de crescimento e impulsionado a diversificação do parque industrial na década e meia anterior. Diferentemente de outros expoentes da escola da Cepal, como Celso Furtado, não partilhava da tese da estagnação. Do seu ponto de vista, o sistema estava passando por uma reordenação e, mesmo num sentido perverso, concentrando renda, especializando o setor dinâmico na produção de artigos sofisticados, ele reunia potencial de crescimento, tese que se confirmou a partir de 1969, como o denominado “Milagre econômico”.

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TAVARES, M. Conceição, op. cit., p. 118.

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Questões 1. Qual é o contexto histórico do surgimento do desenvolvimentismo? 2. Explique o papel da industrialização no pensamento clássico de Roberto Simonsen. 3. Quais são os pressupostos teóricos do pensamento de Celso Furtado? Explique o significado do termo “deslocamento do eixo dinâmico” para a economia brasileira dos anos 1930. 4. Como Roberto Campos descreveu o fenômeno inflacionário brasileiro ao longo de sua obra? 5. Apresente o conceito de “industrialização por substituição de importações” no pensamento de Maria da Conceição Tavares.

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Pensamento econômico brasileiro: Escola Neoliberal A Escola Liberal predominou no pensamento econômico brasileiro desde os momentos iniciais de organização do Estado nacional até a Revolução de 1930. Como já foi assinalado em passagem anterior, a crise de 1929 e o subseqüente colapso do mercado mundial despertaram um movimento defensivo das nações no sentido do fortalecimento das idéias nacionalistas e intervencionistas. A tradição liberal não ficou imune ao grande abalo provocado pela crise. Nos anos seguintes, seus seguidores, apesar de continuarem a defender a economia de livre mercado como a melhor forma de alocação dos recursos numa economia, passaram a admitir um certo grau de interferência do Estado para corrigir possíveis deficiências e imperfeições do mercado, fenômenos que tendiam a se manifestar com maior ênfase nas economias periféricas. Entre os maiores expoentes dessa corrente no Brasil, destacam-se Eugênio Gudin e Octávio de Gouvêa Bulhões.

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Um dos principais centros irradiadores do pensamento neoliberal no Brasil foi a Fundação Getúlio Vargas (FGV), criada em 1944, com a intenção de capacitar profissionais para ocupar cargos na administração estatal. Liderados por Gudin e Bulhões, um grupo de economistas iniciou a publicação da Revista Brasileira de Economia, em 1948; três anos depois, criaram o Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) e, em 1952, assumiram o controle da Revista Conjuntura Econômica. A ascendência sobre o IBRE e as revistas dotou o grupo de mecanismos influentes de divulgação das idéias neoliberais no Brasil.

23.1 As idéias precursoras de Eugênio Gudin (1886-1986) Eugênio Gudin Filho nasceu no Rio de Janeiro. Formou-se em Engenharia na Escola Politécnica, em 1905, e trabalhou durante muito tempo em várias empresas estrangeiras estabelecidas no Brasil, como a Light, a Great Western of Brazil Railway Co. (da qual foi diretor-geral por quase três décadas) e a Western Telegraph Co. (diretor entre 1929 e 1954). Seu interesse por economia começou na década de 1920, quando se tornou colaborador de O Jornal, do Rio de Janeiro, com artigos sobre temas e problemas econômicos. No decorrer da década de 1930, passou a ocupar cargos

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técnicos em órgãos econômicos do governo federal. Em 1938, assumiu a cátedra de Economia Monetária e Financeira da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas, mais tarde incorporada à Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e foi formulador do primeiro programa do curso de Ciências Econômicas do país. Permaneceu como docente da instituição até se aposentar, em 1957, sendo considerado o patrono dos economistas brasileiros pelo seu papel na consolidação e institucionalização do curso de Economia no país. Foi indicado como representante brasileiro à Conferência de Bretton Woods, em 1944, diretor do FMI e do Banco Mundial, ministro da Fazenda do governo Café Filho. Seus trabalhos mais importantes são: As origens da crise mundial, de 1931; Capitalismo e sua evolução monetária, de 1935; Rumos da política econômica, de 1945; e Princípios de economia monetária, de 1943, no qual o autor sintetiza os principais aspectos de seu pensamento. Eugênio Gudin é o pensador neoliberal e conservador mais importante do país. Foi o responsável pela reformulação e adaptação dos postulados liberais à nova situação existente na economia brasileira pós-1930 e o mais aguerrido combatente das idéias desenvolvimentistas, baseadas no intervencionismo estatal e no planejamento. Os principais problemas da economia brasileira sempre orientaram o pensamento econômico de Gudin, e sua abordagem consistia basicamente em formular alternativas de política econômica para esses problemas, coerentes com os postulados do liberalismo. É importante destacar que ele não se limitou a imitar ou a repetir os argumentos de expoentes do pensamento neoliberal, que desempenhavam papel semelhante nos países desenvolvidos na mesma época, pois ele reconhecia diferenças entre os problemas das economias das nações desenvolvidas e subdesenvolvidas e a necessidade de soluções distintas para cada caso. É nesse ponto que reside a importância de Gudin para a tradição do pensamento neoliberal no Brasil, pois seus estudos representam um esforço, criativo e original, de solucionar problemas típicos de um país subdesenvolvido na perspectiva do livre mercado. O fato de reconhecer que os sistemas econômicos periféricos eram diferentes não implicava admitir a necessidade de um instrumental teórico distinto para tratar dessas particularidades, como defendiam os estruturalistas. Para Gudin, a teoria econômica era uma só, mas, diante de realidades e problemas diversos, era necessário realizar adaptações à teoria, tendo em vista assegurar

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a eficiência máxima do sistema econômico por meio do livre funcionamento das leis de mercado. Mas quais seriam as principais fragilidades das economias subdesenvolvidas? Entre as principais, ele destacava as inúmeras dificuldades da agricultura em se adaptar para atender à demanda, o que provocava grandes elevações nos preços dos gêneros; tendência decrescente dos preços dos artigos exportados pelos países subdesenvolvidos, combinada com fortes oscilações nos preços desses artigos; alta vulnerabilidade às crises externas em virtude da pouca diversificação da pauta de exportação; tendência do movimento de capitais em agravar as flutuações cíclicas que atingem os países subdesenvolvidos; inelasticidade das importações (em geral, composta por bens essenciais) e elevado crescimento demográfico. Na verdade, não havia diferenças substantivas entre o diagnóstico das fragilidades da economia subdesenvolvida apresentado pelos estruturalistas e por Gudin, mas, enquanto os primeiros consideravam a industrialização induzida pelo Estado a única forma de superar esses problemas, Gudin defendia que a superação dessas “imperfeições” seria resultado da adoção de um conjunto de medidas que criassem condições para o livre funcionamento dos mecanismos de mercado. Nessas condições, o sistema tenderia a um estado ótimo de eficiência, garantindo a estabilidade dos preços, cambial, e assegurando os ganhos prometidos pela teoria das vantagens comparativas. Para se compreender adequadamente os pontos de vista de Gudin sobre os principais problemas econômicos do país e as propostas que ele fazia para enfrentá-los, é fundamental identificar dois postulados básicos da sua análise. O expoente do pensamento neoliberal brasileiro assumia que a economia brasileira se caracterizava pela existência do pleno emprego e pela baixa produtividade. Esses dois postulados condicionavam a sua visão sobre pontos essenciais do desenvolvimento brasileiro. Como todos os demais economistas, ele considerava o desenvolvimento como um processo de elevação da produtividade do sistema econômico, mas, diferentemente dos desenvolvimentistas, argumentava que a única forma de elevar a produtividade da economia era assegurar o afastamento do Estado do mecanismo de formação dos preços e garantir o equilíbrio monetário e cambial. Com essas medidas, o mercado tenderia automaticamente para uma alocação ótima dos recursos econômicos e a produtividade se elevaria gradualmente.

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Quando o progresso técnico na agricultura elevasse a produtividade a ponto de dispensar mão-de-obra, a industrialização deveria ser implementada para incorporar esse excedente liberado pela agricultura. Antes disso, qualquer medida de apoio à indústria subtraía recursos da agricultura, prejudicando as exportações e a oferta para o mercado interno, com efeitos negativos sobre a renda, a inflação e a eficiência do sistema econômico. Para elevar a produtividade nacional, propunha assistência técnica e crédito seletivo à agricultura, elevação do padrão educacional, estabilização monetária, redução do intervencionismo, elevação da taxa de poupança pela atração do capital estrangeiro e organização do sistema financeiro e, por fim, aparelhamento gradual da infra-estrutura do país (transporte e energia), mantendo-a sob gestão privada. Era um inimigo ferrenho das teses protecionistas e do planejamento. Foi um crítico incansável do nível das tarifas existente no Brasil. Afirmava que elas promoviam lucros excessivos e situações de monopólio, representando apenas a defesa dos interesses particulares e da fortuna de industriais, que constituíam uma minoria de privilegiados. O protecionismo prejudicava o consumidor, obrigado a pagar preços elevados pelos produtos industriais, e o nível de produtividade, que permanecia baixo. Só admitia o protecionismo no caso da “indústria infante”, mas com limitação da tarifa (em torno de 25%) e por período limitado (20 anos). Era hostil à idéia do planejamento, pois avaliava que era uma concessão ao socialismo, além de argumentar que o mercado operando livremente era insuperável na alocação ótima de recursos. Com relação aos empreendimentos estatais, repetia as objeções que fazia ao planejamento, identificando uma tendência ao socialismo e um aprofundamento da ineficiência. Afirmava que esse tipo de investimento era altamente prejudicial tanto do ponto de vista do gerenciamento, pois o Estado é péssimo administrador, como do financiamento, pois exigia elevação dos impostos e inflação. Dirigia críticas contundentes especialmente aos empreendimentos estatais nas áreas de transporte e energia (há artigos furiosos contra a criação da Eletrobras), setores em que atuavam grandes empresas estrangeiras sediadas no Brasil, nas quais ele havia trabalhado por décadas. Considerava um nível de tributação superior a 20% do PIB um confisco inaceitável dos recursos privados em proveito do Estado. A tributação não deveria ser utilizada como meio de promoção da poupança ou do investimento (público) em hipótese alguma. A elevação da capacidade de investimento poderia

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ser obtida pela organização de um sistema financeiro ou, principalmente, por medidas de atração de investimento estrangeiro. Gudin avaliava que o capital estrangeiro era o principal agente promotor do desenvolvimento, defendia-o sob todas as formas e em todos os setores (inclusive infra-estrutura), pois era a fonte dos recursos para investimento e interiorizava mecanismos modernos de gestão e tecnologia. Foi essa visão que presidiu a aprovação da Instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), quando ocupou o cargo de ministro da Fazenda de Café Filho, permitindo que as empresas estrangeiras importassem máquinas e equipamentos sem cobertura cambial, o que desencadeou fortes reações de oposição entre os empresários nacionais e nacionalistas de diversos graus. Apesar de Gudin ser considerado freqüentemente um monetarista, sua visão da inflação não correspondia exatamente à de um monetarista típico, pois para ele a relação entre a moeda e os preços era mais complexa do que supunham os monetaristas. Ele considerava a inflação basicamente como resultado de um excesso de demanda, decorrente de erros da política monetária dos governos, que se traduziam em déficits públicos, condições favoráveis de crédito e elevação dos salários. A incapacidade da oferta interna de atender à demanda provocava um deslocamento em direção às importações, pressionando a balança comercial (já que a demanda pelos produtos exportados brasileiros era rígida) e, no limite, a de pagamentos. A alternativa tradicional para enfrentar essa dificuldade na frente externa consistia em desvalorizar a moeda, mas Gudin sempre combateu essa via por causa dos efeitos inflacionários que ela provocava. Como alternativa à desvalorização pura e simples, inspirou a adoção de um sistema de taxas múltiplas de câmbio, que variava de acordo com a participação do produto na pauta de importação. Gudin também foi um dos principais interlocutores no campo do pensamento neoliberal sobre os problemas distributivos da riqueza e da renda. Era totalmente contrário às propostas de reforma agrária, pois argumentava que ela não resolvia o problema básico da agricultura brasileira, que era a baixa produtividade. A elevação da produtividade no campo dependia essencialmente da elevação do nível educacional e das condições da saúde do trabalhador rural, do oferecimento de assistência técnica e crédito. Um trabalhador que tivesse acesso a esses recursos tornar-se-ia rapidamente um proprietário rural; já um pequeno proprietário, sem esses recursos, venderia a terra.

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Com relação à discussão da distribuição da renda, quando Gudin interveio no debate, ele o fez orientado, sempre, pelos princípios de evitar a inflação e a redução dos lucros. A elevação dos salários era admitida somente nos casos de elevação da produtividade. Em contextos inflacionários, os salários deveriam ser aumentados com índices inferiores aos da inflação, pois, caso contrário, passariam a realimentá-la, prejudicando ainda mais a condição de vida dos trabalhadores. Era radicalmente contrário a qualquer tipo de intervenção governamental no mercado de trabalho, como as leis trabalhistas ou medidas que possibilitassem a participação dos trabalhadores nos lucros das empresas. As pressões sindicais e a intervenção governamental contribuíam apenas para piorar a eficiência do sistema econômico. Por ocasião das discussões em torno do aumento de 100% no salário mínimo em 1954, lançou mão do argumento neoclássico, que considerava a distribuição da riqueza proporcional à contribuição de cada grupo social na renda nacional segundo a avaliação do mercado, não cabendo ao Estado favorecer grupos por meio de medidas legislativas. Como no Brasil vigoravam condições de pleno emprego, as intervenções governamentais no mercado de trabalho eram completamente equivocadas, porque o Estado não consegue fixar, no tempo, os valores relativos dos fatores de produção (só o mercado cumpre esse papel de forma precisa e estável); o nível de salário é determinado pela lei da oferta e da procura, e incrementos salariais por medidas legislativas elevam os custos marginais, reduzem a lucratividade, o investimento e o nível de emprego; por fim, o nível do salário mínimo era determinado pela baixa produtividade. A elevação da produtividade até um nível ótimo só poderia ser obtida nas condições de desemprego. Em síntese, Gudin considerava que a ordem mundial existente no século XIX e início do XX, assentada nos postulados do livre mercado, na teoria das vantagens comparativas e na divisão internacional do trabalho presidida pela Inglaterra, compunha o modelo ideal de organização do sistema econômico e um modelo de desenvolvimento e de harmonia. Julgava a organização econômica do país em relação ao papel que ele deveria cumprir nessa ordem, aprovando e criticando na exata medida que a economia nacional cumpria ou deixava de cumprir o papel definido no modelo. Nessa perspectiva, portanto, atingir o estágio de desenvolvimento industrial da Inglaterra (ou do seu equivalente no século XX, os Estados Unidos) não devia ser uma prioridade

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perseguida pelo país; cabia ao Brasil apenas cumprir bem o seu papel de fornecedor de produtos primários na ordem econômica liberal, considerada por ele a que trazia mais benefícios para todos os integrantes do sistema. Para Gudin, o atraso não estava associado à reiteração da vocação agráriaexportadora, mas ao caudilhismo, na esfera política, e ao intervencionismo, na esfera econômica, considerados por ele duas faces da mesma moeda.1 Só pela eliminação dessas duas formas de irracionalismo o país poderia superar o subdesenvolvimento e almejar o desenvolvimento. Como é possível observar, o autor pode ser considerado o porta-voz dos grupos mais atrasados e conservadores da sociedade brasileira2, que insistiam, em pleno alvorecer da segunda metade do século XX, em assumir uma postura hostil à industrialização, ou, quando muito, adiá-la para um futuro remoto, quando a produtividade agrícola atingisse níveis satisfatórios, liberando mão-de-obra. Como o mais bem preparado representante do pensamento neoliberal no Brasil, participou de dois dos debates mais significativos travados no período pós-guerra, o primeiro contra Simonsen, nos anos finais do Estado Novo (sobre o tema do planejamento), e o segundo contra Prebisch, em 1952-1953 (sobre a tese da deterioração dos termos de troca).

23.2 O primeiro embate teórico: Roberto Simonsen e Eugênio Gudin O embate travado entre Roberto Simonsen e Gudin no final do Estado Novo foi a manifestação, no Brasil, de um debate mais amplo, que vinha sendo travado no período na esfera internacional e que alinhava os defensores do intervencionismo, do planejamento, do protecionismo e da industrialização das economias exportadoras de produtos primários contra os partidários do liberalismo e das vantagens da especialização na divisão internacional do trabalho num ambiente de livre mercado. O debate no Brasil teve início em 1944, na fase final da Segunda Guerra Mundial e pouco antes da deposição de Vargas e do fim do Estado Novo. A inflação no país estava se acelerando, fruto basicamente da rigidez da oferta em relação à demanda. Nos anos anteriores, os investimentos públicos tinham se 1 2

BORGES, Maria Angélica. Eugênio Gudin, capitalismo e neoliberalismo. São Paulo: EDUC, 1996. Tais como os negociantes ligados ao comércio exterior e proprietários agrícolas.

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expandido significativamente (sobretudo com a aprovação dos projetos siderúrgicos) e as reservas encontravam-se em nível elevado. Os liberais empenhavam-se em resgatar a hegemonia perdida desde a crise de 1929 e os defensores da industrialização induzida sentiam suas posições cada vez mais fortalecidas, especialmente após a divulgação do relatório da Missão Cooke, missão técnica dos Estados Unidos, que havia elaborado, em 1942, um diagnóstico da economia brasileira e se posicionado favoravelmente à continuidade da industrialização, motivada, naturalmente, pelo esforço de guerra que haveria de exigir oferta abundante de matérias-primas e insumos básicos. O debate iniciou-se com a divulgação de um relatório, solicitado pelo ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, com um diagnóstico e propostas para uma política industrial e comercial para o país. Redigido pelo relator do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, Roberto Simonsen, e intitulado Planif icação da economia brasileira, foi elaborado com base em dados obtidos pelo organismo de estatística do Ministério do Trabalho. Apresentava um painel sintético dos principais problemas econômicos do país na área de infra-estrutura, abastecimento, padrões de vida, renda nacional. Entre suas principais conclusões, apontava a necessidade de quadruplicar a renda nacional no menor prazo de tempo possível. Diante dos reduzidos investimentos privados no setor de infra-estrutura, propunha a intervenção estatal com investimentos e ações planejadas, apoio ao ensino, pesquisa tecnológica, formação profissional, mecanização (especialmente na agricultura) e adoção de novos modelos de financiamento e de cooperação econômica que levassem em consideração o incremento da produtividade na remuneração dos financiamentos. O relatório de Simonsen foi enviado para a Comissão de Planejamento e coube ao relator, Eugênio Gudin, analisá-lo. A avaliação do relator foi apresentada em março de 1945 num documento intitulado Rumos de política econômica. A análise de Gudin inicia-se com objeções contundentes aos dados e aos cálculos nos quais o relatório de Simonsen se baseou. A seguir, desfere uma crítica à “mística do planejamento”, considerada uma herdeira da experiência fracassada do New Deal (sic), das ditaduras nazifascistas e dos planos qüinqüenais soviéticos. Pode parecer surpreendente que um relator de uma Comissão de Planejamento emita tais opiniões. É que Gudin entendia “plano” na velha acepção liberal, isto é, o conjunto de medidas para fomentar a expansão

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econômica do país, preservando o campo de atuação que, nas democracias, cabe à iniciativa privada. Nessa visão, a função do Estado é “a de estabelecer as regras do jogo, mas não jogar”, como diziam os ingleses.3 Assim, foram identificados três objetivos que o Estado devia perseguir para “incentivar e impulsionar a atividade privada”. O primeiro consistia em dimensionar as potencialidades dos principais setores da economia nacional em termos de produtividade e eficiência; segundo, tendo em vista a melhoria do padrão de vida do povo brasileiro, comparar preços da produção nacional e estrangeira e relacionar as providências para eliminar as deficiências; terceiro, sugerir medidas que o Estado pode adotar para incentivar e ajudar as empresas a se expandirem e incrementar a produtividade em cada um dos setores do sistema econômico. A investigação foi desdobrada num conjunto de propostas agrupadas em campos temáticos. No que se refere ao intervencionismo, defendia o afastamento do Estado de todas as atividades econômicas, transferindo-as à iniciativa privada, uma vez que a livre iniciativa e a livre concorrência eram consideradas a melhor forma de promover a eficiência da estrutura produtiva. Sobre o tema da formação e aplicação do capital, propunha ao Estado estimular investimentos de capitais privados, assegurar a obediência aos contratos, a estabilidade da legislação, garantir a estabilidade monetária e cambial. Defendia a redução dos impostos sobre os lucros; as margens excessivas de proteção à indústria, que impediam a melhoria da produtividade; igual tratamento à empresa nacional e estrangeira e eliminação de todos os impostos sobre os rendimentos do capital estrangeiro remetidos ao exterior. Com relação ao comércio exterior, defendia a adoção de tarifas aduaneiras para empresas nacionais que apresentassem condições de, no futuro, dispensar proteção, além de um limite no nível da tarifa e de um prazo limitado para sua duração, como também reavaliação periódica das taxas com vistas à sua progressiva eliminação. O desempenho das indústrias deveria ser pesquisado para identificar as deficiências e as medidas necessárias para aumentar sua produtividade. Medida idêntica deveria ser adotada na agricultura.

3

SIMONSEN, Roberto. A controvérsia do planejamento na economia brasileira; coletânea da polêmica Simonsen × Gudin, desencadeada com as primeiras propostas formais de planejamento da economia brasileira ao final do Estado Novo. Introdução Carlos von Doellinger. Rio de Janeiro: Ipea/Inpes, 1977, p. 84. Série Pensamento Econômico Brasileiro.

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O controle da inflação exigia que os investimentos públicos e o crédito fossem reduzidos sensivelmente. Gudin alertava que o exame da economia nacional e a definição de orientações de política econômica dependiam de dados e informações mais abundantes que os existentes, o que exigia a criação de organismos com o objetivo de produzir levantamentos estatísticos sobre as contas nacionais e a balança de pagamentos. Finalizava sugerindo a criação de um Banco Central, assim que a economia atingisse um quadro de equilíbrio interno e externo. A resposta de Simonsen apareceu em julho de 1945, editada no livro O planejamento da economia brasileira. Ele reafirmou a consistência tanto dos dados nos quais se baseou quanto de seus cálculos, e fez uma defesa abrangente e lúcida da tese do planejamento como meio eficaz para promover o desenvolvimento. Lançou mão de uma ampla gama de argumentos em defesa do protecionismo, amparado em exemplos históricos, que iam de List e a industrialização alemã, passando pelo New Deal até chegar a Carl Landauer, acadêmico respeitado que havia publicado, em 1944, uma defesa teórica do planejamento em sua obra Theory of national economic planning. A polêmica encerrou-se com uma resposta de Gudin intitulada Carta à comissão de planejamento, de agosto de 1945, na qual ele reafirmava seus pontos de vista de radical oposição ao protecionismo e ao planejamento. O debate foi fundamental para os adeptos do desenvolvimentismo perceberem que a defesa do intervencionismo, do protecionismo e do planejamento feita por Simonsen, apesar de amparada numa argumentação lúcida e consistente do ponto de vista ideológico, político e histórico, carecia de uma sustentação teórica e de uma formulação técnica, compatível com o nível de rigor acadêmico que o pensamento liberal e o neoliberal tinham atingido. Essas exigências de sofisticação teórica só foram alcançadas alguns anos mais tarde, com os trabalhos de Celso Furtado.

23.3 A ortodoxia de Octávio Gouvêa de Bulhões Octávio Gouvêa de Bulhões (1906-1990) nasceu na cidade do Rio de Janeiro e teve uma longa, ativa e produtiva vida. Foi um dos mais destacados economistas, da cepa daqueles que combinam a vida acadêmica e a pública e que se confundem com o próprio processo histórico de seu país. Filho do diplomata Godofredo de Bulhões, passou a infância na França e na Áustria e

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retornou ao Rio de Janeiro aos oito anos de idade. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade do Rio de Janeiro e especilizou-se em Economia nos Estados Unidos, na American University, em Washington. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Economia pela Escola de Economia da FGV. Recebeu também o título de Professor Emérito da UFRJ. Na vida pública, trabalhou em diversos cargos desde 1926. Em 1934, foi membro do Conselho Nacional de Economia. Em 1944, participou da delegação do Brasil à Conferência Monetária e Financeira de Bretton Woods, nos Estados Unidos, conferência que remodelou o padrão de regulação mundial do capitalismo pós-guerra. Em dois períodos cruciais para o processo de desenvolvimento econômico brasileiro, 1954-1955 e 1961-1962, foi diretor da Sumoc e, após a crise do governo Goulart e o golpe de 1964, foi conduzido, pelo presidente Castelo Branco, ao Ministério da Fazenda, no período de 1964 a 1967. Em conjunto com Roberto Campos, que ocupara o Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica, elaborou o Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg), que deveria ser a “cirurgia econômica” determinada pelos planos dos novos governantes empossados após o movimento civil-militar de 1964. Esse período significou o momento de maior transformação institucional na vida econômica brasileira. A dobradinha Bulhões-Campos criou, por exemplo, o Banco Central da República do Brasil, com a transformação da Sumoc em autarquia federal. Para enfrentar a crise do Estado, criou as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs). Como mecanismo de ampliar a poupança interna, criou o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que a um só tempo produzia um mecanismo de captação de poupança para o Estado e substituía a estabilidade no emprego pela opção ao FGTS. No campo monetário, instituiu o cruzeiro novo. No que tange à reforma tributária, além de alterar o Imposto de Renda, elaborou o projeto de sistematização tributária que, encaminhado ao Congresso Nacional, se converteu na Emenda Constitucional no 18, de 1o de dezembro de 1965, e do Anteprojeto do Código Tributário Nacional, consubstanciado na Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966. Criou também o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e, no campo institucional, o Conselho Monetário Nacional (CMN). Em 1967, Bulhões assumiu o cargo de presidente do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV). Nos anos 1970, assumiu também o cargo de

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presidente do Banco do Estado da Guanabara (que posteriormente se tornou o Banerj) e presidente da Companhia Progresso do Estado da Guanabara S/A (Copeg). Em 1975, assumiu o cargo de presidente do Banco Comind. O pensamento de Bulhões pode ser inserido na ampla gama de vertentes do neoliberalismo. Em seus estudos sobre o neoliberalismo, o professor Octávio Ianni assegura que o que está em causa é a primazia do “mercado”. Os autores e atores empenhados na crítica e no desmonte do projeto de “capitalismo nacional” preconizam a associação ampla com o capitalismo norte-americano, europeu, japonês e outros, isto é, a franca, rápida e ampla “inserção” da economia brasileira na economia mundial. Assumem que a colaboração, associação ou fusão de empresas, corporações e conglomerados, compreendendo nacionais e estrangeiros, é o melhor caminho para o desenvolvimento, o progresso, a modernidade, o primeiro mundo.4

Essa linha de pensamento preconiza o Estado Mínimo, [...] compreendendo a reforma do Estado, a desestatização da economia, a privatização das empresas estatais, a privatização da educação, saúde, previdência; a redefinição das relações de trabalho, o abandono de compromissos do Estado do bem-estar social. O neoliberalismo adotado timidamente pelos governos militares nos anos 1964-1985, e ostensiva e intensivamente pelos governos desde 1985, tem provocado toda uma ampla e profunda alteração das relações entre o Estado e a Sociedade Civil.5

Questões 1. Quais as principais dificuldades das economias subdesenvolvidas na opinião de Eugênio Gudin? 2. Como Eugênio Gudin entendia a relação entre o Estado e o mercado? 3. Quais as causas do fenômeno inflacionário no pensamento de Eugênio Gudin? 4. Explique a teoria do comércio exterior de Eugênio Gudin. 5. Qual é o significado da expressão Estado Mínimo?

Referências BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro. Rio de Janeiro: Ipea/ Inpes, 1988.

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IANNI, Octávio. A formação do capitalismo nacional, p. 8. Id., p. 8.

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__________ . O pensamento econômico brasileiro, o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 5. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. BORGES, Maria Angélica. Eugênio Gudin, capitalismo e neoliberalismo. São Paulo: EDUC, 1996. BULHÕES, Octávio Gouvêa de. Orientação e controle em economia. Rio de Janeiro: Bodeschi, 1941. __________ . “A Comissão Econômica para a América Latina”. In: O Observador Econômico e Financeiro. Rio de Janeiro: ago. 1948. __________ . À margem de um relatório. Rio de Janeiro: Edições Financeiras S/A, 1950. __________ . “Economia e nacionalismo”. Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro, mar. 1952. __________ . “Estudos sobre a programação do desenvolvimento econômico”. Revista do Conselho Nacional de Economia. Rio de Janeiro, v. 2 (19/20), nov./dez. 1953. __________ . Dois conceitos de lucro. Rio de Janeiro: Apec, 1969. ___________ . Educação para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Reper, 1966. __________ . Dois conceitos de lucro. Rio de Janeiro: Apec, 1969. __________ . Ensaios econômicos. Rio de Janeiro: Apec, 1972. __________ . “O Brasil e a política monetária internacional”. Revista Brasileira de Economia, v. 26, n. 4. Rio de Janeiro: FGV, 1972. __________ . Política monetária brasileira. Brasília: Ipeac, 1973. ___________ . Evolução do capitalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Bloch, 1976. IANNI, Octávio. A formação do capitalismo nacional. Sala de Imprensa, Edição 248, Unicamp, abr. 2004. GUDIN, Eugênio. Princípios de economia monetária. Rio de Janeiro: Agir, 1952. SIMONSEN, Roberto. A controvérsia do planejamento na economia brasileira; coletânea da polêmica Simonsen × Gudin, desencadeada com as primeiras propostas formais de planejamento da economia brasileira ao final do Estado Novo. Introdução Carlos von Doellinger. Rio de Janeiro: Ipea/Inpes, 1977. Série Pensamento Econômico Brasileiro. Sites http://www.scielo.br/scielo.php http://www.brasileirosnoexterior.com http://www.mp.rj.gov.br/

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Brasil: Escola Neoliberal1 Aspectos do pensamento de Gudin

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(Expostos na análise crítica do documento Rumos de política econômica de autoria, de Roberto Simonsen.) De onde surgiu a mística do plano

[...] A doutrina do laissez-faire, a cujo impacto rapidamente ruiu o sistema mercantilista, baseava-se, ao contrário, no princípio de que a riqueza da nação é a integral da riqueza de seus cidadãos; de que o indivíduo, guiado pelo interesse próprio, procura empregar seu trabalho e seu capital do modo mais proveitoso para sua economia e, portanto, de que o meio mais rápido e mais seguro de enriquecer a nação é o de deixar aos indivíduos plena liberdade de ação econômica. A doutrina do laissez-faire era portanto, em princípio, a negação do plano. “Negação do plano” não tinha, porém, o sentido de desinteresse do Estado pela ordem econômica. Os problemas da moeda, da tributação, dos sistemas de comunicações terrestres e marítimas, postais, telegráficas, dos serviços de utilidade pública, da tarifação aduaneira, da imigração etc. definiam e, ao mesmo tempo, limitavam o campo de ação do Estado na economia. À medida que o organismo econômico crescia em extensão e em profundidade e, portanto, em complexidade, tornava-se necessário regulamentar as novas instituições. O advento da estrada de ferro, do gás de iluminação, do telégrafo, da eletricidade, ampliou a órbita de ação do Estado, a quem cabia decretar e fazer cumprir a legislação e a regulamentação referentes a cada um desses novos instrumentos de progresso. No campo social, o emprego de grandes massas de trabalhadores na indústria manufatureira levou também o Estado a regulamentar a questão das horas de trabalho, dos acidentes produzidos pelas máquinas, do trabalho de mulheres e menores, do amparo à velhice etc. O Estado devia impedir que a liberdade fosse utilizada para matar a liberdade.

1

SIMONSEN, Roberto Cochrane. A controvérsia do planejamento na economia brasileira; coletânea da polêmica Simonsen × Gudin, desencadeada com as primeiras propostas formais de planejamento da economia brasileira ao final do Estado Novo. Rio de Janeiro: Ipea/Inpes, 1977. Série Pensamento Econômico Brasileiro.

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A crescente complexidade das instituições foi exigindo do Estado uma série de leis e medidas constitutivas do que se poderia chamar de código de comportamento econômico, sem que, entretanto, isso o levasse a invadir a seara privativa da iniciativa particular. É a esse sistema econômico que se tem convencionado chamar de Economia Liberal. [...] Até 1914, a economia liberal conduziu a humanidade por essa rota, de constante aumento de bem-estar e de elevação do padrão de vida das populações. Dentro de seus padrões se abordavam e resolviam os novos problemas à medida que eles surgiam. No campo internacional, o bastão da liderança cabia à Inglaterra, que velava pelo equilíbrio do sistema. País credor que era, ele recebia os juros e dividendos que lhe eram devidos, importando anualmente cerca de 200 milhões de libras esterlinas mais do que exportava, suprindo, assim, aos demais países o único meio por que uma nação pode afinal pagar a outra nação: o da exportação de mercadorias e serviços. Aos desequilíbrios de balanços de pagamentos de outros países, ela atendia suprindo-lhes o crédito necessário para vencer a etapa e restabelecer a situação. Ela exercia, assim, a função de reequilíbrio que hoje estamos procurando – restabelecer com as instituições, de Bretton Woods. (p. 61-63) [...] De fato, não há como conciliar os dois regimes. Os liberais procuram conservar e aperfeiçoar a ordem econômica que os coletivistas desejam destruir. Para a filosofia liberal, o ideal é o mercado em livre concorrência e a mobilidade dos fatores de produção; é a produção regulada pelo sufrágio ininterrupto dos preços, traduzindo a demanda efetiva de mercadorias e serviços. Para a filosofia coletivista, o ideal é um plano perfeito imposto por uma autoridade onipotente. Para a filosofia liberal, o sistema econômico é o caminho da democracia. Para a filosofia coletivista, é o Estado totalitário. A diferença entre as duas filosofias é radical e irreconciliável. O coletivismo serve-se do poder do Estado para administrar a produção e o consumo; o liberalismo utiliza esse “poder” para preservar e favorecer a liberdade das trocas, que é o princípio essencial de seu modo de produção. (p. 68) [...] A verdade é que temos caminhado assustadoramente no Brasil para o capitalismo de Estado. [...]

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Ao contrário dos Estados Unidos e da Inglaterra, o Estado já tem no Brasil o controle da maioria da rede ferroviária e de quase toda a navegação mercante. Com a encampação da Brazil Railway, ficou o Estado, além das estradas de ferro e portos dessa empresa, com indústrias de papel, de pinho, de jornais, revistas e rádios, de fazendas de gado, de frigoríficos. Com a incorporação da Organização Lage, o governo chamou a si navios, portos, estaleiros etc. [...] Não discuto aqui ideologias. Mostro apenas a grave herança do capitalismo de Estado que nos ficou do regime totalitário que ora se extingue. Se queremos marchar para o capitalismo de Estado, para o comunismo, para o nazismo ou para qualquer modalidade totalitária, estamos no bom caminho. [...] Mas se é para a democracia, para a economia liberal que desejamos caminhar, então urge mudar de rumo e, em vez de ainda mais ampliar o campo industrial do Estado, devemos, ao contrário, fazer voltar à economia privada as empresas industriais em mãos do governo. O Estado só terá a ganhar concentrando toda a sua atividade ao vasto campo de ação que lhe é peculiar e onde os mais sérios problemas estão a desafiar a capacidade e as energias de nossos estadistas. Uma vez reduzido o capital da Companhia Siderúrgica Nacional a cifras compatíveis com sua produtividade, deveríamos tratar de vender ao público as ações de propriedade do governo, permitindo ao capital estrangeiro uma participação de 30% ou 40%. As empresas encampadas, mas cujos proprietários ainda não foram indenizados, devem, por acordo amigável, voltar a suas mãos ou a outras mais idôneas, se eles não o forem. As empresas penduradas no Banco do Brasil com garantia do governo devem, em prazo razoável, resgatar suas responsabilidades mediante emissões de debêntures ou ações vendidas ao público. (p. 80-81) O sentido do nosso planejamento

Na esfera das atividades privadas, a função do Estado liberal é, como dizem os ingleses, “a de estabelecer as regras do jogo, mas não a de jogar”. Isso não importa, porém, de forma alguma, em dizer que o Estado se desinteresse da economia, aqui ou em qualquer outro país. No Brasil, nunca precisamos tanto de uma colaboração inteligente e eficaz do Estado para o progresso de nossa economia como na atual conjuntura, em que é premente a necessidade de uma série de medidas legislativas e administrativas, capazes de permitir e facilitar a expansão e o progresso econômico do país. [...]

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Parte II

2. Outro aspecto de nossa política de comércio exterior que está a carecer de atenção é a do protecionismo aduaneiro O único argumento em favor do protecionismo aduaneiro é o de que ele é necessário para dar às indústrias nascentes do país o tempo indispensável para adquirirem a experiência e se familiarizarem com a técnica de uma produção nova. Foi com base nesse argumento que Friedrich List, o arauto do protecionismo, propôs a sua adoção na Alemanha da segunda metade do século XIX. E, de fato, 25 anos depois da Guerra de 1870, a indústria alemã concorria com as indústrias inglesa e americana em todos os mercados mundiais. List dizia que os direitos aduaneiros deviam ser “moderados e temporários”; não superiores a 25% porque, dizia ele, se a indústria doméstica parte de início com tão grande desvantagem que precisa de proteção maior, então haverá pouca probabilidade de que ela jamais se torne independente. Vinte e cinco a trinta anos era o prazo que List indicava como suficiente para o amparo a qualquer indústria nacional. Os que, no Brasil, se insurgem contra o protecionismo aduaneiro alegam, com toda a razão, que a proteção (sem esquecer as taxas acessórias) se eterniza, sem que jamais chegue uma das indústrias nacionais ao grau de maturidade capaz, se não de exportar, ao menos de dispensar a proteção para o mercado interno. Na indústria têxtil, por exemplo, que trabalha com algodão nacional, energia e mão-de-obra baratas, vemos, pelo relatório da Missão Cooke, que 50 anos de forte proteção aduaneira não foram suficientes para que nossas indústrias se aparelhassem para concorrer com o estrangeiro, ao menos no mercado interno (veja M. Cooke – Brazil on the march – p. 213 a 217). Enquanto isso, quem sofre é o consumidor, isto é, o padrão de vida do povo brasileiro; custo de vida elevado, refletindo-se no custo de produção dos produtos primários e, portanto, reduzindo as exportações. (p. 107) Agricultura e elevação do padrão de vida da população 1. Um dos argumentos mais correntes a favor de nossa industrialização é o de que os países industrializados são ricos e os países de economia agrícola ou extrativa são pobres. Como princípio, não é verdadeiro. Onde as terras são férteis e planas, onde se praticam a irrigação e a drenagem, onde se dispõe dos conhecimentos técnicos e dos elementos necessários à adubação, onde se faz uso das máquinas agrícolas para preparar o solo, para semear, para capinar e mesmo para colher, onde se disseminam a instrução e a técnica, a economia agrícola pode formar um país muito rico e de alto padrão de vida. Para nós, brasileiros, basta que olhemos para a Argentina. (p. 115)

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Investimentos estrangeiros [...] Um dos incentivos para a imigração do capital estrangeiro está na diferença entre as taxas do imposto de renda em vigor em seu país de origem e no país para onde ele imigra [...]. Em países como o nosso [...] que precisa de capital estrangeiro para acelerar o ritmo de seu progresso, a excessiva elevação das taxas do imposto de renda faria desviar as correntes de capital para outros países onde as taxas do imposto são mais moderadas. Seria, aliás, aconselhável a negociação de convênio com os países que nos podem suprir capitais, no sentido de minorar os efeitos da bitributação do imposto de renda. Se oferecermos ao capital estrangeiro essas condições básicas, poderemos contar com um considerável afluxo, a preço razoável, de capitais, principalmente norte-americanos, no período de pós-guerra, como valiosa contribuição para a nossa expansão econômica e nosso progresso. (p. 126) Produtividade 7. Finalmente, a questão da produtividade sobreleva todas as demais, em matéria de industrialização [...]. A bandeira que precisamos levantar no Brasil não é a de “um plano”, e sim da “produtividade”, não só na indústria, mas em todas as demais atividades econômicas. Produtividade na Agricultura para produzir mais e melhor café, algodão, cana, laranja etc., por hectare plantado, mais e melhor gado por alqueire de pastagens. E, para isso, precisamos de técnicos (verdadeiros), estações experimentais eficientes e pesquisa organizada. (p. 127-129) 8. Na execução da política de produtividade, por que es tá a bradar o povo brasileiro, importa estar atento à insidiosa resistência passiva dos interesses reacionários de grupos e associações industriais que visam, antes de tudo, à defesa dos interesses particulares dos industriais já instalados, desenvolvendo surda oposição e hábeis manobras contra tudo que possa vir a com eles concorrer. É a política de afastamento de concorrentes (nacionais e estrangeiros), de restrição de produção e manutenção dos preços [...]. Na luta contra a competição interior, eles combatem as iniciativas dos que se propõem a criar estabelecimentos concorrentes, mais bem aparelhados e mais eficientes, procurando barrar essas iniciativas ou, se não o conseguem, fazendo-lhes guerra de preços ou procurando fechar-lhes as portas do crédito. Na luta contra a concorrência exterior, eles bradam contra a tentativa de “esmagamento ou de dumping” e tiram partido do espírito de nacionalismo mercantilista para denunciar a agressão econômica e invocar o amparo do Estado.

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Só de uma coisa eles se esquecem. É de que não há proteção nem amparo de Estado, nem mesmo do Todo-Poderoso, capaz de dar eficiência a uma maquinaria obsoleta, a uma administração indolente e a uma técnica incapaz. Cedo ou tarde, a partida será perdida, mas eles preferem (e quase sempre conseguem) que seja tarde [...] muito tarde. E, enquanto isso, continuam a produzir mal e caro à custa do consumidor depenado. Seja dito, porém, desde logo, em defesa das nossas associações industriais, que a praga não é privilégio nosso. Ela prolifera, com a mesma intensidade, em outros países e dos melhores. (p. 129)

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Pensamento econômico brasileiro: Escola Marxista 24.1 O sentido da colonização e a história econômica radical de Caio Prado Júnior (1907-1990)

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Existem três estudos econômicos de caráter abrangente que, apesar das diferentes perspectivas e metodologias, compõem a base de todas as demais interpretações sobre a evolução da economia brasileira da fase colonial até os dias atuais: História econômica do Brasil, de Roberto Simonsen (1937); Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado (1959); e História econômica do Brasil, de Caio Prado Junior (1945). Caio Prado foi o primeiro autor de filiação marxista a elaborar um estudo bem-sucedido da evolução econômica do Brasil, cobrindo o período da colônia até o século XX. Ele nasceu em São Paulo, numa família de ricos fazendeiros, prósperos homens de negócio e influentes políticos da República Velha. Estudou em São Paulo, diplomando-se na faculdade de Direito em 1928. Apesar de membro de tradicional família paulistana, participou ativamente da campanha eleitoral de 1930, apoiando a candidatura de oposição à oligarquia paulista, representada por Getúlio Vargas. No início da década de 1930, aderiu ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), chegando a vice-presidente, da seção de São Paulo, da Aliança Nacional Libertadora, criada em 1934. Com a decretação da ilegalidade da organização, foi preso durante dois anos. Ao ser libertado, saiu do país, estabelecendo-se na França, onde se vinculou ao grupo de comunistas franceses que participaram ativamente do apoio à esquerda na Guerra Civil Espanhola. Com o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, retornou ao Brasil. Com o fim do Estado Novo, em 1945, e o retorno das eleições para o Legislativo, em 1947, foi eleito deputado estadual pelo PCB, mas perdeu o mandato meses depois com a decretação da ilegalidade do partido. Foi nesse período que começou a organizar a Livraria Brasiliense, tornando-se editor de várias publicações. Em 1955, lançou a Revista Brasiliense, publicação de debate sobre temas nacionais e internacionais. A revista agregava parte da intelectualidade de esquerda e foi responsável pela veiculação de inúmeros artigos seus,

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destacando-se um conjunto sobre a questão agrária no Brasil, reunidos em livro, em 1979. Com o golpe de 1964, as provas da edição março-abril foram destruídas pelos militares e a revista deixou de circular. Durante o regime militar, foi perseguido, convocado freqüentemente para depor e preso várias vezes. Em 1968, por ocasião da aposentadoria do professor Sérgio Buarque de Holanda, da cátedra de História do Brasil da faculdade de História da Universidade de São Paulo, foi estimulado a prestar o concurso, especialmente por Sérgio Buarque, que desejava tê-lo como sucessor. Para submeter-se à banca, escreveu a tese História e desenvolvimento, mas o recrudescimento da ditadura impediu a realização do concurso, cassando-lhe inclusive o título de livre-docente1, que tinha obtido, em 1956, no concurso para a cátedra de Economia Política na Faculdade de Direito, onde havia estudado. Desde então, recolheu-se a uma vida discreta, dedicando-se à revisão, publicação e republicação de seus textos, além de ministrar palestras e cursos, até seu falecimento, em 1990. Entre suas principais obras, destacam-se: Evolução política do Brasil e outros estudos – ensaio de interpretação materialista da história do Brasil, de 1933; Formação do Brasil contemporâneo, de 1942; História econômica do Brasil, de 1945; A revolução brasileira, de 1966; e A questão agrária no Brasil, de 1979. Os principais aspectos do pensamento econômico de Caio Prado estão apresentados no clássico História econômica do Brasil. O livro é dividido em nove partes. As quatro primeiras cobrem o período da colônia. Ele inicia tratando das condições geográficas, das primeiras atividades de extração do paubrasil, depois analisa a consolidação do domínio metropolitano pela montagem da agromanufatura do açúcar e o surgimento das atividades complementares (produção de subsistência, pecuária). A terceira parte examina o processo de ampliação do domínio territorial lusitano, com a mineração em Minas e no Centro-Sul, o crescimento da pecuária no Nordeste e a incorporação do Vale Amazônico à exploração colonial. Na quarta parte, caracterizada como o Apogeu da Colônia, examina-se o processo de reativação de inúmeras atividades internas, no período compreendido entre o esgotamento das minas de ouro e a transferência da família real, em 1808. Caio Prado conclui o estudo da colônia reafirmando a tese que havia apresentado originalmente em Formação do Brasil

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O título foi obtido com a tese Diretrizes para uma política econômica brasileira.

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contemporâneo. De acordo com ela, o conjunto das atividades e da vida econômica na colônia era presidido por um sentido básico, o sentido da colonização, e consistia na [...] exploração dos recursos naturais de um amplo território em proveito do comércio europeu. Não se chegara a constituir na era colonial uma economia propriamente nacional, isto é, um sistema organizado de produção e distribuição de recursos para a subsistência material da população nela aplicada, mas ficara-se modificando apenas a extensão do processo, nesta exploração comercial de um território virgem em proveito de objetivos completamente estranhos à sua população, e em que essa população não figura senão como elemento propulsor destinado a mantê-la em funcionamento. [...] Todas as atividades giram em torno deste fim precípuo de fornecer ao comércio internacional alguns produtos tropicais de alto valor mercantil. [...] O mais é secundário, acessório, e serve apenas para tornar possível a realização daquele fim.2

A parte seguinte é estratégica para o modelo explicativo adotado pelo autor nesse estudo. Nos três capítulos da Era do Liberalismo, ele identifica um conjunto de desajustamentos econômicos, administrativos, políticos e sociais, provocados na colônia pela transferência da corte portuguesa, em 1808, e demonstra como eles entraram em contradição com a ordem colonial, desencadeando uma série de conflitos e tensões, cuja superação se deu em duas etapas. A primeira se concretizou com a independência política, em 1822, que integrou definitivamente o Brasil na tendência do livre-comércio. A segunda se manifestou com o fim do tráfico em 1850, decretou o início da derradeira crise do sistema escravista e desencadeou um surto de novos negócios e atividades, de novas oportunidades de investimento, responsáveis por um grande impulso no desenvolvimento das forças produtivas no decorrer da segunda metade do século XIX. [...] logo depois de 1850 [...] a abolição do tráfico africano [...] terá por efeito imediato desencadear as forças renovadoras em gestação. O país entra bruscamente num período de franca prosperidade e larga ativação de sua vida econômica. [...] O Império, quando em 1889 se extingue e é substituído pela República, terá coberto uma larga e importante etapa da evolução econômica do país.3

Esse processo de desenvolvimento das forças produtivas ganhou novo impulso com a implantação da República, que Caio Prado explica como um movimento de ajustamento e compatibilização entre o progresso econômico e o 2 3

PRADO JR., Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1978, p. 102-103. Id., p. 192 e 195.

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universo ideológico das classes dirigentes. Segundo o autor, o desenvolvimento econômico na segunda metade do século XIX criou uma contradição entre a esfera econômica, cada vez mais dinâmica e regida pelos objetivos da lucratividade, e a mentalidade aristocrática das elites, fixadas no prestígio decorrente da propriedade da terra, de escravos, e da origem social. A implantação da República expressou a superação dessa contradição entre a ordem econômica e as esferas política e ideológica e acelerou o ritmo do desenvolvimento das forças produtivas e da acumulação do capital. [...] a República, rompendo os quadros conservadores dentro dos quais se mantivera o Império, apesar de todas as suas concessões, desencadeava um novo espírito e tom social bem mais de acordo com a fase de prosperidade material em que o país se engajara. Transpunha-se de salto um hiato que separava certos aspectos de uma estrutura ideológica anacrônica e o nível das forças produtivas em franca expansão. Ambos agora se coadunavam [...] o novo espírito dominante [...] estimulará ativamente a vida econômica do país, despertando-o para iniciativas arrojadas e amplas perspectivas. Nenhum dos freios que a moral e a convenção do Império antepunham ao espírito e aos negócios subsistirá; a ambição do lucro e do enriquecimento consagrar-se-á como um alto valor social.4

Tratava-se, portanto, de uma transformação que, na tradição marxista, correspondia a uma “revolução burguesa” sem os atributos de radicalidade política que elas tiveram nas vias clássicas de transição para o capitalismo, e, nesse sentido, muito próxima daquilo que Lenin conceituou como “via prussiana” de transição.5 Instaurada a República, todo o dinamismo do sistema econômico nacional continuou orbitando na agroexportação do café. A importância desse setor da economia foi inclusive acentuada pelo forte ingresso dos investimentos estrangeiros no setor. A participação do capital estrangeiro no negócio do café datava da época do Império, mas aprofundou-se significativamente como a implantação da República. Esse movimento de reiteração da agroexportação, agora sobredeterminado pelos interesses imperialistas, criava uma nova contradição.

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PRADO JR., Caio. História econômica do Brasil, p. 209. LENIN, V. I. O programa agrário. Edição brasileira. São Paulo: Ciências Humanas, 1980, p. 63. O conceito de via prussiana foi desenvolvido por Lenin em estudos nos quais examinou a questão agrária. Originalmente, o conceito representa uma via de transição da grande propriedade agrária, baseada em relações coercitivas de caráter feudal para uma grande propriedade capitalista. É um tipo de transição que não democratiza a propriedade da terra e preserva o poder das elites aristocráticas, que abandonam os valores tradicionais e se transformam em empresários do campo. Caracteriza uma transição para o capitalismo em que as forças políticas tradicionais pactuam com os agentes políticos da modernização, abortando qualquer possibilidade revolucionária.

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A expansão da cafeicultura no decorrer das décadas iniciais do século acabou estimulando outros setores da economia, entre os quais se destacava a indústria. O aumento da força de trabalho livre, a intensificação da urbanização e algumas necessidades da própria cafeicultura criaram um mercado interno que favoreceu o surgimento de várias indústrias, especialmente durante a Primeira Guerra Mundial, quando as dificuldades de importação se tornaram praticamente intransponíveis. Esse quadro evidenciava um processo de formação de uma estrutura produtiva voltada ao atendimento das necessidades do mercado interno, mas ele se encontrava constrangido, nas suas possibilidades de expansão, pela proeminência do modelo centrado nas grandes propriedades produtoras de bens primários (café) destinados ao mercado externo. Para Caio Prado Jr., em 1945, essa contradição expressava o âmago da questão nacional. Do seu ponto de vista, o país só se afirmaria como nação ao orientar a sua estrutura produtiva para atender às necessidades da população. Era a capacidade da indústria em atender às necessidades da população, do mercado interno, que definia se o país atingira sua soberania nacional e autonomia econômica. Assim, a realização desse projeto exigia a superação da herança colonial (materializada na grande propriedade voltada para o mercado externo) e do tipo de vinculação que a economia brasileira mantinha com o o capital financeiro internacional, que atuava no sentido de manter o país como fornecedor de gêneros primários a baixos preços. Dessa forma, a análise econômica chegava ao presente, explicitando as tensões subjacentes à estrutura econômica e os desafios que ela impunha à ação política. Em síntese, nesse exame da evolução econômica do Brasil, Caio Prado procura explicitar as contradições que articulam as esferas econômicas, sociais, políticas e ideológicas em cada momento do tempo, buscando demonstrar como o “novo” surge, ou poderia surgir, no interior do “velho”, instaurando tensões múltiplas que pressionam no sentido de uma superação. A nova ordem não é apresentada como inevitável, mas latente na realidade e ao alcance da intervenção política, como resultado de um processo no qual forças contraditórias operam, induzindo transformações e reiterando persistências. Esses são aspectos bem desenvolvidos por Caio Prado nesse trabalho e constituem o melhor exemplo de uma abordagem marxista da evolução econômica do Brasil. Apesar da sua vinculação ao PCB, o autor sempre conduziu seus estudos com grande independência intelectual. Em geral, as análises econômicas

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produzidas pelo partido estavam sempre condicionadas aos objetivos táticos e estratégicos da revolução socialista. Esse aspecto, aliado a uma compreensão apressada e vulgar do pensamento marxista por parte significativa da intelectualidade de esquerda, além das simplificações induzidas pelo stalinismo em relação às etapas do desenvolvimento das sociedades, levou a interpretações muito criticadas pelo autor em pelo menos três pontos importantes. A visão de que predominavam no campo brasileiro relações pré-capitalistas de produção de tipo feudal era corrente nas análises econômicas do partido. O partido também acreditava que, como no caso clássico, a burguesia industrial brasileira possuía interesses contrários aos grandes proprietários rurais (as relações anacrônicas de trabalho e os baixos níveis de produtividade no campo encareciam os alimentos e elevavam os níveis de salários) e ao imperialismo, representado pelas grandes empresas estrangeiras (que, pela concorrência, ameaçavam a sobrevivência das empresas nacionais). Derivava dessa análise a proposta da necessidade de uma reforma agrária, como forma de atender ao principal interesse dos camponeses. Além disso, a divisão das grandes propriedades poderia elevar a produção de gêneros agrícolas, reduzindo a pobreza no campo, os preços dos alimentos e favorecendo os salários reais nas áreas urbanas. Por outro lado, as contradições de interesses, entre a burguesia nacional e o imperialismo, transformavam a classe de empresários nativos em aliados políticos de grande importância na luta pela independência nacional. Em A revolução brasileira e em A questão agrária, Caio Prado criticou vigorosamente esses pontos de vista. Demonstrou que as relações arcaicas no campo decorriam do passado escravista, e não de uma suposta herança feudal. A penetração do capitalismo no campo teria criado uma série de relações, de fato anacrônicas, mas, pela precariedade que impunham à força de trabalho, assemelhavam-se muito mais ao assalariamento que à servidão. Sendo assim, para vastas parcelas da população rural, a aquisição de uma parcela de terra, por meio da reforma agrária, não era o principal objetivo. Sua principal reivindicação era a extensão da legislação trabalhista ao campo e a obtenção de melhores ganhos monetários (salários). Argumentava que a reforma agrária não poderia ser adotada como receita universal para a solução dos problemas da estrutura agrária, uma vez que não é em todo tipo de cultura que o sistema de pequenas propriedades apresenta índices de produtividade satisfatórios. Da mesma forma, a penetração do capital estrangeiro no país havia criado uma

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estrutura industrial, na qual indústrias estrangeiras se concentravam no setor dinâmico e as nacionais desempenhavam um papel complementar na cadeia produtiva. Em síntese, as relações entre o capital estrangeiro e o nacional não eram regidas pela concorrência, mas pela complementaridade, daí o grave erro de considerar a burguesia nacional um aliado político importante. Caio Prado conclui que os inúmeros equívocos da análise econômica do partido resultaram numa ação política precipitada, que contribuiu muito para a derrota das forças de esquerda imposta pelo golpe militar de 1964. Essa discussão exemplifica que o marxismo, para Caio Prado, não consistia numa teoria ou modelo de interpretação à qual a realidade concreta era impelida a se adaptar; pelo contrário, era uma abordagem cuja eficácia dependia de uma sólida ancoragem das interpretações num conhecimento extenso e profundo da realidade concreta, isto é, do objeto de estudo.

24.2 A teoria da dependência de Fernando Henrique Cardoso (1931) e Enzo Faletto (1935-2003) Fernando Henrique Cardoso nasceu no Rio de Janeiro em 1931. Estudou Sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), da qual se tornou professor. No período compreendido entre 1964 e 1968, trabalhou como pesquisador da Cepal, foi professor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, em Santiago do Chile, e da Sorbonne, em Paris. Após seu retorno ao Brasil, juntamente com outros professores afastados da Universidade pela ditadura militar, ajudou a fundar o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em 1969. Ingressou na vida política em 1978. Foi senador por São Paulo (19831992), ministro das Relações Exteriores de Itamar Franco (1992), ministro da Fazenda (1993) e eleito presidente da República em 1994. Cumpriu dois mandatos como presidente. Entre seus livros mais importantes, destacam-se: Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, de 1962; Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil, de 1964; Dependência e desenvolvimento na América Latina – ensaio de interpretação sociológica (em co-autoria com Enzo Faletto), de 1970. Enzo Faletto Verné nasceu em Santiago do Chile em 1935. Licenciouse em Filosofia, pela Universidade do Chile, e em História, pela Faculdade

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Latino-Americana de Ciências Sociais, pela qual obteve o título de mestre em Sociologia. Foi afastado da função de professor da Universidade do Chile pelo golpe militar de 1973, retornando apenas em 1991, com a redemocratização do país. É um estudioso dos problemas do subdesenvolvimento e das suas implicações nos países da América Latina. Sua obra Dependência e desenvolvimento na América Latina, em co-autoria com Fernando H. Cardoso, influenciou várias gerações de sociólogos. Além dessa obra, merecem destaque: Génesis histórica del proceso político chileno, de 1971; El liberalismo, de 1977. O ensaio Dependência e desenvolvimento partia de uma crítica ao viés economicista das análises sobre o desenvolvimento, que restringia o exame às estruturas econômicas e à linhagem sociológica que se baseava em conceitos de sociedade tradicional e sociedade moderna. Propunha uma perspectiva que examinasse os problemas do desenvolvimento econômico do ângulo da natureza política dos processos de transformação econômica. Uma abordagem desse tipo deveria situar as estruturas econômicas e sociais no processo histórico, identificar os agente sociais, seus objetivos, interesses e ideologias, e analisar a relação recíproca entre os níveis da estrutura econômica e os dos agentes sociais e das suas representações ideológicas. Nessa perspectiva, o desenvolvimento apresenta-se como resultado da [...] interação de grupos e classes sociais que têm um modo de relação que lhes é próprio e, portanto, interesses materiais e valores distintos, cuja oposição, conciliação ou superação dão vida ao sistema socioeconômico. A estrutura social e política vai se modificando na medida em que diferentes classes ou grupos sociais conseguem impor seus interesses, sua força e sua dominação ao conjunto da sociedade.6

Na análise dessas transformações, as situações históricas são essenciais, pois permitem compreender os limites e as condições que as possibilitaram. Uma teoria desse tipo, que englobasse o processo econômico, as condições estruturais e a situação histórica, tinha necessariamente de ser distinta das elaboradas com base na experiência do capitalismo desenvolvido e a partir dele. De fato, como as análises da Cepal, os autores reconheciam a particularidade da experiência do subdesenvolvimento, mas não propunham um enquadramento mais abrangente, que ultrapassasse o nível da estrutura econômica e contemplasse os aspectos sociais e políticos do problema. O conceito de subdesenvolvimento, 6

CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970, p. 22.

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tal qual ele se apresentava na formulação da Cepal, representava uma estrutura econômica especializada, concentradora da renda, na qual predominava o setor primário, e o pólo dinâmico era o setor externo. Os autores consideravam esse conceito insuficiente para representar a condição dos países da América Latina e propunham o conceito de dependência, para expressar melhor a situação, pois integrava às características estruturais os aspectos político-sociais numa perspectiva histórica... A dependência da situação de subdesenvolvimento implica socialmente uma forma de dominação, que se manifesta por uma série de características no modo de atuação e na orientação dos grupos que, no sistema econômico, aparecem como produtores ou como consumidores. Essa situação supõe, nos casos extremos, que as decisões que afetam a produção ou o consumo de uma economia dada são tomadas em função da dinâmica e dos interesses das economias desenvolvidas [...]. A noção de dependência alude diretamente às condições de existência e funcionamento do sistema econômico e do sistema político, mostrando a vinculação entre ambos, tanto no que se refere ao plano interno dos países como ao externo. A noção de subdesenvolvimento caracteriza um estado ou grau de diferenciação do sistema produtivo... sem acentuar as pautas de controle das decisões de produção e consumo, seja internamente (socialismo, capitalismo etc.) ou externamente (colonialismo, periferia do mercado mundial etc.). As noções de “centro” e “periferia”, por seu lado, destacam as funções que cabem às economias subdesenvolvidas no mercado mundial, sem levar em conta os fatores político-sociais implicados na situação de dependência.7

Um exame dessa natureza visava a evitar dois equívocos muito comuns nas análises do subdesenvolvimento: o primeiro considerava as transformações dos países “subdesenvolvidos” como um resultado ou reflexo dos acontecimentos externos; o segundo tendia a valorizar excessivamente os condicionamentos internos e a desprezar os externos. A nova proposta de análise consistia em demonstrar que as condições estruturais, definidas pela base produtiva, condicionavam o raio de ação das classes e grupos internos e externos, no sentido de perpetuar, transformar ou romper os laços que os articulavam. Havia aí uma dinâmica própria que cabia compreender. O método foi adotado no estudo das transformações de diversos países da América Latina. Entre as conclusões mais importantes, destaca-se a ocorrência de um processo no qual o sistema econômico das nações dependentes passou a ser controlado por grandes unidades produtivas monopolistas internacionais, 7

CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo, op. cit., p. 26 e 27.

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isto é, a “internacionalização do mercado interno”. A novidade aqui não consiste, evidentemente, em reafirmar a força dos condicionantes externos, mas demonstrar que o desenvolvimento pode ocorrer pela reafirmação dos laços de dependência em um novo sistema de alianças entre as classes e grupos internos e entre estes e as classes e grupos externos. Assim, as oposições tradicionais entre o pólo exportador e o mercado interno, entre a esfera rural e urbana, foram superadas por uma ordem que, ao internacionalizar o mercado interno, criou alianças e solidariedades entre o setor externo e os interesses urbanos (assalariados, técnicos, empresários, burocratas). Esse processo tem sido responsável pela erosão das bases estruturais que sustentavam o discurso “populista” e “nacionalista” e pelo enfraquecimento dos movimentos sociais que lhes correspondiam. Os autores concluem interrogando até que ponto esse conjunto de transformações não poderia levar à substituição do conceito de dependência pelo de interdependência. Argumentam que a existência de um mercado livre ao acesso das grandes corporações internacionais, a impossibilidade de as economias dependentes conquistarem os mercados dos países desenvolvidos e a incorporação crescente de tecnologias avançadas, criadas segundo as necessidades das nações desenvolvidas, tornam o conceito de dependência mais adequado para expressar o tipo de relação existente entre as nações desenvolvidas e as “atrasadas”. A superação dessa condição depende, segundo essa perspectiva, muito menos da eliminação de restrições econômicas isoladas do que do jogo de poder entre as classes e grupos, internos e externos, principal responsável pela destinação e orientação que se impõem à estrutura produtiva.

24.3 Os ciclos econômicos e as cooperativas solidárias de Paul Singer Paul Israel Singer nasceu em Viena, na Áustria, em 1932. Sua família, de origem judaica, está radicada no Brasil desde 1940. Em 1959, bacharelou-se em Ciências Econômicas e em Administração pela Universidade de São Paulo. Em 1966, concluiu o doutorado em Sociologia, área de demografia na FFLCH da USP. Foi professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É professor titular de Macroeconomia da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP.

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Trabalhou como pesquisador e é um dos fundadores do Cebrap. Militante político desde a juventude, é também um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Em 2003, assumiu a responsabilidade pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. A obra de Paul Singer no campo da economia é bastante diversificada. Inicialmente, o que chama a atenção em sua trajetória intelectual é a dedicação ao esforço de ensinar, ou tornar compreensíveis fenômenos econômicos nem sempre acessíveis mesmo aos iniciados na profissão. Paul Singer possui livros de introdução à economia, à economia solidária, ao mercado financeiro etc. O livro Curso de introdução à economia política é um dos exemplos de rara dedicação ao ensino de economia. Possui texto claro e comparativo das várias escolas de pensamento econômico, que ajudou a formar muitas gerações de economistas e sociólogos brasileiros. Sua trajetória é também marcada pelo esforço em entender o complexo processo de acumulação de capital no Brasil. Possui textos com crítica contundente aos rumos que foram dados à política econômica e social no Brasil no período da ditadura militar. Esse é o caso do livro A crise do “milagre”, onde desenvolve uma brilhante análise dos ciclos econômicos nos anos de 1960 e 1970. Singer empreendeu uma profunda análise dos impactos atuais do processo de globalização e do fenômeno do desemprego estrutural. Segundo Singer, “a globalização é um processo de reorganização da divisão internacional do trabalho, acionado em parte pelas diferenças de produtividade e de custos de produção entre países”.8 O processo de globalização não é novo e, na verdade, é uma das formas de ser do próprio processo de acumulação de capital, que, por força, possui um caráter global. Entretanto, “ao contrário da primeira etapa, desta vez a globalização assumia o papel de causador de ‘desindustrialização’ e empobrecimento de cidades e regiões inteiras”.9 A forma atual que o processo de globalização assume tem impactos novos no setor do emprego, ou mundo do trabalho, posto que adota novas características, como o avanço do processo de “informalização” e “precarização” das relações do trabalho. Segundo Singer,

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SINGER, P. Globalização e desemprego. São Paulo: Contexto, 1998, p. 21. Id., p. 21-22.

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[...] a flexibilização, desregulamentação ou precarização do trabalho divide o montante de trabalho economicamente compensador de forma cada vez mais desigual: enquanto parte dos trabalhadores trabalha mais por uma remuneração horária declinante, outra parte crescente dos trabalhadores deixa de poder trabalhar.10

As reflexões de Singer conduziram-no a considerar, como alternativa à crise do mundo do trabalho, uma nova orientação da economia, denominada economia solidária. Para Singer, a economia solidária não constitui panacéia, e sim um encaminhamento prático e plausível para as mazelas do capitalismo atual. Para ele, a economia solidária, em que os trabalhadores se organizam em cooperativas e estas em rede solidária, representa um enclave do socialismo dentro do capitalismo, uma vez que a orientação da economia solidária não é o lucro e a propriedade privada, mas a sobrevivência dos trabalhadores e suas famílias. Desse modo, ele entende que, “se as instituições anticapitalistas são sementes socialistas plantadas nos poros do capitalismo para resistir às tendências destrutivas e concentradoras da dinâmica capitalista, é necessário discutir mais detidamente essas tendências, distinguindo-as das contratendências que surgem como reação a elas”.11 Nesse sentido, Singer passou a estudar e a apresentar ao público brasileiro toda uma gama de atividades existentes de cooperativismo no mundo, desde os teóricos clássicos, passando pelas experiências clássicas na Europa, principalmente em Rochidale, até chegar às experiências bem-sucedidas no Brasil recente. Como resultado da sugestão teórica e da fervorosa militância de Paul Singer, desenvolve-se no Brasil uma gama de teias de cooperativas e de Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares – ITCP.

24.4 O antivalor e o ornitorrinco de Francisco de Oliveira Francisco Maria Cavalcanti de Oliveira nasceu no Recife, em 1933. Em 1956, formou-se em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco. Fez especialização em Desenvolvimento Econômico no Banco do Nordeste do Brasil. Em 1992, foi considerado Notório Saber e recebeu o título de Doutor Honoris Causa em Sociologia pela USP. Nos anos de 1982 a 1984, realizou estudos de pós-doutorado na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), na França. Foi superintendente-adjunto da Sudene na gestão de

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SINGER, P. Globalização e desemprego, p. 30. SINGER, P. Uma utopia militante. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 114.

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Celso Furtado, entre 1959 e 1964, quando teve os direitos políticos suspensos pelo governo militar brasileiro. Com as mudanças políticas implementadas após o golpe de 1964, foi perseguido pelo novo regime e partiu para a Guatemala, a serviço das Nações Unidas. Em 1966, chegou ao México para trabalhar no Centro de Estudos Monetários Latino-Americanos. De volta ao Brasil, atuou no Cebrap, de 1970 a 1995, sendo seu presidente no período de 1993 a 1995. Em sua atuação política, foi dos mais importantes intelectuais em oposição ao regime militar e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, do qual se afastou após contundente crítica aos rumos que o partido seguiu após sua chegada ao poder federal. Na vida acadêmica, lecionou na da PUC-SP, de 1980 a 1988. Em 1984, foi professor visitante do Office de La Recherche Scientifique et Technique D’outre Mer (ORSTOM), na França. A partir de 1988, ingressou no corpo docente da FFLCH, da USP, onde é Professor Titular. A obra de Francisco de Oliveira é provavelmente a mais contundente e rigorosa construção crítica, figurando entre as mais expressivas produções da intelectualidade brasileira no campo das ciências sociais. Sua contribuição nas áreas da economia, da sociologia e da política é vasta e diversificada. No campo da economia, estende-se desde a crítica ao pensamento originário da Cepal, empreendido no início dos anos 1970, passa pela elaboração de suas teses sobre o antivalor, até sua análise crítica da atual situação do capitalismo contemporâneo em geral, com uma interessante análise sobre a teoria do valor e da democracia e, por fim, das condições atuais do desenvolvimento econômico brasileiro na nova ordem do capitalismo mundializado, o ornitorrinco. Francisco de Oliveira dedicou-se ao estudo da situação socioeconômica do Nordeste brasileiro e empreendeu vigorosa crítica aos governos Collor, Fernando Henrique e Lula. Ao analisar o processo de acumulação de capital no Brasil pós-anos 1930, Oliveira entende que, “ao contrário da revolução burguesa ‘clássica’, a mudança das classes proprietárias rurais pelas novas classes burguesas empresárias industriais não exigirá, no Brasil, uma ruptura total do sistema, não apenas por razões genéricas, mas por razões estruturais”.12 Desse modo, a revolução burguesa no Brasil tem como primeira especificidade o fato de sua progressão não 12

OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista, o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 39.

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requerer a completa destruição do antigo modo de acumulação. Outro aspecto muito interessante, apontado por ele, no que tange às particularidades do processo brasileiro, diz respeito ao fato de que, no Brasil, a chamada acumulação primitiva do capital não é genética, como nos casos clássicos, mas processual, ou seja, não se dá na origem do processo de transição para formas modernas de acumulação de capital, mas persiste até os dias atuais. Isso explica, em parte, por que um dos mais importantes movimentos sociais no Brasil é ainda hoje o movimento dos trabalhadores rurais. A contribuição de Oliveira ao debate econômico tem um de seus principais aspectos na crítica empreendida ao pensamento clássico da Cepal. A análise da Cepal funda-se numa interpretação que encontra seus fundamentos nas relações entre o “centro” e a “periferia”. O “centro” é “moderno”, pois possui homogeneidades estruturais, e a “periferia” é “atrasada”, pois possui heterogeneidades estruturais. Além do setor industrial incipiente, a periferia tinha um setor agrícola subdividido, entre um setor exportador moderno e um setor produtor para o mercado interno atrasado. Para Oliveira, é preciso ver as relações entre o centro e a periferia como uma unidade contraditória permeada pela acumulação mundial do capital. Segundo ele, “de fato, o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o chamado ‘moderno’ cresce e se alimenta da existência do ‘atrasado’, se se quer manter a terminologia”.13 Nesse sentido, [...] toda a questão do desenvolvimento foi vista sob o ângulo das relações externas, e o problema transformou-se, assim, em uma oposição entre nações, passando despercebido o fato de que, antes de oposição entre nações, o desenvolvimento ou o crescimento é um problema que diz respeito à oposição entre classes sociais internas.14

Outro aspecto de extrema relevância da contribuição de Oliveira para a compreensão do desenvolvimento econômico brasileiro se refere à análise das transformações estruturais, ocorridas ao longo do governo Vargas, e às transformações que aconteceram durante o Plano de Metas de Juscelino Kubitscheck. Mas a crítica mais contundente incide sobre o período pós-Plano de Metas. [...] a recorrência ao capital estrangeiro levou inexoravelmente a uma estruturação presidida pelo departamento produtor de bens de consumo duráveis, o que, nas

13 14

OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista, o ornitorrinco, p. 12. Id., ibid.

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condições de uma economia periférica, dificilmente deixaria de produzir algumas facetas mais negativas da economia nacional de hoje: sua exagerada concentração da renda e da riqueza, pois que o departamento condutor do processo de industrialização caracterizase precisamente por não produzir bens para as classes assalariadas em geral, e especificamente para os operários e camponeses.15

Além disso, as condições de acumulação do capital numa economia periférica transformaram o Estado brasileiro numa espécie de capital financeiro geral. As transformações estruturais na economia brasileira foram radicais. Segundo Oliveira, o padrão de acumulação instaurado de chofre no governo Kubitscheck impôs novas contradições e a reposição da tendência ao estrangulamento externo, na medida em que uma produção oligopólica internacional, baseada no setor de bens de consumo duráveis para o mercado interno, não conseguia gerar as divisas necessárias para fazer voltar à esfera da circulação internacional do capital as remunerações próprias àquele capital. A singularidade do período revela-se como “crise estrutural do balanço de pagamentos” e a “extremada concentração de renda, que deriva imediatamente da forma da concentração de capital que o padrão de acumulação propiciou”.16 Oliveira introduziu no debate econômico brasileiro sua teoria do antivalor. Na acumulação moderna de capital, o fundo público torna-se não apenas um elemento constitutivo. Mais do que isso, transforma-se no pressuposto da própria acumulação de capital e dá ensejo às antimercadorias e ao antivalor como elementos do processo de produção e acumulação do capital: [...] do ponto de vista do circuito da mercadoria, a equação original de Marx era a de M–D–M, e o fundo público como estrutura imbricante transforma a equação para [anti-M–M–D–M’ (-anti-M)], na qual os dois primeiros termos significam as antimercadorias e as mercadorias propriamente ditas, e os dois últimos significam a produção de mercadorias e a produção de antimercadorias.17

Tais mudanças vão se expressar na própria composição do capital e na taxa de exploração. A composição do produto, na equação C+V+M, sofre a seguinte transformação: -C+C+V(-V)+M, na qual a taxa de mais-valia se reduz pela presença, na equação, das antimercadorias sociais que funcionam como um Ersatz do capital variável. Isso quer 15 16 17

OLIVEIRA, F. A economia da dependência imperfeita. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1977, p. 4. Id., p. 89. OLIVEIRA, F. Os direitos do antivalor. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 33.

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dizer que, na equação geral do produto, a taxa de mais-valia cai, enquanto na equação de cada capital particular ela pode, e geralmente deve, se elevar.18

Um dos trabalhos mais recentes de Oliveira que abordam a realidade socioeconômica brasileira é o seu Crítica à razão dualista, o ornitorrinco, onde retoma as idéias desde as reflexões sobre a Cepal e introduz uma discussão teórica acerca dos dilemas atuais da economia brasileira. No atual contexto, “avassalada pela Terceira Revolução Industrial, ou molecular-digital, em combinação com o movimento da mundialização do capital, a produtividade do trabalho dá um salto mortal em direção à plenitude do trabalho abstrato”.19 Para Oliveira, o crescimento da produtividade do trabalho é a luta do capital para encurtar a distância entre as formas concretas e a “essência” abstrata do consumo da força de trabalho. Aqui, fundem-se a mais-valia absoluta e a relativa: na forma absoluta, o trabalho informal não produz mais do que uma reposição constante, por produto, do que seria o salário; e o capital usa o trabalhador somente quando necessita dele; na forma relativa, é o avanço da produtividade do trabalho nos setores hard da acumulação molecular-digital que permite a utilização do trabalho informal.20

Segundo Oliveira, na atualidade do capitalismo, o setor informal apenas anuncia o futuro do setor formal, onde “o conjunto dos trabalhadores é transformado em uma soma indeterminada de exército da ativa e da reserva, que se intercambiam não nos ciclos de negócios, mas diariamente”.21 Uma das mais complexas contradições do processo é que a enorme produtividade do trabalho preside tudo o que vai suprimindo a jornada de trabalho e com ela os direitos dos trabalhadores. “Cria-se uma espécie de ‘trabalho abstrato virtual’.” 22 No Brasil, os efeitos de todas essas transformações são profundos e devastadores, principalmente quanto às taxas de desemprego “estrutural”, que atingem somas recordes com taxas de aproximadamente 20% nas grandes capitais e um grau de “informalização” que supera os 50% da população economicamente ativa, invertendo, por assim dizer, os papéis. Surge, então, o ornitorrinco como metáfora para explicar o Brasil. “O ornitorrinco é uma das sociedades capitalistas mais desigualitárias – mais até que as economias mais pobres da África.” Para Oliveira, “as determinações 18 19 20 21 22

OLIVEIRA, F. Os direitos do antivalor. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 33. OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista, o ornitorrinco, p. 135. Id., p. 135-136. Id., p. 136. Id., p. 137.

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mais evidentes dessa contradição residem na combinação do estatuto rebaixado da força de trabalho com dependência externa”.23 Esse complexo contexto provoca mutações nas classes sociais, em que as camadas mais altas do proletariado se convertem em administradores de poderosos fundos públicos, em que “trabalhadores que ascendem a essas funções estão preocupados com a rentabilidade de tais fundos, que ao mesmo tempo financiam a reestruturação produtiva que produz desemprego”.24 O arcabouço ideológico que preside tais transformações é o neoliberalismo. Concluindo, o ornitorrinco não pode permanecer como subdesenvolvido e aproveitar, como no passado, as brechas da segunda Revolução Industrial. Não há como avançar no sentido da acumulação digital-molecular, pois as bases internas para a acumulação são insuficientes. “Restam apenas as acumulações primitivas, tais como as privatizações propiciam”25, que, na verdade, representam apenas transferência de patrimônio. No ornitorrinco tudo está submetido à voragem da “financeirização”. O resultado é que o “ornitorrinco capitalista é uma acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão”.26

Questões 1. Qual o significado de “colônia de exploração” na teoria de Caio Prado Jr.? 2. Quais as conseqüências da dependência econômica para a periferia do capitalismo na concepção de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto? 3. Explique como se organizam as cooperativas na economia solidária de Paul Singer. 4. Apresente a crítica de Francisco de Oliveira ao pensamento clássico da Cepal. 5. Apresente e explique o significado do surgimento do “ornitorrinco” para a sociedade brasileira na construção teórica de Francisco de Oliveira.

23 24 25 26

OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista, o ornitorrinco, p. 143. Id., p. 146. Id., p. 150. Id., ibid.

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___________ . Para entender o mundo financeiro. São Paulo: Contexto, 2000. __________ . Introdução à economia solidária. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2002 Sites http://www.al.sp.gov.br/web/acervo/caio_prado/Perfil_biografico/perfil_biografico.htm http://www.ifhc.org.br/Home.aspx http://www.pucsp.br

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Pensamento econômico brasileiro: Escola Heterodoxa 25.1 A teoria da inflação de Ignácio Rangel: entre Marx e Keynes

25

Ignácio Rangel (1914-1994) nasceu no Maranhão, onde se formou em Direito. Realizou um curso de pós-graduação na Cepal e trabalhou no BNDE. Trabalhou também na assessoria econômica de Getúlio Vargas, colaborou na elaboração dos projetos da Petrobras e da Eletrobras e foi chefe do Departamento Econômico do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Participou da execução do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek e integrou o Conselho de Desenvolvimento. Rangel colaborou também com o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb).

Por suas idéias originais, Rangel é considerado, ao lado de Celso Furtado, um dos economistas pioneiros na construção do chamado modelo de industrialização por substituição de importações, mais tarde desenvolvido de forma brilhante pela economista Maria da Conceição Tavares. Para Rangel, a dualidade é a lei fundamental da economia brasileira, segundo a qual, “a economia brasileira se rege basicamente, em todos os níveis, por duas ordens de leis tendenciais que imperam respectivamente no campo das relações internas de produção e no das relações externas de produção”.1 Ele criou seu próprio caminho no campo do pensamento econômico brasileiro. Segundo Mantega, Rangel distingue-se de Furtado ao empregar os conceitos básicos do materialismo histórico como valor, taxa de mais-valia, exploração e outros; ao contrário de Furtado, que oscila entre o universo conceitual clássico e neoclássico. Porém, ambos se encontram sob forte influência de Keynes e sucessores (no caso de Furtado nota-se a de Joan Robinson) e Rangel busca no economista inglês o complemento da teoria marxista da acumulação, integrando-se nas fileiras cada vez mais numerosas, na economia política contemporânea, que procuram celebrar o casamento entre Marx e Keynes.2

Segundo Rangel, o desenvolvimento capitalista brasileiro se ressentia de ter uma estrutura agrícola inalterada no processo de desenvolvimento e de 1 2

BIELSCHOWSKY, R. Pensamento econômico brasileiro. Rio de Janeiro: Ipea/Inpes, 1998, p. 252. MANTEGA, G. A economia política brasileira. São Paulo/Rio de Janeiro: Polis/Vozes, 1994, p. 103.

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industrialização. Em A inflação brasileira, defende a idéia de que tal estrutura teria gerado um grande exército industrial de reserva, que acompanhava o processo de industrialização, e isso provocava a queda do poder político da classe trabalhadora, que ficava exposta a exuberantes taxas de exploração. A contradição desse processo era que “a acumulação de capital brasileira esbarrava numa crônica insuficiência de demanda, que se agravava na medida em que as altas taxas de exploração permitiam recursos para novos investimentos e estes aumentavam a capacidade produtiva diante de um mercado consumidor restrito”. 3 Rangel introduziu a idéia de que a oferta agrícola era controlada por oligopsônios e monopsônios, criando um setor de intermediação, que popularmente foi chamado de “atravessadores”, com forte impacto no processo inflacionário, uma vez que tais estruturas de oferta poderiam controlar os preços, elevando-os para manter elevada sua lucratividade. Assim, segundo ele, “não havia uma inelasticidade da oferta agrícola”, como em Furtado e em todo o pensamento clássico da Cepal. Ele desenvolve sua teoria original da inflação mesclando as teorias de Marx com as idéias de Keynes. Segundo Rangel, como a taxa de exploração da classe trabalhadora é alta, sua capacidade de consumo é baixa, determinando, assim, um problema de realização das mercadorias produzidas pela indústria: “[...] a taxa de exploração ou de mais-valia de Marx, P/V, que relaciona a massa de mais-valia P com a massa de salários ou capital variável V, teria sido retomada por Keynes na fórmula I/C”.4 Desse modo, para Rangel, “a razão I/C (categoria keynesiana) não passa de uma reencarnação, algo modificada, da razão P/V (categoria marxista). A racionalidade dessa afirmação está nos fatos de imediata apreensão de que a folha de salários é o item decisivo do fundo social de consumo, enquanto o investimento é a destinação decisiva típica da mais-valia”.5 Assim, conclui que o capitalismo brasileiro convive com alta taxa de exploração, que induz à baixa propensão a consumir, combinado com um processo inflacionário, cujo efeito é manter o processo de crescimento e desenvolvimento, uma vez que a demanda é restringida. Para se evitar um eminente estado de inflação galopante, acompanhado de um processo de depressão econômica, tais contradições deveriam ser resolvidas pelo encaminhamento de soluções para a estrutura oligopsônica de comercialização agrícola e também com o combate 3 4 5

MANTEGA, G., op. cit., p. 104. Id., p. 106. RANGEL, Ignácio. A inflação brasileira, p. 38, Apud MANTEGA, G. A economia política brasileira, p. 106.

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ao forte processo de concentração de renda que caracterizava o capitalismo brasileiro.

25.2 Luís Carlos Bresser-Pereira: a tecnoburocracia e a nova estratégia de desenvolvimento Sabemos que não existe desenvolvimento sem a idéia de nação e sem uma estratégia nacional de desenvolvimento. Luís Carlos Bresser-Pereira

Luís Carlos Bresser-Pereira nasceu em São Paulo, em 1934. Estudou Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Obteve o título de mestre em Administração de Empresas, pela Michigan State University, e de doutor, pela Universidade de São Paulo. Na vida acadêmica, dedica-se à docência na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, desde 1959. Atuou como conferencista visitante na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, da Universidade de Oxford, e do Instituto de Estudos Avançados da USP. Ocupou o cargo de ministro da Fazenda no governo de José Sarney, tendo apresentado e executado o Plano Bresser. A produção intelectual de Bresser-Pereira é ampla; entretanto, sua contribuição mais significativa ao pensamento econômico brasileiro está relacionada à emergência de uma nova classe social. O largo desenvolvimento industrial brasileiro pós-1930 trouxe consigo uma profunda mudança estrutural, comparável à segunda Revolução Industrial, representada pelo surgimento de grandes empresas industriais e por uma mudança organizacional que demandou uma nova burocracia de nível médio e superior para a administração de empresas privadas, empresas públicas e todo o aparato burocrático estatal, condizente com o novo processo de desenvolvimento nacional. Surgiram novos cargos técnicos, de direção e de gestão da coisa pública e privada. Nessas categorias profissionais, estariam a origem e o substrato social da nova classe média brasileira. Tal processo foi acompanhado do surgimento de uma nova classe social: a tecnoburocracia. A nova classe média, com seus interesses específicos, faz parte de uma nova realidade socioeconômica, que, segundo Bresser-Pereira6, estaria suplantando o atual modo de produção capitalista e abrindo espaço para uma nova sociedade chamada modo de produção tecnoburocrático, na qual as classes dominantes 6

Essa tese está desenvolvida em BRESSER-PEREIRA, L. C. A sociedade estatal e a tecnoburocracia. São Paulo: Brasiliense, 1981.

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antigas, representadas pelos proprietários das empresas e do capital, estariam cedendo lugar a uma classe de pessoas com conhecimento técnico avançado. Tal classe “tecnoburocrática” seria a elite do novo modo de produção. Recentemente, a produção intelectual de Bresser-Perreira compõe-se, além de livros, de vasta criação de papers. Ao percorrer sua obra, nota-se a recorrente preocupação com a busca do entendimento da crise que assola o Brasil desde a crise do nacional-desenvolvimentismo. Ele tem por objetivo clarear o atual momento da história econômica brasileira e, a partir daí, elaborar hipóteses e contribuições ao debate, no sentido de encontrar uma perspectiva para a retomada do desenvolvimento econômico brasileiro no atual quadro de crise pós-reformas neoliberais. No processo de construção de sua proposta para um novo-desenvolvimentismo, tornou-se um dos intelectuais mais críticos ao pensamento e à política econômica de talhe neoliberal. Sua perspectiva crítica, entretanto, não é a do socialismo, como as de Francisco de Oliveira e Paul Singer. Ao contrário, o ideal socialista não prosperou como a perspectiva social-democrata. Sua perspectiva caminha na direção da criação de uma nova coalizão nacional para a retomada do desenvolvimento econômico capitalista em novas bases. Tal coalizão agruparia as frações da burguesia comprometidas com o desenvolvimento nacional, os trabalhadores, os burocratas e a classe média, e excluiria a fração da classe burguesa qualificada por ele como cosmopolita e neoliberal. Em sua avaliação, entre 1930 e 1980, a economia brasileira avançou rumo à industrialização e ao crescimento econômico, quando tinha uma estratégia nacional de desenvolvimento. Entretanto, a partir de 1990, o Brasil abandonou sua estratégia de industrialização por substituição de importações e entrou num processo gradual de desindustrialização e quase-estagnação. A crise do nacional desenvolvimentismo foi acompanhada de uma mudança política, com seus desdobramentos na política econômica adotada. [...] desde o início dos anos 1990 ocorreu uma mudança política fundamental no seio das elites brasileiras, que teve como conseqüência a mudança da política econômica. No quadro mais amplo da hegemonia neoliberal americana que então alcançava o auge, o país passou a adotar uma política econômica de acordo com a ortodoxia convencional, ou seja, de acordo com os diagnósticos, recomendações e pressões vindas do Norte.7

7

BRESSER-PEREIRA, L. C.; DINIZ, E. “Depois do consenso neoliberal, o retorno dos empresários industriais?”, p. 2.

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Segundo Bresser-Pereira, a submissão da nação brasileira à hegemonia neoliberal foi facilitada pela crise do Plano Cruzado e pela crise política que acometeu o Brasil na segunda metade dos anos 1980. A década de 1990 começou também em crise. No início dos anos 1990, “depois do fracasso também do Plano Collor, o país se rendeu às reformas neoliberais e à ortodoxia convencional que vinha do Norte”. 8 Em 1994, o governo logrou neutralizar a inflação inercial com uma política econômica e uma teoria elaborada por economistas brasileiros, “sem qualquer participação do FMI ou do Banco Mundial”.9 Com o Plano Real, a economia brasileira entrou em nova situação conjuntural, uma vez que a inflação estava praticamente sob controle. Entretanto, nem tudo andava bem. Para Bresser-Pereira, a nova política econômica, sob a batuta do FMI e do Banco Mundial, levava a uma profunda alteração nos rumos do desenvolvimento, com o surgimento de novos problemas estruturais: [...] fechamento de empresas, falências, associações com empresas estrangeiras, fusões e aquisições, substancial queda do nível do emprego na indústria, desindustrialização e ampla desnacionalização da economia passaram a fazer parte do cotidiano da atividade econômica do país, entre 1995 e 1998, sobressaindo, entre os setores mais afetados, as indústrias têxteis, as de máquinas e equipamentos, autopeças e produtos eletroeletrônicos.10

Assim, o uso da âncora cambial começou a provocar uma acentuada apreciação da taxa de câmbio, que, segundo Bresser-Pereira, combinada à abertura comercial e à liberalização dos fluxos de capitais, levou a uma dramática reestruturação industrial. Globalização, abertura de mercados, flexibilização das relações trabalhistas, desregulamentação dos fluxos de capitais, privatização: esse era o novo vocabulário que permeava toda a política econômica sob o governo Fernando Henrique Cardoso, orientado por uma nova aliança política de centro-direita. No processo, a economia brasileira ganhava um perfil mais transnacionalizado e, segundo Bresser-Pereira, com um largo processo de “desnacionalização das elites empresariais”. Os governos de Fernando Henrique deixaram como

8

9 10

BRESSER-PEREIRA, L.C.; DINIZ, E. “Depois do consenso neoliberal, o retorno dos empresários industriais?”, p. 3. Id., p. 9. Id., ibid.

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herança uma virada de página na história brasileira cujo resultado foi o sepultamento do nacional-desenvolvimentismo, eixo da política econômica e do desenvolvimento industrial no largo período de 1930 a 1980. A análise crítica de Bresser-Pereira voltou-se para o entendimento do período pós-reformas, representado pelo início do novo milênio. Para ele, uma das características do pós-reforma neoliberal é um impacto profundo nas lideranças empresariais, em que as lideranças teriam se tornado mais fragmentadas e especializadas do que no período anterior. Outra característica marcante refere-se ao reconhecimento da incapacidade das políticas ortodoxas e neoliberais em cumprir sua promessa de promover a retomada do crescimento econômico: “[...] no início da década de 2000, já havia se tornado claro o fracasso da ortodoxia convencional reinante – de suas reformas e de sua política macroeconômica – em promover a retomada do desenvolvimento econômico”.11 Uma vez reconhecido, de um lado, o fracasso do neoliberalismo e, de outro, a total impossibilidade de retornar ao modelo nacional-desenvolvimentista anterior, resta saber qual é a hipótese apresentada por Bresser-Pereira para o futuro. Ele não tem dúvida de que o Brasil somente voltará a se desenvolver se adotar uma nova estratégia de desenvolvimento, “que parta da realidade nacional, que se baseie em saúde fiscal, juros baixos e câmbio competitivo; só uma política baseada nessas linhas de ação será capaz de combinar desenvolvimento econômico com eqüidade e fazer o país retomar o caminho do desenvolvimento econômico e político”.12 Mas reconhece que as dificuldades não são poucas, principalmente no que se refere ao aspecto político: [...] no caso dos países em desenvolvimento e dependentes, a definição de uma estratégia nacional de desenvolvimento é muito mais difícil porque, na competição global, os países ricos estão ativamente dando conselhos e fazendo pressões que implicam o que Friedrich List, no século XIX, e Ha-Joon Chang, recentemente, identificaram como o processo de “chutar a escada”.13

11

12 13

BRESSER-PEREIRA, L. C.; DINIZ, E. “Depois do consenso neoliberal, o retorno dos empresários industriais?”, p. 15. Id., p. 18. BRESSER-PEREIRA, L. C. “Acordo nacional no início do século XXI”. In: BRESSER-PEREIRA, L. C. (org.). Economia brasileira na encruzilhada. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 285.

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Ou seja, o processo no qual os países ricos, que estão no topo da escada, recomendam modalidades de política econômica aos países em desenvolvimento, que apenas os beneficiam, de modo que, quando os países em desenvolvimento aceitam tais recomendações, estão na verdade chutando a escada. Segundo Bresser-Pereira, o Brasil precisa reconstruir um acordo nacional em torno de uma nova estratégia de desenvolvimento. No acordo, devem participar os empresários industriais, colocados em segundo plano no governo Lula; os trabalhadores, em crise pela onda de desemprego das últimas décadas; as classes médias e a burocracia do Estado. Finalmente, tal acordo precisa enfrentar seus adversários, ou seja, “os cosmopolitas internos que negam a necessidade de um acordo nacional e da estratégia nacional de desenvolvimento cuja formulação ele permitirá. Negam ideologicamente essa necessidade os neoliberais, que declaram desnecessária qualquer estratégia de desenvolvimento: bastaria deixar o mercado funcionar”.14

25.3 A teoria da inflação inercial de Mário Henrique Simonsen Mário Henrique Simonsen (1935-1997) estudou Engenharia e, mais tarde, foi professor no Instituto de Matemática Pura e Aplicada e na Escola Nacional de Engenharia. Foi também professor da Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas. Na esfera privada, fundou o Banco Bozzano-Simonsen. Atuou intensamente no âmbito governamental. Foi ministro da Fazenda no governo Geisel (1974-1979). Em 1979, tornou-se ministro do Planejamento do governo Figueiredo. Simonsen destacou-se por sua análise da economia brasileira. Baseado no pressuposto de que “a teoria econômica moderna soube sintetizar as duas correntes, situando o pensamento clássico como a condicionante de estrutura e o keynesianismo como de conjuntura”15, desenvolveu um conjunto de artigos e ensaios sobre os rumos da estrutura econômica brasileira (o modelo de desenvolvimento) e também da conjuntura, com destaque para o problema inflacionário. Analisando a “nova economia brasileira” que emergia após a mudança de orientação iniciada no pós-1964, Simonsen afirmou:

14 15

BRESSER-PEREIRA, L. C. “Acordo nacional no início do século XXI”, p. 290. SIMONSEN, Mário H.; CAMPOS, Roberto O. A nova economia brasileira. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército/José Olympio, 1975, p. 11.

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[...] um país em desenvolvimento, como o Brasil, é naturalmente receptor de capitais e, como tal, deve apresentar um déficit no balanço de pagamentos em conta corrente. Isso implica um endividamento externo crescente ao longo do tempo e, como conseqüência, encargos cada vez maiores de remessas de juros e lucros. Se as exportações não crescerem adequadamente, esses encargos, ao cabo de certo tempo, passarão a absorver uma parcela insuportável da receita cambial. [...] Em resumo, a expansão das exportações é indispensável para que o endividamento do país não se transforme em processo de bola de neve.16

Após analisar o chamado novo modelo de desenvolvimento, concluiu: [...] uma série de associações vem se estabelecendo nos últimos anos entre empresas estrangeiras, estatais e grupos privados brasileiros para a ampliação da petroquímica, da siderurgia, da mineração etc. Essas associações são um bom atestado do clima de cooperação existente entre o setor privado, o público e o externo.17

Ainda nos anos 1970, Simonsen escreveu um instigante trabalho sobre o processo de inflação inercial.18 Segundo ele, “denomina-se indexação o reajuste automático de prestações contratuais de acordo com algum índice de preço”.19 Posteriormente, trabalhou-se com a hipótese de que tais reajustes automáticos poderiam se transformar em “memória” inflacionária. Simonsen foi um inercialista pioneiro na medida em que a questão da indexação, como elemento fundamental alimentador do processo inflacionário, somente seria transformada em objeto de estudos e debates nos anos 1980, com destaque para a produção teórica de Pérsio Arida e André Lara Resende, da PUC-RJ, que contavam com os professores Edmar Bacha e Francisco Lopes na mesma escola. Os debates e a produção acerca da inércia inflacionária também se desenvolveram em outras instituições de ensino e pesquisa, como com a equipe do professor Luís Carlos Bresser-Pereira, na FGV-SP, e do professor Adroaldo Moura e Silva, na USP, perfazendo um grande conjunto de economistas brasileiros a discutir os determinantes estruturais da inflação. O resultado dos debates foi a criação de uma massa crítica original no pensamento econômico brasileiro e, como derivação, um conjunto de propostas de combate à inflação, que redundaram nos planos de estabilização dos preços desde o Plano Cruzado até o Plano Real. 16 17 18 19

SIMONSEN, Mário H; CAMPOS, Roberto O., op. cit., p. 17-18. Id., p. 22. SIMONSEN, Mário H. Inflação. Rio de Janeiro: Apec, 1970. SIMONSEN, Mário H.; CYSNE, Rubens P. Macroeconomia. São Paulo/Rio de Janeiro: Atlas/FGV, 1995, p. 304.

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25.4 A inércia inflacionária e a reforma monetária de Pérsio Arida e Lara Resende Pérsio Arida nasceu em 1952 na cidade de São Paulo. Estudou Ciências Econômicas na Faculdade de Economia da USP. Obteve seu Ph.D. em Economia pelo MIT. Dedicou-se à docência na USP, de 1979 a 1981, e no Departamento de Economia da PUC do Rio de Janeiro, de 1980 a 1984. Trabalhou como pesquisador do Woodrow Wilson Center em Washington, em 1984 e 1985. Foi presidente do BNDES, em 1993 e 1994, e presidente do Banco Central do Brasil, em 1995. Pérsio Arida é um dos mais proeminentes representantes da chamada “escola da PUC-RJ”. Notabilizou-se teoricamente por sua participação no debate internacional acerca das causas da inflação brasileira, com a apresentação de vários artigos, sendo alguns em co-autoria com André Lara Resende, da mesma escola, o que valeu o lançamento no debate econômico do termo “Larida” para a proposta de combate à inflação inercial apresentada. O texto inicialmente publicado nos Estados Unidos, em coletânea organizada por John Williamson, foi posteriormente publicado no Brasil em livro organizado por Arida com o título Inflação zero. André Lara Resende nasceu em 1951 no Rio de Janeiro. Formou-se em Economia na PUC-RJ, onde também trabalhou como professor. Obteve o Ph.D. nos Estados Unidos, no MIT. Foi diretor da dívida pública do Banco Central, em 1985. Assumiu a presidência do BNDES durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. A seguir, faremos uma breve apresentação e apreciação da reforma monetária denominada “Larida”, segundo a qual “a inflação torna-se inercial quando os contratos têm cláusulas de indexação que restabelecem seu valor real após intervalos fixos de tempo”.20 Os contratos buscaram a indexação no afã de obterem a manutenção do valor real constante. Entretanto, segundo Arida, os contratos de indexação, que reajustam o valor nominal em 100% da inflação, não garantem tal meta, simplesmente porque o valor real depende da taxa de inflação vigente e, quanto mais curto for o período entre os reajustes, mais elevado será o valor real do contrato. Numa economia indexada, como era a economia brasileira nos anos 1980, a taxa de câmbio nominal era revista de acordo com um regime de

20

ARIDA, Pérsio. Inflação zero. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 17.

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minidesvalorizações semanais. Assim, a taxa de câmbio possuía um reajuste que coincidia no final do mês com a variação da ORTN. Desse modo, todos os preços estavam alinhados à taxa de câmbio vigente. O objetivo da reforma monetária “Larida” era debelar a memória inflacionária, ou seja, eliminar o componente inercial existente no processo inflacionário. “Em síntese, nossa proposta inclui o encolhimento da memória do sistema e a emissão de moeda indexada.”21 A reforma monetária proposta consistiu essencialmente nos seguintes pontos: 1. Introdução de moeda indexada (NC – Novo Cruzeiro). 2. O NC teria paridade com a ORTN. 3. A apreciação da ORTN continuaria determinada pela variação do Índice Geral de Preços (IGP) calculado em cruzeiros. 4. No período de transição, a taxa de câmbio em cruzeiros acompanharia o sistema de minidesvalorizações. 5. A taxa de câmbio em NC manter-se-á constante à taxa real de câmbio prevalecente antes da reforma. 6. O NC é conversível em cruzeiros à taxa vigente/dia. 7. Os depósitos à vista nos bancos seriam convertidos em NC. 8. Todas as transações bancárias seriam cotadas em NC. 9. Todos os contratos em ORTN poderiam ser transformados em NC. 10. Os preços administrados, sob controle do governo, seriam convertidos com base na média ou preço real médio em ORTN prevalecente no período de indexação. 11. A inflação em NC no período de transição é nula. 12. A transformação dos salários, aluguéis e demais contratos indexados em NC conforme item 10. 13. ONC teria paridade com a ORTN e o dólar. Seria preciso um período de transição para a nova moeda que não deveria ultrapassar dois meses. A economia que emerge é não-indexada, sendo o nível de preços em NC constante por definição. O comportamento de NC dependeria do componente não-inercial existente na inflação antes da reforma. É 21

ARIDA, Pérsio, op. cit., p. 22.

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preciso ter em mente que a reforma não alteraria o componente não-inercial, ou seja, tocaria nos chamados fundamentos da economia. Atuaria tão-somente no componente inercial e, portanto, não constituiria panacéia. Segundo seus formuladores, a reforma não poderia prescindir de uma base ou âncora. A âncora recomendada seria a taxa de juros externa, principalmente por se tratar de um país com dívida externa expressiva. Arida e Resende concluem que a mudança para a moeda indexada equivaleria à indexação quase completa e instantânea da economia. A queda dos juros é uma pré-condição para a elevação do investimento privado e a reforma monetária eleva a expansão da liquidez e viabiliza a queda dos juros. Após várias experiências frustradas de combate à inflação inercial, cuja principal delas foi o Plano Cruzado, Arida e Resende afirmaram que a reforma monetária proposta é superior aos esquemas heterodoxos que agregam na fórmula um congelamento de preços. Com exceção de alguns aspectos, como a âncora cambial, o sucesso do Plano Real dependeu muito dos debates e da formulação da proposta de reforma monetária em pauta. É preciso frisar que o sucesso do Plano Real se deu no relativo, mas expressivo, controle da inflação inercial. Entretanto, como efeito não previsto, criamos uma armadilha, denominada armadilha câmbio-juros, ou seja, ao mantermos a âncora cambial e, mais tarde, a defesa da estabilidade monetária como premissa central da política econômica, o Brasil se viu diante de processos de vulnerabilidade externa e de uma realidade de taxas de crescimento medíocres em relação ao cenário internacional. Nesse contexto, Pérsio Arida lançou um desafio aos economistas: como viabilizar a estabilidade monetária concomitante ao crescimento da economia?

Questões 1. O que é o oligopsônio e qual é seu papel na estrutura da economia brasileira? 2. Explique como Bresser-Pereira conceitua a nova classe tecnoburocrática. 3. Como Bresser-Pereira define o “novo-desenvolvimentismo” e quais as premissas para a retomada do desenvolvimento econômico brasileiro? 4. O que é indexação? 5. Apresente sumariamente a reforma monetária “Larida” para o combate da inflação inercial.

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