SECULARIZAÇÃO DA MORTE: O DISCURSO HIGIENISTA NA CONSTRUÇÃO DO CEMITÉRIO SÃO CASIMIRO NA CIDADE DE FORTALEZA-CE ( )

SECULARIZAÇÃO DA MORTE: O DISCURSO HIGIENISTA NA CONSTRUÇÃO DO CEMITÉRIO SÃO CASIMIRO NA CIDADE DE FORTALEZA-CE (1844-1848) Leônilda Fernandes da Fran

Author Raphael Costa Fartaria

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SECULARIZAÇÃO DA MORTE: O DISCURSO HIGIENISTA NA CONSTRUÇÃO DO CEMITÉRIO SÃO CASIMIRO NA CIDADE DE FORTALEZA-CE (1844-1848) Leônilda Fernandes da França. Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), [email protected]

Resumo do artigo: Buscaremos neste artigo abordar o processo de construção do primeiro cemitério de Fortaleza, o São Casimiro, mais conhecido como o Croatá. No século XIX, a sociedade médica enxergava o corpo morto como um perigo aos vivos devido aos vapores miasmáticos por eles produzidos, para impedir a continuação da possível contaminação, defendiam medidas proibitivas baseadas nos ideais de salubridade ao costume funerário. A medida principal é construir cemitérios fora das cidades respeitando as determinações recomendadas pelos médicos para evitar a poluição do ar. As recomendações orientavam que os cemitérios deveriam ser edificados aos arredores das cidades de forma a evitar que os ventos levem os vapores dos corpos para o espaço urbano. Deviam ser respeitadas também a altitude do terreno escolhido e o tipo de solo, deveriam ser plantadas árvores e que fossem obedecidas o tempo de abertura das sepulturas. Nesse sentido, o trabalho tem por objetivo analisar como o discurso de higiene serviu como elemento impulsionador para a transferência dos sepultamentos das igrejas para o cemitério público. Como procedimento metodológico foi analisado o discurso presente no jornal O Cearense e nos relatórios dos Presidentes de Província do Ceará. A transferência dos sepultamentos da igreja para o cemitério representou uma mudança na forma de se relacionar com a morte e o morrer. O medo do contágio transformou a relação com o morto agora visto com repugnância, a morte passou a significar a lembrança de sua própria morte. Os funerários deixaram de ser eventos sociais e passaram a se tornar um momento cada vez mais recluso e familiar. Palavras-chave: Medicina; Higiene; Cemitério.

Introdução

A visão médica sobre a morte vai sendo gestada ao longo do século XIX no império brasileiro. Os médicos defendiam o afastamento dos mortos dos centros urbanos como medida profilática de combate as doenças. A iniciativa foi debatida nas principais cidades do império e ganhou a participação dos legisladores, principalmente, após a criação das assembleias provinciais no ano de 1835. Segundo João José Reis (1991, p.247), os médicos consideravam que “a decomposição de cadáveres produzia gases que poluíam o ar, contaminavam os vivos, causavam doenças e epidemias. Os mortos representavam um sério problema de saúde pública”. Portanto, sendo necessário mantê-los a uma boa distância da vida social, ou seja, fora dos centros urbanos em cemitérios extramuros. Assim, a mudança dos mortos para o cemitério, defendidos pelos médicos higienistas, transformavam a cultura fúnebre por alterar uma das principais práticas: a sepultura eclesiástica. A transferência significava que estavam ocorrendo alterações na forma de conceber

e vivenciar

a morte.

As mudanças

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implicavam a formação de novas práticas fúnebres e na promoção de novas sensibilidades no que diz respeito ao corpo morto. Mas a transferência das sepulturas das igrejas para os cemitérios não ocorreram de forma rápida, passavam-se anos desde a primeira discussão até a inauguração do cemitério. Pensando a construção dos cemitérios extramuros, o trabalho tem por objetivo estudar como o discurso de salubridade serviu como justificativa para a edificação do cemitério São Casimiro em Fortaleza-Ce, nos anos de 1844-1848.

Metodologia

Os documentos que servem de fontes para o trabalho são os relatórios dos Presidentes da Província do Ceará e o jornal O Cearense, disponíveis respectivamente no site Center for Research Libraries e hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. Através da leitura do material podemos analisar os discursos que envolvem o processo de construção do primeiro cemitério da cidade de Fortaleza-Ce, chamado São Casemiro, popularmente conhecido como Croatá. Segundo Pechêux, a análise de um discurso consiste em conhecer a estrutura invisível que determina a produção de um enunciado, pois ele pode estar “intrinsicamente suscetível de tronar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (PECHÊUX, 2008, p.53). Dessa forma, é possível compreender as intenções “invisíveis” nos discursos dos médicos e das autoridades ao apoiar e edificar a obra do cemitério.

Resultados e Discussão

A partir da década de 1830, a medicina assume para si um papel mais atuante na sociedade de forma a intervir nos aspectos institucional, natural e urbano. A Medicina começa a cada vez mais se caracterizar como social pela forma como passou a tratar da questão da saúde e pelo modo como quis intervir na sociedade de maneira mais global em prol da inserção da higiene. A medicina social preconizava uma ação mais direta e abrangente na vida dos indivíduos tendo como característica fundamental o trabalho de prevenção das doenças epidêmicas, portanto, o cuidado em eliminar as circunstâncias que favoreçam o seu desenvolvimento. Para isso, lutava pela criação de (83) 3322.3222 [email protected]

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regulamentos sanitários, pela mudança nos costumes e pela intervenção em hospitais, prisões e, principalmente, nos cemitérios. Segundo Roberto Machado (1978, p.180), a medicina social impõe “exigências a uma realidade vista como hostil e diferente. Tem, em suma, um objetivo de normalização”. Normalizar a sociedade seria um modo de torná-la ordenada, civilizada. Os médicos elaboravam e definiam os requisitos para alcançar esse objetivo se utilizando da prerrogativa da higiene, “elaboraram um discurso propondo expurgar os espaços públicos. Suas falas influenciariam notavelmente as práticas cotidianas e as políticas urbanas, provocando um verdadeiro disciplinamento” (SANTOS, 2011, p.110). Os espaços urbanos tornam-se o objeto de reflexão dos médicos que passam a querer inserir seus projetos nas cidades por ser considerado o ponto de introjeção de doenças para a população. É um momento de estruturação da medicina da qual se propõe em defesa da saúde pública. Assim, “se a sociedade, por sua desorganização e mal funcionamento, é causa de doença, a medicina deve refletir e atuar [...] visando a neutralizar todo perigo possível”(MACHADO, p.155). Ela se propõe a recuperar a salubridade dos ambientes a partir da medicalização dos espaços considerados doentios. Para Foucault (1979, p.93), a salubridade

não é a mesma coisa que saúde, e sim o estado das coisas, do meio e seus elementos constitutivos, que permitem a melhor saúde possível. Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos. E é correlativamente a ela que aparece a noção de higiene pública, técnica de controle e de modificação dos elementos materiais do meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde. Salubridade e insalubridade são o estado das coisas e do meio enquanto afetam a saúde.

É pela adoção da salubridade com o objetivo de impedi a infecção pelos miasmas que os cemitérios, os mortos e os sepultamentos sofrerão críticas e reconfigurações pela medicina. Os cientistas acreditavam que miasmas eram matérias orgânicas em decomposição, especialmente, a animal, que ao contato com os elementos da atmosfera como a umidade, a temperatura e o vento formavam vapores que infectavam o ar. Com a definição da teoria dos miasmas veio a descoberta do odor do corpo em processo de decomposição. Segundo Claudia Rodrigues, sentir ou não o mal cheiro do cadáver estava direcionado à vigilância olfativa (83) 3322.3222 [email protected]

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preconizada pelo saber médico que conferia repulsão, ou seja, se começa a sentir o cheiro e considera-lo como sendo desagradável. Porém,

os indivíduos que não partilhassem dessas noções não sentiam os odores, nem se incomodavam com eles mesmo porque, para eles, os odores simplesmente não existiam, sem que passasse por sua cabeça o caráter valorativo do odor, tratava-se de um cheiro ao qual se acostumara e com o qual convivia. Já um outro individuo que tivesse o olfato voltado para a procura de odor nos cadáveres, certamente o encontraria, como o encontrou e o achou insuportável. O que se diferencia das duas versões, ou melhor, os dois olfatos, portanto, era a perspectiva, cientifica ou não, a respeito do cheiro produzido pelo cadáver” (RODRIGUES, p.67).

Se até então este odor era associado à piedade cristã, passou a ser identificado como algo negativo, um alerta que indicava presença do cheiro que dava sinal da existência dos miasmas na atmosfera, perigo ao qual deveria ser evitado, combatido e excluído de entre os vivos. A interferência dos médicos visa neutralizar os efeitos das exalações do corpo morto, para isso, busca normatizar o que seria a forma ideal de sepultamento para que não provocasse prejuízos para os vivos, assim, os cemitérios deviam ser situados fora da cidade em local em que as determinações médicas fossem respeitadas como a altitude do terreno, o tipo de solo, o tempo de abertura da cova e com o plantio de árvores. Mas o olhar médico se organiza não como sendo igual a qualquer observador, mas um olhar apoiado por uma instituição e por um saber que tem poder de decisão e intervenção, mantendo sempre a vigilância daquele considerado desviante. Os médicos escreviam em jornais científicos ou não com o objetivo principal de ensinar a população noções de higiene que possibilitem normalizar as práticas consideradas desviantes para transformar a sociedade. O jornal é considerado o melhor meio de divulgação por permitir o acesso de forma continua (diária ou semanal), fator este que contribui para (re)afirmação do que é teorizado. Um dos médicos da província do Ceará, Liberato de Castro Carreira1, escrevia sobre assuntos relacionados a técnicas de procedimentos cirúrgicos, informações sobre doenças na localidade ou em outras regiões, receitas para tratamento de doenças de caráter epidêmico, informava sobre a quantidade de doentes atendidos em sua clinica e fazia alertas ou mesmo

1

Assumiu o cargo de médico da pobreza entre os anos de 1845 a 1852.

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denúncias sobre hábitos insalubres e sobre o costume pernicioso de sepultar os mortos nas igrejas no jornal O Cearense2, órgão do partido liberal. Castro Carreira possuía uma coluna da qual fazia publicações uma vez por mês entre os anos de 1848 a 1852. Um dos assuntos por ele abordado nesse primeiro texto foi a discussão da relevância da construção do cemitério público em Fortaleza, por ter sido lançada a primeira pedra fundamental da obra. Para ele, é uma obra de relevante serviço que ao Exm. Sr. D Moraes Sarmento cabe a gloria de haver realizado a obra que há de por termo ao enterramento dos cadaveres nas duas exíguas capellinhas desta cidade, ou no meio da rua, no adro e aos lados da começada Matriz, que há de extinguir o foco de infecção, para naõ dizer peste, que occasiona toda a parte a inhumaçaõ de corpos no meio de povoados, e em lugares onde fallecem o espaço, e a necessaria ventilação para que as materias animaes se dissolvaõ com presteza, e os miasmas deleterios que da sua putrefaçaõ resultaõ naõ exerçaõ a sua acçaõ mortifera 3.

Castro Carreira escrevia sobre a necessidade da construção de cemitérios fora do espaço urbano no tópico Hygiene. Em sua opinião, era preciso por fim a prática de sepultamento no interior ou nos arredores das igrejas existentes, no caso, a Igreja Matriz e a Igreja do Rosário por considerar um foco de infecção de miasmas. Defendia que o lugar apropriado para os enterramentos deveria estar sob constante ventilação para evitar a ação mortífera dos miasmas. A medicina age junto com o Estado no plano de intervenção da sociedade. Tendo em vista que, o saber médico não tinha força material necessária para promover a reorganização da sociedade por si mesma, apenas poderia fornecer os argumentos para pensar a cidade ideal higienizada. O Presidente da Província Manoel Felisardo de Souza e Mello, na abertura da sessão de 1º de agosto de 1838, já citava a necessidade do afastamento dos mortos das igrejas para um espaço fora da capital da Província: a saude publica reclama com instancia que em a unica e pequenina Igreja que existe nesta Capital, cesse o damnoso uzo de sepultarem-se todos quantos aqui falecem. He de maior importância que com a brevidade possivel, para o poente da Cidade, na altura pouco mais do Paiol da Polvora, que fica no caminho de Arronches se construa um cemiterio. Excusado he estender-me sobre a necessidade d’esta medida: vós sois testemunha do pestífero ar que se respira [...] que graves males podem provir da inspiração dos miasmas axhalados constinuamente de imnumeros corpos

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O jornal foi publicado entre os anos de 1846 a 1891. O Cearense, 3 de jan. 1848, n.122, p.4.

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em putrefacção apenas cobertos com pequenas camadas de terra mal apertado e algumas taboas apresentando grandes fendas4.

A igreja aqui mencionada refere-se a Igreja do Rosário que ocupou o cargo de Matriz por alguns anos no período em que a Igreja Matriz esteve em reforma, a pequena igreja então assumiu a sua função de espaço de culto e de cemitério da cidade. Podemos observar na fala do Presidente a influência dos conhecimentos da medicina quanto a visão sobre os efeitos dos miasmas decorrentes do corpo morto para a poluição do ar No ano seguinte, o projeto de construção de um cemitério para a capital da Província foi ganhando forma, era uma obra de “particular atenção” e “simpathia”. Então, foi definido um local com espaço “que fosse proporcional á população” existente e de acordo com seu “presumivel aumento” populacional ao longo dos anos. Para a escolha do melhor lugar na cidade para a construção do cemitério foi pedido a opinião dos “facultativos da Capital”. Estes facultativos eram os médicos funcionários do governo. O Presidente da Província estava tomando todas as iniciativas para realizar a obra, no entanto, teve que parar, justificando: “Entendi que podia mandal-o edificar, e pretendi mesmo levar á efeito este meo projecto, por achal-o em minhas attribuições, porem recuei a vista do estado lamentável de nossas finanças”5. A falta de verba é o principal motivo alegado para o adiamento da obra. Novamente é discutida a necessidade de um cemitério no ano de 1840. Ainda se pondera sobre o problema financeiro, mas o Presidente da Província Francisco de Sousa Martins ressalta em seu discurso de abertura da Assembleia Legislativa Provincial, ser possível construir um cemitério com poucas despesas. Mas, desta vez, o plano para o cemitério pensava em um espaço do qual os vivos também pudessem usufruir era mais ousado por querer tornar o cemitério um espaço recreativo e contemplativo para os vivos: Já por meos antecessores foi reclamado, e eo novamente reclamo huma consignação para construcção de hum cimiterio na vizinhança da Cidade, a fim de evitar-se que multidão de corpos se enterrem (como actualmente) no acanhado espaço da pequena Capella do Rosario. Presumo que com pouca dispesa se poderá conseguir esta edificação vantajossima a saúde dos habitantes da Capital. Basta fazer-se um muro em roda com hum portão na frente, e plantar o interior de arvores dispostas em alamedas, a fim de que o jazigo dos mortos tambem possa servir aos vivos de passeio contemplativo, e recreativo. Ao depois indispensavel será a construção de

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Falla que recitou o Ex.mo Sr. Manoel Felisardo de Souza e Mello, Presidente desta Provincia, na ocasião da abertura da Assembleia Legislativa Provincial no 1.º de Agosto do corrente ano. Ceará, Typ. Constitucional .Impresso por Galdino Marques de Carvalho, 1838, p.7. 5 Discurso que recitou o Exm. Sr. doutor Joaõ Antonio de Miranda, Presidente desta Provincia. Na occasiaõ da abertura da Assemblea Legislativa Provincial, No Dia 1.o de Agosto do corrente anno. Ceará, Typ. (83) 3322.3222 Constitucional, Imp. por G. M. de C. 1839, p. 2.

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uma capella no interior, onde se cumprão as ultimas cerimonias religiosas que costumão preceder o eterno descanço dos mortos 6.

A obra continuava sendo reclamada. Na tentativa de convencer a assembleia a disponibilizar verba para a obra do cemitério aos arredores da cidade de Fortaleza, o presidente Sousa Martins utiliza um discurso diferente do que os outros gestores da província anteriores ao seu governo usaram para pensar sobre a conveniência da obra: a relação entre os vivos e os mortos. É certo que vivos e mortos mantinham uma relação muito próxima, pois as sepulturas estavam no centro de convivência das pessoas devido a sua localização, no espaço da Igreja que, geralmente, estava situado na região central da cidade; sem contar que além de servir de local para o culto religioso, na igreja ocorriam os eventos sociais como, por exemplo, reuniões e eleições. Em seu discurso, ele propõe pensar o espaço do cemitério diferente ao que era disposto nos templos católicos, vistos como já falamos anteriormente, como foco de peste, de desrespeito ao tempo de recomendação para se abrir a cova depois de disposto um cadáver e pelo desagradável uso de valas comuns. Podemos observar que é um discurso que quer convencer o uso de cemitérios extramuros enfatizando um novo pensamento ou uma nova visão sobre o que pode ser o local do cemitério. O contato com os mortos não causavam estranheza ou repulsa. Ir a igreja era também ir ao cemitério. Encontrar covas abertas e corpos sendo enterrados era algo comum. Com a visão higienista em gestação, olhava-se para essa aproximação com certa repulsa: o contato com o corpo morto passava a ser visto com horror pela possibilidade de infecção de doenças, seria apontado como prática supersticiosa, motivo de desrespeito ao culto religioso e de mau cheiro. Portanto, era preciso afastá-los. Mas afastar os mortos do contato dos vivos não era algo tão simples de ocorrer. Embora o adiamento da obra não tenha sofrido nenhuma retaliação nesse sentido - pelo menos não foi mencionado nos relatórios dos Presidentes da Província -, a proposta do projeto feita pelo Presidente Francisco de Souza Martins buscava manter essa aproximação entre vivos e mortos mas numa nova perspectiva: o local de contato, o cemitério, não seria mais foco de miasmas pestíferos. Para isso, seriam plantadas árvores que seriam distribuídas no local no formato de alamedas para “servir aos vivos de passeio contemplativo, e recreativo”. Podemos entender que a intenção era mudar as circunstancias estruturais do espaço e a transferência 6

Relatorio que apresentou o exm. senhor doutor Francisco de Sousa Martins, presidente desta provincia, na occasião da abertura d'Assemblea Legislativa Provincial no dia 1.o de agosto de 1840. Ceará, Typ. (83) 3322.3222 Constitucional, 1840, p. 4.

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dos sepultamentos para o cemitério não tinha o objetivo de por fim a relação dos vivos com os seus mortos, mas envolver a questão da salubridade. A proposta apresentada pelo Presidente da Província, Francisco de Souza Martins, enquanto representante do Estado, de construir um cemitério que fosse morada dos mortos e também servisse aos vivos de forma recreativa, ia à contramão das recomendações feitas pelos médicos para construção de cemitérios extramuros. Pois, a ideia contribuía para a aproximação dos vivos com as sepulturas, o que era criticado pela sociedade médica. O discurso do Presidente sobre o cemitério enquanto espaço de recreação não estimulava o receio ou medo do contato com os mortos, pelo contrário. Talvez, por o relatório provincial ser produzido no início da década de 1840 no qual as notícias sobre os efeitos das epidemias em outras localidades não estejam circulando com a mesma intensidade nos períodos que antecedem aos surtos. Independente das discussões que envolvem a estrutura dos cemitérios, o que é considerado “indispensavel” no cemitério é a construção da capela para o cumprimento das celebrações religiosas de encomendação do corpo, consideradas fundamentais para o “descanço dos mortos”. A construção de cemitérios aos arredores das cidades, onde o ar circula com mais facilidade sobre as sepulturas evitando a possível infecção dos indivíduos, representava que a cultura funerária estava sofrendo alterações e a morte e o morrer estavam ganhando novos sentidos. Mas, a necessidade de serem realizadas celebrações fúnebres e capelas serem edificadas nos cemitérios significava que a concepção religiosa sobre a morte não foi extinta com a educação higienista pregada pelos médicos, mas, passou a se fazer presente na vida dos indivíduos e na sociedade de outras formas. A falta de renda foi a principal justificativa da morosidade para a efetivação da obra do cemitério na cidade de Fortaleza. O primeiro cemitério só teve corpos sendo sepultados no ano de 1848, dez anos depois a discussão sobre a necessidade do cemitério. Contudo, no ano de 1844 foram tomadas as primeiras iniciativas com o intuito de normalizar a prática de sepultamento no Ceará: a lei provincial n.318. Nela, fica estabelecido o tempo mínimo a ser respeitado para que os cadáveres sejam enterrados nas igrejas ou cemitérios de toda a província:

Lei n. 318 de 1 de Agosto de 1844 Sanccionada pelo presidente José Maria da Silva Bittancourt. Art. 1. Nenhum cadaver será sepultado nas igrejas, ou cemiterios da província,

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emquanto não houverem decorrido, pelo menos, vinte e quatro horas depois do fallecimento. Para se poderem contar as vinte e quatro horas, deverá ser apresentado ao sacristão da igreja, ou administrador do cemiterio, attestado do facultativo ou pessoa entendida, e na falta destes, do chefe da familia, em que tiver morrido a pessoa, que se houver de sepultar, designando a hora do fallecimento 7.

A iniciativa de construção do primeiro cemitério público de Fortaleza foi autorizada pelo então Presidente da Província José Maria da Silva Bittancourt no mesmo ano, sancionada pela seguinte lei:

Lei n. 319 de 1 de Agosto de 1844 Sanccionada pelo presidente José Maria da Silva Bittancourt. Art. 1. Junto ao morro do Cravatá se edificará um cemiterio publico, segundo o plano que acompanha a presente Lei. Art. 2. O governo fica autorisado a dar um regulamento provisório para este estabelecimento, tendo em vista o seguinte: § 1. Quaes os emolumentos que se devem pagar pela conducção e enterramento de cada cadaver em relação das distancias, decencia, e encomendação dos mesmos. § 2. Que ordenado terão os precisos empregados, inclusive um capellão. § 3. Que espaço de tempo devem estar os corpos no deposito, antes de sepultaremse. § 4. As cautelas preventivas da salubridade publica. § 5. Que nada pagaraõ os miseráveis pelas conducções e sepulturas, e que numero delas haverá destinado a esse fim. § 6. Preço, e maneira por que se alienaraõ terrenos para túmulos, e sepulturas particulares. § 7. Até que extensão deve comprehender a lei os habitantes para obriga-los a enterrar seus finados no cemitério; e multas contra os infractores. § 8. Qual o tempo que deve mediar para abertura das sepulturas ocupadas. § 9. Qual o modo de arrecadar os rendimentos, e multas; tendo em atenção não prejudique o regulamento os benezes dos parochos. Art 3. Este regulamento terá execução até ser approvado pela assembléa provincial, a quem deverá ser apresentado na primeira reunião. Art. 4. Os rendimentos do cemiterio serão recolhidos á thesouraria provincial até indemnização das despezas da construcção de tal edifício. Art. 5. A obra se irá fazendo pelas consignações que nas leis do orçamento se forem decretando para esse fim. Art. 6. Satisfeito a thesouraria, o cemiterio ficará propriedade da Casa da Misericordia, que existir, e caso não haja tão útil estabelecimento na capital, serão estes rendimentos applicados á sua construcção, e a esta casa competirá então a guarda e economia do referido cemiterio, segundo as leis e regulamentos da assembléa provincial. 7

OLIVEIRA, Almir Leal de e BARBOSA, Ivone Cordeiro (orgs). Leis Provinciais: Estado e Cidadania (1835-1861). Compilação das Leis Provinciais do Ceará. Tomo I (1835-1846). Edição fac-símile da publicada (83) 3322.3222 em 1862. Fortaleza: INESP, 2009, p.393.

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Art. 7. Ficão revogadas as leis e disposições em contrario 8.

O local escolhido foi no morro do Croatá9, distante do centro da cidade de Fortaleza. O segundo artigo da lei exige que o governo elabore um regulamento que será provisório por depender de aprovação da assembleia provincial, para isso, pontua alguns itens que devem ser discutidos nesse regulamento. Esses regulamentos só sofrerão alterações autorizadas em lei no ano de 1848, quando finalmente o cemitério começará a ser utilizado para fazer sepultamentos. No ano de 1848 o primeiro cemitério público de Fortaleza tem finalmente sua obra iniciada. Os sepultamentos começaram a ser realizados a partir de 1º de maio, antes mesmo da conclusão da obra. A obra estava estimada em dois contos de réis mas acabou excedendo esse limite, quando o valor já ultrapassava os cinco contos de réis foi impedida de continuar. Mas o Presidente propôs um novo orçamento para ser discutido na assembleia para finalizar a obra que julgava ser indispensável. A obra foi finalizada no ano de 1849 mesmo continuando com a queixa de falta de recursos. O cemitério público de Fortaleza foi construído antes de outras principais capitais das províncias do Império como Rio de Janeiro, São Paulo e Recife, só não do ocorrido em Salvador que foi edificado na década de 1830. Pela lei provincial de número 660 de 29 de setembro de 1854 foram proibidos os enterramentos em todas as igrejas do Ceará, tendo apenas como exceção os direitos de estola concedidos aos padres. A partir de então, “as inhumações far-se-hão nos cemiterios publicos e particulares, e nos lugares em que nenhum existir, só se fará effectiva essa prohibição dous annos depois da prohibição da presente Lei”10. É importante ressaltar que a lei ceda tolerância de dois anos para que todos os municípios construam cemitérios, mas o que se constata é que a maioria dos municípios cumpriu essa determinação anos depois.

Conclusões

Os mortos vão sendo afastados de maneira mais asséptica do convívio social, intensificado com a ocorrência das epidemias já em meados do século XIX devido ao número 8

OLIVEIRA, Almir Leal de e BARBOSA, Ivone Cordeiro (orgs). Leis Provinciais: Estado e Cidadania (1835-1861). Compilação das Leis Provinciais do Ceará. Tomo I (1835-1846). Edição fac-símile da publicada em 1862. Fortaleza: INESP, 2009, p.394. 9 O nome Croatá é mencionado algumas vezes de forma diferente: cravatá, cruatá. 10 OLIVEIRA, Almir Leal de e BARBOSA, Ivone Cordeiro (orgs). Leis Provinciais: Estado e Cidadania (1835-1861). Compilação das Leis Provinciais do Ceará. Tomo II (1847-1855). Edição fac-símile da publicada (83) 3322.3222 em 1862. Fortaleza: INESP, 2009, p.487.

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elevado de mortes. Antes vivenciada como um acontecimento público no qual envolviam a participação da família e da comunidade nos ritos funerários para o bem morrer, a morte passou a ser temida, isolada, ocultada e reclusa ao ambiente familiar.

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1977, p.101. ____. O nascimento da medicina social. In. ____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p.93. MACHADO, Roberto. Danação da norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978. PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes Editores, 2008. REIS, João José. A morte é uma festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1991. RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos. Transformações dos costumes fúnebres no Rio de Janeiro: Secretaria Municipal, Divisão editorial, 1997. SANTOS, Alcineia Rodrigues dos. O processo de dessacralização da morte e a instalação de cemitérios no Seridó, séculos XIX e XX. 2011. 301 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, 2011, p.110.

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