Traços da viagem na obra de José Gomes Ferreira

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Traços da viagem na obra de José Gomes Ferreira

Maria de Lurdes 1 Morgado Sampaio Universid

Author Amélia Bergmann Azambuja

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Traços da viagem na obra de José Gomes Ferreira

Maria de Lurdes 1 Morgado Sampaio Universidade do Porto

Resumo: Neste artigo, procura-se demonstrar como, apesar da ausência de qualquer livro ou diário de viagem, a permanência na Noruega, durante cerca de cinco anos, de José Gomes Ferreira, deixou vestígios de natureza diversa na sua obra poética e em prosa. O repertório de figurações do Outro é, decerto, a face mais visível desse contacto com os mares do Norte. Mas outras marcas existem da ordem da materialidade da palavra, que tanto dizem da ascendência modernista do escritor como do seu exílio temporário da língua portuguesa, como ainda da sua aprendizagem e expressão quotidiana numa ou várias línguas estrangeiras. Abstract: This essay attempts at showing how, despite the absence of any book or travel journal, the sojourn of José Gomes Ferreira in Norway, for almost five years, has left traces of a different nature in his poetic and fictional work. The repertoire of figurations of the Other is, for certain, the most visible face of that contact with the Northern seas. Yet, other marks can be detected in what regards his treatment of the word, displaying both the modernist genealogy of the writer and his temporary exile from the Portuguese language, as much as his apprenticeship and daily expression in one or several foreign languages.

Palavras-chave: José Gomes Ferreira, Noruega, viagens, imagens, materialidades da escrita

Keywords: José Gomes Ferreira, Norway, travels, images, materialities of writing

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(A Poesia e a Vida saíram do mar.) Foi aqui, nas tempestades do Mar da Mancha, perdida no alarme do labirinto de palavras cegas a imaginarem-se rainhas.

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Foi aqui, aos tombos do sol agreste das bocas noruegas que tu, Poesia, finalmente vieste procurar-me - vem de novo, vem! – no suor das palavras verdadeiramente minhas a quererem tornar-se de ninguém. (JGF, Poesia VI, XXX)

(Matemática cantante.) Ai o ponteiro da tortura naquela sala que a matemática tornava mais escura em vez de iluminá-la. Felizmente só o nada-de-mim ficava lá dentro. O resto corria no pátio-em-que-nos-sonhamos (…) (JGF, Poesia V, XXII)

1. A passagem pela Noruega: uma geografia (pre)visível Num texto publicado em 1975, incluído em Gaveta de Nuvens, a que dá o título “ GUILHERME BRAGA . Um poeta de encruzilhada que parece mais pequeno do que é”, José Gomes Ferreira começa por ironizar sobre os que acreditam na “pueril teoria dos homens de génio irruptivo”, que “arrancam subitamente do caos as obras fulminantes” (GN: 13)2, para depois salientar a importância do “caminho [por outros] desbravado para elaborarem as grandes sínteses” (ibidem). Sobre esta ques-

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tão se pronunciará noutras ocasiões o poeta, afirmando, de um ou outro modo, o valor das heranças e das influências literárias, consciente ou inconscientemente assimiladas por um escritor, e através das quais este faz a sua inscrição num continuum histórico, numa ou várias tradições, que lhe conferem existência no mundo literário. No fundo, trata-se de avivar a célebre lição modernista de T. S. Eliot em “A tradição e o Talento Individual” (1919), já antes esboçada por Ezra Pound, e reiterada por este e outros autores, em muitos outros textos ao longo do século XX. São muitas as páginas onde J. Gomes Ferreira fala (ou sugere) da sua dívida para com Raul Brandão, Teixeira de Pascoais ou Doistoeivsky, entre outros nomes de um panteão não muito extenso, onde teremos de incluir Mário de Sá-Carneiro (o único modernista cuja influência é por demais evidente). À abundância de referências e alusões a essa dívida para com certos escritores portugueses corresponde uma escassez de dados relativos à influência que certos autores noruegueses (e eslavos, em geral) possam ter tido na sua obra. Há, decerto, várias referências disseminadas a Ibsen, que terá lido no original, em Kristiansund, mas a descoberta de Ibsen, bem como de Strindberg, terá ocorrido ainda em Portugal, antes de partir para a Noruega. E há, sobretudo – e é esse aspecto que aqui nos interessa – um quase silêncio sobre a influência que o lugar “Noruega”, onde viveu cerca de cinco anos, possa ter tido na sua obra. Tal silêncio está em perfeita sintonia com a referência de J. Gomes Ferreira ao tempo vivido na Noruega como “Interregno” (MP: 149), com as conotações negativas, e até sentidos literais, que o termo comporta, a sugerirem o desejo de olvido: “paragem”, “interrupção” ou “intervalo”. Não há, de facto, nenhum livro de viagens ou afim dedicado a esse periodo na Noruega, para onde partiu apenas com 24 anos, recém-formado em Direito, aí desempenhando as funções de Cônsul, acumuladas com as de representante da empresa do pai no negócio do bacalhau. E, no entanto, há inúmeros sinais de que esse tempo tenha sido um tempo de renascimento para a música e para a poesia,

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como indiciado no poema escolhido para primeira epígrafe deste ensaio. Embora esse poema e o deíctico “aqui” não estejam marcados pelo espírito do lugar, recorrendo J. Gomes Ferreira à mitologia grega para referir o que, à falta de outro termo, designamos por “inspiração”, ele é um testemunho poético de um despertar para a poesia à saída de Portugal para terras nórdicas, assim se neutralizando a sugestão de vazio improdutivo da palavra “Interregno”. Um renascimento poético de mãos dadas com um convívio intenso com a música, que o cônsul-artista ouvia quer em casa, a sós, quer em concertos, e que o levaria a entregar-se mais à composição musical. A melopeia dos versos do escritor e das suas páginas em prosa não é, decerto, alheia a esta intimidade com a música, que será, doravante, uma constante de um percurso indubitavelmente interartístico. Tendo iniciado, como se sabe, a sua obra poética com Lírios do Monte (1908) é após o regresso da Noruega que J. Gomes Ferreira começará a publicar poesia de forma regular, enquanto escrevia, sob pseudónimos, outros textos para periódicos diversos e trabalhava na legendagem de filmes. Se J. Gomes Ferreira é, como adverte Mário Dionísio, em Prefácio a Poeta Militante II, um inquestionável fingidor, também é certo, como aí escreve este crítico (apenas sumariando as palavras esparsas do escritor sobre este assunto), que o poeta caminhante, andarilho e coleccionador, absorvia vorazmente tudo à sua volta, encontrando motivo de “inspiração” no acontecimento ou objecto mais ínfimo e contingente do quotidiano.3 Aliás, uma das razões para a ocorrência de intertítulos ou subtítulos como “relatório” ou “reportagem”, que encontramos mesmo no âmbito da poesia, será essa porosidade e atenção à realidade prosaica e circunstancial nas suas mais diversas linguagens e rumores. Outra é, inquestionavelmente, um certo desejo de contenção e rasura do lirismo em permanente irrupção, e de um efeito de distanciamento de cariz brechtiano, produzido pelo recurso a múltiplos expedientes. Se a estada na Noruega durante um período de quase cinco

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anos não inspirou ao autor um qualquer livro de viagens, nenhum livro de memórias ostensivamente norueguês, ou páginas de confessionalismo onde discorra sobre uma Europa nórdica então tão desconhecida para o Portugal meridonal da época, ela deixou, no entanto, vestígios dispersos por vários lugares, ainda que com diferentes graus de visibilidade. Aliás, como diz Michel Onfray, num ensaio sobre a Viagem, “Não escolhemos os lugares predilectos, somos solicitados por eles. (…) Há sempre uma geografia que corresponde a um temperamento. Resta encontrá-la.” (Onfray 2009: 22-23).4 Um poema de evocação do tempo dos anos 30, e “homenagem” indirecta a Raul Brandão, o mestre, inserido em Poesia VI (“Memória IV – 1966-1967”), não só parece fundamentar esta ideia de Onfray, como neutraliza a contradição inicialmente assinalada, estabelecendo uma inesperada ponte entre Portugal e a Noruega. O poema inicia-se com uma das suas típicas expressões parentéticas e diz o seguinte: “(O genial Raul Brandão – estou nas nuvens de 1931 – morreu há um ano. Raul Germano Brandão. ‘Germano’? O nome materno deveria ser ‘Eslavo’.)” (PVI: 165). Não constituiria qualquer surpresa se a Noruega tivesse sido o lugar da revelação da sua inquestionável filiação em Raul Brandão – mas tal hipótese nunca poderá ser confirmada. Até ao momento não foi publicado qualquer diário que remeta para a Noruega, embora se encontre, em Memória das Palavras ou o Gosto de Falar de Mim (1965), uma referência a um diário norueguês, que bem pode ser o “plangente Diário”, referido no conto “O Mundo Desabitado” (conto publicado em edição autónoma em 1960). Em fragmentos disseminados por diversas páginas de prosa ou em versos soltos, existem, porém, várias alusões (a) e evocações a essa paisagem humana e geográfica, a provar que a estada na Noruega foi mais do que um interregno. E, por isso (e outras razões a explanar) se arrisca aqui um ensaio sobre as repercussões da Noruega na obra de J. Gomes Ferreira, com a convicção de que este escritor pertence, inquestionavelmente, ao grupo dos poetas, cuja divisa bem poderia ser a pessoana frase “Para viajar, basta existir”. De

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facto, muitos são os poemas e textos do poeta que parecem dizer-nos do poder da fantasia e imaginação criadoras, que, reduto último da liberdade do ser humano, permite derrubar todas as fronteiras e atravessar todas as paredes. São essas faculdades que desafiam instâncias várias de disciplina e de poder, sejam elas as do espaço da sala de matemática ou a invisível vigilância censória, que impede a livre circulação da palavra poética e literária. É essa mesma imaginação que levará o poeta à transfiguração da odiosa matemática numa matemática cantante ou à descoberta de pontes, vasos comunicantes, pontos de intersecção entre espécies discursivas variadíssimas, entre géneros literários e não literários (reportagem, relatório, poema, panfleto, novela), entre poesia e música, entre poesia e artes gráficas, entre poesia e cinema, entre a voz e a letra. Toda a obra de J. Gomes Ferreira parece ser uma celebração de diálogos, de interpenetrações e transmutações várias, sejam elas de espécies literárias, ou artísticas – como na sequência “Álbum 1954-1955” (PM II) – ou de estados da matéria e de mundos (orgânico e inorgânico), como em Aventuras de João sem Medo e em muitos dos seus poemas. A Noruega não foi para o autor um não-lugar (na terminologia de Marc Augé), mas um lugar no sentido mais forte do termo, pois J. Gomes Ferreira habitou numa dada cidade, conviveu com os seus habitantes (ou com certas classes sociais), e aí procurou conhecer, de espírito aberto, com avidez, a cultura e as gentes da Noruega. A aprendizagem da língua norueguesa a que se entregou por todas as vias possíveis – desde o ensino formal e leitura de romances policiais até à escuta das vozes e rumores das ruas – para poder ler Ibsen no original, foi o primeiro grande passo nessa experiência de deliberada imersão numa cultura bem diferente da mediterrânica. O longo relato humorístico da experiência de esquiar no conto “Quase um Relatório”, inserido em Tempo Escandinavo, se não é um relato caricatural de uma vivência pessoal, vale, decerto, como alegoria da alteridade no seu sentido mais profundo: a total disponi-

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bilidade não só para a compreensão do outro (no sentido comum e filosófico do termo) como experimentar viver com e como o outro, abandonando o confortável papel de espectador, mesmo que isso signifique transformar-se numa figura chaplinesca (relembre-se a cena de queda de costas e o acesso de choro que se lhe segue). Através da personagem Raul, Tempo Escandinavo, dá-nos a ver a experiência de um latino em terras nórdicas, que, nunca abdicando do seu olhar de observador, não soçobra perante problemas de comunicação ou outros, antes procura compreender o estranho e o diferente, e, na medida do possível, acertar o passo pelos costumes de um país que se lhe apresenta, naturalmente, como um texto repleto de enigmas. Vale a pena recordar Wittgenstein, que a propósito da interacção humana e de como os seres humanos podem transformar-se em enigmas uns para os outros, escreve: We also say of some people that they are transparent to us. It is, however important, as regard that observation that every human being can be a complete enigma to another. We learn this when we come to a strange country with entirely strange traditions; and, what is more, even given, a mastery of the country’ s language. We do not understand the people. (And not because of not knowing what they are saying to themselves). We cannot find our feet with them. (PI II: 223)

Toda a obra de J. Gomes Ferreira pode ser parcialmente explicada à luz desta tese (universo, seres humanos e linguagem como “enigma”, ou “mistério”), e bem pertinente se revela esta ideia na abordagem a Tempo Escandinavo. Nessa obra, onde se tematiza a deslocação física, o real – mulheres, costumes, o mundo mineral, as runas, etc. – tudo surge como “enigma” para ser decifrado e descodificado. Não admira que as reticências – como sinais que indiciam o secretismo, a indefinição e indeterminação – surjam como um dos traços gráficos mais visíveis na globalidade da obra do autor. Ficará também a ideia, após a leitura de Tempo Escandinavo, de que muitos enigmas não

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existem fora de quadros culturais, diluindo-se o carácter enigmático dos “enigmas” à medida que se dominam os códigos e valores de sociedades diferentes daquelas que nos moldaram. Ou seja, à medida que se dominam as regras do jogo, no sentido wittgensteiniano do termo, válido, antes de mais, para as línguas, mas estendendo-se a todo o texto cultural. Não deverá o poeta às longas noites de solidão e silêncio na Noruega a paixão de sempre por uma ininterrupta escrita de teor intimista e confessionalista (quaisquer que sejam as máscaras e camuflagens usadas), que levou a essa excepcional obra memorialista e diarística que nos legou? Não terá o contacto com esse país nórdico, onde o poeta terá visto, pela primeira vez, o luar às cinco horas da tarde, exacerbado a pulsão para a transfiguração do real quotidiano e fermentado uma literatura “fantástica”, ou a raiar o fantástico, sem paralelo na literatura portuguesa durante décadas a fio? Teria J. Gomes Ferreira levado a cabo, com Carlos de Oliveira, a monumental compilação de contos populares portugueses como a publicada em 1958-1959, se não se tivesse deslocado para outro país e para o mundo nórdico em particular? Esta última questão será, sem dúvida, a de mais fácil resposta, invocando o ideário e poética neo-realistas – ou apontando o exemplo de outros países, interessados numa valorização neo-romântica de uma cultura popular. Mais difícil, porém, seria entender o magnífico estudo de teor comparatista que acompanha esse volume (reproduzido em A Gaveta de Nuvens, sob o título “O Racismo, As Fábulas, Os Prodígios e As Artes Mágicas Tradicionais Portuguesas (1958)”) à margem do movimento de deslocação do autor do seu país e do contacto com outra língua e cultura. Esse ensaio (de muitos textos de uma rica obra ensaística não suficientemente valorizada), que ilumina o processo dinâmico de migrações textuais e discursivas, as metamorfoses sofridas por textos e/ou o processo de apropriação local (analisando versões e variantes), parece antecipar, em muitos anos, teorias como as de Lawrence Venuti sobre o processo de “domesticação” dos textos, bem como estudos inter-transculturais tão em voga nos tempos

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de hoje. Manfred Schmelling, por exemplo, no ensaio “La notion d’ influence et la mémoire (inter)culturelle”, estabelece mesmo uma estreita relação entre a deslocação e o cultivo de géneros particulares: l’approche littéraire de cultures étrangères peut aboutir à la constituion de genres littéraires. Les parcours de vie interculturels mettent ainsi en cause la forme de la biographie fictive, de l’ autobiographie ou du récit de voyages. On trouve également des traces de la tradition du roman d’ apprentissage dans la littérature trattant de la migration économique (particulièrement répandu en Allemagne”). (Schmelling 2010: 29)

Apesar da existência de inúmeros autores que praticaram os géneros de teor autobiográfico à margem da viagem (no sentido físico de deslocação), no caso de J. Gomes Ferreira é difícil dissociar a prática de uma escrita autorreflexiva, ruminativa, digressiva, bem como um certo tracejado da ordem do significante (à frente tratado), desses anos passados na Noruega. Uma das imagens que sobressaem nas páginas, directa ou indiretamente ligadas a esse tempo, é a de uma personagem ávida da voz humana, falando consigo mesmo, invectivando vezes sem conta o telefone: “Na mesa, o telefone calado. (Toca, toca, maldito!)” (TE: 36). No conto “As Mulheres não entram pelas Paredes”, marcado por uma acumulação de imagens disfóricas, este leitmotiv surge associado a um estado de letargia ou hibernação: “Poisei o auscultador e regressei lentamente (…) à solidão anterior do meu paciente desterro de emigrado. Ao meu doce exílio branco norueguês… Estendido no divã, meio sonolento, à espera…” (TE: 179)”. Ou ainda do diário Dias Comuns. Idade do Malogro: “E então dou comigo ao telefone a fingir que falo com alguém: “está lá? está lá? – mundo imbecil?” (152). A meu ver, uma das funções primordiais dos tão notados parênteses na obra de J. Gomes Ferreira, e sobretudo na prosa, prende-se com a profunda vocação dialógica do autor, reforçada pela aspiração a uma escrita vívida e vivificante, capaz de dizer,

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na sua espessura e multidimensionalidade, a heteroglossia e gestualidade da comunicação oral. Um monólogo deste escritor é sempre atravessado por múltiplas vozes e os “seus labirintos de parênteses enganosamente explicativos”, na expressão de Mário Dionísio (1990: 13), são o sinal mais ostensivo de um sujeito que se dirige sempre a um “tu”, ainda que projecção de si mesmo, duplo, réplica, ou outro ser imaginário. A interpelação ruidosa do “tu” das suas páginas é apenas a face mais visível de um discurso que incorpora sempre o outro – por vezes, entrevisto como receptor/leitor, cujas réplicas se antecipam. Este é um poeta para quem a construção identitária, na senda de Bakhtine e depois de Benveniste (este último mencionado e citado, aliás, num dos seus diários), não pode existir sem os outros ou a sem a imagem dos outros, não sendo esta uma questão de ordem metafísica: “Para lá do ser ou não ser’ dos problemas ocos / o que importa é isto: / – Penso nos outros. / Logo existo” (PM I: 280). Aflorada que foi a possível relação directa entre viagem e espécies genológicas, sob o amplo espectro dos “traços” da viagem para que o título deste ensaio remete situam-se, em primeiro lugar, aspectos temáticos do âmbito da imagologia, e, em segundo, peculiaridades da escrita de J. Gomes Ferreira da ordem do visual e do gráfico/tipográfico, apreensíveis de imediato na mancha gráfica dos seus livros. No caso dos poemas, o uso da numeração romana, a abundância de segmentos parentéticos em posição de lateralidade (margem direita), o uso de itálico, ou o uso de colunas paralelas, como em Dias Cruéis, serão a parte mais visível de um icebergue, onde um olhar mais atento divisará uma gama de sinais ínfimos, alguns dos quais passíveis de explicação parcial à luz do contacto com a língua e cultura norueguesas. Esta distinção serve apenas a clareza da exposição, pois ambas as vertentes relevam da mesma poética e mundividência, havendo uma grande interdependência (ecos e ressonâncias) entre os textos do autor, para lá das diferenças discursivas e genológicas.

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2.1. “Noruega” e Aventuras de João sem Medo: travessias poéticas e outros voos Na totalidade das obras de J. Gomes Ferreira apenas dois títulos remetem explicitamente para o mundo nórdico: a secção poética “Noruega” (com a data aposta “1964-1965”), incluída em Poesia VI, e Tempo Escandinavo (1969), que integra dois contos, publicados em inícios dos anos 60 (“A Mulher dos Caminhos” e “Mundo Desabitado”). A estes títulos é ainda de acrescentar a secção VIII, de Memória das Palavras ou o gosto de falar de mim, bem como um livro que poderá destoar desta lista e que começo por abordar: Aventuras de João sem Medo. A meu ver, a “consequência” mais imediata(ista) da passagem de J. Gomes Ferreira pela Noruega é, de facto, a escrita de Aventuras de João sem Medo, uma espécie de texto matricial subjacente a todos os outros – hipótese esta que aqui apenas se esboça, dada a necessidade de atentar mais demoradamente noutros trabalhos do autor, que, de uma forma mais explícita, solicitam a questão da Noruega. Como se sabe, é em 1933 que a primeira versão da história vem a lume no periódico O Senhor Doutor, com o título A Aldeia dos Choramigas. Reescrito em 1963, sob o título Aventuras Maravilhosas de João sem Medo (com uma nítida contenção do maravilhoso),5 o livro tem uma 2.ª edição em 1973 (eliminado o “Maravilhosas” do título), que inclui uma nota final, onde o escritor explica a génese do nome do protagonista, as técnicas de narrar, e aponta algumas fontes de inspiração: Aventuras de Telémaco, de Fenelon, as Novelas Exemplares, de Cervantes e as histórias de Voltaire. Outras influências marcantes são referidas em Gaveta de Nuvens (1973): As Aventuras de Tom Sawyer, as Viagens de Gulliver, ao mesmo tempo que refuta, como anacrónicas, influências de Alice no País das Maravilhas (que terá lido bem tarde), ou de contos populares portugueses que à data da primeira versão da história lhe eram quase desconhecidos. Nenhuma referência é feita à literatura e mitologia nórdicas, que, de resto, não merecerão também grande atenção a Maria da Natividade Pires, nas páginas que dedica a Aventuras de João sem Medo, no seu estudo Pontes e Fronteiras. Da

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Literatura tradicional à literatura contemporânea. A autora acrescenta, no entanto, às listas do escritor, o livro de aventuras A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia, de Selma Lagerlof, e, depois de estudar os rastos de mitos gregos (com pertinente realce para Orfeu, Eurídice e o Minotauro), dirá que Aventuras de João sem Medo é um lugar híbrido de confluências e/ou de cruzamentos de tendências variadas, que vão desde a literatura de viagens e contos tradicionais à literatura de compromisso social e mesmo à literatura modernista (à de Orpheu). Concluirá, com razão, que a obra não reflecte “especificamente uma tradição da cultura portuguesa” (Pires: 183).6 Não reflecte, de facto, nem cultura particular nem lugar ou tempo determinados, o que, porventura, faz dela a obra “mais perdurável” de J. Gomes Ferreira, como o próprio autor se lhe referiu em Dias Comuns V, classificando-a também, com ligeira dúvida, como o seu “melhor livro” (DC V: 151). A relação desta história de aventuras com a geografia e a mitologia norueguesas (ou nórdicas) não pode no entanto, ser escamoteada, quando atentamos na data de escrita, nalguns entes fabulosos que povoam esse mundo ficcional, em certas inovações ao nível morfossintáctico, e sobretudo, quando confrontamos certos motivos, imagens e toda uma cosmovisão poética aí presentes com os que surgem em diferentes textos do autor, qualquer que seja a sua natureza genológica. A árvore de dez braços em que João sem Medo é metamorfoseado estará bem mais próxima da gigantesca árvore Yggdrasil (e os seus nove mundos) do que da árvore comum do conto As Três Cidras do Amor, que o autor diz ter lugar cativo na sua memória. Se o episódio em que o “herói” come as maçãs do rosto da menina pode ser lido como uma prova iniciática sexual, também é de ter em conta a tradição eslava, que associa as maçãs à juventude e à renovação. Devedores da cosmogonia nórdica poderão ser, também, os objectos flutuantes que por ela perpassam, como as laranjas e tangerinas com asas azuis, o “chapéu de palha com asas”, os gramofones voadores e outros seres alados (a ressurgiram depois na poesia),

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a polaridade entre o universo do ar e o mundo subterrâneo (reminiscentes dos seres de luz que são os elfos luminosos e dos seres que, como os gnomos, vivem nas profundezas da terra sem nunca verem o sol). Em vários poemas, o macrotema da levitação, em variações de belíssimas imagens (“um corpo de pétalas voadas”; PII: 95) reenvia-nos para a pintura de Júlio Resende, mas não será descabido qualquer associação à pintura de Chagall e a universos artísticos de terras nórdicas e eslavas. Mais relevante, porém, a evocar a comunhão intíma dos nórdicos com a Natureza e os seus ciclos, ou a importância das pedras na paisagem e na mitologia nórdicas, é a pujança do mundo natural, das florestas, das pedras faladoras espalhadas por toda a parte, que trazem à mente as runas, as famosas pedras portadoras de segredos. Por último, deixando de lado a interpenetração dos estados da matéria ou o constante processo de metamorfose e transmutação que se desenrola perante o leitor (do orgânico em inorgânico, da água em nuvem, do Inverno à Primavera, etc.), é de sublinhar a omnipresença da(s) Boca(s) nesta história, sempre associada(s) às pedras. Elas são, sem dúvida, um dos motivos mais ostensivos na obra poética de J. Gomes Ferreira. Ainda que neste livro haja uma predominância da ideia de “sombra” que persegue o herói (a “Boca Perseguidora” ou “Boca Itinerante” (106), as valências significativas da palavra “Boca(s) na totalidade da obra do escritor são múltiplas, contemplando, entre outras, noções como sopro poético, génese (da poesia), grito, voz, silêncio, censura, liberdade.7 Recorde-se que em 1948, J. Gomes Ferreira intitula “A Boca Enorme” um curto volume de crónicas, povoadas de figuras populares, humildes, derivando o título do epíteto, dado na crónica inicial homónima, a uma rapariga-mulher, cuja degradação o narrador vai acompanhando, pela simples intervenção do Acaso – ou por ser dado à vagabundagem. E, em 1976, em o Sabor das Trevas, J. Gomes Ferreira faz ressuscitar essa boca numa figura feminina “Tuninguém”, a relembrar, num desafio à cronologia e a algumas analogias temáticas, não propriamente a peça de Samuel

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Beckett, Not I, de 1972, mas o seu lugar de direito, ou também inscrição numa literatura do absurdo (e mesmo algumas afinidades silenciadas com Beckett). Em O Sabor das Trevas, narrativa de cariz metafísico e político (onde se fala de coisas sinistras, de trevas interiores, mas também de conspirações, de morte e traição), a imagem de “Tuninguém” verborreica não difere muito da famosa boca becketiana e o próprio narrador estimula essa analogia: “Tuninguém pôs logo a máquina da boca a funcionar: “não chorarás, não recearás a morte, não trairás, não odiarás o inimigo, para poderes amá-lo sem remorsos no futuro, só matarás quando puderes ressuscitar as vítimas…” (ST: 102). Embora o desamparo de Tuninguém seja passageiro, a analogia reforça-se na imagem de Tuninguém a voar com Nóseu, ambos descorporalizados, em total invisibilidade, ouvindo-se apenas as suas vozes. De todos os títulos da obra de J. Gomes Ferreira é, sem dúvida, a sequência poética, “Noruega” (ou “NORUEGA 19641965”), que literalmente nos transporta ao período em que o escritor foi cônsul na Europa do Norte. E, consequentemente, é também, mais do que muitos outros títulos e obras do escritor, aquele que traz à mente do leitor os vários momentos em que o escritor (ou o seu alter-ego) se refere aos seus poemas como “Diários em verso” (MP: 188), com as variantes, “Diários Clandestinos” (idem: 203) e “Diários de improvisações poéticas” (ibid.). Num Inquérito a que responde em 1968 (transcrito em Gaveta de Nuvens), usa de forma repetida a designação “diários” para falar da sua obra – “Diários e mais Diários (primeiro em prosa, depois em verso” (idem: 164). Mas é igualmente nesse depoimento que se refere a esses “diários” como “material de testemunhos (e não de reservas de poesia que serviam à técnica de Maiakokski)” (ibidem). – o que nos leva a excluir a ideia de “diário” no seu sentido mais habitual. Não há aqui o registo sismográfico dos fluxos e refluxos das emoções ou pensamentos do quotidiano do escritor nos idos anos 1920 fora de Portugal. Estando, pois, fora de causa estabelecer qualquer paralelismo simplista e linear entre a poesia da sequência “Noruega” e a

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estada de J. Gomes Ferreira, não será demais acentuar (sem paradoxo algum) que em nenhuma outra obra poética da literatura portuguesa existe uma tal concentração de deuses, de figuras da mitologia nórdica, de topónimos, ou de nomes de artistas como nestes poemas, alguns dos quais, fazem, aliás, já a sua aparição nos poemas da secção poética “Memória III. 19621963” (anteposta a “Noruega” no livro Poesia VI): Thor, Odin, Freia, Garm, Hella, Baldar, Dagmar, o cão Garm (em nomeação clara), vikings (i.e., “viquingues”; p. 118), Kristiansund, Vanddamen, Linus Lökvik, ou “Ibsen, Gieg, Nansen” (PVI, I; 101). Nem surgirão em obra de autor português de época alguma, como nestes textos poéticos, tantas referências ou alusões a uma geografia, cosmogonia e mundividência norueguesas: as pedras por todo o lado (as runas no solo ou outras, no lugar de areia – “Só pedras”: 102), as “pedras aéreas” do Walhala (idem: 97), os fiordes desolados, o gelo, a neve, o frio, “a terra de lua longa” (idem: 102), as casas de madeira nas florestas. O poema I por si só apresenta-se como um pórtico de entrada em “Noruega” e um quadro cinemático (no efeito de travelling) alusivo a uma experiência de desembarque de um viajante numa terra estrangeira, de aproximação lenta e dolorosa ao desconhecido, de encontro com o Outro e consigo mesmo. Um poema que bem pode ser lido como equação poética para a experiência do autor empírico J. Gomes Ferreira nos seus primeiros tempos na Noruega, que, como já vários ensaístas têm adiantado, terão sido bem difíceis. Mas na sua impessoalidade, i.e., na não identificação absoluta do sujeito poético com o autor empírico, que o “eu”, ou até referências biográficas (sobretudo entre parênteses) não denegam, estes escassos poemas “falam” eloquentemente da condição de todo o estrangeiro fora da sua terra de origem, quando aporta a uma terra sem elos alguns com ela que não sejam os da ordem do fantasmático. Se a poesia de Alexandre O’Neill e de muitos surrealistas portugueses dizem, ironica e histrionicamente, da extrema solidão dentro do próprio país, da experiência do “exile […] from within”8, nenhum poeta

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como J. Gomes Ferreira nos deixa imagens tão pungentes sobre o que pode ser a experiência da deslocação voluntária para outro país e cultura. Por todos os poemas – quiçá os mais elegíacos do autor – perpassam os motivos da melancolia, da insularidade, do silêncio opressivo e angustiante, da solidão, personificada de tão omnipresente, como no poema VIII: “Solidão de lágrimas com dentes / que se bebem para termos mais sede. / (…) / Chovia / ou nevava / (já não me lembro bem) / com a monotonia / de se ouvir crescer o silêncio da barba” (PVI: 110). Alguns versos como estes ilustram e condensam em imagens fortes muito do que se tem escrito sobre a deslocação, a emigração, ou o exílio. Apenas alguns exemplos, com fragmentos que também nos dizem como o encontro com o outro é sempre descoberta, no sujeito deslocado, de um eu outro: “tentava colher a minha imagem / afinal sempre a sombra de um desconhecido” (idem: 117); “(Pouco a pouco começo a conhecer-me. Sou um comediante com várias caras.) (…) / Solidão de vampiro / com dentes de mel” (idem: 124); “Passei toda a tarde / na companhia da solidão / com o seu rosnar de cão” (idem: 111); “É extraordinário como se desaprende facilmente uma língua / sobretudo as palavras que se entendem melhor. / Folheio o dicionário. Que significa, por exemplo, Portugal” (idem: 125). Todas estas imagens nos reconduzem no fundo, ao poema IV, aquele que melhor tematiza, no seu minimalismo descritivo, a carência e o despojamento, e que se inicia com o parêntesis “(Cônsul de quarta classe.)” assim continuando: “Inventário /do que me resta / na minha ilha cercada de neve:/ (…) / Um gramafone / para dançar sozinho. / E sobretudo o silêncio oco / – o silêncio oco / que só por morte me pertencia” (idem: 106). Impossível concluir este olhar sobre “Noruega” sem acrescentar a presença notória dos mitos gregos, a atestar quer a impossibilidade de o viajante se despojar da bagagem e enciclopédia cultural que consigo transporta quer o parentesco de mitos em lugares e épocas bem distantes e a existência de universais humanos. Assim, também Prometeu, Orfeu, Eurídice e

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Narciso fazem a sua aparição nestes poemas: “Em certa noite de sol parado / descobri que os deuses da Grécia / vinham de quando em quando / visitar os seus parentes escandinavos” (PVI, XIX: 121). Que estes textos, os mais expressionistas do escritor – com imagens dominantes de “esqueletos”, de “espectros” (“bocas de espectros” ou “espectros mortos”), de lágrimas, de frio, de Morte – não podem ser lidos como expressão directa e imediatista de uma vida pessoal, mas como uma meditação sobre a morte e sobre a história prova-o o último poema de “Noruega”, que começa por evocar o bombardeamento nazi de uma cidade norueguesa, terminando com uma imagem lúgubre, quiçá alusiva também ao Portugal desse período: “no crepitar dos passos / dos espectros mortos / na madeira velha” (PVI, XXX: 135). Assim, se “Noruega”, sem o determinante “a” em título, não é exactamente o território geográfico onde J. Gomes Ferreira viveu durante cinco anos, não poderemos dissociar os poemas aí reunidos de uma geografia específica, real, para que o topónimo remete, podendo eventualmente lê-los à luz da teoria poética de William Wordsworth. Ou seja, considerar que os poemas que configuram um dado território textual (jamais coincidente com um outro extratextual), tendo partido da experiência pessoal do autor empírico, das suas emoções, sensações e vivências fora do seu país de origem, decorrem já de emoções “recolhidas em tranquilidade”, logo transfiguradas pela imaginação, pela memória e sobretudo pela/na linguagem.9 2.2. Tempo Escandinavo: aquém e além da rememoração Tempo Escandinavo (1969) que, em virtude de uma forte unidade temática é mais do que uma colectânea de contos, parece instituir desde os paratextos de abertura um claro pacto autobiográfico; pela nota que introduz o volume, a reiterar o tópico da solidão (“esta longa narrativa de solidão e amor efémero”) e, sobretudo, pela dedicatória: “A Johannes Rivertz, grande amigo e companheiro inesquecível durante a minha permanência na

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Noruega”. Mas este pacto é neutralizado por uma posterior nota, que adverte o “leitor mais apressado” de que a obra não é autobiográfica, dado que, diz-nos o autor, as suas personagens não são as mulheres e homens que povoam a Noruega. Colocado nestes termos – de que nenhum país poderá alguma vez caber num livro nem as figuras de papel representarem as pessoas de um país e a sua cultura – fica invalidada qualquer leitura deste livro como obra confessional ou de teor documental. Bastaria, aliás, o título, Tempo Escandinavo, para compreendermos que qualquer que seja o peso das vivências do autor empírico nestas narrativas, elas surgem filtradas pela memória e transfiguradas pela imaginação, sendo a personagem Raul uma persona impeditiva de uma linear leitura de tipo biografista. Detenhamo-nos, por momentos, no conto “A Mulher dos Caminhos” (1963), cronologicamente posterior a “O Mundo Desabitado” (1960), e que, como este, mereceu publicação autónoma antes da inclusão em livro. Escrito sem a melancolia e humor negro da primeira história “norueguesa”, este conto pode ser lido como variação, em registo realista e minimalista, de Aventuras de João sem Medo, contando as aventuras de um jovem português, Raul (ou Raul-Leif), em terras nórdicas. Caminhante à deriva, aberto a todo a espécie de encontros, com “cansaço contente de se sentir estrangeiro” (TE: 79), Raul deambula, à imagem dos noruegueses, pelos caminhos da natureza, numa errância marcada pelo exacerbamento dos sentidos, pela sensualidade e pelo erotismo. A dimensão iniciática desta viagem atinge o seu auge num fugaz encontro sexual com uma caminhante solitária, que será também o signo da intromissão da Cultura e da impossível comunhão com a Natureza e com os outros. De todos os contos de Tempo Escandinavo este é o que de forma mais directa tematiza o encontro de duas culturas, pelo confronto de lugares comuns, de imagens petrificadas, de representações e de auto-representações estereotipadas. O narrador vai desmontando, com humor e ironia, a confusão habitual entre Portugal e Espanha, a redução de um país a um catálo-

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go de imagens cristalizadas onde figuram o vinho, o azeite, os touros, o físico do homem latino, e sobretudo, o temperamento deste último “como o concebiam em nebulosa por aquelas paragens. Violento, fabuloso, ibérico, gesticulador…” (TE: 94). À inquiração da jovem sobre os hábitos dos portugueses em relação ao vinho, responde o narrador com uma dissertação poético-humorística: “- Sim (…) há fontes de vinho do Porto que brotam das bocas das rochas e inundam as montanhas do Douro e se despenham em catadupas pelas encostas para dourarem o rio: Não imagina como é bom ir pelos campos e parar, de quando em quando, junto dessas fontes para matar a sede” (TE: 89). O conto terminará com o viajante a refutar de novo as mesmas imagens dos portugueses repetidas por um casal que lhe dá boleia: “Sim também temos touradas, mas não assassinamos os touros em público com estoques, nem gostamos de ver sangrar os cavalos (nessas balbúrdias das touradas somos vegetarianos)” (TE: 95). Quanto à imagem da Noruega, aquela que se impõe neste conto é a imagem de um país quase encantado, não muito distante, nalguns aspectos, do universo mágico de Aventuras de João sem Medo, em virtude do jogo erótico e da efabulação das personagens, que começam por camuflar a sua identidade encarnando outros papéis (a jovem como Princesa) e Raul, pseudo norueguês de identidade flutuante: “Mas Raul, ou Leif, ou Raul-Leif, ou Leif-Raul, ou Eu, ou Tu, ou Ninguém” (TE: 90). Num movimento correlato, mas menos explanado, haverá no conto “O Mundo Desabitado” um retrato mais negro da Noruega, uma desconstrução das imagens de um país elaboradas a partir da literatura: “eu começava a persuadir-me, embora essa evidência me desencantasse, de que não vivia na antiga Noruega brumática dos fiordes em convívio com as mulheres enigmáticas das peças de Ibsen, mas num centro bacalhoeiro da Costa Atlântica” (TE: 48). É por isso que os contos de O Tempo Escandinavo remetem uns para os outros, pois só o conjunto nos permite ver como o encontro com outra cultura pode fazer soçobrar valores adquiridos, levar à vacilação e desconstrução

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de imagens dadas como naturais. Ou apreender a imagem da solidão existencial, ou do “desamparo”, no seu mais alto grau, tal como nos é dada a ver no belíssimo conto de Natal que é “O Mundo Desabitado”, e, em particular neste passo:

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Na aparência, pouco diferia das outras noites desse período inicial da minha estadia na Noruega, caracterizado pela solidão e a eterna busca aflita de não sei que boca fora de nós, onde se condensasse o grito contra a vida inútil que todos trazemos esparso na pele, nas mãos e no cabelo. Mas com o apodrecer dos dias, a solidão exacerbou-se a tal ponto que, em determinado momento, se tornou uma espécie de ira cósmica.” (TE: 99)

Ao recordar um jantar de Natal para o qual fora amavelmente convidado, o narrador escreve: Ontem, como hoje, como sempre, apenas me recordo de quatro, cinco, seis, vinte bocas com dentes vis de osso autêntico em torno da ternura duma mesa oval coberta de pratinhos com nozes e avelãs, por entre a alegria de se respirar no mundo este perfume tão bom a incenso de peru assado com recheio de castanhas. (TE: 107)

O olhar de estranheza, parcial e limitado, do sujeito desterritorializado, despaisado, é-nos dado por essa redução do ser humano a partes do corpo – com ênfase para a “boca”. Estruturada desde o início sob o signo da viagem quixotesca, pela analogia com o incipit do romance de Cervantes, esta história de teor acentuadamente expressionista (i.e. “O Mundo Desabitado”), que é também a história de um D. Juan falhado, abarca a quase totalidade dos tópicos recorrentes nas narrativas de viagem, nomeadamente: a gastronomia, a paisagem, os hábitos sociais, os costumes, os rituais religiosos, os protocolos, as representações culturais, as relações efémeras e contingentes, os problemas de comunicação. A paisagem e o clima noruegueses (o Inverno nórdico), mais do que um cenário, são uma

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espécie de personagem antagonista dos sonhos e fantasias eróticas do narrador. Representada como uma espécie de finis terrae, a Noruega surgirá, porém, pela pena do escritor, pintada de forma magnífica, como um território quase fantasmagórico e irreal na sua “realidade” avassaladora, contrária às leis naturais e climáticas dos países do Sul: a volúpia de pensar em português no meio daquela trapalhada de paisagem em que a natureza parecia louca, como naquele dia de luar maravilhoso às cinco da tarde. Lembras-te, meu rapaz? Um espectáculo de neve fluida desentranhava-se do céu para completar o assombro feérico da outra neve física no chão que recortava, linha a linha, volume a volume, todas as reentrâncias e concavidades do fiorde” (TE: 102-103)

Neste mundo aparentemente às avessas, também a tradicional oposição entre latinos alegres e nórdicos contidos é revista pelo olhar irónico e cáustico do narrador, perplexo perante o que retrata como manifestações públicas de alegria dos noruegueses, em nada conformes à imagem da “alma nórdica”: “Afinal” – sentencia a dado momento – “aqui, o único que tem alma nórdica sou eu!” (TE: 105). Tal paradoxo – que parece indiciar, por antítese, a sensação de não integração do narrador – será, posteriormente explicado em função das muitas regras, etiquetas “algemas e mais algemas” (ibidem) da sociedade norueguesa (“não volte a cabeça quando vir uma mulher bonita. É feio – preveniram-me mal desembarquei em Oslo” (ibidem), e de uma radical clivagem entre o espaço privado e intimista e o espaço público. Perante o olhar disfórico e desencantado do narrador, todo o mundo social à sua volta é um palco, onde homens e mulheres ostentam máscaras que só em casa retiram. É à luz de uma experiência de fracasso “amoroso”, de expectativas e planos defraudados que o narrador congemina a reescrita, em registo parodístico, da história de amor de Pedro e Inês (“a minha Inês de Castro do avesso”: 104) – dando-nos a ver o esboço de uma peça nunca escrita. Nesta versão, porventura

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mais em sintonia com a figuração de mulheres nórdicas (desde as valquírias às mulheres “reais”), é Inês (o “Cadáver-MaisBelo em Alcobaça”), símbolo do amor absoluto e incondicional, que se eleva à condição de heroína, ao aceitar ser assassinada pelo próprio D. Pedro (“o Mais-Que-Cruel”), para que este possa ressuscitá-la e assim volver-se em herói (ibidem). Mas nesta revisitação da lenda, Pedro transformado em imitador de Orfeu, falhará essa missão, e sem qualquer aura poética e heróica, entrará na galeria dos seres fracassados. Esta reescrita parodística, ainda que em estado embrionária, de um mito tão caro aos portugueses, está também em sintonia com as representações culturais da mulher norueguesa que atravessam as histórias de Tempo Escandinavo: mulheres livres e emancipadas, que salvo raras excepções, se situam num plano de igualdade ou de superioridade em relação aos homens. Se há um motivo recorrente nos vários contos desse livro esse motivo é o encontro e tensão, de raiz cultural, entre o latino Raul e as várias mulheres nórdicas que com ele se cruzam. Não raras vezes se verifica uma inversão dos papéis tradicionais, transformandose o homem sedutor que é Raul no ser seduzido, ou mesmo “abandonado”, por uma mulher, como no conto “As Mulheres não entram pelas Paredes”). Saído de um país onde o papel de inferioridade da mulher era quase inquestionável, a descoberta de um outro estatuto social da mulher não poderia deixar de levar J. Gomes Ferreira a confrontar-se com os seus próprios pre(conceitos) em relação à mulher. Sobretudo em situações em que o papel de chefia do homem parecia ser inquestionável – pelo menos à luz da cultura meridional. Um dos episódios bem revelador de um confronto intercultural, mais do que individual (porventura vivenciado por J. Gomes Fereirra), é aquele em que, no conto “Cidade Despida”, Raul vê disputado o seu papel de cicerone por Astrid, mulher “arrogantemente alta” (TE: 44), que assume o comando de uma dança:

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E então não estive com meias medidas. Repeli-a com uma frase tão brutal (…) que me sujou para sempre a boca do sussurro a fel. Como me foi possível dizê-la? (…) Porém, na minha boca de português ficou entranhado pela eternidade fora este sabor a taberna de raiva masculina: – Largue-me! Na dança e na cama quem manda é o homem!” (TE: 45)10

A título de especulação, é possível que o conhecimento de perto da realidade da mulher nórdica tenha algo a ver com o notável ensaio que J. Gomes Ferreira dedica a Camilo Castelo Branco e às “muitas mulheres não resignadas de Camilo” (GN: 102): aquelas que preferem o convento ao homem com quem as querem casar. Nesse ensaio, “A Filha do Arcediago ou ‘Os Mistérios do Porto’ de Camilo” (1971), o poeta analisa algumas facetas da galeria feminina de Camilo, que elogia em “O trabalho e as árvores” nestes termos: “cada vez se arreiga mais a opinião de que, na literatura portuguesa, nenhum outro escritor conheceu melhor a Mulher e lhe defendeu a liberdade de viver e de amar com mais paixão de justiça” (GN: 113). Não terá sido a Noruega a inspirar os belíssimos versos inscritos no poema sobre uma relação para a qual não encontra o nome justo?: “Amor não era / nem o fogo incompleto / do terceiro sexo da Primavera, / Dagmar” (P VI, XXV: 128). No ensaio de Manfred Schmelling supracitado (que faz uma excelente síntese de debates sobre o assunto), o autor analisa as repercussões numa dada cultura ou num indivíduo de um encontro com uma cultura estrangeira, com um “espaço cultural definido”, concluindo sobre o modo como esse encontro conduz a diferentes formas de ver, a múltiplas perspectivas. De um modo geral, Tempo Escandinavo, oferecendo ao estudioso da imagologia um riquíssimo repertório, oferece também matéria rica para reflexão sobre o modo como as relações de poder se constituem na e pela língua. O conto “Quase um Relatório” ilustra bem o modo como o sujeito que está fora da sua língua, dominando apenas um léxico elementar, apenas pode gaguejar, tacteando e tropeçando a cada

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momento, apresentando-se deste modo como que diminuído perante o outro, o nativo da língua: “(Mas eu continuava a parecer estúpido. Com o perfil mutilado. Só sei fingir de inteligente em português.)” (TE: 12). Ou em variação mais eloquente: “Detive-me a tropeçar, aos ziguezagues, sem poder atar o resto do discurso. É extraordinário! Não há dúvida que são as palavras que nos fazem inteligentes. Na minha língua seria tão fácil explicar (…). Mas naquela algaraviada imbecil, nem eu mesmo entendia o que me embrulhava a dizer” (idem: 19-20). Reflexões desta natureza, com importantes implicações epistemológicas e sociológicas, multiplicam-se neste e noutros contos. Há exemplos vários das frivolidades ditas numa língua estranha/estrangeira ao sujeito falante (as palavras vazias e ocas), das desfigurações fónicas, sintácticas e semânticas, dos mal-entendidos, dos sentidos centrífugos, da impotência do ser humano situado como que fora da própria linguagem. Mas há também a ilustração dos esforços contínuos de comunicação, dos inúmeros expedientes imaginativos usados e que asseguram o entendimento possível entre os seres humanos: a gestualidade, os actos proxémicos, uma língua outra como intérprete, a enxertia e amálgama de outras línguas (“misturangada”), a tradução interlinguística, ou a incessante reformulação de enunciados, na demanda angustiada da palavra precisa ou exacta sempre em fuga. E a comunicação triunfal, na sua imperfeição: holofrases, frases incompletas, frases nominais, parataxe, anacolutos, deícticos, palavras simples e concretas, aparentemente mais próximas das coisas.

3. Letras, riscos e outras corpografias poético-linguísticas Mesmo a um olhar mais desatento não passarão despercebidos, em O Tempo Escandinavo, os inúmeros termos, sintagmas e unidades fraseológicas em línguas diversas, cuja percepção é, aliás, potenciada pelo uso do itálico, dos parênteses e de muitos outros sinais gráficos e recursos tipográficos com valor estético. Se esta vertente tendencialmente poliglota pode ser perspectivada à luz da herança modernista (tantas vezes apon-

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tada em J. Gomes Ferreira), bem como a vestígios de correntes vanguardistas europeias de inícios do século XX, no quadro cultural que aqui se evoca sobressai, a par da vertente lúdica, o efeito de exemplificação (no sentido goodmaniano do termo), do discurso quase babélico produzido num país cuja língua se não domina. Por outro lado, todos os estrangeirismos (qualquer que seja o idioma) são o signo da descoberta – que aqui se aviva – da não equivalência semântico-ideológica das palavras em línguas diferentes. Como no episódio já referido em que Raul repele Astrid (“Cidade Despida”) com uma frase de machismo declarado, porque, como mais tarde afirmará, à laia de auto-justificação: “a traduzi[u] para uma língua alheia onde as palavras como que vinham coladas a intenções e significados incoincidentes menos brutais (TE: 45). É seguramente na Noruega que o “poeta” compreende ou descobre a lição saussureana sobre a convencionalidade dos signos linguísticos, bem como o mito cratiliano da relação entre as palavras e as coisas. Há versos que explicitamente tematizam a impossibilidade de as palavras dizerem as coisas: “Dou um pontapé nestas árvores de carne e folhas. / Mas esperem! / A palavra árvore não é uma árvore” (PM II: 134); “nem a palavra sol queima a pele das mãos / E até hoje nunca vi voar a palavra rouxinol” (ibidem). O que não impede uma demanda de uma poética mimológica, aliada ao prazer de justapor palavras em línguas diversas, em demanda da palavra mais próxima do objecto, como no poema incluído na sequência “Pedregal 19601961”. O poema inicia-se com um segmento parentético de valor deíctico “Pego neste pedaço do planeta – aqui talvez desde o princípio do mundo.)”, a que se segue o verso “Chamo-lhe pedra”, prosseguindo depois com variações sobre o valor expressivo e referencial dos vocábulos: “E porque não pierre? / Talvez mais exacta, / mais aquém de ser nuvem. // Pierre // Ou stone (palavra com menos pele). / E porque não sten (do país da neve rangida). / Ou pierra / Ou outra palavra qualquer inventada / (…)” (PVI: 11).

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São várias as instâncias da obra em verso e em prosa de J. Gomes Ferreira que nos dizem do seu comprazimento com a corporeidade fónica e gráfica das palavras, do prazer em saboreá-las enquanto matéria acústico-articulatória, à margem do significado. Como no passo em que comenta como caíram por terra os seus preconceitos em relação à língua norueguesa e que revela bem o “ouvido musical” do escritor-músico:

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Fora uma das minhas surpresas ao desembarcar em Oslo: a língua, que afinal muito diferia do aglomerado de sons de lixa bárbara previsto na pátria. Pelo contrário: soava como um arcada de violoncelo a que os oe, oe, oe, os y y y e a formação do plural com o r, sem a sibilante que tão desagradavelmente assobia no português, emprestavam uma doçura viril particular.” (MP: 155)

Noutro passo deste mesmo livro, o autor referirá a “volúpia de saborear bem as sílabas” (p. 156), o gozo com palavras de raiz grega ou latina, e, em Tempo Escandinavo, a aprendizagem de um outro idioma surge mesmo com conotações erótico-amorosas, como quando Lotte, lhe ensina o verbo amar: “ E a desenhar-se em atitudes de vício mole insistiu no verbo amar…No verbo å elske. Jeg elsker, du elsker, han elsker. Presente do indicativo.” (TE: 186). Será, porventura, no papel de intérprete-tradutor, em convívio não só com noruegueses mas também com outros diplomatas de outros países, que J. Gomes Ferreira terá também entendido que na tradução é apenas e sempre (ou tendencialmente sempre) o conteúdo que se traduz, numa exclusão do corpo da palavra falada ou escrita. A inserção, em Tempo Escandinavo – e noutras obras do autor –, de palavras em idiomas diversos evidencia um desejo da palavra na sua plenitude fónica e gráfica (ou visual), explicando também o uso de modo prolixo de onomatopeias e palavras onomatopaicas de toda a espécie. J. Gomes Ferreira faz parte, como José Cardoso Pires e Dinis Machado, daquele grupo de autores cuja escrita tem uma intensa marca oralizante. Em vários momentos, aliás, o escritor

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declara o seu fascínio pelos discursos plurivocais, imaginativos e insubordinados (como o calão) da linguagem falada pelo homem comum. Em Gaveta de Nuvens (onde acumula exemplos de palavras e expressões coloquiais e populares) escreverá: “Que ímpeto nos força a buscar a linguagem quase sempre delirante que anda escondida na linguagem diária?” (1975: 167). A pontuação do escritor (a merecer um estudo isolado demorado), para lá da função poética e expressiva, tem uma acentuada função supra-segmental, convocando a voz e o som. Reticências, pontos de exclamação, parênteses – os sinais dominantes – são imprescindíveis notações de entoação, de ritmo, de intensidade na obra deste autor. Combinados com a repetição de certos vocábulos (por vezes em sequência de três ou quatro palavras – mas sobretudo em ritmo ternário), estes sinais contribuem, com outros recursos, para uma prosa de excepcional qualidade musical.11 Em passos de poética explícita, o autor referir-se-á ao seu processo de composição como “processo serial”, explicando a importância do que designa por “palavra-fulcro”, ou “palavra de ouro” (como “azul” ou “madrigal”), colocada, por vezes, “num sítio despropositado e mesmo contra a corrente da lógica gramatical” (MP: 190). Noutro momento, a eplicação da génese do poema quase ultrapassa mesmo a mera analogia com a música. Como num longo passo de Memória das Palavras ou o gosto de falar de mim, de que apenas se transcreve um trecho: Isto é: por baixo de cada poema dir-se-ia existir o esqueleto de uma melodia musical inexpressa – de que eu bem sentia o desenho e o ritmo – coincidente com versos cujas sílabas correspondiam ao valor dos sons musicais que, como na música, iam da semibreve à semifusa. Assim, um poema de compasso quartenário (quer dizer: em que a unidade de tempo é a semínima) poderia conter versos desde uma sílaba (com o valo da semibreve). (MP: 185)

De certo modo, J. Gomes Ferreira aventura-se também, antes dos poetas experimentais da década de 60, numa escrita

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tendencialmente interartística e verbicovocal, de que ele próprio se terá apercebido logo em 1961-62, nos alvores da poesia experimental, quando escreve o poema XXIV, da secção “Casa” (Poesia VI), onde as letras das palavras MORTE VERTICAL se alinham ao longo de um eixo vertical, com a palavra POÇO, intersectada esta, em eixo horizontal logo, após o M:12 Precede o poema o seguinte segmento parentético:

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(Resolvi dedicar-me à poesia concreta por experiência de expressão. Olho da janela para o poço onde, há muitos anos, se afogou uma cigana. Ou um cigano. Tanto faz. Só existe talvez um sexo. Dividido.)

Sem entrar na categoria da poesia experimental dos anos 60, a obra de J. Gomes oferece-nos, assim, inúmeras instâncias da associação entre a palavra e a imagem, com recurso esporádico a signos icónicos e processos de montagem de textos de natureza diferente. Refiro-me, por exemplo, à inserção de partituras em passos de cariz ensaístico, como quando explica o seu processo de composição poética em Memória das Palavra ou o gosto de falar de mim (vd. p. 186). Ou ao desenho inserido em Dias Comuns V (2010), onde ilustra o olhar “em curva” de António Ferro, que não olharia as pessoas de frente (131). Ou ainda à própria mancha gráfica dos poemas, que impede a leitura linear (e notória em Dias Cruéis). Este comprazimento nunca é de cariz formalista ou fetichista, como o comprova, de forma directa, um fragmento vindo a lume nesse mesmo diário, quando descreve a sua emoção e nostalgia perante uma primeira edição de Clepsydra, que pertencera a Guilherme Faria, e se delicia com os vestígios ds presença deste no livro: Desfolhei-o com lentidão de quem caminha num museu. Ou procura um rasto. Logo os primeiros quatro versos da Inscripção (assim mesmo com “p”) – Eu vi a luz em um paiz (com “z”) perdido, etc. – estão assinalados com uma chaveta a lápis. (…)

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Entretanto volto a página e leio: Ó meu coração torna para traz etc. onde não descubro qualquer marca de adesão. Mas o entusiasmo suscitado pelo Quem polluiu etc. não tem tempo de arrefecer, pois aparece logo o Floriram por engano as rosas bravas riscado de alto a baixo. Ao que se segue o soneto E eis quanto resta do idyllio (IDYLLIO?) acabado / Primavera que durou um momento… – só com estes dois versos destacados. (Aproveitamento nítido da voz alheia para uma confissão pessoal.) (23-24)

Ao prazer detectivesco e fantasioso de decifrar as emoções subjacentes ao traço microscópico deixado pelo seu primeiro leitor – o tipo de sinal, a pressão do traço, etc. –, mas também o arrepio de quem antevê anunciado o suicídio (concretizado) em dois traços, junta-se o prazer sensual ou volúpia perante grafemas já extintos. Se esse prazer voluptuoso com o tracejado da escrita já existia antes da partida para a Noruega, ele foi, decerto, exacerbado no contacto com uma língua eslava como a norueguesa, cuja gramática e léxico contaminaram a escrita do autor. Refiro-me, antes de mais, ao processo de composição de palavras, às fantasias vocabulares que encontramos em Aventuras de João sem Medo, do género do gentílico “choraquelogobebenses”, adjectivo formado a partir de um termo já de si fantasioso e rítmico (na alternância sílaba tónica /sílaba átona) como Chora-Que-LogoBebes. Aliás, o encantamento dessa narrativa delirante não seria o mesmo sem a presença das bizarras palavras que obrigam o nosso olhar a deter-se nelas. Elas fazem a sua aparição logo em 1933 e mantêm-se no livro de 1963, que nos oferece uma vasta gama de exemplos de neologismos: Alguns exemplos: “Cordilheira-do Vento-aos-Coices”, ”ex-Cavaleiro–Do-Ódio-À-Espada”, “Não-Se-Sabe-Quem”,“Reino-das-Nuvens-SempreNuvens”; “A princesa do Reino-que-não-há-meio-de deixarde-ser-nuvem”; “Liga das Mulheres-que-querem-que-existam-príncipes-encantados”. Estes encadeamentos vocabulares, ancorados na justaposição de lexemas ou morfemas, que mantêm, pela sílaba tónica, algo da sua prévia autonomia, não se con-

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finam de modo algum aos bosques ficcionais de Aventuras de João sem Medo. Eles pontuam as obras de carácter ensaístico e memorialista e surgem como que em alto-relevo, dada a hifenização mais notória, em todos os seus livros de poesia, com efeitos, por vezes, bem surpreendentes. Fiquemos com uma amostra respigada de livros vários: “noite-em-que-tudo-se-cria-com-amorte” (PMI: 77); “ao álcool de arte-pura-para-esquecer” (PMI: 115); “Cidade das Sedes Apagadas” (PMI: 202); “Tu-eu-outraaquela-ninguém-corpo-luz-lama” (PMII: 177); “alguém-outroninguém-tu / – eu.” (PMII: 225); “Do recomeço do mesmo destino-outro-igual-diferente.” (PM II: 233); “– labirinto de sombras e de cisnes / no céu de água-sol-vento-luz concreto irreal…” (PMII: 217); “o para-além-de-não-haver-Ar.” (PVI: 128); “Senhor-Que-Quero-Que-Existas” (PVI: 145); Baía do FogoQue-Tanto-Custou-A-Acender” ou no mesmo poema “PeixesQue-Cheiram-a-Podridão-do-Luar” (PVI: 85); “Enquanto as Dourodeias” (PVI: 90); “Bispo de Fechar-os Olhos-para-Sempre” (ST: 108); “Tom-Não-Sei-Quem” (EAE: 980);” “Abismo-denão-valer-a-pena-repetir-o-que-já-estava-feito-e-refeito-emurcho!...” (MP: 96); “Poesia-em-voz-alta, Poesia-de-falarsozinho” (MP: 161);“o estilo-Irmãos-Marx-absurdo-parvo-asério” (MP: 172); “A-arfar-de-já-não-poder-aturar-maischiça!” (MP: 172); “o grito-do-trabalho-escravo-frio” (MP: 192); “Poeta-com-Remorsos-de-Amor” (GN: 51; numa referência a Almeida Garrett). Embora a composição (por aglutinação ou justaposição) seja um processo usual de enriquecimento lexical da língua portuguesa, é difícil não encontrar nestas palavras de grande dimensão reminiscências do contacto directo de J. Gomes Ferreira com línguas eslavas, onde abundam as palavras compostas deste modo.13 No ensino dessas línguas há mesmo referência a essas palavras como monstros, como o termo norueguês “menneskerettighetsorganisasjoner” (em port.: organização dos direitos humanos), cuja segmentação ou decomposição em partes é um desafio para qualquer aprendiz dessas línguas. Por vezes, a

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(de)composição errada engendra sentidos inesperados que podem ir do grotesco ao poético. Que J. Gomes Ferreira se entregou com prazer e interesse po(i)ético a esse exercício provam-no pontualmente versos como o que remata o poema XXV de Poesia VI: “Dagmar / Sonho, lume, sol, sem sexo lunar. / Dag, dia, sjö, mar” (129). Semelhante trabalho poético, quase mágico, de extrair palavras de outras palavras, destruindo lugares comuns e blocos petrificados, tem como contraponto ou complemento todo um processo de recomposição vocabular, de recriação de nomes e sequências que produz, regra geral, um forte efeito de estranhamento.14 Este processo de criação literária é indissociável de uma demanda obsessiva do escritor da palavra mais adequada, mais próxima, que se traduz quer numa pontual prática literária heideggeriana da escrita sous rature, quer na importância dada ao tropo da comparação, cuja mestria por parte de J. Gomes Ferreira foi já evidenciada por Joana Matos Frias, no ensaio “José Gomes Ferreira, o caçador de Imagens”.15 Há exemplos nítidos da escrita sous rature, como nos parênteses (riscos) que mostram outros riscos, no gesto de fingir apagá-los, como neste passochave do poema XXXV, de Poeta Militante II: “(Risquei o verso que concluía este poema: “Entretanto os deuses preferem a morte…)” (132). A comparação, revalorizada na escrita deste escritor é o equivalente tropológico dos hífens e traços de união que pontuam as suas palavras, a um tempo conhecidas e desconhecidas, palavras cinemáticas, eivadas de dinamismo, projectando imagens em movimento (ex. de “tarde-quase-noite”, CA: 171). A comparação aproxima realidades diferentes, mas não as funde ou fixa; nem tão pouco as polariza, mas antes as mantém em estado de suspensão, de transitividade e de impermanência (ser/não ser), convidando o leitor a captar uma terceira dimensão, a percepcionar o real em permanente fluxo ou mutação. Um bom exemplo da sugestão de um universo flutuante, em constante movimento, encontra-se no poema “Aquela Nuvem”, reminiscente de um passo de um diálogo entre Hamlet e Polo-

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nius em Hamlet. Não se trata, de facto, de afirmar a irrealidade do “real”, de pôr em causa o mundo exterior (a sua fragilidade ontológica, por assim dizer), mas de afirmar o poder transfigurador do sujeito que olha e da linguagem criadora. J. Gomes Ferreira, exímio no uso das formas nominais, subscreveria, decerto, a afirmação do sinólogo Ernest Fenollosa, quando este se ocupou da poesia chinesa: “A true noun, an isolated thing, does not exist in nature. Things are only the terminal points, or rather the meeting points, of actions, cross-sections cut through actions, snapshots. (…) The eye sees noun and verb as one: things in motion, motion in things” (apud Pound 1969: 10). Pelo traço, pela comparação, J. Gomes Ferreira fala-nos de um universo movente, incerto, cuja melhor metáfora é a nuvem, dando-nos a ler poemas que parecem animizar-se nesse processo de dar a ver em simultâneo quer o olhar transfigurador do sujeito que percepciona quer um mundo percepcionado ou imaginado. A comparação diz de um processo tacteante, de aproximações sucessivas, de deslocações do olhar, que é também o próprio processo de escrita dos poemas. Um acto ininterrupto, de emendas sucessivas, de tentativas e variações textuais, definidos os poemas, várias vezes, como seres moventes, infixos, como se fossem seres vivos “trepadeiras “ou cobras” (MP: 187). E se a metáfora orgânica ocorre por vezes sem modalização, é de reter a definição que, na sequência de um seu passo de filosofia da composição poética, em Memória das Palavras ou o gosto de falar de mim, escreve José Gomes Ferreira: E assim num belo dia encontrei-me a proclamar para mim mesmo: um poema é como um ‘ser vivo’. (Chamo a atenção para este importantíssimo como destinado a evitar confusões interpretativas futuras.) Sim, um ‘ser vivo’ (e não uma coisa ou um objecto como agora pretendem alguns). Uma espécie de bicho ou de planta de palavras com seiva, sexo, perfil, mucosas – e morte também. (MP: 185)

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Nada surge no universo poético deste escritor (incluindo a prosa não ensaística) como definitivo ou cristalizado; nem mesmo os “livros” de poesia, que, no fundo, domesticam, por questões pragmáticas, sequências poéticas que surgem como um continuum de poemas sem título (na sua maioria), que compelem o leitor a um movimento ininterrupto de leitura. Este e muitos outros aspectos da obra de José Gomes Ferreira fazem com que a sua obra mantenha a sua inicial beleza e frescura e seja hoje de leitura tão atractiva como a de muitos grandes escritores do século XXI. >

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Notas 1 Este artigo foi elaborado no âmbito do Projecto “Interidentidades” do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Unidade I&D financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, integrada no Programa Operacional Ciência e Inovação 2010 (PCOI 2010), do Quadro Comunitário de Apoio III (POCI 2010-SFA-18-500). [2] Nas referências entre parênteses, recorre-se às seguintes abreviaturas das obras de José Gomes Ferreira: Aventuras de João sem Medo: AJSM; Coleccionador de Absurdos, com a biografia das duas ou três infâncias do coleccionador: CA; Gaveta de Nuvens: GN; Memória de Palavras ou o Gosto de Falar de mim: MP; O Sabor das Trevas: ST; Poeta Militante II: PMII; Poeta Militante III: PMIII; Poeta Militante VI: PMVI; Tempo Escandinavo: TE. 280>281

[3] Dos vários trechos do autor, veja-se este retirado de Memória das palavras ou o gosto de falar de mim: “Tudo me servia: a morte de uma borboleta, o fuzilamento de Lorca ou de Companys (…) o pontapé numa pedra, o medo de atravessar o corredor às escuras, a flor pisada e principalmente (…) essa coisa nenhuma ‘que é o grande alimento dos poetas vorazes’” (MP: 193). [4] O que não significa que esse seja um encontro feliz ou para a vida, como parece ter sido o caso de J. Gomes Ferreira (como mais adiante veremos). [5] Sobre a reescrita de que resulta o livro de 1963, vale a pena ler a recensão que Óscar Lopes lhe dedica n' O Comércio do Porto (24 de Set. 1963: 6). O ensaísta censura ao seu autor a diluição da atmosfera de fantástico dessa história que se opera na versão em livro, motivada por constantes intrusões extradiegéticas, irónicas e humorísticas, do narrador (como no cap. XII, em que João sem Medo pede a J. Gomes Ferreira que o salve). Insinua Óscar Lopes que a desconstrução do maravilhoso se deve a uma concepção demasiado limitada de “realismo” por parte de J. Gomes Ferreira. Escreve o crítico: “Ora a limitação que mais me palpita no realismo de Gomes Ferreira é o receio (ou o remorso) da fantasia, que (veremos) o leva a negações abstractas e a compromissos. O realismo não tem nada que ver com a negação abstracta do maravilhoso nem com um compromisso entre o senso comum e a fantasia” (ibidem). [6] De salientar que a ensaista se refere, com razão, às Aventuras de João Sem Medo como “um texto privilegiado para abordagens interdisciplinares”. [7] Vd. a ligação a pedras, logo na abertura do capítulo II “A árvore dos dez braços”, quando o herói inicia a sua jornada: “notou com assombro que as pedras do Caminho da Infelicidade não se assemelhava à inofensivas pedras vulgares, mas possuíam bocas enormes com fileiras de dentes afiados que variavam conforme o tamanho e a configuração daquelas autênticas feras minerais” (21). Há passos de Aventuras de João sem Medo em que as implicações políticas emergem subitamente, como quando o narrador procede a uma enumeração onde surge a Boca Amordaçada, e sobretudo na sequência em que se fala do Devorador das Sete Bocas, o Devorador, que escravizava e torturava o seu povo, a que acabaria por se revoltar (45). A redução do número de bocas aparece como sinónimo de redução de poder; na mesma linha, estabelece-se uma relação directa entre o tamanho da boca (e dentes) e o poder – pelo que ainda faz todo o sentido ver também na história uma alegoria política (como o fez Alexandre Pinheiro Torres).

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[8] Conceito utilizado por Helena Buescu em “Exile, Metaphor and Trauma” (2007: 167). [9] Chamo aqui a atenção para a leitura que Lubomir Dolezel faz da poética de Wordsworth em A Poética Ocidental. Tradição e Inovação, no capítulo “O Conceito de Linguagem Poética: Wordsworth, Coleridge, Frege”. O crítico demonstra nesse lugar quão erradas são as leituras dos que entendem em termos literais e simplistas, i.e, de puro mimetismo, a apologia wordsworthiana da “linguagem realmente usada pelo homem” comum. Como bem argumenta Dolezel, na concepção estética do poeta inglês, o homem comum é já um ser idealizado, existindo entre a linguagem poética e a (hipostasiada) linguagem corrente (afinal, a do homem rural, imbuída de imagens bíblicas) uma dissemelhança produzida pelo metro, por padrões rítmicos e outros requisitos verbais. Sem contestar a teoria expressiva desse texto, Dolezel mostra como Wordsworth também usa uma “curiosa conjunção de fraseologia aristotélica e romântica” (Dolezel: 133). [10] Noutro episódio, é já a desconstrução parodística do estereótipo que encontramos: “Delicadeza? Mas eu sou latino. Violento portanto. Brutal. E vou despedaçar-lhe o vestido (de pintinhas) com a fúria esperada. Aliás – é curioso – nada disto está a acontecer. E Eva nem sequer esboçou a resistência com que as mulheres supõem agradar aos homens” (TE: 148). [11] Não será também fácil encontrar em poetas contemporâneos de José Gomes Ferreira poemas que tão ostensivamente remetam explicitamente para o universo da música (compositores, instrumentos, obras…). [12] Em Diário V (p. 102) num balanço de erros literários cometidos, refere um convite (que rejeitara) feito por Mello e Castro para colaborar em publicações experimentalistas. [13] Opto, no que diz respeito ao processo de formação de palavras, pela terminologia tradicional, mais familiar aos eventuais leitores deste ensaio. [14] “Escrevo a palavra PÁSCOA. E agora vou brincar com ela. Entreter-me a cortá-la aos bocadinhos. // Começar por decepar-lhe as últimas sílabas que desenho gostosamente em maiúsculas: COA. // (…) Mas da palavra PÁSCOA, depois de mutilada, ainda resta a primeira sílaba importantíssima: “PÁS”, Plural de pá. E com uma pequena mudança do “S” em “Z”, “PAZ”. (…) Pas, como é natural, fez-me logo recordar a partícula norueguesa ikke, também de negação, que se usa, quase da mesma forma, como em francês. “Je ne sais pas”, “jeg vet ikke”, “eu não sei”… E cá estou de novo na neve. (…) A neve na Noruega, é de certo modo, pascal. (…) Páscoa, páscoa… Tempo de ovos por toda a parte (…) Espera! Pomba. O símbolo da Paz. “PAZ”. Vou continuar a brincar. Substituir o “Z” pelo “S”. (CA: 28-29). [15] In Viagem do Século XX em José Gomes Ferreira, org. por Isabel Pires de Lima et alii: 115-133.

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