Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Educação. Ângela Maria Gomes Ribeiro Fernandes

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Educação

Ângela Maria Gomes Ribeiro Fernandes

Microfísica da

Author Mirella Igrejas Sales

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Educação

Ângela Maria Gomes Ribeiro Fernandes

Microfísica da escola: o cotidiano em análise

Rio de Janeiro 2010

Ângela Maria Gomes Ribeiro Fernandes

Microfísica da Escola: o cotidiano em análise

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa, Magistério Superior e Políticas Públicas.

Orientadora: Profª. Dra. Estela Scheinvar

Rio de Janeiro 2010

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A F363

Fernandes, Ângela Maria Gomes Ribeiro.. Microfísica da escola : o cotidiano em análise / Ângela Maria Gomes Ribeiro Fernandes. - 2010. 77f. Orientadora: Estela Scheinvar. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação.

1. Escolas – Teses. 2. Disciplina escolar – Teses. 3. Políticas públicas – Teses. 4. Subjetividade – Teses. I. Scheinvar, Estela. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação. III. Título.

dc

CDU 37.018.2

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação. _______________________________________ Assinatura

____________________ Data

Ângela Maria Gomes Ribeiro Fernandes

Microfísica da escola: o cotidiano em ação

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa, Magistério Superior e Políticas Públicas.

Aprovada em 23 de setembro de 2010.

Banca Examinadora:

_____________________________________________ Profª. Drª.Estela Scheinvar (Orientadora) Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da UERJ _____________________________________________ Profª. Drª. Rosimeri de Oliveira Dias Faculdade de Formação de Professores da UERJ _____________________________________________ Profª. Drª. Ana Lucia Coelho Heckert Departamento de Psicologia da UFES

Rio de Janeiro 2010

DEDICATÓRIA

Dedico essa dissertação às minhas filhas Adriana, Maíra e Mariana para que testemunhem a importância da Educação Permanente na formação de um profissional.

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por me dar sempre ânimo para prosseguir em busca dos meus sonhos, aos meus familiares por compreenderem as minhas ausências, a minha orientadora e amiga professora Estela Scheinvar pela paciência em aguardar a mudança de meu olhar sobre os acontecimentos.

MUDE Mas comece devagar Porque a direção é mais importante Que a velocidade Clarice Lispector

RESUMO FERNANDES, Ângela Maria Gomes Ribeiro. Microfísica da escola: o cotidiano em ação. 2010. 77 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

Este trabalho coloca em análise as vivências de professores, alunos, pais e demais participantes da comunidade escolar, tendo como objetivo problematizar os sentidos das práticas presentes na escola. Para tanto, apresenta alguns mecanismos de controle, lançando mão do método arqueológico, propondo analisadores e, como indica Foucault, operando descentramentos. Trata-se de uma análise que se propõe a passar por fora das instituições cristalizadas, percorrendo as tecnologias de poder que as produziram. No mesmo sentido, as práticas cotidianas operam como analisadores, levando a problematizar as linhas que as produzem. Este trabalho se baseia nas experiências da autora como docente, diretora de escola, bem como nos seus registros como coordenadora regional de educação no estado do Rio de Janeiro. Como resultado destaca-se a descoberta de saberes cristalizados que dialogam com aqueles insurgidos contra os efeitos centralizadores de poder – relações de resistências. Também aponta para a necessidade de ampliar a discussão dos mecanismos por meio dos quais as práticas na escola adotam a perspectiva disciplinar, dentre os quais destaca-se a pedagogia higienizada. Discute-se a afirmação de certos saberes, produtores de subjetividades obedientes, sistematicamente atravessadas por práticas de resistência, problematizando e questionando as verdades produzidas, no sentido de possibilitar a invenção de outras práticas num devir-revolucionário.

Palavras-chave: Escola. Indisciplina. Micropolítica. Produção de Subjetividade.

ABSTRACT

This paper is about the analysis of the experiences of teachers, students, parents and other school workers, aiming to discuss the practices around the so called indiscipline. It aims the meanings of these practices in school, discussed in a genealogical perspective. For that, presents a few control mechanisms, giving up the archeological method, suggesting analyzers and, as indicates Foucault, operating overthrows. It is a summary that goes beyond institutions covering the technologies of power produced .Similarly; the daily practices leading analyzers operate as illustrating the lines that are produced. This work is based on the experiences of the author as a teacher and school principal plus the record as the regional Coordinator of education in Rio de Janeiro. As a result there is the discovery of knowledge that dialogues with those risen against the effects of centralizing power- relationships resistance. It also points to the need to broaden discussion of the mechanism by which disciplinary perspective are adopted at schools. It discusses the affirmation of certain knowledge-producing obedient subjectivities systematically traversed by practices of resistance, questioning the truths produced in order to allow the invention of other practices in a becoming-revolutionary.

Key-words: School. Indiscipline. Micropolítica. Production of Subjectivity.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................

09

1

A MICROFÍSICA COMO PERSPECTIVA DE ANÁLISE........................

15

1.1

A escola como espaço disciplinar.......................................................

18

2

O COTIDIANO EM ANÁLISE................................................................

27

2.1

27

2.3

Vivências das normalistas da década de 1970 – deslocamento e produção de outros movimentos......................................................... Higienismo e desqualificação: entre práticas salvacionistas e inércias................................................................................................... Poderes paralelos, práticas de silenciamento e confinamento........

42

2.4

Assujeitamento e desaprendizagem..................................................

45

2.5

Corporativismo e espetacularização do sofrimento.........................

50

2.6

Construindo a escola inventada: produção de verdade e prática de diálogo..............................................................................................

61

3

DEVIR-REVOLUCIONÁRIO: OUTROS OLHARES SOBRE AS PRÁTICAS.............................................................................................

68

REFERÊNCIAS......................................................................................

74

2.2

33

9 INTRODUÇÃO Entre festas de 15 anos dos “anos dourados” e a realidade dos “anos de chumbo” parte de uma geração foi forjada. E entre estudantes no centro da cidade gritando por liberdade ao som de Geraldo Vandré1, parte desta geração tomou a decisão de ser professora, fazendo deste ofício uma arma ideológica contra a opressão e a exclusão, pensando em transformar o mundo através do conhecimento para todos. Tantas ideias, tantos ideais numa época de incertezas, na qual cada olhar espreitava fagulhas de “certezas” em relação a crianças, frente ao fracasso dos adultos para construir uma sociedade justa. Eram os idos de 1968 quando nossa geração botou o pé na porta e conquistou visibilidade. Em outubro de 1968, numa cidade do interior ao sul do Estado de São Paulo, Ibiúna, o regime militar, numa botinada só, prendeu mais de mil estudantes que lá estavam reunidos para o XXX Congresso Nacional da UNE (União Nacional dos Estudantes). A falta de uma estratégia disciplinar permitiu a identificação do local do Congresso. Da mesma forma que o fez na guerrilha rural do Araguaia – região amazônica brasileira, ao longo do Rio Araguaia, onde cerca de 80 companheiros do PCdoB (Partido Comunista do Brasil, uma dissidência do PCB) com pouco armamento, sem preparação de manuseio das armas e num local de difícil sobrevivência, foram executados em uma operação envolvendo dez mil militares. No documentário de Eduardo Castro “A guerrilha do Araguaia – as faces ocultas da história” há depoimentos de camponeses que foram reféns por vinte anos, ameaçados pela lei do silêncio: “os guerrilheiros estavam mais preparados para morrer do que para matar” e 1 Geraldo

Vandré, cantor e compositor, formado em Direito, ligado aos movimentos estudantis emergentes a partir da década de 1960, famoso no ambiente de festivais de música. Dentre as composições de sua autoria destaco a música “Pra não dizer que não falei de flores”. Após a promulgação do AI-5 foi exilado e morou no Chile, França, Argélia, Alemanha, Áustria, Grécia e Bulgária. Tornou-se uma espécie de “mito” da resistência à ditadura militar. “ninguém podia se aproximar d‟a gente para conversar, isso em 1981, foi quando em Brejo Grande denunciamos que aqui era pior que nos campos de concentração da Alemanha nazista, porque lá tinha arame farpado e aqui não, 10

mas ninguém podia se aproximar d‟a gente” (A GUERRILHA DO ARAGUAIA, DOCUMENTÁRIO, 2007).

A necessidade da obediência como condição para a militância disciplinada ficou evidenciada para toda uma geração que vivenciou esses acontecimentos, distantes das manchetes de jornais, mas presentes nos “corredores” não oficiais das informações. Passeatas, assaltos a banco, sequestros de pessoas importantes, tantas ações que possibilitaram a identificação de muitos de nós. Desta feita, devidamente fichados percebi que fazíamos parte de um jogo que dava munição ao poder do Estado para a manutenção daquele regime de força e de exceção. Então grande parte dessa geração resolveu atuar à margem e é desejando abrir essas “caixas pretas” como chama Lourau (1993), que, me debruço entre tantas histórias que passam como um filme em rotação acelerada. A “desinstitucionalização” desses acontecimentos2 que estão na margem pode contribuir para uma análise das minhas implicações como pesquisadora e o ato de pesquisar com esta perspectiva traz, além das linhas duras, linhas de fuga3 para esta estrada da vida pretensamente “pronta” e disciplinarizada. 2 A partir das ideias de Foucault, Lechuga entende como acontecimento “... uma relação de forças que estão em jogo na história, que obedecem mais ao azar da luta, que ao destino de uma mecânica. Também indica a passagem de uma episteme a outra, da clássica à moderna, e instaura novas práticas. Para analisar acontecimentos é essencial vincular discursos, instituições e práticas”(LECHUGA, 2007:197). 3 Segundo Deleuze e Parnet, numa linha é sempre necessário encontrar o meio e não o princípio e o fim. Esse meio não tem a ver com médias ou centrismo, o meio é aquilo que existe onde se dá o ENCONTRO que gera o NOVO. Meio é potência, é o que existe ou poderá existir ENTRE duas realidades. Não se trata da realidade do bom/mau, herói/vilão, rico/pobre, mas da realidade das possibilidades. A linha de fuga é “a linha de gravidade ou de celeridade” onde os fluxos se conjugam e “os limiares atingem um ponto de adjacência e de ruptura”. A idéia de DEVIR é também desta ordem. Deleuze e Parnet colocam que DEVIR são as possibilidades, como uma intensidade, como uma velocidade absoluta. E uma velocidade absoluta é diferente de uma velocidade relativa. A velocidade relativa é um movimento de um ponto ao outro, ou seja, com princípio e fim. Mas o que importa é o MEIO, daí a importância da velocidade absoluta. A velocidade absoluta é uma intensidade que permite traçar uma linha de fuga. Uma velocidade absoluta pode ser uma imanência, não é um movimento. Os autores nos dizem que a velocidade absoluta é a velocidade dos nômades. Os nômades traçam uma linha de fuga, desterritorializam-se. Essa velocidade absoluta é DEVIR, não é mensurável, é apenas o modo de estar presente no espaço. (Deleuze e Parnet, 1998) 4 De acordo com Lourau, “instituição não é um conceito descritivo (...) tratase de um conceito produzido por (e para) análises coletivas. Não temos a instituição diante de nós no início de uma pesquisa, exceto se a tomarmos no sentido banal do termo: o jurídico.” É importante “utilizar a noção de instituição como campo de análise” (Lourau, 1993: 61).

Foi também uma geração que nasceu e se criou dentro da instituição4 disciplina: hora de escovar os dentes, refeições silenciadas, pois era a hora dos adultos conversarem, hora de estudar, hora de dormir. Dia para se tomar refrigerante, dia para se tomar sorvete em Ipanema - no Moraes, dia de ir ao Joá comer churros... tudo planejado, tudo organizado, como roupas engomadas e cabelos perfeitamente alinhados. 11

A instituição militância é outro acontecimento que faz parte desta geração. Os “pontos”, os “aparelhos”, os horários milimetricamente cronometrados. Minutos de atraso poderiam desencadear muitas medidas de segurança, como o abandono de lugares, a queima de materiais e tantos transtornos. A militância que requeria uma organização de tarefas, panfletagem, comícios relâmpagos, leitura de literatura proibida, finais de semana enclausurados lendo “As guerras camponesas” de Engels, “O Estado e a Revolução” de Lênin, “O que todo revolucionário deve saber sobre a repressão” de Victor Serge, “Luta de classes na França” de Marx e tantos outros. Todos encapados com papel de jornal ou papel pardo. Corações disparando a cada batida na porta, adrenalina pura. Ali também a disciplina dos trajetos, dos horários era primordial. Havia também hábitos aprovados pelo coletivo e outros recriminados como questões de desvio burguês. Saí de uma formação escolar religiosa católica, rígida, tentei esquivar-me das decisões do bem e do mal, do pecado, da culpa. Em uma de minhas dobras de vida encontrei na militância também esse sentimento forte do certo e do errado e quando cheguei como profissional de educação à escola de novo estava lá a perspectiva binária. Essa tatuagem que a vida esculpiu por séculos em muitas gerações. Na militância tínhamos muitas vezes que partir para o “sacrifício”, pois muitas tarefas não eram prazerosas, havia escalas que eram obedecidas. Dizia-se textualmente: “Quem vai hoje para o sacrifício?” Por isso me parece instigante desembrulhar esse substantivo, que muitas vezes é adjetivado – disciplina – e estudar o lócus escola, porque foi a partir das práticas que experienciei como educadora que surgiram questionamentos a serem respondidos. E essa lógica de encontrar respostas e verdades me encaminhou ao mestrado e tem sido desconstruída a cada texto lido, a cada dia de reflexão coletiva com o grupo de colegas e com a orientação. Voltemos à inserção na escola - a escolha das escolas das professorandas. A ordem de classificação no concurso determina a ordem de escolha de escolas, naturalmente depois da remoção por meio da qual os professores “veteranos” se deslocam para escolas mais próximas de suas residências, tudo de acordo, também, com pontuações que obtiveram pelos anos de magistério e pela distância do local de trabalho de suas moradias. Como iniciei minha ação de professora no município do Rio de Janeiro, na década de 1970, passo a me referir ao que se 12

segue considerando a distribuição física desta municipalidade. Portanto, as escolas públicas da zona sul, centro e adjacências ficavam agraciadas com profissionais mais experientes e nas escolas da periferia, da zona norte, zona oeste e de locais tidos como de periculosidade, lotavam professores recém formados. Isto em nada abona os experientes como melhor qualificados, mas aliado ao fato do enfoque pedagógico das escolas normais à época, que “preparavam” as normalistas para atuarem sob situações perfeitamente previsíveis e com alunos “ideais” que já chegavam à escola “prontos”, credencia os anos de magistério no campo como de um aprendizado singular e fundamental para a profissão. Há de se considerar também uma situação histórica: desde 1947 foi constituída a primeira Câmara de Vereadores do Distrito Federal e foram eleitos vários vereadores donos de escolas particulares como Celso Lisboa e Souza Marques. A exclusividade dos professores das escolas públicas primárias advirem das Escolas Normais públicas foi colocada em cheque e a legislação que estabelecia tal garantia aos que ingressassem às escolas públicas de formação de professores foi alterada. Mas, a regulamentação desta legislação só foi feita anos mais tarde no governo do prefeito Mendes de Moraes. Desta feita as escolas públicas formadoras de professores: Instituto de Educação, Inácio Azevedo do Amaral, Sara Kubistchek, Júlia Kubistchek e Carmela Dutra tiveram que submeter suas alunas a concurso público para a sua inserção no magistério público em finais da década de 1960. Anteriormente essas alunas, quando saiam dos bancos escolares, já tinham emprego público garantido. Sendo assim, quando fiz concurso para o magistério público em 1972 tive também como colegas de trabalho professorandas advindas da rede particular de ensino, naquela época prioritariamente dos Colégios Sion e Sacré-Coeur de Marie. Pelo exposto podemos inferir que o grupo de professorandas reunido para a escolha de escolas era inexperiente e acreditava que tinha uma missão política: transformar pela educação e/ou “salvar” da ignorância um contingente de crianças para conquistar um lugar no reino dos céus. Aprendemos mais do que ensinamos. De professora primária para professora de ensino médio, diretora de escola, líder sindical, parlamentar, coordenadora regional, numa trajetória “iluminada” pela busca de soluções, resoluções de problemas, novas ações, novas metodologias, 13

novos rumos para a escola, saídas. Esse feixe de luz que cegou a tantos de nós, impedia que víssemos o que se passava na zona proximal, porque escurecida permitia que os acontecimentos caminhassem sem serem notados, tornando seus partícipes invisíveis. Quem deveria contar a história da escola? Para muitos os registros legais, as leis de diretrizes e bases, as secretarias de educação, para tantos outros os profissionais de educação. Para um outro grupo, e me incluo neste, os que estão invisíveis nas dobras dos relatos ditos oficiais, que estão na zona proximal, sejam alunos, funcionários, familiares ou comunidade, por meio de uma fala que não busca verdades, caminhos e respostas. Uma fala de indagações e de escutas, até mesmo sem a pretensão de contar história alguma, mas que conta e reconta para aquele que “souber ouvidos”. Uma fala que permite pôr em análise os dispositivos5 que atravessam estudantes e professores, enfim, todos os envolvidos neste contexto. Como deveria ser estudada essa escola? Cheguei ao mestrado pensando em continuar minha busca por respostas, com a realização de um trabalho de dissertação com uma abordagem qualitativa, a partir de dados quantitativos. Os dados quantitativos seriam levantados através de questionário dirigido aos alunos numa amostragem de escolas, com uma entrevista semi-estruturada circulando entre perguntas fechadas e abertas. Hoje fui levada a perceber que nenhuma entrevista teria a possibilidade de suplantar o arcabouço de registros, falas, vivências de meus 40 anos de magistério. Que a busca que me movia estava na escuta e na percepção de sensações vivenciadas, no despertar dos acontecimentos e dos casos que margearam minha estrada profissional. Desobstaculizar essas falas, para trazê-las do burburinho da lembrança para o centro da cena e por meio delas, sem a preocupação de reconstituir a linearidade de fatos, experienciar a riqueza de informações contidas para as pistas de como são produzidas as relações na escola. 5 Para Foucault, os dispositivos são: “discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas [...] elementos heterogêneos, discursivos ou não... “O dispositivo está sempre inscrito em um jogo de poder, estando portanto sempre ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o condicionam. É isso, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por elas (…)” ( FOUCAULT, 1977:244 a 246). 14

Evidenciar esse tesouro, conhecer outros autores: Foucault, Deleuze, Donzelot, Lourau, Alvarez - Uría, Varela − outras formas de estruturar o pensamento, tem sido difícil e desafiador. Inicialmente sofrido, hoje com recaídas explicadas pelo atravessamento da vida de uma geração imbricada com “esse” tema – disciplina. Os acontecimentos que serão abordados nesta dissertação têm como finalidade (...) analisar, não os comportamentos, nem as idéias, não as sociedades, nem suas ideologias, mas as problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam (FOUCAULT, 1984:17). A aposentadoria chegou para nós, mas os sonhos daqueles jovens

continuaram a pulsar no meu corpo. Poderia ter a sensação do dever cumprido, trabalho feito, formando tantas gerações, mas como alquimistas em busca de possibilidades de produção do saber, eternos aprendizes dessa raça humana, aqui estou. A música que foi hino para essa geração da qual sou parte, ainda ecoa: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” 15

1 A MICROFÍSICA COMO PERSPECTIVA DE ANÁLISE Os estabelecimentos disciplinares operam por meio de técnicas minuciosas que definem certo modo de inscrição política e detelhada do corpo, uma “microfísica” do poder, como diz Michel Foucault (2004). É com o olhar curioso e investigativo que revejo e releio as práticas pedagógicas da minha geração, buscando identificar as técnicas utilizadas pelas escolas que foram palco para nossas histórias de vida. Essa análise microfísica dos acontecimentos cotidianos da escola, da relação de tensão entre os profissionais e entre eles, os alunos e familiares, vem relatada neste capítulo por meio de falas e histórias que ficaram atravessadas na minha vivência como saberes menores6 e assujeitados por todo um discurso que por definir-se como científico desqualifica o saber construído no cotidiano. Recorro ao saber menor não com o sentido de contrapô-lo à maioria, mas no sentido de um saber que resiste ao instituído. Foucault (2002) entende por “saberes sujeitados” aqueles saberes desqualificados por não serem conceituais, mas que estão presentes em práticas discursivas e não discursivas do professor, do inspetor de alunos, do coordenador de turno, dos alunos, da merendeira, do servente, das famílias dos alunos: saberes históricos, saberes das lutas. São saberes que quando fogem do discurso institucionalizado trazem a memória dos combates que não é mantida sob tutela sendo, por isso, importante recuperá-la. Machado (2006) coloca que a análise dos saberes pretende problematizar sua existência e suas transformações, “situando-os como peças de relações de poder ou incluindo-os em um dispositivo político” (p.167). A isto Foucault chama de “genealogias”, utilizando-se de uma perspectiva nietzschiana. Foucault chama as genealogias de anticiências, pois tratase da insurreição dos saberes(...) insurreição sobretudo e acima de tudo contra os efeitos centralizadores de poder que são vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa(...) È exatamente contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico que a genealogia deve travar o combate (2002:14/15). 6 Deleuze e Guattari trabalharam a noção de literatura menor, do saber menor, entendendo que é aquele que “faz com que as raízes aflorem e flutuem, escapando desta territorialidade forçada (...) nos remete a buscas, a novos encontros e novas fugas (...) nos leva sempre a novos agenciamentos.” Menor no sentido em que “o próprio ato de existir é um ato político, revolucionário: um desafio ao sistema instituído” (Gallo, 2003:71-85), um saber devir que é “máquina de resistência”, porque é algo que escapa ao instituído que resiste, que foge ao controle. 16

O que coloco em questão são os modelos e padrões presentes na vida da escola, que diante da confrontação diária entre os valores e condições do sistema de ensino, propõem diversas formas de comunicação e de relações singulares, quase nunca dentro dos parâmetros esperados. Questiono a transformação da relação que está posta desde a emergência da escola: de enquadramento, de resistência, de subserviência, de insurgência, de difusão de um único modelo de sociedade; relação de poder centralizador que avaliza um discurso considerado científico. E essa relação latente no ambiente da sala de aula convive com resistências advindas de outros saberes, expressas em práticas observadas no cotidiano microfísico deste espaço de poder. Microfísico não referindo à grandeza, ao microcosmo, mas ao jogo de mecânicas de interesses e exercícios de poder que produzem as relações. Foucault nos oferece essa ferramenta como possibilidade de análise da produção dos saberes. Esta é uma discussão que se trava na introdução feita por Machado na 3ª edição de “Microfísica do Poder”, na qual apresenta a forma com que Foucault utiliza-se da palavra poder. “O poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (MACHADO, apud FOUCAULT, 1982: X). Ele adota múltiplas formas que se expandem por toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais e concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação. Poder este que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo – (...) penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder (...) (Ibid., 1982: XII). Para Machado, as análises de Foucault não

restringem seu objetivo a dissecar e esquadrinhar as relações de poder, mas servem como um instrumento de luta que, articulado a outros instrumentos, se apresenta contra essas mesmas relações de poder. E é neste sentido que me debruço sobre as práticas da sala de aula, porque, para mim, pensar e escrever são fundamentalmente questões de resistência. Ao registrar a história como possibilidade de contar certa história, me proponho a escrever a história sob a ótica não oficial, a partir da perspectiva da margem. A “ótica oficial” de construção de uma história recorre a fontes comumente credenciadas, tais como publicações, legislações, entre outras, mas em uma perspectiva da margem pretendo buscar a história através da ótica de atores cujas falas não são expressas em documentos ditos oficiais, cujas lógicas e perspectivas 17

são encobertas pelos interesses da história produzida como oficial. Pretendo dar ouvidos a essas vozes, a partir não das formas já constituídas, dos lugares e limites já definidos, mas DA MARGEM, possibilitando acessar as lógicas contidas nas relações, dentre as quais as chamadas de indisciplina, desterritorializando o lócus oficial que produz o sentido de centro, não esquecendo o que nos diz Deleuze: “escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em vias de se fazer... É um processo, ou seja, uma passagem de vida que atravessa o vivível e o vivido” (1993:11). Leila Domingues Machado (2004) complementa: (...) é o próprio corpo daquele que ao ser percorrido pelas leituras se apossou delas e faz sua afirmativa. A escrita pode transformar a coisa vista ou ouvida em batalhas. Ela transforma-se em um princípio de ação. Em contrapartida, aquele que escreve se transmuta em meio a esse emaranhado (2004:149). Para o relato das minhas vivências com os “personagens” que dão

vida às minhas histórias, pretendo discorrer na perspectiva da microfísica das relações na escola. Para tanto, é necessário contextualizar o meu percurso para melhor compreensão das práticas. Porque é através delas que poderei estabelecer uma discussão com o meu objeto de pesquisa – a análise das relações cotidianas na escola. Como princípio metodológico trabalho com os descentramentos explicitados por Foucault em “Segurança, Território, População” (2008b) mais especificamente na “Aula de 8 de fevereiro de 1978”, por propor passar por fora do que se convencionou chamar instituição, para encontrar o que ele chama de tecnologias do poder, que “determinam a conduta dos indivíduos, os submetem a certo tipo de dominação e consistem em uma objetivação do sujeito”(Id.,1990:48). E aí, questiono neste trabalho, como algumas práticas vão se constituindo. As regularidades institucionais constituídas por regras dadas a priori deixam de ser foco de observação dando espaço às disposições de poder, redes, intermediações, pontos de apoio. Outro olhar necessário, dentro dos descentramentos, é desfocar o ponto de vista interno da função, pois o viés disciplinar não é comandado na história pelo sucesso ou fracasso da funcionalidade da escola, mas por estratégias e táticas que se apóiam até mesmo nos déficits funcionais. E aí o questionamento se dá sobre como tais estratégias e táticas estão sendo produzidas e de que maneira operam. 18

O descentramento está na recusa em assumir as relações na escola como já prontas, em medir instituições, práticas e saberes com o metro e a norma desse objeto dado. O desafio se impõe ao apreender o movimento pelo qual se constitui o objeto. Este se constitui por meio de tecnologias movediças que vão construindo um campo de verdade com objetos de saber. No percurso das páginas que serão lidas há a constante preocupação de que as práticas escolares não sejam assumidas como um a priori. Esses deslocamentos que os descentramentos propiciam produzem efeitos, desinstitucionalizando e desfuncionalizando as relações de poder e é desta feita que estabeleço sua genealogia, observando como se formam, como se transformam, como se desenvolvem, como se multiplicam a partir de algo diferente delas mesmas. Vou me utilizar de falas como ferramentas analisadoras, pois os analisadores podem problematizar o não-dito institucional, interrogando a construção dos discursos e as condições de sua produção (LOURAU, 1993). 1.1 A escola como espaço disciplinar Os métodos que “permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as „disciplinas‟“ (FOUCAULT, 2004:117). A Escola é um equipamento social que faz do corpo seu objeto, produzindo normalização, nesse sentido é um espaço disciplinar. Em palavras de Castro, o poder disciplinar “é uma forma de exercício do poder que tem por objeto os corpos e por objetivo a sua normalização” (CASTRO, 2009:110). Para discutir como se dão essas relações disciplinares, as técnicas de assujeitamento, os efeitos de normalização, este trabalho apresenta cenas da escola, sobretudo de dentro da sala de aula, para colocar em relevo as mecânicas por meio das quais o cotidiano escolar opera. Nesse sentido, a discussão sobre as relações de disciplina se dará no âmbito da micropolítica, a partir das ações cotidianas que exercem controle e manifestam as resistências. “A disciplina é uma anatomia política do detalhe.” (FOUCAULT, 2004:120). 19

A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo dará em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito (FOUCAULT, 2004:121).

Foucault alerta-nos que a disciplina é diferente da escravidão, da domesticação e da vassalidade, é o momento em que nasce uma arte do corpo, que objetiva mais do que o aumento de suas habilidades, pois aprofunda sua sujeição. As disciplinas controlam de forma minuciosa o corpo através de métodos, técnicas e exercícios, “o corpo humano entra numa maquinaria de poder que esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (Ibid.:118). Essa “anatomia política” descrita é também uma “mecânica de poder”, que define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros para que opere como se quer. Deste modo, a disciplina fabrica corpos úteis e exercitados, corpos “dóceis”. Ela, ao mesmo tempo em que aumenta a força dos corpos visando sua utilidade, potencializa a obediência. Ela separa o poder do corpo: de um lado, estimula “aptidão”, “capacidade” e sujeita a energia que é potência. Como bem explica Foucault: “(...) estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada” (Ibid.: 118). Esta vigilância individual e contínua, reproduzida pelas escolas por meio de dispositivos, apresenta aspectos que não são só o de vigilância, mas de controle e correção. Isto é, a transformação de indivíduos, através do controle da punição e da recompensa, conforme as normas estabelecidas pela instituição escola, visando a transformação dos educandos de acordo com o “programado”. O poder da norma aparece através da disciplina, o normal se estabelece como princípio de coerção no ensino e as escolas normais são criadas. Esse código definido pelas disciplinas será o da normalização do comportamento e da existência, não é um código da lei. A teoria penal da sociedade disciplinar buscará assegurar o controle dos indivíduos regulando o seu comportamento no momento mesmo em que ele se esboça. Assim como na sociedade soberana as ideias de lícito e ilícito são preponderantes, na sociedade disciplinar o que prepondera é a lógica do normal e do patológico. Para Foucault a 20

soberania é uma forma de poder que se exerce sobre os bens, a terra e seus produtos. Seus objetos fundamentais são o território e as riquezas. Exerce-se de maneira descontínua (...) Supõe a existência de um soberano, o corpo do rei. A disciplina, no entanto, orienta-se para os corpos e o que eles fazem, seu objeto é extrair deles tempo e trabalho. Exerce-se de maneira contínua mediante a vigilância (CASTRO, 2004:405). A singularidade da sociedade disciplinar reside na

existência de um desvio diante da norma. Para “normalizar” o sujeito se desenvolvem formas de controle e vigilância com o propósito de fazer o indivíduo interiorizar a culpa e arrepender-se de seus atos. Desta forma, surgem para Foucault as instituições pedagógicas com a função de controlar os sujeitos ao longo de sua existência, corrigindo suas virtualidades. Desde o século XIII a punição é uma maneira de ajustar as questões sociais, as relações sociais. Discute-se a prisão, mas não a própria noção de aprisionamento. A lógica da penalização é a ampliação do espaço da pena, da sanção, mas ao mesmo tempo que visa regular a sociedade também produz conflito. A pergunta seria então: O que colocar no lugar da pena? E a discussão se daria em torno da resistência que cria possibilidades. A pena é o olho do direito. As formas de se enfrentar os conflitos na escola pautam-se na pena, como por exemplo, substituir a suspensão de um aluno pela tarefa de elaborar um sopão para comunidades carentes. Elas se atualizam mas não se discute a lógica punitiva. A disciplina visa a utilidade por meio da obediência do corpo, produzida com métodos minuciosos que levam ao controle e à dominação. O poder disciplinar que se exerce tornando-se invisível dá visibilidade aos corpos insubmissos, por meio de mecânicas tais como a relatada a seguir: para melhor observar o que se passava dentro da sala de aula, por decisão do Conselho de Classe da escola que dirijo, em 2009, as portas das salas de aula ganharam uma janela de vidro. Com isto não só a direção da escola, como coordenadores e outros professores podem espiar o que se passa no interior das salas, como numa atitude de “prevenção” ao que possa ocorrer. Foucault nos relata que Treilhard, conselheiro de Estado, jurista do Império em 1808, fala da figura do procurador, que teria como função principal e primeira a de vigiar os indivíduos, como numa ação preventiva, para que a infração não seja 21

cometida. Segundo Foucault, para Treilhard e muitos outros “esta grande pirâmide de olhares consistia na nova forma de justiça” (2005:107). Foucault reporta-se a Montesquieu como formulador da separação entre os poderes judiciário, legislativo e executivo e coloca que “o controle penal punitivo dos indivíduos ao nível de suas virtualidades não pode ser efetuado pela própria justiça, mas por uma série de outros poderes laterais” (Ibid.:86). Neste contexto no século XIX, segundo Foucault, “desenvolve-se, em torno da instituição judiciária e para lhe permitir assumir a função de controle dos indivíduos ao nível de sua periculosidade, uma gigantesca série de instituições que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência” (FOUCAULT, 2005:86), como a escola, além dos hospitais e da polícia, enfim, uma rede de poder que não é judiciária, que tem como função corrigir as virtualidades dos indivíduos. No contexto da sociedade disciplinar são produzidas práticas que Foucault localiza como de ortopedia social (Ibid.: 86). Segundo ele trata-se de uma mecânica de poder, própria da idade do controle social. Para Foucault, Bentham apresentou de maneira precisa um modelo desta sociedade da ortopedia generalizada, o Panopticon. O poder disciplinar que se exerce tornando-se invisível impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória. Para Bentham, o poder devia ser visível e inverificável. “O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central vê-se tudo, sem nunca ser visto” (2004:166). Esse dispositivo, portanto, automatiza e desindividualiza o poder. Assim se apresenta sua definição: O Panopticon era um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior. Em cada uma destas pequenas celas, havia segundo o objetivo da instituição, uma criança aprendendo a escrever, um operário trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando sua loucura, etc. Na torre central havia um vigilante (2005:87). Observando a estrutura física de diversas escolas vamos encontrar

modelos em série em que todas as salas dão acesso a um único pátio e da sala da direção elas podem ser observadas. Ao lado das técnicas disciplinares a lógica pastoral também está presente na escola. O poder pastoral circula entre o poder soberano e o disciplinar; é um poder individualizante. Os mecanismos de controle e vigilância operam simultaneamente 22

docilizando os corpos e exaltando a figura daquele que os “bem conduz”. O pastor tem que estar de olho em todos e em cada um. O sacrifício do pastor em relação ao seu rebanho é tanto pela totalidade dele, como por cada uma de suas ovelhas. Para salvar uma só ovelha muitas vezes o pastor abandona a totalidade de seu rebanho e aí está o paradoxo do pastor, o sacrifício de um pelo todo e do todo por um, aí se identifica o cerne da problemática cristã do poder pastoral: ele se exerce mais sobre uma multiplicidade do que sobre um território. Ele está na Bíblia, sendo introduzido pela igreja cristã no mundo ocidental, é um poder moralizante e religioso. O pastorado está ligado à salvação, a regulamentos e verdades, está relacionado com mérito e demérito, obediência absoluta e produção de verdades ocultas. O pastorado cristão apresenta modelos específicos de individualização através da sujeição a uma rede de servidões e de subjetivação como a produção de verdades. Os aparelhos e mecanismos com que os pastores, os que governam e se governam, operam, circulam entre as práticas docentes. Cardoso Junior (1999) reporta-se a Platão para mencionar que estadistas são como pastores que pastoreiam rebanhos de humanos e alia a este pastoreio outra característica, a dos tecelões. Porque devem criar entre seu rebanho um entrelaçamento, um envolvimento, um casamento. Nos fala da contribuição de Deleuze no desenvolvimento da ontopolítica, que nos dá uma concepção de poder bastante específica. O poder determinado por relações que têm uma vigência histórica. Cardoso também refere Foucault, quem contribui para essa discussão, ao colocar que as relações de poder criam dispositivos, quase máquinas concretas, historicamente determinadas, que aparecem e desaparecem. E a escola é um dispositivo de poder. Porque produz linhas de visibilidades e enunciação de subjetivação e de força. A ontopolítica implica também em outro conceito básico – liberdade. Pois, assim como o poder, a liberdade também é construída a partir de dispositivos e dentro de dispositivos. Existe uma imanência entre poder e liberdade. Segundo Cardoso, temos que mapear o poder que nos captura e a liberdade. Deleuze propôs como método analisar os territórios moventes fazendo mapas de relações de poder, ao que chamou de cartografia, que nos dá diagramas históricos. Para Cardoso Jr. cartografar a escola é difícil porque o percurso do educador é o da transcendência. A transcendência é a lógica das idealizações e dos modelos 23

prontos, enquanto a cartografia, ao diagramar as relações de poder, as coloca em análise. As cartografias e os diagramas são mapas das relações de poder que também funcionam como dispositivos. Se as relações ou dispositivos de poder procuram capturar os corpos é porque os corpos têm uma produtividade. E querem se apropriar da produtividade inerente a eles. A escola coloca a criança em situação de atenção? Ela se apropria da plasticidade que os corpos têm, porque são dotados de uma potência particular do ponto de vista ontológico e, portanto, são produtivos. Esses corpos também produzem resistências e linhas de fuga. O que eles produzem em fricção com os dispositivos de poder? Assim como o poder pastoral e o panóptico, outras técnicas de controle operam na escola: tempo, currículo, disposição dos alunos em sala até ao exame. Um exemplo é a prática de distribuir os assentos dos alunos tornando possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. A ordenação das salas de aula em fileiras advém do século XVIII, quando os alunos se colocam ao lado uns dos outros sob os olhares dos mestres. Esta ordenação começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos ...nos pátios;.... alinhamento das classes de idade..;sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas segundo uma ordem de dificuldade crescente. E neste conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber ou das capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço da classe ou do colégio essa repartição de valores ou dos méritos. Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos outros, num espaço escondido por intervalos alinhados (LA SALLE apud FOUCAULT, 2004:126). A determinação dos

lugares dos alunos na sala de aula propiciou a organização da economia do tempo de aprendizagem, transformando o espaço escolar numa máquina de ensinar com funções que foram aprimoradas de vigiar, de hierarquizar, de recompensar. Foucault cita que J.B.de La Salle fala da distribuição espacial da sala de aula que poderia formar um grande quadro que municiasse o professor (com seu olhar classificador) de toda sorte de informações sobre seus alunos, desde seu temperamento, seu desempenho acadêmico, sua higienização até a fortuna de seus pais. 24

Tem-se como registro que a primeira das grandes operações da disciplina é a constituição destes “quadros vivos”, constatando-se que “o quadro, no século XVIII, é ao mesmo tempo uma técnica de poder e um processo de saber” (FOUCAULT, 2004:127). A arrumação da sala de aula não se propõe a localização dos alunos na configuração de um “quadro vivo”, mas continua com a mesma formatação. Algumas escolas usam a expressão mapear a sala, para separar grupos de alunos que exageram na conversa e separar, em dias de prova, alunos que têm o hábito da”cola”, daqueles que são considerados aplicados naquela disciplina. Foucault nos faz ver costumes que permanecem até hoje na escola, criados há séculos com funções determinadas, que atualizados continuam sendo operados, “sinais, apitos, comandos impunham a todos normas temporais que deviam ao mesmo tempo acelerar o processo de aprendizagem e ensinar a rapidez de uma virtude”(Ibid.:131), como uma técnica de sujeição. “O corpo, tornando-se alvo dos novos mecanismos do poder, oferece-se a novas formas de saber” (Ibid.: 132), que o treina e racionaliza uma mecânica. E muitos corpos resistem às imposições do horário. Resistem na afirmação de outro modo de existência, também incitando o exercício de poder que se dá em rede. Em relação ao sinal que toca entre as aulas e na hora de intervalos, vale a pena mencionar que ele atua nos alunos em duas perspectivas distintas: quando é hora de acabar a aula, a grande maioria das turmas levanta-se instantaneamente ao toque do sinal, mas estas mesmas turmas, quando a hora é de ir para a sala, resistem em fazê-lo. E sob o olhar vigilante de um coordenador ou inspetor de alunos obedecem em marcha lenta ao comando. Quando a aula é de um professor que não os deixa entrar após o sinal, eles se apressam para não levar ocorrência. Aí verificamos que “o poder se articula diretamente sobre o tempo; realiza o controle dele e garante sua utilização” (Ibid.: 136). A resistência, por parte do aluno ou de outro profissional de educação, tem o sabor da intransigência por liberdade. Da mesma forma que a resistência em subir a rampa não pode ser analisada como uma desobediência, mas como um não querer retornar àquela sala enfileirada, onde o conhecimento é compartimentado em disciplinas, suas ações “preparadas” para o convívio social “harmonioso” em múltiplos dispositivos de “encarceramento”. 25

Aqui recorro ao final do texto de Vigiar e Punir quando Foucault escreve: (...) Nessa humanidade central e centralizada, efeito e instrumento de complexas relações de poder, corpos e forças submetidos por múltiplos dispositivos de “encarceramento”, objetos para discursos que são eles mesmos elementos dessa estratégia, temos que ouvir o ronco surdo da batalha (2004:254). Aqui também ratifico

essa escuta dos saberes sujeitados, dos saberes históricos das lutas e problematizo: Como esta produção de verdade se constitui e quais os efeitos que produz? Por mais que um poder pretenda-se totalitário/absoluto, a resistência estará sempre presente. (...) por trás de todas as aceitações e coerções, mais além das ameaças, violências e persuasões, há a possibilidade desse momento em que nada mais podem e no qual, na presença dos patíbulos e das metralhadoras, os homens se insurgem (FOUCAULT, 2006a: 77). Tenho a recordação de um

poema de Eduardo Alves da Costa escrito em 1964, que quando jovem (fim dos anos de 1960) líamos e relíamos servindo sempre de centelha para nossa inconformidade com os acontecimentos de então: (...) Na primeira noite eles se aproximam / roubam uma flor / do nosso jardim./ E não dizemos nada./ Na segunda noite, já não se escondem: / pisam as flores, / matam nosso cão, / e não dizemos nada./ Até que um dia / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz, e, / conhecendo o nosso medo / arranca-nos a voz da garganta./ E já não dizemos nada (...) (COSTA: 1985).

Foucault nos alenta quando em seu discurso dá importância a esses acontecimentos que passam à margem, despercebidos ou desqualificados na história oficial, que acontecem ENTRE, como a costurar margens, desses saberes que em vozes querem calar. Com a palavra o filósofo: (...) Basta que elas existam e que tenham contra elas tudo o que se obstina em fazê-las calar, para que faça sentido escutá-las e buscar o que elas querem dizer. (...) é por existirem tais vozes que o tempo dos homens não tem a forma da evolução, mas justamente a da “história” (2006a: 80). A

indisciplina como produção de verdade, a resistência como a afirmação de outro modo de existência, são alguns dos possíveis olhares que aprendemos a ter sobre as mesmas práticas do cotidiano da escola. A sociedade moderna, normalizadora, vê a indisciplina ou a resistência como insubordinação, negação de regras estabelecidas. É em decorrência do pensamento normalizante, que avalia os comportamentos como normais e anormais, que é produzido o aluno indisciplinado, quando em realidade a indisciplina é um efeito das práticas disciplinadoras. 26

E é com esta perspectiva e por meio dessas reflexões que escrevi esta dissertação. Esta escrita sempre em devir, que ao longo do próximo capítulo aborda ferramentas analisadoras tais como: naturalização, desqualificação, inércia, produção de verdades e juízo de valor, corporativismo, burocracia escolar, higienismo, salvacionismo, silenciamento, assujeitamento, desaprendizagens, espetacularização do sofrimento. 27

2 O COTIDIANO EM ANÁLISE 2.1..Vivências das normalistas da década de 1970 – deslocamentos e produção de outros movimentos Entrei para o magistério em 1972, por uma opção política, pois queria lecionar para alunos das escolas públicas. Acreditava que por meio da educação poderia dar minha contribuição à ”revolução”. Sonhava com a escola que liberta, com a socialização do conhecimento e o acesso à informação. Fiz concurso para ser professora primária do Estado da Guanabara. Com a inexperiência própria de uma caloura, quando cheguei à escola, por ser a mais nova na unidade, fui a última a escolher turma. Fiquei com a turma que sobrou, que ninguém desejou escolher, em função da forma como são distribuídas as turmas, como apresentei no capítulo anterior. Esse duplo processo de desqualificação perdura até os dias de hoje: desqualificação da turma por parte de quem a preteriu e desqualificação das recém concursadas, como um “ritual de iniciação” nas práticas escolares. Na verdade, nós vivemos isso como desqualificação por parte das “veteranas”, mas temos também que considerar que sob o outro ponto de vista, o direito de escolherem primeiro fazia parte de uma conquista por “melhores condições de trabalho”. Uma reflexão interessante: a conquista que por vezes desqualifica. O dia da escolha de turmas para o ano letivo que se inicia se dá com o ritual burocrático-administrativo: primeiramente há uma relação com o nome de cada professor acompanhado do tempo de serviço naquela unidade escolar, organizada por ordem de chegada. Normalmente as turmas estão relacionadas no quadro em seus respectivos turnos. Cada um é chamado individualmente para proceder a escolha da turma de sua preferência, não havendo uma discussão pedagógica a priori. Desta forma não há espaço de defesa de projetos de trabalho, tais como: aquela turma com a qual você conseguiu quase ao final do ano construir um trabalho pedagógico e já possui as condições para dar continuidade de forma dialógica a seu projeto; hoje com os ciclos do primeiro segmento do ensino fundamental, recomenda-se pedagogicamente que o professor acompanhe seus alunos durante, por exemplo, o primeiro ciclo (que envolve os três primeiros anos de escolaridade) para que o objetivo do ciclo seja alcançado, ou seja, para que a 28

alfabetização esteja sedimentada, evitando a retenção do aluno ao final do ciclo e resgatando através de sua promoção sua autoestima, passando uma borracha nas renitentes repetências, síndromes dos primeiros anos de escolaridade. Formatadas no protótipo da sociedade disciplinar, havia nesse momento, onde a questão pedagógica era desconsiderada, a possibilidade de um estranhamento que nos levasse a produzir outros movimentos. E foi essa possibilidade que fez com que muitas de nós gestássemos outros caminhos, diferentes dos aprendidos nos bancos escolares, para dar conta do “ensinar a ler, escrever e contar”. Para além do ensino conteudístico7, a educação em um sentido amplo constituia-se num desafio grande demais para todas nós jovens professorandas. Vamos a esse contexto. Era uma turma de 1ª série com crianças com vários níveis de aprendizagem, onde a maior violência era a fome. A merenda escolar era para muitos a única refeição do dia. Uma realidade tão distante da moça de classe média que morava em Copacabana, lia Marx, lutava contra as diferenças de classes sociais, falava de socialismo, era contra a exploração da mais valia, mas nunca tinha se aproximado tanto da pobreza. Aprendi muito com aqueles alunos. Havia um menino que era dedicado, mas chegava sempre atrasado à aula. Um dia o repreendi por isso. Perguntado por que não colocava o relógio para despertar mais cedo, já que morava a uma hora de caminhada da escola, ele me respondeu que na sua casa não havia relógio, eles se guiavam pela natureza e nem sempre acertavam a hora com precisão. Nunca havia aventado a possibilidade de, dentro da cidade do Rio de Janeiro, uma família não ter relógio. Naturalizei esse objeto. E como “o vento que venta lá venta cá”, como professora cheguei desqualificando esses alunos. 7 De acordo com GADOTTI “o ensino” se restringe a um rol de conteúdos elencados, como os afluentes dos rios, as fórmulas da química, os tempos dos verbos, e a educação em um sentido amplo é “lugar de tensão e de debate, espaço político-pedagógico e de liberdade (...)” (GADOTTI, 1991:21).

Quando fui fazer um Bingo na turma para animar o aprendizado dos números e pedi que trouxessem caroços de feijão ou milho, aprendi mais uma lição: não se pode “brincar” com comida. E foram esses alunos que provocaram um grande estranhamento em nós, professoras calouras, e nos proporcionaram uma reflexão sobre essa nossa profissão de educadoras. Quem estava educando quem? Quem tinha que ser “salvo”? Nós, de nossas rotinas eletrizantes que como robôs 29

repetíamos um cardápio de exercícios decorados nas escolas normais? Eles, que entravam em contato com outras referências? Ou não se tratava de salvação, mas de encontros com possibilidades de vida? E assim, aqueles pequeninos, tarjados por nós como fedorentos, melequentos e despossuídos de tudo, inclusive relógios, foram ganhando minha admiração e com ela construímos uma parceria imbatível. Joguei o programa na gaveta, até porque a cartilha falava textualmente “Vovó viu a uva” e outras pérolas distantes da vida daqueles alunos, e cometi mais um engano, montei um projeto sobre o Sítio do Pica Pau Amarelo, planejando para que tudo o que precisassem aprender girasse em torno dele. As crianças não conheciam Monteiro Lobato, parecia que falávamos línguas diferentes, nada agradava ao grupo, que depois da merenda escolar pouco queria produzir. Fui pesquisar suas brincadeiras, seus desejos, seus sentimentos, era quase fim de ano quando começamos de fato aquele ano letivo e escolhi esta turma para lecionar no ano seguinte. O trabalho que organizei com entusiasmo no primeiro encontro com eles, por não lhes fazer sentido, alavancou a criação de outras estratégias, forçando a produção de outros saberes, fazendo com que o trabalho docente se dobrasse nele mesmo. Saberes produzidos com a turma e não para a turma, ou sobre a turma. No ano seguinte conseguimos estabelecer um campo de diálogo menos frenético (já que anteriormente parecia que falávamos idiomas diferentes). Não que tudo tenha transcorrido como nas histórias infantis que terminam com finais felizes. Como numa batalha de esgrimas, por vezes me desqualificavam, outras o cheque mate era meu, por vezes naturalizavam o que me indignava, outras vezes a normalização8 impregnava minha ação. Neste jogo que suscita a produção de outros saberes, nesta dança compassada (pois tem hora para começar e acabar, tem local determinado para se realizar, tem um programa para ser cumprido) nem sempre a condução dos trabalhos esteve em minhas mãos. Por diversas ocasiões eles, os alunos, conduziram os acontecimentos, construindo uma prática pedagógica atravessada por movimento, criatividade e vida. 8A

partir dos estudos de Foucault pode-se afirmar que, “(...) normalização é o conjunto de mecanismos por meio dos quais se compara, se diferencia, se exclui, se homogeniza, se hierarquiza, aos indivíduos que são divididos entre normais e anormais, tornando uns mais capazes que outros” (LECHUGA, 2007:204).

Numa das minhas transferências fui parar na Cidade de Deus, localidade que era manchete dos jornais da época com relação ao tráfico de drogas e à 30

violência. A Cidade de Deus é um bairro desmembrado de Jacarepaguá, Rio de Janeiro, cuja população era oriunda de um local da zona oeste. Foi criada em 1960 como parte da política, do então governo de Estado, de remoção de favelas de certas áreas da cidade. Ministrava aula com a bolsa pendurada em um braço, e uma vassoura sempre à mão, para separar brigas em que os alunos utilizavam giletes como armas. A vassoura foi presente de uma servente que me deu no dia em que cheguei dizendo do “alto de sua sabedoria”: -- Professora, a senhora vai precisar dela. A turma não parava sentada, era uma confusão, muitas crianças com piolhos que saltavam das cabeças a olhos vistos, brigas no fim da sala com gilete. As idades eram díspares, havia um grupo que sabia ler e queria aprender, outro que queria, mas tinha muita dificuldade, outro que queria brincar o tempo todo. Era uma 2ª série, também a última escolha, a turma que “sobrou” para a novata na escola. Desta vez já me achava com certa experiência, e ainda não havia aprendido que as possibilidades pedagógicas dependem do grupo com que se trabalha e nem sempre o grupo de alunos tem a mesma história. As histórias que eu contava contradiziam o que viam. Eles sempre relatando cenas de violência que faziam parte do cotidiano de suas vidas, com a maior naturalidade. Esses meninos e meninas moravam em casas de poucos cômodos, estreitas, nas quais mal cabiam, projetando para fora das quatro paredes suas intimidades: dormiam junto aos pais, presenciavam brigas, espancamentos, sexo, tiroteios, mortes, conflitos com a polícia, corrupção institucional e reverenciavam o poder paralelo dos xerifes da localidade. Mas o que seria violência? Depende da perspectiva de quem faz o discurso. Era também uma violência para nós professores a formação que nos foi oferecida pela escola normal, vedando nossos olhos para esses contextos, nos ensinando métodos, jogos, técnicas pedagógicas que mais pareciam munições molhadas de tão ineficazes. Ou quem sabe, são extremamente eficazes para o projeto de sociedade pretendido pelos que moravam “onde as luzes ofuscam nossos olhos” 9. 9

Expressão retirada do texto “A fábula do garoto que quanto mais falava sumia sem deixar vestígios: cidade, cotidiano e poder”, utilizada para se referir a cidade propriamente dita, com suas modernidades, local onde o poder constituído se estabelece com seus aparelhos.

Lendo “a fábula do garoto que quanto mais falava sumia sem deixar vestígios: cidade, cotidiano e poder”, há uma frase que pode ser transmutada para 31

a Cidade de Deus, por ser emblemática para essas crianças: “Ruas tortas exigiam dele uma história feita por ginga e astúcia”. Porque as dificuldades de vida destas crianças as ensejava na busca por saídas e possibilidades de sobrevida, produzindo malabaristas exímias. A retirada destas pessoas do seu local de origem fez com que os meninos e meninas falassem mais, projetou perspectivas de vidas diferentes, mas também os fez sumir como o garoto da fábula. Falassem mais porque a novidade da mudança, da nova casa, do “bairro” organizado com a numeração em sequência era um frenesi na comunidade. Baptista (2001) nos alerta para o poder que revestiu o menino quando a cidade lá de baixo chega para “transformar” a sua vida, momento que o torna falante, mas que também o faz sumir. E repito a citação de Foucault10 que Baptista escolheu: “(...) como o poder seria sem dúvida agradável e fácil de desmantelar, se se limitasse a vigiar, espiar, surpreender, proibir e punir; mas incita, produz, não é apenas olho e ouvido; faz agir e falar” (BAPTISTA, 2001:198). Nossos alunos eram crianças e tinham sonhos, seus corpos tinham um misto de esperteza e atenção, seus olhos se projetavam em perspectivas quanto ao novo e comecei a uní-los quando todas as manhãs os escutava com seus relatos. As alianças construídas por nós passavam também pela captura da sua atenção durante a aula, talvez por isso falassem tanto “confessando o fruto de seu cárcere”. (Ibid. : 201). Mas também partiu da minha curiosidade sobre o que faziam, do que brincavam, da observação de seus cotidianos fora da escola. Por que eles não podiam sumir, renegando suas histórias e despolitizando seus contextos. Sumir, tornado invisível àquelas histórias de vida que carregavam em seu DNA social, sumir para dar lugar a um novo coletivo projetado pelos que moram “onde as luzes ofuscam nossos olhos”. 10 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Ed. Passagens, 1992, p.97-123.

Em outra turma em que lecionei, percebendo o pouco interesse por essa escola formal e como ela estava distante deles, propus escolhermos uma peça de teatro para encenar. Escolhi o teatro por dois motivos: porque era uma técnica que eu conhecia, já havia feito muitas peças enquanto estudante e porque era a forma visível de unir o grupo com suas diversas aptidões. Dividimos os grupos de trabalho. Quando entrávamos em sala colocávamos as carteiras para um canto e trabalhávamos no espaço livre, em pé, sentados no chão. Uns fazendo os painéis 32

da peça, outros pensando o figurino, outros pensando nas músicas, outros, ainda, decorando os textos e sugerindo mudanças. Aposentei a vassoura! A peça foi apresentada no Dia dos Professores/Semana da Criança, a comunidade lotou a escola, a diretora gostou tanto que pediu que repetíssemos para a representante local do governo do estado. No ano seguinte esta turma não “sobrou” para minha escolha. A grande maioria das crianças que não sabia ler e decorara textos, escrevera convites, desenhara painéis pesquisando em livros de gravuras o período histórico em que ocorreram as cenas da peça, estava motivada para descobrir essa língua da norma culta. Além disto, não contribuímos para o aumento dos índices de evasão escolar, nem corroboramos com a fala da mãe do menino que quanto mais falava sumia: - “Nessa cabeça dura não entra nada, puxou o pai e os irmãos. Acho que é do sangue, eles não dão para estudo” (BAPTISTA, 2001:199). Fala que muitas vezes captura o profissional da educação que acha que é assim mesmo, quando não há uma análise histórica. Fugir do programa oficial, buscando alternativas para “construir com” foi uma estratégia impulsionada pelos acontecimentos e levou-nos ao encontro com outros saberes. Sem me aperceber estava desmontando o castelo dos regulamentos e regimentos, das coisas prontas, estava procurando nas sombras da margem me apropriar das falas e saberes daqueles que não escrevem a história oficial. Ainda em Jacarepaguá, fui transferida para uma escola que ficava numa localidade chamada Gardênia Azul. Minha sala de aula ficava no segundo andar. Nesta localidade várias vezes deitávamos no chão com receio do tiroteio que se ouvia nas proximidades. Depois me acostumei e esse barulho já fazia parte do contexto. Colocando em análise essa naturalização somos levados à reflexão dos efeitos que produzem, e fazer isto nos capacita a desnaturalizar condutas que são consideradas comuns ou naturais. As pessoas acreditam que foi sempre assim e vai continuar assim por serem capturadas pela rotina dos acontecimentos. Os alunos “xingavam” uns aos outros, marcavam rixas do lado de fora da escola.... Então instituí a educação física como matéria principal. Quando os ânimos começavam a esquentar dizia: - “descendo para educação física”. As aulas às vezes chegavam a ser de 2 horas seguidas, com muitos exercícios de respiração (eu fazia ioga à época). Exaustos e relaxados voltavam para a sala e conseguíamos trabalhar algum conteúdo. Quando a agressividade era de um só, chamava a servente, ela ficava no pé da escada e o aluno tinha que 33

subir e descer a escada até que se acalmasse. A medida era dele mesmo. Colocando em análise essa prática fico a refletir sobre seus efeitos. Naquele momento eu desejava me “livrar” do problema imediato. Talvez esses alunos até gostassem de estar fora da sala cheia de crianças e de regras, talvez até hoje se lembrem de quantos degraus tinha aquela escada e estejam contando esta história para seus filhos e contarão para seus netos. Certamente ficou em minhas lembranças de forma naturalizada, como se não houvesse outra maneira de agir ou como se esta fosse a outra forma de agir. Mas era uma prática de invenção que não naturalizava a relação dos estudantes com a sala de aula e apostava em deslocamentos para produzir uma aproximação entre professora estudante – escola. 2.2 Higienismo e desqualificação: entre práticas salvacionistas e inércias Na escola da Cidade de Deus criei o dia da batida. Nesse dia revistava orelhas, unhas, cabelo, antes da entrada em sala. Essa prática higienista da minha formação, conjugando-se com a experiência do dia a dia da realidade dos alunos com as constantes batidas policiais, dava uma familiaridade a essa ação, levava a todos, alunos e pais, a ver com naturalidade esse dia. Costa (1989) faz uma leitura das consequências desta pedagogia higienizada: As sucessivas gerações formadas por esta pedagogia higienizada produziram o indivíduo urbano típico de nosso tempo. Indivíduo física e sexualmente obcecado pelo seu corpo; moral e sentimentalmente centrado em sua dor e seu prazer; socialmente racista e burguês em suas crenças e condutas; finalmente, politicamente convicto de que da disciplina repressiva de sua vida depende a grandeza e o progresso do Estado brasileiro (Ibid.: 214).

A prática higienista é uma intervenção direta nas famílias e na vida. A escola, em nome da saúde e do bem-estar, opera por meio dessa prática, que é uma prática de desqualificação. Mas muitas vezes, os profissionais da educação não analisam essa intervenção sob este prisma, porque fomos “formatados” e em nosso “programa” havia o link que mencionava como uma das muitas “funções” da escola a de observar a saúde do aluno. Inclusive nos parâmetros curriculares nacionais, um dos temas transversais para se trabalhar em sala é a saúde. Fomos aceptizados com o mercado “clin”, limpeza/pureza, por estudarmos e possuirmos um saber sobre as doenças, os problemas que a falta de saneamento básico 34

suscita, que a água não tratada traz, que a casa não limpa acarreta, nos sentíamos “responsáveis” por esclarecer àquelas famílias. Em muitos locais só a escola representa o poder público e éramos servidoras públicas. Como desnaturalizar essa prática, como encaminhar a discussão dela, também produção de práticas anteriores, ou seja, formadas na herança deixada pelos educadores do passado? Em que medida esse arcabouço legal, regimental, produziu em nós essa prática higienista? Como essa prática higienista desqualifica as famílias? O discurso da ciência caracteriza-se por desqualificar a família em relação à educação do corpo e do espírito. “No Brasil, a história da cientifização da escola teve um importante marco no século XIX, que coincidiu com a campanha levada a cabo por médicos higienistas para modernizar a família brasileira” (Cunha, 2003:450). Cunha continua sua análise relatando que os higienistas estabeleceram, não só para os pais, mas também para os internatos, padrões de alimentação, horários de estudos e atividades físicas, controle no tempo dos banhos, e outras tantas medidas para produzir o indivíduo saudável, o cidadão decente e honesto, o responsável pelo futuro da nação. Anos mais tarde, quando fui diretora de um CIEP em Nova Friburgo, trabalhávamos a importância da higiene e víamos como consequência da execução de nossa proposta pedagógica, por exemplo, a interpelação das crianças a seus pais quando não havia banheiro dentro da casa. Um dos pais, num dia de reunião, me disse que nós lhe demos muito trabalho, pois seu filho não lhe deu sossego enquanto não fez esse tal banheiro numa área pequena onde costumava fazer seus churrascos e receber os amigos. Analiso a potência da intervenção da escola no cotidiano dessa família, na arquitetura e na organização de sua casa. A partir de que referências nos assumimos donos da verdade e orquestramos mudanças nas vidas alheias? Na ocasião ficamos felizes com a ressonância de nossos preceitos, a família já estava mudando hábitos, tornando-se menos vulnerável às doenças, a escola estava cumprindo uma de suas metas como promotora de saúde. Numa atitude salvadora, filantrópica? Os conselhos da escola sobre como cuidar do corpo, por exemplo, não seriam práticas filantrópicas? Na realidade, a família estava se adaptando ao modelo propagado. Donzelot (1980), situando-se entre os séculos XVIII e XIX, nos faz verificar a passagem de um governo das famílias para um governo através das famílias. 35

Nesse período, de acordo com suas pesquisas, aparecem constatações de que a família já não possui os conhecimentos necessários à contenção de seus membros. A história vai contar-nos como instrumentos de coerção são oferecidos às famílias para a regulação de seus membros indisciplinados, tais como a internação em hospitais, que foi utilizada inúmeras vezes para contê-los ou livrar-se deles. Na França, com a queda da Bastilha, o Estado toma a si funções antes assumidas pela família, torna-se instância responsável pela satisfação de suas necessidades: “organizador da felicidade dos cidadãos, dispensando assistência, trabalho, educação e saúde a todos (...)” (Ibid.: 52). A filantropia adota uma estratégia política de silenciamento e enquadramento, desqualifica as famílias com suas formas médico-higiênicas e higiênicas-pedagógicas; com seu polo assistencial, utiliza o Estado como meio formal de divulgação de conselhos e preceitos de comportamento e com seu polo médico-higienista, como meio material de intervir em relação aos riscos de destruição da sociedade. Com essas duas formas de atuação modifica-se o antigo poder de soberania: “conselho eficaz em vez de caridade humilhante, norma preservadora no lugar da repressão destruidora” (Ibid.: 57). Ao mesmo tempo a estrutura familiar ganha posição como resultado estratégico dessas duas táticas filantrópicas, porque através da poupança obtem maior autonomia em relação às redes de solidariedade e com as normas higienistas crianças e mulheres obtêm uma autonomia em relação à autoridade patriarcal. Nesta disputa velada entre a filantropia e a caridade, a primeira distingue-se da segunda na escolha de seus objetivos. A caridade comporta mais abnegação, cede espaço para as formas filantrópicas, que atuarão de acordo com as novas regras do sistema, as novas formas de subalternidade. Por isso é preciso evidenciar a cada pedido de ajuda a falta moral que o determina: irresponsabilidade, devassidão e etc., criando um canal permanente entre a moral e a economia, destituindo o caráter de exploração do trabalho, mantendo a necessidade de vigilância constante da família. A escola é apontada como remédio para acabar com a desordem e a imoralidade. Nessa sociedade onde a liberdade é regulada pela lógica do direito e tem como parâmetro a propriedade privada, não se questiona a normalização, mas 36

a necessidade de vigilância sobre as normas. É a sofisticação da normalização em nome da segurança. A escola, cuja norma fala em educação e saúde, difunde preceitos de higiene e controla através de seus alunos sua implementação na família. A escola em constante vigilância sobre suas normas para assegurar ser ela promotora de saúde. A escola que produz efeitos: “através da escola poder-se-á, ao mesmo tempo, limitar a imprevidência na reprodução, e aumentar a previdência na organização da vida (...)” (DONZELOT, 1980:73). A escola, como nos relata Foucault (1982), atende a ordem de uma nova “economia” de poder, que “faz circular os efeitos de poder de forma ao mesmo tempo contínua, ininterrupta, adaptada e “individualizada” em todo o corpo social” (1982:8). Foucault nos fala do “problema político essencial para o intelectual” que é o de “saber se é possível constituir uma nova política da verdade”, e poderíamos fazer coro às suas palavras, porque este também é o problema do professor. “O problema não é mudar a “consciência” das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade” (Ibid. :14). E neste contexto coloco a nossa formação. A produção de nossa subjetividade, de nossas crenças sobre a vida e sobre o que há além da vida. A grande maioria da população ainda conserva uma crença cristã que impregna nossos corpos. Trago a reflexão de Alvarez-Uría sobre ser verdade que muitas escolas substituíram o crucifixo pendurado em suas salas por retratos de autoridades, mas continuam a fabricar bons cristãos, numa herança conventual, sendo o isolamento do exterior a analogia que mais se perpetua “com efeitos decisivos tanto para a organização das escolas como para a transmissão dos saberes” (1996:38). Por mais que nos alertemos sobre as armadilhas de nossa formação, estamos constantemente agindo sob a ressonância de agenciamentos que nos aprisionam e não nos permitem mudar de referenciais, de enfoques e concepções. Penteado, Chun e Silva colocam que: O higienismo desenvolve-se em meio às tensões dos jogos de interesses econômicos e produtivos, à dominação das classes hegemônicas e às diferenças culturais e de identidade de vários segmentos sociais e dos seus modos característicos de apropriação da cultura e de sensibilidades, os quais refletem as maneiras de os homens compreenderem o mundo e de nele se posicionarem (2005:11). 37

Estas autoras vão buscar a emergência do conceito de higiene na Grécia Antiga, imbricado às questões religiosas, “uma vez que as práticas religiosas valem-se das crenças e rituais de limpeza, de purificação e de valorização de condutas morais e hábitos de vida determinados, tendo em vista a preparação das pessoas para se apresentarem aos deuses” (2005:11). Na Idade Média este conceito arraigado na dicotomia saúde-doença está relacionado à prática de apartar, separar, classificar, organizar e banir as imundícies, dentro de uma fragmentação entre campo e cidade, rural e urbano. O termo “limpo”, a partir do século XVII, adquire conotações morais, ao significar distinção, elegância, ordem e disciplina. O corpo, como primeira propriedade nossa, passa a ser trabalhado, havendo uma manipulação calculada dos seus elementos, gestos e comportamentos, colocado-o numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe (Foucault, 2004). E neste sentido passa a ser objeto de controle, vigiado, normatizado, avaliado, qualificado em seus comportamentos e desempenhos a partir de valores opostos do bem e do mal. Segundo Penteado, Chun e Silva (2005), em algumas culturas, como na Alemanha, é criada a polícia médica nas escolas. No Brasil, na década de 1920, Oswaldo Cruz realiza o controle higiênico através da vacinação compulsória e o estabelecimento da vigilância das atitudes e moralidades e exames médicos de pobres e imigrantes, confinando, quando para eles se fizesse necessário, os doentes. Essa análise não pretende cair na armadilha messiânica e moralista e julgar o que se relata como questões do bem e do mal, do certo e do errado. O que quero apresentar à discussão são análises, questões, problematizações, buscando novos olhares a respeito dos acontecimentos, dando visibilidade a outros saberes. Os saberes daqueles que cotidianamente compartilham o chão da escola. Nós que colaboramos na construção da proposta pedagógica dos CIEP‟s – Centro Integrado de Educação Pública durante o Encontro de Mendes11 apresentávamos, dentre outras questões, a discussão da escola como promotora de saúde. Era uma discussão da época e três anos depois, em novembro de 1986, 11 Encontro realizado em Mendes em novembro de 1983 reunindo 100 delegados professores de todo o estado do Rio de Janeiro, administradores da educação e líderes sindicais que aprovaram teses que foram impulsionadoras na construção do Projeto Político Pedagógico dos CIEP‟s. 38

no Canadá, esse conceito “promoção de saúde” foi ratificado, durante a Primeira Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde, num documento chamado Carta de Otawa. A área de atuação das escolas promotoras de saúde é muito mais ampla do que o conceito “stricto sensu” de “saúde escolar”. As escolas são impelidas a fortalecer constantemente sua capacidade de oferecer meios para garantir a vida, o aprendizado e o trabalho e para tanto procuram parcerias com órgãos públicos ligados diretamente à saúde e à educação, bem como a outros setores, organizações não governamentais, professores, diretores de escolas, pessoal lotado nos estabelecimentos de ensino e comunidade. Trata-se do desenvolvimento de experiências voltadas para a promoção de melhores condições de saúde e de vida da comunidade escolar, irradiando suas ações para a comunidade em geral, identificando demandas, estimulando soluções e desenvolvendo habilidades e atitudes condizentes com a melhoria da qualidade de vida individual e coletiva. Este é o mote desta escola promotora de saúde. Na ocasião pensávamos neste modelo, talvez fundamentados na valorização da cultura popular, que defendia a reflexão e a ação transformadora, proposta por educadores como Paulo Freire e Darcy Ribeiro. A educação em saúde era apresentada como uma forma de promover o desenvolvimento humano de forma integral, num contexto e ambiente que determinavam as suas condições de existência. Porém, no dia a dia da implementação desta proposta, nos atravessamentos que se sucediam, nas rupturas que se desenharam necessárias para sua gestão, na composição das subjetividades dos profissionais daquele CIEP, muitas questões suscitam análises. Agora, analisando aquela ação que era desenvolvida por um coletivo de profissionais, que se encontravam, realizavam reuniões com a comunidade, planejavam metas quantificadas para a reversão das incidências, por exemplo, de sarna, piolho; analisando as verdades e suas múltiplas possibilidades, penso que desqualificamos aquelas famílias que não possuíam banheiro dentro de casa, forjamos nas crianças esta demanda que era nossa e interferimos nos planos das famílias sem que dialogássemos com elas, apesar de dizermos que precisávamos delas para realizar nosso trabalho. A prática pedagógica escolar rotula/ classifica/categoriza os alunos, inclusive recomendando aos pais o encaminhamento ao posto de saúde, para 39

medicamentação. Tem sido mais fácil procurar um “culpado” para o baixo desempenho de um aluno, preferencialmente fora da escola. A “culpa” é da criança que não é adequada à escola, da preguiça, do cansaço, do sono, da tristeza, da agitação, da desordem, da dislalia, da disgrafia, da dislexia, da discalculia, da disortografia, do TDAH12, da família, da professora, da gestão da escola, dos regulamentos escolares, da pobreza, como se tudo isso não tivesse a ver com a escola. A “culpa” é desse nosso corpo marcado pela necessidade de encontrar respostas, necessidade que fecha seus poros e não o deixa respirar para problematizar as práticas sem a pretensão de encontrar soluções prontas, escolas ideais, professores ideais. Nesse contexto de buscas, o discurso da necessidade de que os pais estejam presentes na escola fica cada vez menos convincente quando se trata da família popular, na medida em que, para a escola, cada vez menos esse pai é útil ao seu modelo e a escola vem desqualificando essa família. Desta feita, Rego (1996), discorrendo sobre a indisciplina na escola, a associa, dentre outras questões, à desvalorização da escola por parte dos pais. A escola, de sua parte, se isenta de uma revisão interna, já que entende que o problema está fora de seu domínio, no âmbito familiar. São as famílias que são desestruturadas, que são ignorantes, etc. Mas de que maneira a família, sendo desqualificada pela escola, poderia valorizá-la? Muitas vezes as famílias são capturadas pela fala da escola e se reconhecem, por exemplo, como ignorantes, como fracassadas. 12 Segundo a Associação Brasileira do Déficti de Atenção - ABDA, o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância e freqüentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Ele se caracteriza por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. Ele é chamado às vezes de DDA (Distúrbio do Déficit de Atenção). Em inglês, também é chamado de ADD, ADHD ou de AD/HD.

Um aluno, mulato bonito de olhos verdes, um menino que após ir à escola dormia na rua, chegava fedendo para a aula, ameaçava as crianças, criava tumulto em sala. Logo foram dizer que ele cheirava cola, ou era usuário de outra droga qualquer. Fui ver onde dormia, debaixo do Centro de Turismo, na praça principal da cidade. Havia outras crianças lá. Conseguimos trazê-las para o CIEP. Entravam 40

antes das outras crianças, tomavam banho e vestiam uniformes que eram guardados na escola. Fomos atrás de seus pais, todas tinham família. Lembro-me bem desse menino, ele me disse que gostava de dormir ali porque era muito iluminado e bonito. Sua mãe era alcoólatra. O pai tomava conta de cavalos de aluguel e me contou que morava depois da Trilha do Céu, um cemitério que fica num morro da cidade. O menino tinha medo de escuro e de alma do outro mundo, não gostava de ir para casa. Lá também dormia no chão e não tinha o que comer. Aquele monstro pintado pelo coletivo da escola - que fez o marido de uma professora, um matemático com mestrado, ir ao CIEP em defesa da esposa, porque o menino provocou uma guerra de laranjas no refeitório e não obedeceu às suas ordens, provocando-lhe um ataque nervoso - chorou como um bebê em meu colo na sala da direção, após me contar seus medos, me deixando totalmente sem ação – inerte. A inércia é uma potente ferramenta de análise, é uma palavra herdada da física, que significa a propriedade que têm os corpos de persistir no estado de repouso (ou de movimento) enquanto não intervém uma força que altere esse estado. Aquela inércia tinha gosto de impacto frente ao inesperado. Aquela inércia era potente, pois estávamos visivelmente abalados, mexidos e atravessados pela realidade que não se apresenta organizada da forma como é posta nas histórias infantis, com princípio, ações muitas vezes tensas, mas sempre com um final feliz e com uma lição de moral. Moral da história? Ali estávamos eu e o menino, sem que eu soubesse o que lhe dizer. Em minha cabeça se passaram tantas questões, num movimento intenso, conturbador, num fluxo de afeto, mas que me deixou inerte. Scheinvar nos traz um olhar dessa discussão quando escreve: Pessoas obedientes e ordeiras talvez seja o produto mais precioso e indispensável para a realização do capital. Não se trata apenas de obedecer, mas de confundir-se com uma peça, de ser uma engrenagem de forma tão imantada que no fluir da montagem não se reconheça onde acaba o trabalhador e onde se inicia a matéria inerte: ambos tornam-se inertes com a sua obediência-máquina (2008:9).

E da mesma forma com que o trabalhador confunde-se com a própria máquina, sempre há alguma força que altere essa cena, por mais que se deixe capturar pela inércia como uma peça. Assim estava eu, capturada pela fala de um menino e no silêncio da minha inércia. Ambos tornamo-nos inertes àquele acontecimento. Da mesma forma que o trabalhador em muitos momentos percebe-41

se inerte diante da exploração, frente a um gigante invisível que lhe introduz na ciranda do capital, lá estávamos eu e o menino, engolidos por uma sociedade disciplinar, que convive com práticas da sociedade de soberania e as atualiza para controlar. O menino produzido como “marginal”, “desqualificado” e “inferior”. Que subjetividades vêm sendo produzidas por meio de técnicas de tutela sobre as vidas? Eu cercada de regras, regimentos, estatutos, manuais, mas em nenhum deles havia o como proceder naquela situação, como gerir aquela vida. Trabalhadores, meninos e eu capturados e inertes. Uns com a inércia mórbida, maquínica, naturalizando sua condição, outros com a inércia tensão, emoção, movimento, perplexos por resistirem a tal condição. Ambos capturados pelo mesmo modelo de sociedade. É pertinente também trazer outra prática para este caso – a normalização. Donzelot (1980) aponta que as leis que editam normas e são “protetoras” da infância proliferaram entre 1840 e o final do século XIX e que à época a Igreja e o Estado pretenderam “consertar” as “amarras demasiado frouxas” com que controlavam a população marginalizada. “(...) a missão social do professor será jogar a criança contra a autoridade patriarcal, não para arrancá-la à sua família e desorganizá-la ainda mais, mas para „fazer penetrar, por seu intermédio, a civilização no lar‟” (Ibid.:75). Donzelot refere-se, no texto, à atribuição da escola, à época, de substituta educacional destas famílias, já que, eram tarjadas de irresponsáveis em relação a seus filhos, com liberdade para abandonar, arrastar ou explorá-los. Era uma desqualificação às famílias em nome da civilização das crianças. Ainda hoje atuamos desta forma na escola, acreditando que nossa ação sobre esse segmento das “populações enfraquecidas, embrutecidas e desmoralizadas pela miséria ou degradados pelos hábitos do vício e da vagabundagem” (Ibid.:75) é para o “bem” delas, fazendo um juízo de valor caritativo, moralizador e “resgatador” de nossas almas para a vida eterna. Nossas práticas, portanto, devem ser revistas cotidianamente, considerando os efeitos de nossas ações e não ações, de nossas paralisias, sem romanceá-las em questões eloquentes, assim como não precisamos vivenciar o sentimento da culpa, introjetado em todos nós “descendentes de Adão”. 42

2.3 Poderes paralelos, práticas de silenciamento e de confinamento Quando gerenciei a retomada da proposta pedagógica dos CIEP‟s na década de 1990, presenciei um “acordo” mórbido entre a escola e os xerifes das comunidades. Não só para garantir o acesso dos profissionais de educação e de saúde à escola, como para preservar a integridade física também dos prédios, de seu acervo e da merenda. Assisti a relatos de diretores, que ao ter o CIEP roubado foram se queixar aos “líderes” da comunidade e tiveram o produto do roubo devolvido, mas também encontraram, no dia seguinte, ao chegarem à escola, dois corpos de jovens jogados em uma vala. Esses corpos colocados em frente à escola era uma forma de intimidar outros roubos à unidade, um recado para os moradores da comunidade. Para esse poder paralelo essa é uma ação preventiva de novas possibilidades de roubo. O silêncio da Secretaria de Educação me era passado assim: “estas questões internas da escola são mais bem resolvidas no âmbito escolar, o poder público não pode tomar conhecimento porque estaria admitindo sua ineficiência”. Mas seu silêncio não seria uma estratégia política? Na verdade é admitir a falência do Estado em lidar com os jovens, esses meninos que foram resvalados para o tráfico, advindos da pobreza, num contexto de crise das políticas públicas. Poderia esta ser uma lógica burguesa? Como essas crianças e jovens desta comunidade vêm essas relações da escola com as milícias, a polícia e os xerifes ditos líderes das comunidades? Como introjetam a autoridade destes interlocutores? Onde está o poder público que se “omite” nestas comunidades, abandonando milhares de famílias à própria sorte, entre as milícias e os xerifes? Esta estratégica prática de “omissão” faz parte da própria gestão pública para os ditos mais pobres. Trata-se de códigos de conduta estabelecidos em uma comunidade, com normas e regras próprias: códigos de vida e de morte! Este silêncio lido em medo, que não me parece normalizado, mas tensionado, me faz lembrar que o que interessa aqui é a construção de estratégias que não apenas contestem arranjos estruturais endurecidos e injustos, mas que também examinem nossa cumplicidade nesses arranjos. E a análise de nossa cumplicidade nos silenciamentos nos leva enquanto cartógrafos a nos implicar com 43

a luta por manter a dobra flexível, distensionando e provocando possibilidades de pensar linhas de fuga. Foucault (2002) relata que desde o século XIX uma tecnologia de poder, diferente, mas não substituta do poder soberano que fazia morrer e deixava viver, emergiu e ele a denominou de biopoder, que faz viver e deixa morrer. Essa tecnologia tem o poder de prolongar vidas com a promoção da morte, seu mecanismo fundamental é o racismo. Segundo Foucault o racismo tem como primeira função: (...) estabelecer uma cesura que será do tipo biológico no interior de um domínio considerado como sendo precisamente um domínio biológico. Isso vai permitir ao poder tratar uma população como uma mistura de raças ou, mais exatamente, tratar a espécie, subdividir a espécie de que ele se incumbiu em subgrupos que serão, precisamente, raças. Essa é a primeira função do racismo: fragmentar, fazer censuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder (2002: 304, 305). Um racismo que tem como lógica a máxima de que se você

quer viver, precisa aceitar que o outro morra, como se para que o CIEP viva com “segurança”, para que a “comunidade escolar tenha paz”, tenha sido necessário extirpar o “mal” e o “mal” eram jovens da comunidade que roubaram a escola. Esse poder sobre o corpo, sobre a vida, aparentemente naturalizado pela comunidade após tantos silenciamentos. Essa lógica que captura uma comunidade que vive entre milícias e “xerifes” e apesar de tanta violência e sofrimento opta pelo lado daquele que está mais próximo e obedece as normas e comandos desse poder paralelo. Paralelo enquanto poder que coexiste com o estabelecido, disputa espaços, funciona semelhante ao Estado com suas normas, leis e tribunais. Poder que seduz a tantos meninos, onde o respeito passa pelo calibre do revólver empunhado, sabendo que estão impondo à comunidade um sentimento que até a bem pouco tempo os acompanhou: medo, numa conta alta demais a ser paga muito em breve: as suas vidas. E mesmo sendo dia de tristeza para os pais daqueles meninos, é dia de “alívio” em nome de uma comunidade “mais sadia e pura”, como nos diz Foucault: A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura (2002: 305).

E a mesma comunidade que desce ao asfalto em protesto quando seus filhos são vítimas de balas perdidas ou de emboscadas policiais, que clama por 44

justiça e paz em cartazes feitos a mão e empunhados nos cemitérios da vida, que na verdade podem ser traduzidos por vingança e extermínio, passa pelos corpos atirados na vala em frente à escola, confinada na “sorte” de estar viva. Comunidade abandonada por um poder público que a usurpa de direitos. Escola solitária, único braço do Estado em meio a um turbilhão incessante de regras e normas intra e extra muros. Escola possibilidade de construção coletiva de vida, de outras práticas, de alternativas para esses meninos e meninas. Esses filmes de vida que não me abandonam, esses flashes de tantas histórias e vivências, esses rostos que passam em galerias infindáveis, esse confinamento institucionalizado e eis mais um instante de reflexão... A energia deles meninos e meninas que brincavam de soltar pipa, jogavam futebol no campinho ao lado de uma lixeira a céu aberto, brincavam de gude e de pião, corriam equilibrando uma roda que acionavam com uma vareta, brincavam de rolimã - contida entre quatro paredes, em carteiras perfiladas. Esse espaço de confinamento diário, obrigatório, „lócus‟ onde os corpos dóceis rebelam-se numa sabedoria construída; onde os regimentos e manuais ditam normas e regras necessárias à produção desses corpos obedientes, mas como nem todos os alunos aceitam essa asfixia em doses homeopáticas, essas mesmas normas e regras alavancam a construção da resistência. Conversar com a realidade, com os diversos saberes que povoam a sala de aula, dialogar com textos que nos relatam outras falas subalternas, refletir sobre a organização secular desta instituição escola, nos propicia outro olhar, sobre as mesmas práticas do cotidiano de trabalho. Havia um menino que não queria ficar em sala de aula e vivia pulando o muro da sala, pois no CIEP as paredes das salas que dão para o corredor são baixas. O professor de educação física gostava dele, dizia que ele participava das atividades e liderava o grupo. Esse menino falou sobre a Folia de Reis e pediu um espaço no CIEP para ensaiar uma apresentação. Formaram um grupo e numa das festas, sentados na arquibancada, escutamos a batida dos tambores da folia descendo a rampa. Uma batida tão forte que ritmou a batida de nossos corações. Ele à frente, conduzindo o espetáculo. Tendo tido suas habilidades reconhecidas pelo grupo de professores passou a frequentar a sala de aula, vitória! Porque a escola no momento em que abriu passagem para os tambores vibrarem gestou outra escola, possibilitando ao menino conseguir passagem para outras vibrações dentro dela, 45

afirmando outra rede de saberes que não apenas aqueles prescritos como os próprios de aprendizagem. Penso que o episódio contado acima nos apresenta um resultado de possibilidade cidadã. Entendendo a cidadania “enquanto conquista do espaço público, práticas éticas, onde as estratégias e a produção da realidade sócio-política é fruto de uma intervenção coletiva” ( AGUIAR e ROCHA, 2003:17). 2.4 Assujeitamento e desaprendizagens O assujeitamento é produzido por meio de uma série de práticas que interferem a ponto de criar algo, uma relação historicamente produzida e naturalizada , na figura, por exemplo, do indisciplinado, delinquente, “uma coisa, uma coisa que, no entanto continuava a não existir” (Foucault, 2008a:26/27). O assujeitamento é um efeito de poder e, como tal, vai propiciando a produção de uma série de subjetividades. A desaprendizagem é trazida a este texto como a descontrução de um processo de aprendizagem contínua, de saberes, valores, concepções, sujeitos e invenção de outros. Vejamos algumas desaprendizagens vivenciadas no CIEP: uma professora de alfabetização levou para a sala de aula uma folha de papel mimeografada, na qual os alunos deveriam descobrir o caminho certo que levasse o cachorrinho até sua casinha. Esta é uma prática recorrente até hoje. Os alunos, além de não realizarem a tarefa, rasgaram a folha, fizeram guerra de bolas de papel, deixando a professora extremamente irritada e frustrada. Nas reuniões diárias que tínhamos, ela perguntou: – será que nenhum aluno tinha coordenação? O que havia acontecido? Na discussão coletiva constatamos que a dúvida não cabia: os alunos tinham coordenação, iam de suas casas ao CIEP e retornavam, muitos sozinhos. Moravam num morro cheio de relevos e labirintos e não se perdiam. Começamos a problematizar: seriam o lápis e o papel, objetos que não eram de uso cotidiano em suas casas? Esse currículo oculto13 que a criança de classe média já traz para os bancos escolares? Será que a indisciplina não seria a recusa em colocar o 13 Currículo Oculto pode ser conceituado como sendo tudo aquilo que contribui para a aquisição de saberes, competências, valores, sentimentos, sem constar nos programas previamente elaborados. (SACRISTÁN, 1998:43)

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cachorrinho NA casinha? A recusa de que há um caminho certo para chegar à casa, que é preciso chegar à casa, que é preciso ser tutelado e guiado pelo outro? Fizemos a experiência com as carteiras dos alunos primeiramente. Todos colocaram o cachorro na casinha. Nem todos o fizeram da forma convencional, seguindo o caminho traçado com os móveis, mas quem disse que só poderia haver um trajeto certo? Como não admitir a criatividade e não considerar maneiras diferentes de resolver problemas? Como rotular estas crianças de rebeldes, bagunceiras, descoordenadas ou desrespeitosas porque recusam uma atividade escolar? Quem desrespeitou quem? A professora, as crianças, o sistema educacional, as verdades construídas? Como descristalizar as formas de avaliação que só servem para fragmentar e hierarquizar? Em que medida a escola de formação de professores teoriza metodologias e conceitos sem estar acompanhando de perto as práticas que constituímos diariamente, com seus saberes e suas verdades? Como esperar de uma escola de formação de professores, integralmente institucionalizada com suas regras, hierarquias funcionais, com seus saberes e práticas medidos milimetricamente por normas quantificadas, o espaço da escuta de outras práticas e saberes? Como produzir os deslocamentos necessários para desacomodar o olhar sobre os múltiplos acontecimentos que se precipitam em cascata no dia a dia de uma unidade escolar? Perceber muitas vezes saberes e verdades, perceptíveis a uma maneira de girar pelo deslocamento de quem observa, escondidos entre uma dobra e outra do acontecimento é um desafio. Havia a vantagem de estarmos num CIEP na década de 1980 e os professores terem, todos os dias, duas horas de discussão sobre suas práticas e poderem se interrogar sobre as formas de ação, podendo desmanchá-las. A vida na escola possibilita desaprendizagens, deslocamentos e invenções, que necessitam de uma prática de experienciação e problematização das formas de ação dadas. Talvez estivéssemos “focando o objeto” – a indisciplina -- quando na verdade deveríamos estar problematizando essa chancela, essa tutela, essa venda nos olhos que por vezes nos captura, mas que também em suas tensões provoca rupturas e possibilita novas ações. Essa é a riqueza desta nossa profissão de educadores que como malabaristas temos que capturar não a corda, que é o objeto, mas a cena, com seu público e flexibilizá-la, criar dobras e possibilidades de outras propostas, outras linhas, outros caminhos, outros programas que não 47

necessariamente o dito oficial. É como a “alegoria do mirante”, descrita por Löwy “a paisagem como painel não depende somente do observatório, mas também do próprio pintor, de sua forma de olhar e de sua arte de pintar” (2007:213). Nos Conselhos de Classe do CIEP participavam todos os alunos e professores, direção, secretaria. Foram momentos de registros importantes entre falas emocionadas e propostas “iluminadas”, à luz da simplicidade e da técnica. Curioso observar que mesmo hoje, com todo o arcabouço da moderna pedagogia, fala-se em relações de troca de saberes entre ensinante e aprendente e conserva-se o nome aluno para designar o aprendente. A palavra “aluno” tem origem do latim, onde “a” corresponde a “ausente ou sem” e “luno”, que deriva da palavra lumni, significa “luz”. Portanto, aluno quer dizer sem luz, sem conhecimento. A ressignificação da palavra aluno tem sido motivo de muitos simpósios, congressos e temas de trabalhos de pesquisa, mas na concepção e nas práticas de grande parte dos educadores, essa relação dá-se ainda entre ensinante e aprendente, sendo o primeiro o professor e o segundo, invariavelmente, o aluno, numa prática de assujeitamento. Considerando o aluno sem conhecimento e sem luz, desrespeitando sua cultura, por ignorá-la, considerando o saber propriedade de quem se formou nas escolas normais e universidades, esse intelectual professor só consegue aprender novas relações e estar aberto a novas experiências, se conseguir desconstruir o que para ele foi planejado pensar. Portanto, é urgente desaprender e isso só é possibilitado quando giramos o caleidoscópio procurando, deslocando, assuntando pistas entre os acontecimentos e suas sombras... Dias (2008), referindo-se à análise de Rancière, nos dá a exata dimensão da diferença do método “faça como eu” e “faça comigo”: no primeiro dizer o aluno é refém do professor e no segundo caso o aluno busca a produção de novas práticas distintas das práticas de assujeitamento. “O aluno vê tudo por ele mesmo (...). E, assim, até o infinito. Mas esse infinito não é mais um segredo do mestre, é a marcha do aluno” (RANCIÈRE apud DIAS, 2008:149). Dias coloca em análise esta perspectiva e nos fala sobre a necessidade pedagógica de desaprender os métodos determinados apriorísticamente, ao afirmar a premência de se extrair “da própria formação toda a desaprendizagem que ela contém, sem formar para, mas co-formação forjando uma formação por vir” 48

(Ibid.: 146), apontando para um ensino entre, um espaço de interseção entre as formas instituídas. Como bem interroga Dias, “que desafios se colocam entre professores, entre alunos, entre conhecer, entre políticas? Que práticas se constituem no movimento do ensino entre para que professores e alunos operem uma formação por vir?” (2008: 148 149). Nos Conselhos de Classe do CIEP que dirigi, um dos casos discutidos foi o de um menino de 10 anos, estigmatizado pela vizinhança, por sua mãe ser prostituta. Muitas outras mães não queriam esse menino na turma de suas filhas e seus filhos. O menino tinha dificuldade de aprender, segundo relato de sua professora e agredia os colegas, morava na mesma comunidade que eles, mas viam a sua vida de forma preconceituosa, e ele percebia a rejeição. Havia também bate boca no portão da escola entre as mães sobre este caso. A situação tomou um vulto grande e as crianças trouxeram essa situação para dentro de sala de aula. Tínhamos que agir. Ousamos fazer uma reunião com todos os envolvidos. Foi uma catarse. Fizemos outros encontros, com dinâmicas de grupo e textos para reflexão. Será que realmente conseguimos discutir as questões que os levavam a ter atitudes preconceituosas? Como os fizemos “aceitar” aquele menino e qual teria sido o sentimento que perpassou por muitos de nós? Pena? O menino foi menos agressivo, pensamos que tenha se sentido “protegido”. Hoje me pergunto: quais teriam sido os sentimentos daquele menino que dizia tantos palavrões e, como já não os dissesse, avaliamos nossa vitória, pois ao moldá-lo, formatá-lo ao que considerávamos como a postura de um estudante, foi aceito. Tínhamos certezas e uma delas era que ele estaria sentindo-se mais feliz. Sob que prisma, que ótica? A nossa? E os colegas de fato o aceitaram ou o fizeram de maneira forçada? Como é sofrido se deslocar dentro das instituições formalmente constituídas, como é difícil passar por fora do que se produziu como uma instituição critalizada para podermos lançar mão de – ou criar – outras tecnologias do poder. Quem sabe essas diárias reuniões coletivas do CIEP não nos fizeram reflexivos e pré dispostos a observar com outros olhares? Quem sabe não conseguimos possibilitar a estes pais e ao coletivo de alunos envolvidos neste episódio uma outra forma de ver aquele menino? Quem sabe se aquele menino não sentiu essa transformação, já não era olhado da mesma maneira, já não era “o indesejável filho da prostituta”? 49

Sabe-se que grande parte do nosso coletivo de profissionais do CIEP não se deixou capturar por uma normalização, podíamos ter normalizado o episódio, já que também somos produção de uma sociedade de controle e atuamos profissionalmente nesta sociedade disciplinar, eivada de práticas ainda da sociedade senhorial, portanto, carregados com as tintas de “preconceitos”, mergulhados na areia movediça de falsas pistas que nos conduzem muitas vezes a um campo de verdade produzido. Mas não, a recusa em adotar o objeto já pronto: o indesejável filho da prostituta produziu em nós um deslocamento. Ratifico as idéias de Soares (2006) quando coloca que a capacidade de invenção é que torna o trabalho possível. Mesmo com os aprisionamentos, o trabalho escapa como a vida, e se torna micro-movimentos, inventivo e criativo. Considera que: Apostar na análise das situações reais de trabalho do professor, não é aqui, estratégia para a busca de um ideal, e sim para colocar em análise os processos formativos que estão em curso, contribuindo para novas formas de organização do trabalho. Um trabalho que seja inventivo, uma formação que viabilize o desencadeamento de processos de problematização que não se esgotem ao encontrar uma solução (SOARES, 2006:9). Alvarez-

Uría e Varela apontam que a escola é “uma autentica invenção da burguesia para “civilizar” os filhos dos trabalhadores.” (l992: 54). Além de docilizar os corpos, de higienizar, de desqualificar, de introduzir na vida das famílias conceitos, padrões, metas que são suas, a escola também pretende “harmonizar” os conflitos, ideologizar relações e “construir” uma felicidade coletiva dentro de um contexto de verdades produzidas, longe da escuta dos saberes que pululam dentro de suas salas de aula e no seu entorno. Mas também é resistência. Por isso está se inventando e reinventando todos os dias. Cabe a nós trabalhadores da educação estar sempre problematizando nossas práticas, inventando e reinventando nosso fazer, para que possamos perceber as capturas a que estamos suscetíveis e não precisemos nos amarrar ao mastro para não sermos capturados pelo “canto das sereias”,14 tendo a atenção para não estarmos polemizando o que nos alerta Foucault ser bem diferente da problematização: “talvez seja preciso fazer um dia a longa história da polêmica como figura parasitária da discussão e obstáculo à busca da verdade” (2006b: 226), reconhecendo que o polemista se sustenta em uma legitimidade da qual seu 14 Paródia ao texto Odisséia, de Ulisses, no qual o autor relata ter-se amarrado ao mastro do barco para não ser seduzido pelo canto das sereias. 50

adversário, por definição, está excluído. Problematizar não é polemizar. Pois, continua Foucault, minha atitude não decorre dessa forma crítica que, a pretexto de um exame metódico, recusaria todas as soluções possíveis, exceto uma, que seria a boa. Ela é de preferência da ordem da “problematização”: ou seja, da elaboração de um domínio de fatos, práticas e pensamentos (...) (2006b:228). 2.5

Corporativismo e espetaculização do sofrimento Num colégio estadual localizado no centro de Nova Friburgo, ministrava aulas para o curso Técnico de Contabilidade. Os alunos, em sua maioria, trabalhavam. O curso era noturno e muitas vezes não conseguiam chegar para a primeira aula. Havia um professor de matemática que não admitia aluno atrasado em dia de prova e não oportunizava outra chance para os educandos. Como completava minha carga horária como Coordenadora do Curso, os alunos iam à minha sala em busca de ajuda. Havia um grupo que trabalhava para um supermercado da cidade, onde a demanda por emprego era grande e a rotatividade de funcionários também, já que por qualquer motivo eram mandados embora. Mesmo sendo dia de prova não tinham coragem de pedir para sair no horário, principalmente em dia que chegava carregamento de mercadorias. Era uma situação que ocorria dentro de um círculo, aparentemente sem saída: os alunos não deixavam o professor ministrar suas aulas, ele se aborrecia e aplicava provas sempre que podia no primeiro horário, sabendo que ia excluir alguns alunos, que ficavam com zero.... e a revolta da turma aumentava. A orientação da escola era que o aluno deveria ter prioridades no horário da escola, tendo que optar entre o estudo ou o trabalho, e este pensamento era compartilhado por muitos professores, como se fosse simples para o aluno abrir mão do trabalho em favor de um projeto que tinha muita importância para nós educadores e inclusive para muitos deles. Regras, normas inflexíveis, interpretações diversas do Regimento Interno da escola, corporativismo. Depois de um dia de trabalho exaustivo, chegar à escola e ter que quebrar tantas barreiras, era motivo para uma evasão significativa. Quem era violento e indisciplinado? O 51

aluno e a instituição? Ou ainda um outro “E”: um modo de fazer que coloque alunos e instituições em campos opostos? Nos Conselhos de Classe observava a ausência de vários professores, pois a jornada deste profissional é organizada pela peregrinação por diversas instituições escolares para compor a renda familiar. Entretanto, parte da mesma categoria que concordava que o aluno não poderia chegar atrasado por causa do trabalho e que teria que priorizar escola ou trabalho, “aceitava” as faltas dos colegas professores, sem colocá-las em questão. A justificativa da composição da renda familiar era uma obviedade: o colega tinha que sobreviver. Será que o aluno é constituído de outra matéria e consegue sobreviver sem renda? Colocando em análise a naturalização da aceitação da ausência dos professores no conselho de promoção15, percebe-se que um dos efeitos produzidos pelos mecanismos de exercício de poder é essa atitude corporativista. Na impossibilidade de haver um deslocamento da escola, cria-se uma lógica que conduz à naturalização da ausência ou do atraso, desde que seja a de um integrante do grupo que com a caneta na mão decide a vida do aluno. Nessa perspectiva é fato que a “função” do professor na escala hierárquica lhe concede esses privilégios, subjetivados como naturais. O estranhamento nos leva a olhar por outro prisma essa prática, como verdade produzida, cabendo ante ela a possibilidade de indignação e mudança de práticas. O texto de Heckert et al. (1999) me reporta a esta escola: “Muitos silêncios se fazem notar, nossas vozes são abafadas pelas redes do familiarismo que não possibilitam viver o choque, a luta, a discórdia. Afinal, grandes famílias não ousam discordar!” (Ibid.:189). Esses jovens ficam sujeitos ao discurso pedagógico que orienta horários e rotinas, hierarquiza relações, cria fronteiras entre os conhecimentos, indica os comportamentos ideais e legisla sobre os desvios. A possibilidade de conflito e do surgimento de outros caminhos é neutralizada. Os mecanismos de produção do fracasso escolar são potentes e se impõem com uma força naturalizante. 15 Reunião relizada ao final do quarto bimestre letivo para decidir a inserção ou não do aluno em série subseqüente no ano letivo que se segue. Os professores presentes a esta reunião, que tem o nome de Conselho de Promoção, têm esta prerrogativa.

Eram decididas vidas de centenas de jovens, muitas vezes com o voto de professores que trabalhavam com aquela série, mas não com aquela turma e, 52

portanto, nem conheciam o aluno. No final da noite a pressa era tanta para que tudo acabasse que penso que a inconsequência era maior nos resultados. Apesar de tantas normas e regulamentos exigidos para serem cumpridos pelos alunos, muitos Conselhos de Promoção eram realizados meramente para se cumprir uma burocracia da escola – dar finalidade ao ano letivo de acordo com o que estabelece o regimento, que é a realização de uma reunião de professores para a avaliação final dos alunos, na instância máxima da unidade escolar. Após os conselhos de promoção os resultados eram expostos no pátio, onde havia muitos jovens à espera dos veredictos. Mais uma vez, entre tantas, me sentia num julgamento onde o réu não teve direito à defesa. Não porque haveria reprovações em grande número, ou muitas dependências, mas porque o desenvolvimento de cada aluno não era discutido em todas as suas habilidades e competências. Muitas vezes eles eram aprovados na ausência do professor16, mas me sentia enganando-os sobre seus desempenhos quando a ata era publicada com sua aprovação. Para Heckert et al. (2001) “os conselhos de classe, quase sempre esvaziados, constituíam-se em momentos de “diagnósticos dos alunos-problema” – parecia um pequeno tribunal de inquisição” (p.245). Havia um tempo para recurso dos alunos (se não me falha a memória eram 48 horas). A revisão de prova era solicitada e muitas vezes o professor, por estar às vésperas do Natal, não comparecia à escola. Há que se analisar a violência dos métodos e procedimentos correntes. Quando se conseguia um professor substituto, ele não conhecia o aluno e não queria se indispor com o colega. Havia alunos que jogavam as carteiras pela janela, colocavam bombas nos banheiros, desligavam a energia da escola. Muitas vezes os efeitos vinham na aula de um professor que não participava daquele “tacho” que nos envergonhava. 16 Num

Conselho de Promoção quando o professor falta e não envia suas notas o aluno é aprovado, pois, como o Conselho é a instância máxima de decisão de aprovações ou retenções de alunos, tem a responsabilidade de divulgar seus resultados e, neste caso, o Conselho delibera a favor do aluno. 17 Inicialmente é montada uma sindicância, somente nos casos de roubo ou falta que seja considerada grave pela direção da escola, coordenadoria regional ou chefias da Secretaria de Educação. Após a conclusão da sindicância as instâncias administrativas da Secretaria decidem se haverá um processo administrativo ou não.

No serviço público, depois que o professor é concursado, somente através de processo administrativo17 ele pode ter sanção. Enquanto as sanções imputadas aos alunos vêm como bumerangue e são proporcionais à força de poder da mão que projeta o objeto. 53

Muitas vezes a forma de ser da juventude é tomada como desacato pessoal, outras vezes os próprios jovens custam a entender por que são acusados de desrespeitosos, nem sempre a conotação das palavras tem o mesmo significado para professores e alunos. Talvez seja porque existam juventudes e nós, profissionais de educação, só consigamos enxergar uma. Vejamos algumas considerações sobre essa institucionalização de etapas de vida. Segundo Áries (1981), na Idade Média as “Idades de Vida” começaram a ter importância, para ele existiam seis etapas de vida. As três primeiras, que correspondem à 1ª idade (nascimento/7 anos), 2ª idade (7/14 anos) e 3ª idade (14/21 anos), eram etapas não valorizadas pela sociedade. Somente a partir da 4ª idade, a juventude (21/25 anos), as pessoas começam a ser reconhecidas socialmente. A institucionalização da escola e o desenvolvimento de uma pedagogia para as crianças faz parte da construção social da infância. Regras de conduta são institucionalizadas para esta fase da vida. Porém há que se observar, segundo Zucchetti e Bergamaschi (2007), a pluralidade ao nos referirmos à infância e à juventude, pois, como construções históricas, sociais e culturais, diferenciam-se nos tempos e nos espaços, o que nos provoca pensar sobre a idéia de normalidade, muitas vezes buscada por nós educadores, numa perspectiva de encontrarmos um padrão correto de vivenciar esses períodos da vida (p.213-214). Pensar infâncias e juventudes e “a partir disso, provocar

posições críticas, por parte dos educadores, diante de políticas públicas, dos projetos pedagógicos de escolas, das práticas de educação escolar ou não-escolar homogeneizadoras” (Ibid.:231). Nos Projetos Político Pedagógicos das unidades escolares lemos as proposições do trabalho docente: “preparar para a vida”, “preparar pra o trabalho”, “preparar para a resolução de problemas e desafios”, “trabalhar as diversas ciências para que os educandos possam se identificar com algumas delas”, “preparar o cidadão lúcido, crítico e ético”, “estabelecer limites, para que os alunos se engajem socialmente e sejam felizes”. É solitário trabalhar no estabelecimento escolar com suas normas e regras que pretendem a coesão do grupo, a organização da sociedade, observando que a escola não acompanha a modernidade, não escuta os silêncios de alguns alunos, nem procura entender o que chama de indisciplina, sendo mais fácil buscar nas famílias, fora de seus muros, causas para comportamentos que lhe incomodam. 54

Indisciplina é toda situação que fuja ao controle, toda situação que desestabilize a rotina diária, o que sai de um chamado padrão idealizado de comportamento, do comportamento previsível: aquele aluno que obedece ao professor faz as tarefas de casa, é gentil com todos na escola (colegas, professores, pessoal de apoio e administrativo), conserva seu material, os bens da escola e etc., etc., etc...... O estudante que discute, recusa, subverte, resiste, não tem espaço na escola. O mundo a cada momento presencia o surgimento de novas invenções, novas profissões aparecem, o conhecimento registrado se multiplica rapidamente, os hábitos e costumes transformam-se, a comunicação é on-line, as relações sociais e familiares ganham outras características e contornos e a escola continua com o formato de seu nascedouro. Continua pertencendo ao que Foucault chamou de sociedade disciplinar, fechada, hermética, em relação com o que se apresenta do lado de fora. Alvarez-Uría (1996) questiona as pretensas mudanças, quando mantidas práticas datadas, historicizadas, que trazem em seu bojo tintas carregadas de heranças das quais não se distanciam: (...)a luta contra os inimigos do homem (o demônio, o mundo e a carne) convertiam essas escolas em conventos secularizados destinados à fabricação de bons cristãos. É verdade que nas escolas de hoje as coisas mudaram – em muitos casos os crucifixos foram substituídos pelos retratos das autoridades -- mas as heranças conventuais continuam sendo perceptíveis, e de todas elas o isolamento do exterior é talvez a analogia que mais se perpetua com certos efeitos decisivos tanto para a organização das escolas como para a transmissão dos saberes (1996:38).

Alvarez-Uría e Varela (1992) nos alertam sobre a importância do estudo da organização escolar por meio do levantamento das suas práticas cotidianas. As instituições escolares são em parte herança de uma forma de educação elaborada e posta em prática pelos colégios jesuítas que surgiram no século XVI. Identificamos na escola algumas “peças” que são tidas como fundamentais: o espaço fechado, o professor como autoridade moral, os assujeitamentos que produzem minorias e um sistema de transmissão de saberes intimamente ligado ao funcionamento disciplinar. Desde os colégios de jesuítas até a atualidade estas “peças” estão presentes na lógica institucional dos centros escolares. Mesmo considerando as transformações que ocorreram ao longo dos anos, identificamos essas “peças” quando se privilegia a ordem sobre os conteúdos curriculares. O conhecimento sobre a forma como se montaram essas “peças”, a arqueologia da 55

máquina, “é vital não só para compreender as funções sociais proclamadas e latentes das instituições educativas, como também para medir e programar suas eventuais transformações” (Alvarez-URIA; VARELA, 1992:281). Alvarez-Uría e Varela (1992) continuam suas análises lembrando que no momento da formação dos Estados Administrativos modernos coexistiram diferentes modos de educação institucionalizados, destinados a crianças de diferentes estamentos sociais: príncipes e nobres, pessoas de condição econômica média e pobres. Se observarmos a escola dos dias atuais identificamos que por trás do discurso da escola única, universal, se perpetuam escolas diferenciadas, em função da hierarquização dos grupos sociais. Considerando toda a complexidade de regras e normas que num esforço contínuo impõem aos alunos maneiras de ver, de sentir e de atuar, o sistema escolar desde a Idade Moderna destinou-se a constituir-se enquanto “filtro sensível às origens sociais e marcadoras de destinos” (Ibid.:282), ou seja, a socialização escolar favorece a uns e pune a outros, contribui para que se crie identidades sociais marcadas pelo êxito, uma vez que consegue que “os fracassados” assumam essa condição de forma pessoal. As políticas traçadas nestes últimos anos pela Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro sugerem levar a escola à modernidade com a compra de computadores, lap tops, ar condicionados para as salas de aula, como se essas questões que são meio para a educação constituíssem o seu fim. Outras vezes os Projetos Político Pedagógicos das unidades escolares falam da integração com a comunidade como se as escolas fossem finalmente abrir suas portas e janelas para espantar o mofo de suas paredes. O que vemos é a introdução mecânica de equipamentos técnicos nas escolas, mas mudanças, movimentos internos, são ações raras, esparsas e pontuais. Uma invenção, uma possibilidade desbravada por companheiros de trabalho, mas, a chamada integração com as famílias dos alunos, por exemplo, ainda não faz parte da cultura da escola e dos profissionais de educação. Da mesma forma, o contato entre os interesses dos alunos, os fluxos externos à escola e o trabalho cotidiano é uma relação pouco sentida. Linhares (2004) reflete sobre como podemos inferir e distinguir possibilidades, alcances e limites de instrumentos pedagógicos, citando como exemplo o Projeto Político Pedagógico: 56

Importa reconhecer rastros e pistas de um longo passado de excludências que vêm desde a formatação de nossa forma de pensar, como a de conceber e praticar a política, agravando-se no caso da sociedade como a brasileira onde se acumulam experiências colonialistas e escravocatas a alimentar uma estrada patrimonialista, cartorial, burocrática, calculista e, portanto, manipuladora, opressora de grupos, raças, etnias, gênero, preferências sexuais, ameaçadora da ecologia e de um desenvolvimento socialmente sustentável (LINHARES, 2004:5). E propõe esta autora como possibilidade de reversão por nós do que nomeia

“figurino político”, “à medida que o “escovamos a contra pelo”, como nos ensina Benjamim, ou seja, retomando potências que foram dadas como vencidas e, portanto, com frequência minimizadas como matrizes criadoras” (Ibid.: 5). Vencer os desafios que se apresentam requer um Projeto Político Pedagógico em construção permanente pelo coletivo, portanto, a gestão da escola teria que pensar-se em uma perspectiva democrática, garantindo a fala de todos os envolvidos no processo de ensinoaprendizagem e nos conflitos sociais, problematizando diretrizes legais, problematizando as práticas e possibilitando movimentos efetivos que produzissem relações livres. Mas como propor práticas democráticas se a escola muitas vezes não quer ouvir seus alunos, sendo mais fácil retirar dela os problemas, como, por exemplo, quando recorre à lei como regra geral e universal, utilizando a possibilidade de jovens maiores de 12 anos serem encaminhados à delegacia policial caso pratiquem atos contra a integridade física das pessoas ou contra o patrimônio escolar. Essa possibilidade tornou-se, também, uma aliada para a expulsão, pois, veladamente, se dá a entender aos pais que a expulsão vai expor menos seus filhos. Foi o caso que ocorreu numa escola localizada num bairro de Nova Friburgo, onde um aluno agrediu um professor, após um desentendimento e uma discussão. O aluno esperou o professor entrar na escola e num momento que estava de costas o agrediu, machucando o educador. Esse professor era conhecido por ter um comportamento “destemperado” e já havia casos de embates com alunos. Este aluno foi expulso da escola. Os seus responsáveis “preferiram” a expulsão, para que o caso não fosse levado à delegacia. Nesta mesma escola um professor pediu que um aluno segurasse outro para que ele pudesse bater no estudante - na frente da turma, porque se sentiu ridicularizado pelo rapaz. Naturalmente tivemos que abrir uma sindicância para apurar responsabilidades administrativas e transferimos o professor para outra 57

escola. Foi o máximo que a competência legal nos possibilitou fazer. Só o resultado da sindicância pode apontar para um inquérito administrativo e somente este instrumento pode definir a sanção para o referido professor. É a burocracia a serviço da inércia, da afirmação da hierarquia que desqualifica o estudante compulsoriamente. São tantas regras, tantos prazos, tantos trâmites, que por vezes desanimam o profissional e a não ação é preferida. A burocracia, tida como necessidade para organizar a vida coletiva, nos move muitas vezes à paralisação. Tótora (2006) coloca que a luta hoje é travada por enfrentamentos de estruturas tradicionais de gestão política, em que as instâncias de tomadas de decisões e suas implementações concentram-se em esferas da burocracia estatal, as quais selecionam seus administradores por competência técnica ou por escolhas políticas. E continua: as burocracias em suas diversas conformações têm seu poder competindo com a cidadania, que diferentemente destas não exige conhecimentos técnicos, mas critérios políticos democráticos. Não há uma correspondência entre a democracia das instâncias decisórias e a burocracia. Fazendo um paralelo com seu texto, quero me referir à instância de direção de escola, que é uma função que tem seus mandatários escolhidos pelos profissionais lotados na mesma, mas são nomeados pelo poder executivo. Este diretor escolhido pelo grupo ou, assim como cita Tótora, os conselheiros eleitos, constituem um problema: “o alcance de seu poder frente aos organismos burocráticos e os espaços de decisão já constituídos” (2006:2). Ao mesmo tempo que, como escolhidos em suas escolas, têm a confiança do coletivo que espera uma gestão democrática, por estarem nomeados pelo executivo percebem a manobra feita com a possibilidade de uma eleição onde não têm poder decisório, nem mesmo consultivo; onde existe uma política traçada a priori por um governo também eleito, ficando travados entre os organismos burocráticos, com suas normas e regras e os espaços de decisão já constituídos. Tótora problematiza as estruturas de poder, o Estado e o governo que colocam em cheque os espaços de participação e controle democrático dos Conselhos, podendo torná-los instrumentos de ampliação e legitimação de ações políticas de governo, transformando, então, os Conselhos, em instrumentos de controle social. Penso que as direções de escola têm esta mesma lógica. 58

Segundo o elenco de questões que Tótora apresenta para a constituição de modalidades democráticas do Conselho, poderíamos dizer que a direção da escola, na composição e escolha de seus componentes, não tendo autonomia para tomar decisões fora do estabelecido nos regimentos e legislações e sendo função de confiança do poder executivo, “não consegue vencer as capturas do poder constituído, particularmente, o formalismo burocrático, de interesse específico de partidos ou órgãos de classe” (2006:2). Silenciados e estáticos os diretores mantêm as dobras burocráticas. Como evitar que a burocracia determine rumos e possibilidades sem ao menos se questionar sobre os resultados finais que ela apresenta, nos casos mencionados: a reprovação, a evasão, a expulsão? Como os profissionais de educação convivem normalizando esses resultados? Em que medida isto interfere no trabalho docente, nas relações que se estabelecem entre alunos, professores e direções das escolas? Outra questão que vem contribuindo para a evasão escolar é o que de alguns anos para cá se resolveu chamar de bullying, que é também uma forma de violência, atitudes na escola de implicância, discriminação e agressões verbais e físicas mais frequentes do que o desejado. Muitos alunos não desejam mais retornar à sala de aula. A palavra bullying (vem do inglês bully, “valentão/brigão”) designa atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetitivos que buscam intimidar, agredir ou amedrontar o outro. Apesar de não ser um comportamento novo, tem sido tratado como se o fosse, como se agora houvesse aparecido uma nova problemática que envolve profissionais de educação, médicos, psicólogos . Vários exemplos posso citar: alunos que têm por brincadeira puxar a cueca do colega para cima, o que é extremamente doloroso; alunos que brincam de “pau no burro” _ todos têm 10 segundos para agredir um determinado aluno que fugiu a uma regra estabelecida por eles. Como exemplo, cito o que ocorreu recentemente na escola que dirijo. Um grupo de alunos do 9º ano do Ensino Fundamental brincava de “pau no burro” durante a aula e a regra que não poderia ser burlada, combinada entre eles, era a de não dizer palavrão. O aluno que disse o primeiro palavrão, literalmente apanhou, levando cascudos na cabeça de seus colegas e teve seus óculos precipitados ao chão ficando com a armação partida. 59

Ao serem encaminhados à sala da direção, o aluno que teve os óculos quebrados disse à mãe ao telefone que ele estava participando de uma brincadeira e que foi sem querer. Ao me aprofundar sobre a brincadeira e saber da regra fiquei um pouco confusa no primeiro momento, o motivo – não dizer palavrões em sala. Outra regra também presenciada por mim a respeito desta brincadeira foi de uma turma do 3º ano do Ensino Médio onde o aluno que dissesse uma besteira sofreria esta sanção. E quando entrei para falar sobre o assunto, porque desta vez o aluno reclamou que bateram com violência, toda a turma ficou contra o aluno, dizendo que ele sempre é o primeiro a querer participar quando os cascudos são para os outros. Refletindo sobre esta prática, percebo que não importa qual seja a regra, porque o que me preocupa é saber por que os alunos me passam uma sensação de satisfação neste tipo de violência coletiva. Não seria possível dissociar ações violentas na escola do que se passa como ação de violência fora dos muros da escola, em nosso cotidiano de vida. A dureza das regras impostas pelos alunos a eles mesmos nos ajuda a pensar a dureza das regras que temos criado entre nós. Não podemos dissociar a escola da comunidade, não podemos fazer recortes de práticas da escola e da comunidade, como se não houvesse nada ENTRE. É como estudamos na Ciência Matemática, os conjuntos muitas vezes têm suas interseções, partes de cada um deles que se imbricam em ambos. Não saturados da enorme quantidade de normas e regras que permeiam a vida escolar, criam outras tantas sansões comparadas ao tempo das palmatórias, dos joelhos nos caroços de milho, da reclusão nos quartos escuros. Não que as punições de agora não sejam muitas vezes castrantes ao futuro de um aluno, mas elas se sofisticaram para dar um ar de “civilidade” imposto pelo discurso da modernidade. Há a necessidade de se observar e de se perguntar se a imposição de normas e regras próprias da sociedade disciplinar, não está levando a esta juventude e, porque não incluir, a todos os outros profissionais envolvidos no trabalho escolar, à produção de novas regras e normas. Problematizando ainda esta questão penso que essa discussão favorece àqueles que têm interesse em estabelecer mais elementos a corroborar com a 60

noção de periculosidade. E realmente posso me perguntar: A que serve esta nova categorização? Não posso deixar de registrar que a prática do bullying tem também palco entre professores e alunos e entre professores e professores. Quantos apelidos são colocados em alunos, a quantos constrangimentos são submetidos os alunos quando são muitas vezes ridicularizados pelos professores, como, por exemplo, por não saberem responder a uma questão ou pelo que responderam em avaliações com questões, por vezes, mal formuladas. Vasco Moretto (2001) em uma de suas palestras, relatando o resultado de um trabalho que realizou sobre avaliação de instrumentos de exame, relacionou diversas questões mal elaboradas e que, previsivelmente, obtinham respostas inusitadas. Transcrevo a seguir uma delas: A pergunta era: “Em quantas partes se divide um crustáceo?” E a resposta do aluno: “Depende da cacetada.” Quantas vezes ao serem corrigidas as provas em sala lemos para o coletivo dos alunos respostas semelhantes a esta. Hoje a mídia também pratica essa ação ou estimula a conjugação de um verbo que foi apropriado pela juventude - “zoar”, quando chama em manchetes “pérolas18 do vestibular”, “pérolas do ENEM”. Alguns professores ridicularizam essas respostas, colocam até no mural da sala, não se dando conta de que esse aluno passou pelas mãos de um colega seu. Além de se dar novo rótulo a situações ditas anteriormente “de constrangimento” vivenciadas na escola, a moderna tecnologia traz também outro rótulo - discussão sobre a mesma questão, mas desta vez on line – cyberbullying. E desta feita o bullying promove todo um aparato: a imprensa traz matérias sobre o assunto, a televisão entrevista alunos e professores, as reuniões de pais trazem especialistas para discorrer sobre a questão, médicos e psicólogos são arregimentados neste exército de produção de uma “nova mesma” demanda. Não seria o bullying mais um efeito da disciplinarização que espetaculariza o sofrimento? Não seria uma cientificização que esquadrinha e individualiza, higienizando, mantendo regimes fascistas em nós? 18 Respostas às questões proposta de forma inusitada e que são comparadas às pérolas em contraposição ao seu significado, em forma de deboche. 61

2.6 - Construindo a escola inventada: produção de verdades e prática de diálogo. De todas as experiências que tive como profissional da educação, a inesquecível ocorreu durante minha gestão frente ao primeiro CIEP de Nova Friburgo, uma cidade serrana do Rio de Janeiro. Quando recebi o convite do Professor Darcy Ribeiro, corria o ano de 1986. Como o CIEP estava em construção, nossas primeiras reuniões foram no Departamento de Estradas e Rodagem - DER um prédio ao lado do CIEP e com a equipe – diretoras adjuntas e professores – toda selecionada por meio de entrevistas. Construímos nossa primeira parceria nestes encontros. Sentávamos no chão do pátio, formando um círculo, e ali entabulávamos longas discussões sobre educação, sendo o diálogo uma constante e, desta maneira informal, nem lembrávamos se éramos diretores ou professores. Na verdade éramos educadores, que com nossas discussões abraçávamos a esperança de realizar um grande sonho: construir a escola prazerosa, que dentro de princípios democráticos, apontaria para a transformação das injustiças sociais, transformando (como se isso fosse possível) os preconceitos e as discriminações, respeitando as diferenças. O CIEP com sua proposta de integrar educação, cultura e saúde foi o espaço que encontramos para reconhecer e valorizar a nossa cultura, rica por sua pluralidade. Pois ao mesmo tempo que era uma escola que tinha como uma de suas propostas resgatar a identidade cultural da comunidade da circunvizinhança e estimular a formação de alunos protagonistas de suas histórias, havendo objetivamente a figura do animador cultural19 para coordenar essa ação, se propunha a trabalhar com a multiplicidade de acontecimentos e saberes que atravessam o cotidiano do nosso planeta numa polifonia estonteante. Antes de iniciarmos as aulas fomos nós educadores que subimos e descemos os morros dos arredores, como arautos, anunciando essa nova escola e convidando a comunidade para se matricular. 19 Profissional contratado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, que tinha como perfil ser um artista da comunidade atuando em uma ou mais linguagens artísticas: teatro, música, literatura, artes plásticas, etc.

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Assim, pensávamos que sabíamos bem a procedência de nosso aluno, já que havíamos estado em suas casas, mesmo antes de conhecê-los. Foram anos de reprovações contínuas sofridas por estes alunos das primeiras séries escolares, levando crianças à evasão escolar, que acreditavam não ter capacidade para o estudo. As famílias se culpabilizavam e as coisas iam continuar assim. Quando então, a partir do Encontro de Mendes no ano de 1983, houve uma discussão em todo o estado sobre a escola pública e um dos temas era a renitência - retenção dos alunos de forma persistente principalmente na classe de alfabetização. A escola de horário integral possibilitava a estas crianças terem um momento para a feitura de suas tarefas de casa, com acesso a livros, mapas e todo um acervo disponibilizado para elas. Além de outras múltiplas atividades, complementando o trabalho de sala de aula com recreações, esportes e atividades culturais. A metodologia de alfabetização passou a considerar o universo cultural do aluno, interessando-se pelo conhecimento que ele adquiriu em sua luta pela sobrevivência. A construção da Proposta Pedagógica se baseava, portanto, em um conhecimento da comunidade do entorno e nas reuniões diárias que orientavam e discutiam as práticas. Foram meses de muita conversa, muita insegurança, muitas lágrimas e muitos risos. Afinal, estávamos juntos pretendendo construir uma escola diferente. Constatamos que a nossa vontade política não seria suficiente. Fomos à busca da competência técnica, frequentando os cursos de capacitação oferecidos pelo Programa Especial de Educação, a maioria realizados na Universidade do Estado do Rio de Janeiro -- UERJ. Assim, lendo, trocando informações, entre acertos e erros, fomos fazendo o caminho desta jornada. Ribeiro (1986) tem uma frase que sintetizava o espírito do nosso grupo de professores à época: “Só aprende quem se dispõe a rever suas certezas”. (p.59) Somente por meio das discussões do coletivo conseguimos enfrentar os desafios que a cada dia se apresentavam. Junto ao coletivo da escola desconstruímos muitos dogmas e desaprendemos muitas coisas para podermos mudar a prática pedagógica e atender de fato àquelas crianças. Uma das questões que desaprendemos é que não existe o certo e o errado, o bom e o mau, o bem e o mal, conseguimos aprender outros saberes e outras possibilidades que, por exemplo, incluíam a palavra diferente. 63

Hechert et al. (2001) percebe como fundamental, em decorrência de seu trabalho, criar espaços de discussão/análise que incluíssem profissionais-professores, merendeiras, secretárias, corpo técnico – e usuários (pais e alunos), com a perspectiva de socializar os processos que se davam na escola e na vida e escapar das redes de isolamento e individualização (p.245). Para que pudéssemos ensinar a norma culta para aquelas crianças advindas das classes populares, foi necessário, inicialmente, desenvolvermos a habilidade da linguagem oral. A fala do professor é muito diferente da que o aluno ouve e fala em casa, e muito mais próxima à que ele vai encontrar na escrita. O aluno necessita, sobretudo, falar, contando casos, comentando acontecimentos porque sua capacidade de comunicar-se fluentemente deve ser desenvolvida pela base do poder de raciocinar. Outro requisito importante para o aprendizado foram as estratégias pensadas pelo coletivo para que o aluno desenvolvesse certo grau de confiança e de apreço por si mesmo. E isto só é possível num ambiente onde haja respeito por sua família, por sua classe social, por sua fala diferente da norma culta. Por estarmos juntos, numa relação de permanente diálogo, conseguimos escutar o “ronco surdo das batalhas” 20. Lá fora, faz misérias; é o rei da rua, mas na escola é um tímido que fracassa na vida escolar embora exiba as mais altas qualificações para a vida prática. Em alguns casos, chega ao caminho da delinqüência, pela impossibilidade de ingressar no mundo da gente que fala bonito, come bonito, veste bonito (RIBEIRO, 1986:59). Fechando os

olhos, hoje, lembro-me de muitos rostinhos e de muitas histórias que me emocionam, porque por meio da educação, problematizando as questões que se sucediam, mas também acreditando que sabíamos o que seria melhor para eles, penso que interferimos no curso daquelas vidas. Assim como eles intervieram no curso de nossa estrada. Trazendo-nos outros saberes, outras lógicas e muitas vezes nos ensinando a olhar um acontecimento sobre outra perspectiva. 20 Fragmento de frase do final do texto do livro de Foucault “Vigiar e Punir” (2004:254). 21 Intelectual

“específico” segundo Foucault, foi um novo modo de “ligação entre teoria e prática” que a partir da Segunda Grande Guerra foi estabelecido. “Os intelectuais se habituaram a trabalhar não no “universal”, no “exemplar”, no “justo-e-verdadeiro-para-todos”, mas em setores determinados, em pontos precisos (...) a moradia, o hospital, o asilo, a escola, as relações familiares ou sexuais (...) E encontraram problemas específicos (...) muitas vezes diferentes daqueles do proletariado ou das massas. E, no entanto, se aproximam deles, creio que por duas razões: porque se tratava de lutas reais, materiais e cotidianas, e porque

Foucault (1982), ao escrever a “Verdade e Poder”, refere-se ao professor como um intelectual específico21 sucedendo ao que chamou de intelectual 64

encontravam com frequência, mas em outra forma, o mesmo adversário do proletariado, do campesinato ou das massas (as multinacionais, o aparelho jurídico e policial, a especulação imobiliária, etc.)” (1982: 9, 10). 22 Intelectual universal é conceito próprio do século XIX, começo do século XX, que indica, segundo Foucault, que “durante muito tempo o intelectual dito de esquerda tomou a palavra e viu reconhecido o seu direito de falar enquanto dono de verdade e justiça. As pessoas o ouviam, ou ele pretendia se fazer ouvir como representante do universal. Ser intelectual era um pouco ser a consciência de todos(...) o intelectual universal derivou de uma figura histórica bem particular: o homem da justiça, o homem da lei, aquele que opõe à universalidade da justiça e à equidade de uma lei ideal ao poder, ao despotismo, ao abuso, à arrogância da riqueza” (1982: 9, 10).

‟universal‟22, pois “detém (...) a serviço do Estado ou contra ele, poderes que podem favorecer ou matar definitivamente a vida.” (FOUCAULT,1982:11) Mais adiante nos faz dialogar com a verdade quando afirma que: “É preciso pensar os problemas políticos dos intelectuais não em termos de “ciência/ideologia”, mas em termos de verdade/poder”. (IBID.:13) O importante é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (...) A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade (...) isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros (Ibid.:12). Em nossas reuniões cotidianas quantas verdades foram

produzidas e quantas decisões foram tomadas sob esta ótica (a verdade da necessidade da construção de banheiros nas casas que não o tinham, das crianças que precisavam ser encaminhadas para atendimento médico, das mães “omissas” que não compareciam à escola...), mas sempre na perspectiva de se construir uma nova situação de verdade, seja para o aluno, seja para as práticas da escola. E Foucault , como se a nos escutar conversando, analisa: O problema político essencial para o intelectual é saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a consciência das pessoas ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção de verdade (Ibid.: 14). A

dominação cultural está nos projetos e práticas de educação de massa, como chamam Alvarez-Uría e Varela, uma pedagogia social com tendências uniformizadoras. Pois foi assim que fomos formatados nas Escolas Normais, preparados para formatar outro sem número de crianças e jovens, tudo em nome de uma proposta de vida ditada como correta, com suas verdades instituídas como inexoráveis, um continuar de dogmas herdados da Igreja. Mas em nossas desaprendizagens coletivas procurávamos dar um cunho particular a cada ação ocorrida naquela escola, que tinha uma filosofia única, mas que únicas também eram as relações que se estabeleceram naqueles anos. 65

Uma coisa ficou: aprendi a ouvir os silêncios; a ler, em atitudes violentas, as resistências; a gostar da Folia de Reis; a reverenciar, respeitar e reconhecer a cultura e o saber que traziam. Aprendi a construir saberes a partir de outros saberes e tecer nesta rede outras práticas, outras possibilidades de construir conhecimentos. Aos sábados a Biblioteca ficava aberta, o Centro Médico também e o grupo da Animação Cultural fazia trabalhos com a comunidade. A quadra estava permanentemente ocupada com jogos, casamentos, aniversários. Hoje dirijo uma escola da rede particular de ensino que foi aberta em 1994 com o propósito de ser uma alternativa para os jovens da nossa cidade quanto ao encaminhamento de suas demandas por um espaço pedagógico de maior diálogo. A intenção era e é de haver uma sala de direção permanentemente pronta a receber propostas e de estar atenta a mudanças que se façam necessárias. O regimento e as normas da unidade escolar são discutidos anualmente com os alunos e os professores. A disposição espaço - tempo também. A última proposta feita pelos alunos ano passado foi que os blocos de aulas não ultrapassassem 1h e 30 minutos, sempre intercalados com intervalos e está dando bastante certo. Assim, a cada dois tempos de aula, há um pequeno intervalo para que o aluno possa sair de sala. Esta experiência de discutir com os alunos os regulamentos é uma tentativa de resistir à forma vertical e piramidal com que a estrutura das instituições se apresenta, fazendo parte da prática de tentativas para encontrar outros caminhos para vivenciar o cotidiano da escola, e a aposta é transversal como dizem Aguiar e Rocha : O conceito de Transversalidade é utilizado por Guattari na elaboração teórica da psicoterapia institucional, durante a década de 60 (...) o autor define transversalidade como a superação de uma verticalidade (estrutura piramidal) e de uma simples horizontalidade (um certo ajeitar-se na situação), constituindo-se como um terceiro vetor. A transversalidade implica a ativação da circulação e dos agenciamentos enquanto produção de outros modos de ser, de sentir e atuar (2007, p.14). As autoras apostam no conceito de transversalidade como

contraponto ao „centralismo democrático‟. O prefixo trans conduz a uma nova forma de pensar a existência, liberada dos constrangimentos das disciplinas, das divisões entre os campos de saber. A aposta transdisciplinar é o pensamento que se produz no atravessamento das disciplinas, não no interior delas, mas entre elas. 66

Como completa Soares: é preciso construir outros modos de operar sobre/com as práticas. E isso exige o esforço intuitivo de desmontagem dos problemas estabelecidos e a invenção de novos problemas, de novos modos de existência, produzindo outras/novas subjetividades (2006:4). Uma aluna teve sua prova

retirada porque a professora a viu colando. A aluna indignada foi à sala da direção dizendo que não havia colado. Os alunos da classe também afirmam que a aluna não copiou. Esse fato levou a aluna a manifestar o seu sentimento de não estar tendo crédito sua fala. Outros alunos em sala desestabilizaram a necessária concentração para a execução da prova. As duas, professora e aluna, produziram suas verdades, a primeira diz ter observado a aluna na busca da informação que precisava para dar prosseguimento à sua avaliação e a aluna que diz não ter feito nenhuma anotação em sua prova que não fosse de seu conhecimento (a aluna havia olhado seu resumo para encontrar uma figura de linguagem cujo nome havia esquecido ). Por que a versão da professora teve que prevalecer? Dois dispositivos em análise: produção de verdade e exame. O primeiro credenciaria, no caso citado, a fala da professora como verdadeira, considerando o instituído sobre a escola, com suas funções e hierarquias. Desta feita Foucault nos lembra que a verdade não existe fora do poder ou sem poder. Para de fato dar ouvidos às duas falas, a da aluna e a da professora, há que se fazer um descentramento, se deslocar, passar pela escola reconhecendo-a como um espaço fabricado por tecnologias de poder. E deste local, deste ponto de vista, questionar as regularidades institucionais, como as regras já dadas. E a pergunta seria então: De que maneira operam essas verdades produzidas? O segundo dispositivo nos remete a um dos instrumentos dessa relação disciplinar: o exame. O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza, qualifica, classifica e pune. Ele supõe um mecanismo que liga certo tipo de formação de saber a certa forma de exercício do poder. O sucesso do poder disciplinar se deve ao uso de instrumentos simples como o olhar hierárquico, a sanção que normaliza e a combinação deles no procedimento do exame. Para observar da margem é necessário um descentramento que permita algumas análises e outros questionamentos. Precisamos mudar a lógica perversa23 23 Lógica perversa, pois nas semanas de provas os alunos ficam doentes com maior freqüência, e quando comparecem a prova, sentem dor de cabeça, dor de estômago, suam frio, choram, denotando um sofrimento semelhante aos tidos com os castigos da escola da palmatória, do crucifixo e agora do exame.

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das provas. O que é a “cola”? É a apropriação indébita do conhecimento de outrem? Se for, a aluna consultando seus resumos, escritos com uma letra tão minúscula para caber muitas informações num mesmo papel, estaria tendo legitimada sua ação? Só a relação dialógica propicia a reflexão sobre as práticas e pode propor ações que nos desterritorializem, fazendo-nos sair de uma atitude naturalizada e buscar outras possibilidades. Espero que essa luta de saberes contra os efeitos de poder do discurso científico, como pensa Foucault, tenha um encaminhamento favorável tanto àquele que se senta hoje nos bancos escolares, sem imaginar a trama de relações e de forças de poder que planejam seu comportamento como para o professor que também está atravessado e, por vezes, aprisionado pela lógica disciplinar. E que a escola sabedora de ser hoje uma instituição disciplinar, no contexto de uma sociedade de controle que lhe instrumentaliza possa, à luz deste entendimento, buscar, como dizem Coimbra e Nascimento, suas práticas sociais como produtoras dos objetos, saberes e sujeitos que estão no mundo, apostando em outras formas de existência. Apostando na possibilidade da criação e da invenção, na provisoriedade das coisas, como nos aponta Foucault. (2001:4). 68

DEVIR REVOLUCIONÁRIO: OUTROS OLHARES SOBRE AS PRÁTICAS “Resistir é abrir-se ao ilimitado do devir.” (Tótora, 2006:249). Este trabalho, como muitos outros, foi tecido entre muitas leituras, embasado por múltiplas discussões bibliográficas e uma história de vida. O lócus de minhas observações é a escola, uma instituição social eivada de regras de conduta, normas de comportamento, regulamentos, regimentos, mas também local de resistência de projetos criativos, que desestabilizam e descristalizam as rotinas, produzindo linhas de fuga e acontecimentos em seu dia a dia que requerem constantes reflexões sobre a convivência em grupo e muitas vezes estimulam novas regras e novos aprisionamentos. A escola é uma das instituições sociais que tem questões específicas com o poder central, mas não é uma simples extensão deste poder. E uma das contribuições de Foucault para o estudo das relações de poder que se explicitam na escola, é sua observação de que o poder não intervem apenas de forma violenta, opressiva, mas, também, de maneira disciplinadora, normalizadora, o que não quer dizer que muitas destas práticas não conduzam violência e opressão. Machado e Provença muito bem apontam que “um professor não é propriamente um agente da repressão; é um representante do saber. Mas será que ele não exerce --pelo saber que produz ou reproduz-- um tipo de poder diferente, um tipo específico de dominação?” (2004:30). Meu trabalho não está focado na busca de verdades. Sua discussão faz parte de um processo de relações presentes no lócus de meu objeto de pesquisa – a análise das relações cotidianas na escola. Para que a utopia marxista se concretize é necessário que o proletariado utilize a consciência como arma em seu combate, de acordo com seus interesses de classe, como condição necessária para sua prática revolucionária. Para que um outro contexto social possa existir, com outras relações de poder, é também necessário que problematizemos as práticas. Mas a escuta das subjetividades tem trazido a meu trabalho uma visão de como os alunos, professores e profissionais da educação se relacionam com os regimes de verdades de uma época e como podem não só reproduzir tais regimes, mas reconstruí-los. 69

A polifonia das falas, como instrumento de trabalho, enquanto pesquisadora, me é imprescindível, pois retrata diferentes saberes. E é através destes olhares díspares: inquietantes, provocadores, instigadores, acomodados, que vou tecendo minhas observações, refazendo as paisagens pré-estabelecidas, descobrindo outras formas de pensar o cotidiano, sob novas óticas e aí sim terei possibilidades de encontrar novos caminhos, novos atalhos para compartilhar com os profissionais de educação que buscam outras possibilidades de convivência na escola. São as inúmeras possibilidades deste discurso que me encantam e me levam a diversas reflexões, e são as reflexões que prospectam possibilidades de outros caminhos, de ouvir de outra forma a fala de um aluno, de ouvir o que não é dito no silêncio de uma sala de aula, ou o que é expresso nas entre linhas do relato de um pai. Meu objeto de pesquisa –a análise das relações cotidianas na escola – é uma dissertação sobre resistências a práticas de controle social. A vigilância que se estabelece nas escolas antes mesmo que os estudantes cometam qualquer infração, essa impressão que o aluno tem de estar sendo observado a todo instante, essa opressão com normas e regras que estabelecem o que não pode ser feito, aponta uma sociedade do panoptismo. Esta instituição escola tem a finalidade primeira de fixar os indivíduos em um aparelho de normalização dos homens_ como bem define Foucault (2005)_ que dociliza os corpos para aceitar as regras do mercado de trabalho, controlando o tempo, o espaço, as atividades, tudo visando a formação da sociedade industrial. Pois, segundo Foucault, “é preciso que o tempo dos homens seja colocado no mercado, oferecido aos que o querem comprar, e comprá-lo em troca de um salário (...) que este tempo dos homens seja transformado em tempo de trabalho” (2005:116). E esta sociedade do sequestro do tempo dos homens para o trabalho, do corpo dos homens como força do trabalho, a partir de um poder econômico, político e judiciário, ganha palco nas instituições escolares. São as mentiras do sistema que se diz democrático, igualitário, são os cantos da sereia a hipnotizar as pessoas, porque são o oxigênio da sobrevivência da produção capitalista. Daí a importância de se discutir com os profissionais da educação estas reflexões. Queremos reproduzir as verdades produzidas, as falácias, ou 70

pretendemos nos perfilar ao lado dos que problematizam e questionam essas produções para poder jogar o jogo com alguma possibilidade de invenção? Restará aos educadores o desempenho de uma inevitável missão normalizadora? Ou haverá na tradição do pensamento pedagógico uma lacuna do discurso científico e educacional que abrirá espaço para florescer outros ideais e outras práticas? Problematizo, transformando em questões, as afirmações feitas por Cunha (2003:466). Barros retrata em palavras esse devir-revolucionário: “o que nos move é uma vontade de interferir que crie porosidade no que está endurecido” (2003: 2). E propõe uma pedagogia crítica que “requer a invenção de novos modos de pensamento e ação” (2003: 3 e 4). E corrobora com o meu pensamento, de que as lutas precisam se dar também em torno dos processos de subjetivação, contra as tecnologias do poder desta sociedade. “Lutas como resistência a esse aparato de técnicas e procedimentos desenvolvidos para conhecer, dirigir e controlar a vida subjetiva de cada um dos membros submetidos aos seus campos de ação” (2003: 4). Desta forma, para Branco (2002) a questão é “produzir, criar, inventar novos modos de subjetividade, novos estilos de vida, novos vínculos e laços comunitários para além das formas de vida empobrecidas e individualistas implantadas pelas modernas técnicas e relações de poder” (2002: 182). Concordo com Alvarez Uria e Varela quando dizem que muitos isentam a escola da responsabilidade das desigualdades sociais, mas os modos de educação têm contribuído para a manutenção das hierarquias sociais e o medo de se modificar essa estrutura escolar engessada há séculos é uma prova disto. Há também aqueles cujo estudo destes contextos se basta, mas há forças sociais que problematizam as políticas educativas e a estas cabe a “obrigação intelectual e moral de lutar por modelos educativos mais justos” (Alvarez-Uría e Varela, 1992:286). Aqui eu faria uma alteração no final da sentença, excluiria a palavra “mais”. Tótora (2006) nos lembra que “a potência de invenção das minorias está no devir, e não em um poder a ser alcançado, ou fixado, em uma ordem jurídica traduzida em direitos.” (Ibid.:250) Os modelos dominantes não constituem devires, devires são sempre minoritários: devir-criança, devir-mulher. 71

Deleuze e Guattari (1993) nos remetem a um devir democrático: O atual não é o que somos, mas antes o que nos tornamos, o que estamos nos tornando, isto é, o Outro, nosso devir-outro. O presente ao contrário, é o que somos e, por isso mesmo, o que já deixamos de ser. Devemos distinguir não somente a parte do passado e a do presente, mas, mais profundamente, a do presente e a atual. Não que o atual seja a prefiguração, mesmo utópica, de um porvir de nossa história, mas ele é o agora de nosso devir.(...) Um devirrevolucionário(...) Um devir-democrático que não se confunde com o que são os Estados de direito(...) um devirgrego(...) Diagnosticar os devires em cada presente que passa, é o que Nietzche atribuía ao filósofo(...)Que devires nos atravessam hoje, que recaem na história, mas que dela não provêm, ou antes, que só vêm dela para dela sair?(1993:145, 146) Cardoso Junior (1999) nos traz a discussão de que os devires minoritários são os que produzem linhas de fuga às maiorias democráticas. Vejamos sua explanação: as democracias originalmente trabalham com base nas maiorias. O que é uma maioria? Para Rousseau a maioria é uma vontade, ela representa a força de indivíduos livres que se reuniram e fizeram um pacto democrático. Quando consideramos as democracias contemporâneas temos a observar que os meios de comunicação de massa produzem por vezes essa vontade. A maioria representa então um contrato social, um pacto social. Como lembra Cardoso Jr., para Deleuze a maioria, antes de ser uma expressão numérica, é um padrão, tem uma identidade, funciona como se fosse uma pessoa. Por isso que a democracia é tão importante, porque através da maioria personifica nossas forças individuais, os nossos contratos. Uma maioria tem vida porque os indivíduos que a compõem, ao fazer um pacto político, aceitaram compor-se a partir de alguns elementos de sua individualidade e não de todos. Esses elementos que compõem os indivíduos, por sua vez vão compor a maioria de singularidades ou diferenças. Sendo assim, maioria é um padrão restrito porque não pode incluir as diferenças, são fotografias, são estados momentâneos. Essa identidade que encontramos na maioria também é colocada à prova, não se mantém por muito tempo, porque as singularidades que nos fazem parte dela vão começar a incomodar a maioria. Essas singularidades que deslocam as maiorias são os devires minoritários. Tótora utiliza-se de um pensamento de Deleuze e Guattari e complementa a frase que se torna muito apropriada às reflexões coletivas na escola, diziam eles: ”o pensamento de resistência, em relação a tudo que é ignóbil, está mais próximo de um animal que morre (...) grunir, fugir, escavar o chão com os pés, nitrir, entrar 72

em convulsão” (1993:140) “do que do homem que fala, manso sendo um democrata, e que se humaniza através da linguagem, da discussão e da busca de consensos, ainda que seja em torno do dissenso ( TÓTORA, 2006:245). Ao analisar as relações e tensões que se estabelecem na escola, as correlações de força em constantes quebras de braço, entre alunos e alunos, professores e alunos, professores e professores, direções, pessoal de apoio..., temos a nítida visão do que nos fala Foucault: para haver sobre-lucro é preciso haver sub-poder.(...) não se trata do aparelho do Estado, nem da classe no poder; mas do conjunto de pequenos poderes(...) o sub-poder para funcionar provocou o nascimento de uma série de saberes_ saber do indivíduo, da normalização, saber corretivo_ que se multiplicaram nestas instituições de sub-poder fazendo surgir as ciências do homem e o homem como objeto da ciência (2005:125). Quando estudante de Ciências Sociais da antiga Universidade do Estado da

Guanabara, nos idos de 1972, não tive a oportunidade de estudar Foucault, mas, construí uma admiração por Descartes, por colocar em dúvida tudo o que constituía conteúdo do pensamento. Desde Descartes a dúvida entrou na história da Ciência e da Filosofia. A dúvida é um ato intelectual, assim como romper o equilíbrio é um ato pedagógico, porque o homem só caminha porque corre o risco do desequilíbrio e impulsiona os pés para frente. Na busca de um novo caminhar pedagógico -- onde o exercício de pensar a escola é também exercício de pensar a sociedade -- projetar os partícipes desta instituição social, dando-lhes a fala e a possibilidade de tecerem com suas histórias de vida a gestão de uma nova história, é um ato revolucionário. Do direito de opor uma verdade sem poder a um poder sem verdade da sociedade grega, da Paidéia, até a instituição da sociedade disciplinar, tendo como verdade saberes e poderes enraizados nas relações de produção, o homem busca a felicidade. Nesta procura entre verdades, poder, dominação, resistências temos infinitas possibilidades de articular o pensamento. E nesta ciranda que circula por entre as dobras dos acontecimentos, nestas linhas de fuga que descontinuam as histórias, vou colhendo pistas para este devir-revolucionário. 73

Sorrio. Esta escrita precisa se apresentar finda neste momento, apesar de ser devir. Meus olhos se marejam em lágrimas já com saudades de tantos pensamentos, desse mergulho corajoso a que me determinei fazer e que me propiciou outros olhares sobre as mesmas práticas, me desterritorializando. E como um navegador de asa delta, que se projeta da montanha pela primeira vez, com seus medos do desconhecido, após 40 anos de magistério, de formação marxista e leninista, dei esse pulo, e pude observar a mesma paisagem de tantos outros ângulos e formas, se constituindo em tantas outras, em deslocamentos simultâneos, num mosaico de possibilidades. 74

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