UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO SE LIVRAR DO TRAUMA DA EXISTÊNCIA: O VAZIO, A MORTE E O LIMBO NA TRIOLOGIA DE EVANDRO AFFONSO FERREIRA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

COMO SE LIVRAR DO TRAUMA DA EXISTÊNCIA: O VAZIO, A MORTE E O LIMBO NA TRIOLOGIA DE EVANDRO AFFONSO FERREIRA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

COMO SE LIVRAR DO TRAUMA DA EXISTÊNCIA: O VAZIO, A MORTE E O LIMBO NA TRIOLOGIA DE EVANDRO AFFONSO FERREIRA

ALITA TORTELLO CAIUBY

RIO DE JANEIRO 2017

COMO SE LIVRAR DO TRAUMA DA EXISTÊNCIA: O VAZIO, A MORTE E O LIMBO NA TRIOLOGIA DE EVANDRO AFFONSO FERREIRA

ALITA TORTELLO CAIUBY

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutora em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto

RIO DE JANEIRO 2017

COMO SE LIVRAR DO TRAUMA DA EXISTÊNCIA: O VAZIO, A MORTE E O LIMBO NA TRILOGIA DE EVANDRO AFFONSO FERREIRA Alita Tortello Caiuby Orientador: Professor Dr. Godofredo de Oliveira Neto Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). BANCA EXAMINADORA: _________________________________________________________________________ Presidente, Professor Doutor Godofredo de Oliveira Neto - UFRJ _________________________________________________________________________ Professor Doutor Adauri Silva Bastos – UFRJ _________________________________________________________________________ Professor Doutor Jose Luis Jobim De Salles Fonseca – UERJ _________________________________________________________________________ Professora Doutora Maria Eugenia da Gama Alves Boaventura Dias – UNICAMP _________________________________________________________________________ Professora Doutora Stefania Chiarelli – UFF _________________________________________________________________________ Professor Doutor Marcus Salgado – UFRJ (Suplente) _________________________________________________________________________ Professor Doutor Rodrigo Demiris – IFRJ (Suplente)

Faculdade de Letras / UFRJ Rio de Janeiro, 2017.

FICHA CATALOGRÁFICA

Tortello Caiuby, Alita

Como se livrar do trauma da existência: o vazio, a morte e o limbo na trilogia de Evandro Affonso Ferreira /Alita Tortello Caiuby – Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2017.

Orientador: Godofredo de Oliveira Neto

Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, 2017.

Referências bibliográficas: f. 181 - 192

1.Evandro Affonso Ferreira. 2. Literatura Brasileira. 3. Literatura Contemporânea. 4. Schopenhauer. I. Neto, Godofredo de Oliveira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas. III. Título.

AGRADECIMENTOS

A Elza, Gilberto, Davi e Beatriz; raízes fortes. A Godofredo de Oliveira Neto; orientador confiante. A Maria Eugenia Boaventura; mentora primeira. A Anna Lúcia Melgaço; ouvido incansável. A Katia Teoni; professora benevolente. A Nildo Benedetti; escudeiro fiel. A Vitor Figueiredo; amigo generoso. A Felipe Lima; gênio conterrâneo.

DEDICATÓRIA

Ao leitor, elemento sagrado dessa patifaria literária

CAIUBY, Alita Tortello. Como se livrar do trauma da existência: o vazio, a morte e o limbo na trilogia de Evandro Affonso Ferreira. Rio de Janeiro, 2017. 192 fl. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira – UFRJ, Faculdade de Letras. RESUMO Este trabalho analisa três dilemas humanos fundamentais – o vazio, a morte e o limbo – em três livros do autor mineiro Evandro Affonso Ferreira. A “Trilogia do desespero”, como ficou conhecida, compreende as seguintes obras: Minha mãe se matou sem dizer adeus, O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam e Os piores dias de minha vida foram todos. A intenção é comprovar como as noções de vazio e morte culminam em um estado límbico na trilogia, o qual será principal gerador de um texto concomitantemente compulsivo e estagnado. Os narradores, em primeira pessoa, estão sempre à beira de um colapso, seja pela morte ou pela loucura. Nesse processo, enquanto esperam pelo momento derradeiro, as vozes refletem sobre suas vidas e sobre as experiências alheias e pessoais, trazem à superfície questões humanas mais íntimas, olhando-as sempre com um viés pessimista, que resgata em muitos aspectos a filosofia de Arthur Schopenhauer. A proposta da tese é perceber como essas noções de vazio, morte e sobretudo limbo aparecem no texto de Evandro Affonso Ferreira. A partir das narrativas são estabelecidos diálogos com outras obras literárias e filosóficas, em um processo de bricolagem semelhante ao usado pelos narradores das obras analisadas. Além dos conceitos schopenhauerianos e das obras literárias, transita-se pelo pensamento de Jacques Derrida, Maurice Blanchot, Charles Baudelaire, Walter Benjamin, Sigmund Freud, Platão, Jean-Luc Nancy, Michel Foucault, entre outros. Palavras-chave: Evandro Affonso Ferreira; Literatura Brasileira; Literatura Contemporânea; Schopenhauer.

ABSTRACT

This thesis analyzes three fundamental human dilemmas – emptiness, death and limbo – in three books of the author Evandro Affonso Ferreira, born in Minas Gerais. Also known as the "Trilogy of Despair", it includes the following works: Minha mãe se matou sem dizer adeus, O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam and Os piores dias de minha vida foram todos. The intention is to prove how the notions of emptiness and death culminate into a limbic state in the trilogy, the main generator of a concomitantly compulsive and stagnant text. The narratives, in the first-person, are always on the verge of a collapse, whether by death or madness. In this process, as they wait for the ultimate moment, they reflect on their lives and on their on experiences as well as the others. They bring intimate human questions to the surface, always looking at them with a pessimistic point of view, that regains in many aspects the philosophy of Arthur Schopenhauer. The purpose of this work is to understand how these notions of emptiness, death and especially limbo appear in the text of Evandro Affonso Ferreira. Starting from the narratives, it was established a dialogue with other literary and philosophical works, in a process of bricolage similar to the one used by the narrative voices of the works that were analyzed. In addition to Schopenhauer's concepts and literary works, the thought of Jacques Derrida, Maurice Blanchot, Charles Baudelaire, Walter Benjamin, Sigmund Freud, Plato, Jean-Luc Nancy, Michel Foucault, among others, is put in perspective. Keywords: Evandro Affonso Ferreira; Brazilian Literature; Contemporary Literature; Schopenhauer.

RESUMEN

Esta tesis doctoral analiza tres dilemas humanos fundamentales - el vacío, la muerte y el limbo - en tres libros del autor de Minas Gerais, Evandro Affonso. La "trilogía de la desesperación", como se es conocida, comprende las siguientes obras: Mi madre se suicidó sin decir adiós, el mendigo que se sabía de memoria los adagios de Erasmo de Rotterdam y los peores días de mi vida era todo. La intención es ver cómo estas nociones del vacío y de la muerte culminan en un estado límbico en la trilogía, que será el principal generador de un texto al mismo tiempo compulsivo y estancado. Los narradores, en primera persona, siempre están al borde del colapso, ya sea por la muerte o por la locura. En este proceso, mientras se espera hasta el último momento, las voces reflexionan sobre sus vidas y experiencias personales así como la de los otros. Ellos traen a la superficie cuestiones humanas más íntimas, mirándo siempre con un punto de vista pesimista, que recoge en muchos aspectos la filosofía de Arthur Schopenhauer. El propósito de esta investigación es entender cómo estas nociones del vacío, de la muerte y, especialmente, del limbo figuran en el texto de Evandro Affonso Ferreira. A partir de las narrativas es elaborado un dialogo otras obras literarias y filosóficas, en un proceso de bricolaje similar a lo utilizado por los narradores de las obras analizadas. Además de los conceptos de Schopenhauer y de las obras literarias, es puesto en perspectiva lo pensamiento de Jacques Derrida, Maurice Blanchot, Charles Baudelaire, Walter Benjamin, Sigmund Freud, Platón, Jean-Luc Nancy, Michel Foucault, entre otros. Palabras clave: Evandro Affonso Ferreira; Literatura Brasileña; Literatura Contemporanea; Schopenhauer.

Pergunto aqui se sou louca Quem quer saberá dizer Pergunto mais, se sou sã E ainda mais, se sou eu Que uso o viés pra amar E finjo fingir que finjo Adorar o fingimento Fingindo que sou fingida (Ana Cristina César)

Aquilo a que os homens chamam amor é coisa bem pequena, restrita e frágil, se comparada a essa inefável orgia, a essa santa prostituição da alma que se entrega por inteiro, poesia e caridade, ao imprevisto que surge, ao desconhecido que passa. (Charles Baudelaire)

SUMÁRIO

Preâmbulo

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PARTE I – O ESPANTO DO INSÓLITO 1. Introdução

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2. Apresentações necessárias

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2.1. Quem fala sobre o autor Evandro Affonso Ferreira___________________________42 2.2. Processos da criação literária – transformações da produção

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3. Na cidade apressurada

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3.1. Moribundo

53

3.2. Mendigo

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3.3. Doente

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PARTE II – O TRAUMA DA EXISTÊNCIA 1. Como se livrar do vazio

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2. Como se livrar da morte

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3. Como se livrar do limbo

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PARTE III – O QUE (S)OBRA 1. Retalho: A validação em Não tive nenhum prazer em conhecê-los

171

2. Grogotó!

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PREÂMBULO

Catete com a Santo Amaro. Acabara de sair pelas ruas do meu bairro em busca de um laboratório que aceitasse meu plano médico para realizar um exame de sangue. Àquela época, eu já havia raspado minha cabeça, com máquina 1, para me livrar de um trauma. Sem saber ainda que a vida é uma sequência inusitada de agonias. Os cabelos eram minha história e eu precisava apagar a minha, ou parte dela. Andava assim, com cara de doente, vestes mal aprumadas, daquelas que se deve usar para os dias em que se fica em casa, escrevendo uma tese. Andava assim e cruzava a esquina para o lado esquerdo, em direção ao bairro da Glória. Foi de relance, mas me causou um estranhamento enorme. Naquela mesma esquina, eu acabara de ver parado, esperando o sinal de pedestres abrir, o escritor Evandro Affonso Ferreira. Continuei meu caminho, mas olhei para trás. Que sentido havia naquilo? Eu estava delirando? Seriam meus traumas tão intensos assim? Não era possível. Não se cruza, caminhando nas ruas, esperando o sinal, em um dia qualquer, em uma esquina qualquer, um escritor qualquer, mas que calha em ser justamente aquele que você estuda na sua tese de Doutorado. Tive de voltar, era preciso encarar o delírio de frente. Aprendera com suas narrativas a cutucar as feridas. Por isso, criei coragem e toquei-lhe envergonhadamente o ombro: “Com licença, o senhor é o escritor Evandro Affonso Ferreira?”. Lembro-me de que ele vestia calças brancas e uma bata clara. Flanava. Na cabeça, em vez da auréola, usava um chapéu panamá. Olhou para mim sem muito susto e respondeu que sim. Diálogo curto e entusiasmado, de ambas as partes. Até que ele surpreendentemente me convidou para tomar um café na padaria que ficava naquela mesma esquina. Tinha ouvido falar de mim, por conta de um amigo dele que uma vez encontrei quando trabalhava fazendo pesquisas de campo. Já havia achado aquela coincidência do amigo incrível, mas estar às 11 horas da manhã tomando um horrível café com leite cheio de nata, na Confeitaria Santo Amaro,

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com o escritor estudado na minha tese, pareceu-me digno das obras literárias. Mas aquelas cafonas, cheias de clichês previsíveis. Querendo ou não, a obra veio pronta, agora era preciso narrá-la. Sentamos à mesa e começamos a conversar. Evandro era um homem de simplicidade extremada, de muita cultura, de muitas histórias. Contou-me inúmeras. Justificou primeiro que estava no Rio visitando uma amiga, que mais tarde revelou ser namorada. Mas que era um relacionamento complicado. Depois contou que não via televisão, tampouco lia jornal. Que a contemporaneidade lhe era incômoda. Que havia parado no tempo. Que se bastava com pouco. Que a vida de escritor não dava dinheiro algum. Que tinha, no quartinho de São Paulo onde morava, apenas uma muda de roupa e alguns poucos livros. Que os sebos que teve foram sempre um desastre, pois não sabia gerenciar um negócio. Que lia livros que ninguém lia, Bruno Schulz, por exemplo. Que havia uma dissertação de mestrado sobre a obra dele, de uma tal Julia Studart, mas que não simpatizava com o discurso acadêmico. Eles não sabem o que dizem. Ficam em seus mundos, olhando para os próprios umbigos. Mas o professor Francisco Merçon, pode te ajudar, avisou. E essa história de trilogia é só um jeito para vender mais livros, porque não tem trilogia coisa nenhuma, não. A verdade é que eu tenho medo da morte, então para conseguir lidar com isso, eu escrevo. Quer mais um café? Mas você é como as outras, não está anotando nada do que eu falo... E eu falei já tanta coisa importante. Muitas. Mas minha cabeça careca não pareceu dar conta dos fatos. Era muita informação, admiração e surpresa para uma só manhã. O olhar humilde de Evandro conflitava com o iphone que eu pegava em seguida para fazer umas anotações ingênuas, para não me sentir tão mal. Nome do professor, da pesquisadora e “qual é o seu e-mail?”, perguntei.

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Eu alimentava a esperança de que mantivéssemos um diálogo ao longo de minha pesquisa (e de minha vida, quem sabe?), e que ele me daria dicas de como prosseguir. Ele funcionaria como parâmetro para mim. Eu, que sempre precisei de guias, mentores, oráculos, prumo, bússola. Despedi-me meio feliz, meio frustrada. Era incrivelmente triste que aquele encontro houvesse acabado daquela forma tão simplória, em meros abanos de mão e agradecimentos encabulados. Não me preparei para experienciar tamanha sorte. Nem maturidade tive para lidar com aquele destino dadivoso. Mais tarde, descobri que, com Evandro, e-mail era coisa rara. Consegui apenas que ele me respondesse uma vez, avisando que sim, eu poderia enviar meu pré-projeto de Doutorado para ele. E, depois disso, foi só silêncio. Enviei emails insistentes, pedindo resposta, felicitando pelos livros e prêmios, anexando a resenha que tinha feito sobre sua obra O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam. A nenhum deles, Evandro respondeu. Deixou em suspenso. Parou o diálogo no meio. Deixou-me incompleta. No vazio, ansiosa por resposta. Precisei procurar Evandro nos seus livros, encontrar suas frestas e desejos nas entrelinhas. Tive que trilhar sozinha um caminho que pensei que seria guiado por um aedo, um poeta imortal. Um, que eu vira, todo de branco, flanando pelas ruas da Glória. Tive que me livrar de minha ingenuidade. Entender que eu havia cruzado, em verdade, com um poeta que perdera a auréola, como aquele de Baudelaire. E meu diálogo se pareceu tanto com este:

XLVI A PERDA DA AURÉOLA “Olá! O senhor por aqui, meu caro? O senhor nestes maus lugares! O senhor bebedor de quintessências e comedor de ambrosia! Na verdade, tenho razão para me surpreender!” “Meu caro, você conhece meu terror de cavalos e viaturas. Agora mesmo, quando atravessava a avenida, muito apressado, saltando pelas poças de lama, no meio desse caos móvel, onde a morte chega a galope de todos os lados ao mesmo tempo, minha auréola, em um brusco movimento, escorregou de minha cabeça e caiu na lama do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que me arriscar a quebrar uns ossos. E depois, disse para mim mesmo, há males que vêm para o bem. Posso, agora passear incógnito, cometer ações reprováveis e abandonar-me à crapulagem como um simples mortal. E eis-me aqui, igual a você, como você vê.” 15

“O senhor deveria, ao menos, colocar um anúncio dessa auréola ou reclamá-la na delegacia caso alguém a achasse.” “Não! Não quero! Sinto-me bem assim. Você, só você me reconheceu. Além disso a dignidade me entedia. E penso com alegria que algum mau poeta a apanhará e a meterá na cabeça descaradamente. Fazer alguém feliz, que alegria! e sobretudo uma pessoa feliz que me fará rir. Pense em X ou em Z. Hein? Como será engraçado.” (BAUDELAIRE, 2006, p. 253-255)

Era isso. A dessacralização da arte aurática, proposta por Walter Benjamin, que havia ocorrido há tanto tempo, parece ter demorado para acontecer dentro de mim. À pergunta inevitável – “Em suma, o que é a aura?”, Benjamin respondia: “É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”1. A aparição de Evandro naquela esquina da Glória tinha, para mim, esse aspecto aurático. Precisei desconstrui-lo. A perda da aura era também esse aspecto liberador que permitia o rompimento com a postura reverente que a antiga aura impunha. Mas eu não podia me esquecer de que havia também um aspecto opressor, que submetia a arte à economia de mercado. Eu precisava tornar Evandro real. Era ele quem dizia ser feito “de muito passado pela frente”, mas era eu quem havia parado no tempo. Evandro já havia se despedido há tempos de sua auréola. Se é que um dia a teve. Vi-me desamparada. Entretanto, meu poeta “desaurado” ensinava que não era nele que eu devia me apoiar. Ensinava que a vida por si só é ficção. E que aquela conversa na mesa da confeitaria nada mais era que um capítulo de livro. Não havia porque estudar a obra pelo autor, se o autor era a própria obra. Foi muito tempo depois que consegui me voltar para os livros de Evandro com a propriedade que aquele encontro havia me dado. Foram quase três anos para perceber o que Evandro queria dizer silenciando. Seu discurso foi quase sempre conflitante e eu precisei entender as artimanhas da contradição, mas sobretudo das ironias, para conseguir lê-lo de fato. Era preciso que percebesse o complexo processo do fazer literário que Evandro propunha naquele café cheio de nata. Eu ouvi suas histórias sem saber se um dia iria conseguir distinguir o que era invenção e o que era realidade.

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, acesso em: 04/03/2015.

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Era isso que eu precisava entender. E eu precisava aceitar a morte para entender que Evandro, na verdade, falava de vida. E que vida nada mais era que uma sequência interminável de narrativas, mesmo que elas aconteçam apenas na mente do narrador. Com Evandro, a relação entre realidade e ficção é propositadamente difusa, e sua própria vida real e literária (que, como todas, caminha para morte) passa a ser seu projeto. Ele não vive para a obra, ele vive a própria obra. Mas que outro autor seria, inusitadamente, diferente? E o que seríamos todos nós senão uma sequência extraordinária de histórias? E até que ponto as palavras darão conta do vivido? Segundo o filósofo André Gorz, só resta ao escritor – e a nós – a tentativa de aproximar e insistir, mesmo que o resultado não seja o prometido, ou imaginado. Insistir, ainda que nos sintamos traídos nas nossas emoções e pensamentos. Para ele, a frustração diante do que não se pode dizer, só não é mais forte, talvez, que a necessidade de continuar tentando. E esse “indizível” precisa ser reconhecido, mesmo que as palavras nos pareçam falsas. Pois elas trarão um sinal, uma lembrança, revelarão uma memória, um campo de nostalgia, um espaço onde os homens podem se encontrar, encontrando um pouco de si próprios, de medos e sensações que eles jamais poderiam definir, mas dos quais conseguem lembrar depois de ler uma história, ouvir uma música, ver um quadro (...) (DALCASTAGNÉ, 2012, p. 69).

A prosa de Evandro Affonso Ferreira carrega um olhar envelhecido sobre o presente. Ao resgatar o passado nos faz refletir profundamente sobre o agora. Nas obras escolhidas para esta tese – Minha mãe se matou sem dizer adeus, O Mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, Os piores dias de minha vida foram todos – Evandro irá se configurar cada vez mais fortemente em figura miscigenada entre autor, narrador e personagem. O resultado desse processo será a figura complexa de um narrador que transita entre realidade e ficção, que se mostra louco, doente e velho. É a ousadia de fazer literatura fora das páginas do livro, tornar-se personagem antes de se tornar narrador. Transgredir para comunicar. E o que comunica Evandro/mendigo/velho/doente? Que a vida é a morte em suspensão. Que a dúvida é a maior das aflições humanas. 17

Que o estado límbico de nossa existência é, por certo, nossa posição mais incômoda. Precisamos – preciso – livrar-nos do trauma, e a palavra é nossa resistência, nosso refúgio, nossa saída.

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PARTE I – O ESPANTO DO INSÓLITO

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1. INTRODUÇÃO

Vivemos em uma sociedade moribunda. Nossas mortes estão sendo, o tempo todo, anunciadas,

filmadas,

publicadas,

compartilhadas,

retuitadas,

desmanchadas,

desmanteladas na vida virtual, maquinal, cada vez menos visceral, orgânica, ancestral. Como dar conta de um processo tão avassalador? Celebrando o presente, mesmo que ele seja mórbido. Porque diante de tanta morte, precisamos confirmar nossa existência no aqui e agora. E a palavra nos parece a alternativa fulcral para realizar essa tarefa. As obras de Evandro Affonso Ferreira vêm para nos libertar de uma angústia, o trauma por nos constatarmos vivos, seres que existem. Viver dói demais, estamos todos loucos, velhos e doentes. Aguardando que nossa existência se finde, esperando a salvação, a resposta, a vida, Godot. A abordagem literária de Evandro Affonso Ferreira evita o mundo narrativo sequencial, de encadeamentos lógicos, de ação. É uma obra, antes de tudo, de narradores. Apoia-se na suspensão da vida, no limiar entre a ação e o nada, na existência límbica. É a audácia de não-narrar o presente para confirmar que a vida é só uma eterna espera. Se há algo a narrar, isto acontece apenas no plano da memória, de um desejo futuro, de imaginação. Desconfiamos sempre do narrador e perdemo-nos ainda mais no conflito da realidade e ficção. Mas não seríamos nós a própria ficção? Perguntamo-nos sobre nossa própria vida e existência e isso nos causa incômodo. Não podemos nos aprofundar sem antes olhar para o abismo. É com esse sentimento que essa pesquisa foi pensada. Era importante escavar nas linhas de EAF2 e descobrir como podemos ver nossas fraquezas e erros de maneira, por assim dizer, literária. A ideia é perscrutar como o processo de escrita nas obras acaba sendo uma resposta a questões específicas da contemporaneidade, mesmo que seu olhar esteja sempre voltado para o passado. Depois de diversas releituras, selecionei três temas que julguei essenciais na concepção literária dessa trilogia. São temas contemporâneos e atemporais, obviamente: o vazio, a morte e sobretudo o limbo. O trabalho procura mostrar como esses três tópicos são 2

Abreviação para Evandro Affonso Ferreira.

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essenciais na composição e articulação dos livros, sendo os três eixos fundantes da proposta literária da trilogia. Para começar a falar sobre isso, no entanto, julguei necessário algumas noções prévias, que preparassem o leitor para a discussão que seria posta a seguir. Assim, o trabalho ficou dividido em três partes. A primeira, a que chamei de “Espanto do insólito”, nasceu justamente porque ao iniciar o processo de elaboração desta pesquisa, ficou claro que a figura de EAF merecia mais apresentações, não só no âmbito da literatura contemporânea, como no que diz respeito a sua própria produção, que sofreu mudanças ao longo dos anos. Por ser um autor pouco estudado nos meios acadêmicos, considerei importante listar e mencionar suas produções. Ao mesmo tempo, apareceu nesse momento a necessidade de justificar também a escolha por um autor contemporâneo para estudo de uma tese acadêmica. Assim, algumas questões referentes a literatura contemporânea e a importância dessas pesquisas também foram apontadas, procurando manter sempre o diálogo com as obras de Evandro Affonso Ferreira nesse contexto. Por essas razões, fez-se necessário um capítulo introdutório (“Apresentações necessárias”). Em seguida, considerei também significativo apresentar mais minuciosamente as três obras escolhidas para análise antes de iniciar os turbulentos caminhos pela morte, vida, nada, limbo, etc. Pareceu-me coerente que o leitor pudesse ter uma ideia do que se tratam essas três narrativas dos livros de EAF, a saber: Minha mãe se matou sem dizer adeus, O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam e Os piores dias de minha vida foram todos. Fez-se, então, mais um capítulo que se debruça, em especial, na apresentação dos narradores (“Na cidade apressurada”). O título dessa primeira parte, “Espanto do insólito”, refere-se, portanto, a esse momento prévio em que ainda estamos constatando a dificuldade da existência, de nos sabermos vivos e ao mesmo tempo inúteis diante de um universo em que somos jogados sem perspectivas. O susto que tomamos ao perceber que a vida é, na verdade, insólita. Pois deve nos parecer um episódio incomum, raro, inabitual, estranho e, sobretudo, inédito. É a constatação de que a vida nada mais é que uma criação narrativa pessoal, íntima e, possivelmente, dolorida e sofrível. É a confirmação de que os processos da existência são insólitos e inexplicáveis, mas que são mascarados pelas mais variadas formas criativas de imaginação, narração, atividades, pensamentos, ideais, comportamentos, objetivos, desejos, discursos. Essa parte é, enfim, uma preparação de terreno para adentrarmos 21

efetivamente no trauma existencial que quero recuperar na obra de Evandro Affonso Ferreira. Já a segunda parte, “O trauma da existência”, tem como eixo três grandes capítulos fundamentais. O primeiro sobre o sentimento de vazio. Nesse caso, parto do sentimento de incompletude descrito por Platão, em O banquete, mas que remete também a noção de amor e desejo que pode ser retomada pela filosofia pessimista de Schopenhauer e, mais adiante, se desenvolve para questões mais contemporâneas, relacionadas a um vazio que precisa ser suprimido a todo instante, como nos ensina Bauman. E termina aparente em um vazio que se expressará (ou não) textualmente. O segundo capítulo trata da difusa relação entre a morte e a vida. Mais uma vez é Schopenhauer que nos ajudará a entender o olhar niilista dos narradores quando percebem que a existência e a finitude estão profundamente relacionadas. É a compreensão de que nossa vida não tem utilidade nenhuma e de que vivemos para o sofrimento, mas que a arte literária poderá, por alguns momentos, tirar-nos desse estado de angústia. E, por fim, há um capítulo sobre o limbo. Este funda-se sobretudo nas noções contemporâneas que desfazem os limites entre noções que antes eram vistas como opostas. É perceber que a necessidade de categorização pode ser o maior dilema dos tempos atuais e que a hesitação e a dúvida são o resultado mais aparente desse mundo que Bauman chama de “líquido”. É a flexibilidade interpretativa proposta por Derrida que aparecerá como resposta possível para uma leitura contemporânea. A última parte, “O que (s)obra”, trata justamente do restante da produção de EAF e da conclusão deste trabalho. Em “Retalho: A validação em Não tive nenhum prazer em conhecê-los”, decidi fazer alguns comentários acerca da última obra publicada. Embora ela não entre como objeto para este trabalho, é perceptível como algumas das análises feitas aqui acabam sendo chanceladas nesse livro. Assim, em caráter de resenha, faço alguns apontamentos sobre as perspectivas da obra de EAF. Por fim, retomo aquilo que aparece como evidente na corroboração dos pontos elucidados nessa tese. Finalmente, o capítulo “Grogotó!”, também inserido nesta parte final, refere-se aos comentários finais dedicados a esta pesquisa. Há, portanto, um método na leitura que estou propondo. A materialidade e o conteúdo do texto de EAF apontam para temas absolutamente intrínsecos à existência humana. Minha proposta é deixá-los aparentes provando que a obra de Evandro Affonso Ferreira é uma resposta a esses três sentimentos: o vazio, a morte e o limbo. E essa 22

resposta virá pelas palavras, pela construção literária e em um insistente resgate na retomada dos conhecimentos antigos como forma de compreender o presente. Nesse processo, outra escolha me pareceu pertinente. Optei por fazer diversos diálogos, referências e intertextualidades durante a investigação. É, de certa forma, a homenagem que presto a uma obra que se dá primordialmente num processo intenso de bricolagem. Os textos da trilogia foram sempre o ponto de partida para as diversas discussões aqui propostas e, por sua condição, os grandes geradores das análises aqui apresentadas. Portanto, sempre que o texto de EAF suscitasse algum tema interessante, procurei trazer autores que pudessem contribuir para uma interpretação mais adensada e profunda. O resultado é a recuperação de diálogos internos e externos à obra e a ressignificação de conceitos fundamentais da experiência de vida. Fica claro que não me foi possível esgotar as possibilidades desse caminho e nem seria essa minha pretensão. Por fim, vale dizer que esta tese é, antes de mais nada, uma proposta de leitura que procura mostrar como o olhar deslocado e apoiado na tradição de Evandro Ferreira pode construir uma literatura tão peculiar – no sentido de que se entende como anacrônica – e ao mesmo tempo tão atual. É a ideia obstinada de que é preciso voltar às origens, ao clássico. A obra de Evandro Affonso tenta responder algumas perguntas importantes. Em uma vida turbulenta, na cidade apressurada, como dar conta da existência sem questionála? Resta-nos esperar, viver e contemplar. E os narradores nos avisam: estamos parados, presos, estagnados diante de um sistema corrompido, tornamo-nos moribundos. Assistiremos impassíveis? Talvez. Mas, antes, deem a nós todos, narradores de vidas não vividas, o direito de falar e de pensarmos, quem sabe assim nos sentiremos de fato, vivos.

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2. APRESENTAÇÕES NECESSÁRIAS

O penúltimo livro do autor mineiro Evandro Affonso Ferreira, Os piores dias de minha vida foram todos, ficou em 3º lugar do Prêmio Jabuti de Literatura, em 2015. O anterior, O Mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, de 2012, levou o primeiro lugar, em 2013. E Minha mãe se matou sem dizer adeus, de 2010, foi vencedor do prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte - 2010) e também finalista do Jabuti 2011. Juntas, as três obras formam a chamada “Trilogia do desespero”3. Esse é o corpus estudado desta tese. Em 2016, o autor lançou mais um livro pela editora Record, Não tive nenhum prazer em conhecê-los. Essa última obra, no entanto, não será objeto desse estudo, ainda que possa contribuir para algumas análises aqui propostas. Na minha compreensão, a trilogia traça um caminho específico de leitura – que pode ser articulado com a última obra – mas que se completa em si mesma, por ter aspectos estruturais e de conteúdo que dialogam entre si e, por vezes, muito semelhantes. Ao final do trabalho, explicarei melhor essas convergências. Vindo de um percurso um pouco diverso da maioria dos autores contemporâneos, Evandro Affonso Ferreira passou a receber mais atenção da crítica após emplacar alguns prêmios com as obras citadas. As publicações mencionadas foram apresentadas no Correio Braziliense4 como uma trilogia que teria como tema central a solidão e anunciadas, conforme foi dito, como a “trilogia sobre o desespero” no jornal O Globo. No entanto, um olhar mais atento percebe que essa era uma estratégia de marketing necessária e que as três obras poderiam, na verdade, ser lidas como uma só. Nelas, questões sobre desesperança, angústia e melancolia aparecem como chamarisco para discussões mais profundas sobre a vida e, claro, a morte. O lançamento é publicado no jornal O Globo, no dia 11/10/2014, em matéria intitulada “Evandro Affonso Ferreira fecha sua 'trilogia do desespero' com lirismo e humor” e pode ser consultada em http://oglobo.globo.com/cultura/livros/evandro-affonso-ferreira-fecha-sua-trilogia-do-desespero-com-lirismohumor-14204617, acesso em 04/03/2015. 4 A trilogia é apresentada em notícia no Correio Braziliense em http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-erte/2010/12/14/interna_diversao_arte,227587/novo-livro-de-evandro-affonso-ferreira-e-amargo-pesado-masprofundo.shtml, acesso em 30/09/2012. 3

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Sabemos que a literatura contemporânea ainda tem algum espaço nas prateleiras de nossas livrarias e algum (pouco) espaço nas bibliotecas. Mas a academia, ou melhor, as universidades ainda precisam dar conta dessa produção. É de se estranhar que o reconhecimento de Evandro Affonso Ferreira não tenha sido chancelado no mercado livreiro, em festas literárias ou encontros mais importantes das figuras literárias do país. Por alguma razão, ele ainda não configura em nenhuma lista de livros mais vendidos ou de melhores autores brasileiros. Não é convidado para debates de repercussão nacional e tampouco aparece entre os escritores mais populares da literatura contemporânea. Tendo produzido, como seus contemporâneos, textos-sintoma do contexto em que se insere, Evandro Affonso, no entanto, fala para poucos, porque insiste em um anacronismo, mas diz algo que precisa ser dito e ouvido/lido: a morte é o mal necessário e o sofrimento é parte integrante da vida. É a partir disso que se gerarão os outros conflitos humanos. Não há nada de novo nessa filosofia. A diferença, todavia, é que os narradores de EAF não se conformam com esses traumas contemporâneos, como irei mostrar nos capítulos que se seguem. Embora tenha chamado alguma atenção da mídia com seus últimos títulos, o autor iniciou sua carreira de escritor com 45 anos de idade, depois de sofrer um infarto, em 1990. Estreou com Bombons Recheados de Cicuta, de 1993, da Editora Paulicéia. O livro é de tom humorístico. Aspecto que, de certa forma, permanece ainda hoje em sua escrita. EAF foi ex-bancário e publicitário. Após sua experiência de quase-morte, decidiu se tornar escritor. Mas é escritor autodidata, alfarrabista, visceral, experimental, formado de leitura obsessiva, distante dos espaços privilegiados como o meio jornalístico ou acadêmico, elementos comuns entre os escritores atuais. Entretanto, a insistência em administrar sebos e a convivência com autores de seu tempo renderam-lhe alguma ajuda profissional. Quando Grogotó! saiu em 2000, com edição da Topbooks, veio com o anúncio de um prefácio de José Paulo Paes, estampado na capa. Infelizmente, por erro da gráfica, o texto do crítico não apareceu. Anos depois, em edição de 2007, pela Editora 34, o prefácio fez jus à chamada, retificando o apadrinhamento inicial. Foi essa obra que fez EAF sair das prateleiras empoeiradas dos sebos para se lançar oficialmente como escritor. A partir daí, lançou uma sequência de títulos inusitados: Araã!, de 2002 – finalista do Prêmio Portugal Telecom 2004, Erefuê, de 2004, Zaratempô!, de 2005 e Catrâmbias! de 2006. 25

Em 2010, a mudança de estilo apareceu evidente no título da obra, abandonando a obsessão por palavras raras: Minha mãe se matou sem dizer adeus. Há, definitivamente, um salto semântico na escolha dos títulos. Se antes se encontravam em palavras incomuns e pouco conhecidas, agora passam a funcionar como “títulos-sinopse”, com frases longas e de impacto para o leitor. O procedimento no título aponta para uma mudança radical na estética literária adotada. No início, quando a obsessão era pelas palavras, prezava por certa incompreensão, mistério e obscuridade, depois, com um texto aparentemente mais maduro, passa a buscar outra percepção de seu destinatário. Isso mostra também que outrora era mais voltado para sonoridade das palavras e depois mais preocupado com o conteúdo da mensagem. Minha mãe se matou sem dizer adeus foi o primeiro passo para o projeto mais extenso do autor, a trilogia. O próprio EAF reitera em diversas entrevistas que se preocupava com a “vida da palavra”, e agora se preocupa com a “morte do homem”. Como sua obra ainda não é extensa, considero importante fazermos uma breve retrospectiva bibliográfica. Começamos, portanto, com Grogotó!, livro de poucas páginas que conta com uma série de minicontos, todos com um narrador em primeira pessoa. Em seguida, teremos Araã!, quando falava o solitário Seleno Selser, viúvo de 70 anos, vendedor de enciclopédias, que passava as noites tentando organizar a enorme quantidade de livros que guardava em inúmeras caixas. Depois, Erefuê!, com o narrador tagarela Menelau, o qual espera seu julgamento por ter assassinado um dos inúmeros amantes de sua esposa ninfomaníaca Helena. Quando escreve Zaratempô!, é a primeira vez que a voz autoral confunde-se mais fortemente com a do narrador. Este escrevia diversas cartas à irmã incorporando ao discurso textos de autoria diversa, formando uma bricolagem bastante singular que mostra uma reflexão sobre o fazer literário. Em Catrâmbias!, a loucura passa a fazer parte da enunciação. Uma mulher septuagenária procura voluntariamente a solidão do manicômio. Lá, ela conversa ininterruptamente com diversos interlocutores, sempre estalando jabuticabas na boca. Finalmente chegamos em Minha mãe se matou sem dizer adeus. De dicção diferenciada, traz um narrador melancólico de 80 anos, que fala dos instantes finais de sua vida tentando escrever um romance que tenha início, meio e fim. O ponto de partida é a morte de sua mãe suicida, que, para frustração do narrador, não deixa sequer uma carta de 26

despedida. Ele se senta todos os dias na mesa de uma confeitaria, possivelmente em um shopping, e passa a observar os que estão a sua volta. Elabora para os personagens pequenas narrativas e diálogos imaginários, desejoso de que elas aconteçam. São os produtos de sua fantasia e a constante lembrança de sua infância que construirão a narrativa inconclusa desse narrador moribundo. Em O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam, de 2012, a escolha por um mendigo para personagem central é determinante para inúmeras questões que podem ser tratadas a respeito da atualidade: identidade, papel social, loucura, desejos, amor etc. A construção desse narrador-personagem também apresenta a voz dialética da contemporaneidade. A suposta loucura faz com que esse mendigo, que vive da caridade alheia, consiga observar o mundo com olhares divididos: cético, claro e são e, ao mesmo tempo embaçado pelo sentimento amoroso de uma mulher que o abandonou. O que se percebe ao longo da leitura é que alguém que se constitui de restos e sobras tem muito a dizer sobre o mundo que produz tantos restos e onde sobra tanto. O abandono em meio à multidão, o retorno ao elemento medieval – com Erasmo de Rotterdam – e a possibilidade latejante da loucura são os motores para mais uma narrativa verborrágica, enquanto procura se livrar da agonia do desamparo. Seu penúltimo título, Os piores dias da minha vida foram todos, de 2014, trata dos delírios de uma mulher no quarto fúnebre de um hospital. Mais uma vez, a literatura antiga aparece insistente na narrativa. Nesse caso, Antígona, de Sófocles. Trava com a personagem clássica um diálogo/monólogo inconcluso, sem respostas, em que exalta a força daquela que transgrediu as leis reais para tentar enterrar o irmão. A coragem da personagem grega é resgatada como tentativa de apontar uma saída para tantas desilusões contemporâneas, em que mais uma vez refletimos sobre o medo da morte, a angústia de viver, a dificuldade das relações, nossas expectativas, etc. Em Não tive nenhum prazer em conhecê-los, de 2016, a voz também é de um narrador senil, com seus 90 anos. Construído como um romance mosaico, o livro traz fragmentos e aforismos ainda mais esparsos que aqueles da trilogia, que são elaborados pelo narrador. Billie Holiday aparece como grande homenageada do narrador que procurar revisitar a vida para entender sua decrepitude. Ao colocar em relevo um velho no fim da vida, um mendigo louco e uma doente em fase terminal, os narradores apresentam-nos um mundo em que imperam a melancolia, a solidão e a desilusão, sentimentos que estão claramente vinculados às três grandes 27

questões: vazio, morte e limbo. Estes aspectos são recorrentes tanto nos livros da primeira como da segunda fase. Na trilogia, no entanto, são os orientadores das vozes narrativas. Sobretudo na três obras aqui analisadas, a escolha é sempre por mais um desajustado em meio à cidade agitada, são personagens exiladas, que vivem à margem. Os devaneios dos narradores são, portanto, a possibilidade de fuga de um território que lhes parece opressor. Enquanto esperam a morte, constroem pequenas narrativas com as personagens a sua volta, relembram cenas de suas vidas, imaginam cenas futuras, comentam obras de autores clássicos e músicas que parecem antiquadas aos ouvidos contemporâneos. Mas principalmente mostram nas entrelinhas sua aversão em viver o presente, pois a morte é sua meta inexorável. Como veremos mais esmiuçadamente nos próximos capítulos, o conflituoso espaço que separa autor e narrador-personagem é propositalmente esgarçado na obra de Evandro Ferreira. As entrevistas com o autor provocam as interpretações dando a entender que as vivências dos narradores são as suas próprias, seja porque relata a experiência de quase morte, ou menciona um grande amor em sua vida, ou quando diz ter ficado sentado todos os dias na mesma confeitaria de um shopping, ou se conta que calculou o número de mendigos da metrópole paulista ao caminhar quatro quadras. Essa mistura no terreno ficcional é claramente proposital além de se mostrar como um aspecto recorrente na literatura contemporânea brasileira, como irei elucidar mais adiante. A pesquisadora Regina Dalcastagné (2012) afirma que o escritor da atualidade se revela como ponto central da narrativa contemporânea. A imprevisibilidade do mundo precisa ser reafirmada no seu discurso. E é nesse conflito permanente entre o autor e a palavra que reside grande parte da força da literatura. O poeta escreve o mundo como lhe convém e arte literária está nisso. Veremos que os artifícios formais – na escolha por palavras raras e sonoras – tão caros à construção literária de EAF continuarão presentes nas três obras escolhidas para este trabalho. Palavras obsoletas, aproximação com oralidade e onomatopeias serão ainda determinantes para a construção de seu discurso. Portanto, ele não se furta a um labor estrutural. Mas é a solidão, a loucura e a doença – e, sobretudo, as instâncias decorrentes delas – que aparecerão como eixo central na escolha de um léxico que transmita uma cantilena incessante que quer apagar o sofrimento da memória e da realidade. Por fim, vale lembrar que, felizmente, o autor já recebeu a atenção de alguns críticos importantes, dentre os quais poderíamos citar o já mencionado José Paulo Paes, 28

além de Márcia Tiburi, Francisco Merçon, Alcir Pécora e Paulo Franchetti. Fazem também comentários sobre sua obra alguns escritores como Moacyr Scliar, Bernardo Ajzenberg, Rodrigo Larcerda e Juliano Garcia Pessanha. Há, no entanto, apenas um trabalho acadêmico a respeito do autor: a dissertação de Mestrado de Julia Vasconcelos Studart (2008), Evandro Affonso Ferreira: vidas desengraçadas e o arquivo debilitado. Como o estudo é de 2008, a análise não dá conta da nova fase do autor, e investiga prioritariamente os procedimentos formais, estabelecendo relações ora com as artes plásticas ora com teóricos e pensadores renomados como Foucault, Deleuze, Derrida, Blanchot, etc. Insisto, enfim, que a obra de Evandro Ferreira precisa ser lida com o olhar acadêmico que ele recusa. Não porque isso lhe dará o reconhecimento literário de que necessita um autor, mas antes porque a academia carece de novas leituras/autores para que se consagre como participante efetiva da sociedade e, enfim, merecedora do status que já cultiva.

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Segundo Todorov (2012), a literatura corre o perigo de não ter lugar algum em nossa sociedade, porque não participa mais da formação cultural do indivíduo. Ele explica que esta ameaça não existe pela falta de bons poetas e ficcionistas, e sim pela maneira que a literatura é oferecida aos jovens estudantes, pois não entram em contato com a leitura dos textos propriamente ditos, mas com alguma forma de crítica ou de teoria. Anuncia, por fim, o papel vital que a literatura tem a cumprir e encoraja a leitura por todos os meios – até aqueles as quais o especialista poderia renegar – procurando possibilitar ao jovem leitor a construção de uma primeira imagem coerente do mundo, que serão seguidas de leituras “mais complexas e nuançadas” (TODOROV, 2012, p. 82). Poderíamos nos perguntar como uma obra de Machado de Assis conseguiria oferecer ao aluno essa “primeira imagem coerente do mundo”. Como se daria a relação entre as aflições e devaneios de Brás Cubas para um estudante de Ensino Básico? 29

É possível dizer, com alguma certeza, que as grandes identificações entre obra e jovem leitor teriam que ser perseguidas para serem compreendidas. As aflições contemporâneas – certamente latentes na personagem machadiana – são antes relacionadas ao rápido e constante avanço tecnológico e não aos devaneios surrealistas de um defunto autor. Como viveriam Simão Bacamarte, Bentinho ou Capitu no mundo virtual, pragmático, do acesso fácil, das informações em avalanche na palma das mãos? Para que a relação dos jovens leitores contemporâneos com os clássicos seja estabelecida, acredito que é preciso trilhar um percurso que faça sentido aos olhos desse público. Com isso, não quero dizer, de maneira alguma, que as obras machadianas sejam inacessíveis a esses leitores. Quero atentar, no entanto, para o fato de que a atemporalidade, que se sobressai nas páginas de um Quincas Borba ou Esaú e Jacó, para ser compreendida, necessita de certo repertório de leitura. Infelizmente, tal atividade se apresenta cada vez mais fragmentada por conta das inúmeras ferramentas tecnológicas de comunicação que nos são disponibilizadas diariamente. Ou seja, é preciso que se resgate a importância do papel da leitura, do esforço, da concentração e de conhecimentos que estão além de uma cultura utilitarista e mercantilista. Como explica Nuccio Ordine, em seu A utilidade do inútil: Há saberes que têm um fim em si mesmos e que – exatamente graças a sua natureza gratuita e livre de interesses, distante de qualquer vínculo prático e comercial – podem desempenhar um papel fundamental no cultivo do espírito e no crescimento civil e cultural da humanidade (ORDINE, 2016, p. 9).

E, nesse sentido, confiamos que a literatura contemporânea tem um papel fundamental a cumprir. É ela quem pode oferecer um panorama sobre a vida, debatendo as aflições e angústias da atualidade. Ela será, portanto, o ponto de partida para que a leitura se mostre cada vez mais próxima do projeto de vida desses jovens, na medida em que eles consigam se relacionar com aquilo que leem. Melhor ainda será se essa leitura for atrelada a livros de certa qualidade literária, com preocupação em mostrar uma literatura sintonizada com os dilemas recentes e com o uso de uma linguagem coerente com o momento presente. Nesse sentido, o professor Ítalo Moriconi nos apresenta a distinção entre dois tipos de literatura. Diz que 30

No circuito do mercado, conceito e valor da literatura partem de uma visão que podemos chamar de utilitária e instrumental: a literatura serve para alguma coisa – entretenimento. E o entretenimento é útil não só porque ajuda a repor a força de trabalho, mas porque pode trazer ensinamentos e abrir a cabeça do sujeito em formação. No nível da qualidade, existe a literatura chã que fica no mero entretenimento e existe a literatura alta que traz ensinamento embutido na atividade apenas aparentemente desinteressada do entretenimento. Parece óbvio e redundante assinalar que no circuito acadêmico, especializado, crítico, somente foi levada em conta a parte do ensinamento (MORICONI, 2006, p. 150).

Portanto, a literatura parte sempre do princípio do entretenimento. Os livros estariam diferenciados pelo aspecto de ensinamento embutido que poderiam trazer ou não. O que me parece relevante aqui é o fato de que os livros escolhidos pelas escolas para trazer ensinamentos aos jovens são exatamente aqueles que menos os entretêm e atraem. Como o professor Moriconi aponta, no âmbito acadêmico, o interesse se volta primordialmente para a questão do ensinamento. E, nesse sentido, a literatura contemporânea me parece uma resposta bastante coerente às necessidades escolares e acadêmicas. Sabemos que os conhecimentos, para chegarem aos âmbitos escolares, passam primeiramente pela sanção acadêmica. É preciso que apaguemos esse vão que existe entre os estudos universitários e o Ensino Básico. Nesse sentido, esse trabalho procura também contribuir para o movimento que penso ser necessário para fazer fluir melhor as informações

mais

atualizadas

e

mais

sintonizadas

dos

estudos

literários

na

contemporaneidade para os jovens e futuros frequentadores das faculdades. O estudo da literatura contemporânea pode ser a porta de entrada para a democratização dos importantes saberes que circulam pelos grandes eixos universitários. Felizmente, cada dia mais, os pesquisadores das universidades se voltam para escritores atuais, percebendo neles não só a capacidade de entretenimento intrínseca à literatura, mas, em especial, sua capacidade de ensinamento. E, finalmente, como apontei, ela parece ser o elo necessário para o diálogo com as literaturas já canonizadas que permanecem como pilares importantes na formação dos alunos. Acredito, portanto, que esforços nesse sentido podem e devem continuar a ser feitos em âmbito escolar e acadêmico. Veja-se, por exemplo, que os livros de EAF abordam dilemas humanos clássicos e atemporais: medo da morte, angústia, solidão, melancolia, 31

amor. Trata-os com a crueza com que se apresentam nas grandes metrópoles e ao mesmo tempo resgata constantemente figuras lendárias da história grega ou personagens cânones da literatura brasileira e universal. Esses aspectos podem ser o ponto de partida para diferentes leituras, que podem não só chegar às questões de Capitu e Bentinho como mostrar outras tantas possibilidades de repertórios. O caso de EAF é apenas uma das propostas que podemos estabelecer como caminho para as leituras mais densas; há, obviamente, inúmeras possibilidades. Acima de tudo, concordando com Nuccio orcini, penso que a literatura contemporânea precisa sobreviver e combater esse sistema corrompido que está se construindo diante de nós, em que o tecnicismo e o utilitarismo se sobrepõem diante de qualquer estímulo subjetivo e abstracionista. Ela poderá ajudar a mostrar o quanto a cultura dita “inútil” pode contribuir para a formação de cidadãos mais conscientes. Ela cumprirá, portanto, junto com as outras formas artísticas, o importante papel de nos orientar em um contexto cada vez mais destroçado, aniquilado, destruído por gestões que reverenciam o trabalho maquinal como a grande ferramenta transformadora do mundo. Em suma, é preciso que se leia o que se produz hoje para compreendermos o que se produziu ontem, e podermos fazer melhor o amanhã. A arte parece ser a grande resposta diante de tempos tão radicais e extremistas. É com esperança que podemos ver que a literatura contemporânea tem ganhado alguma força no mercado de livros e gerado cada vez mais debate nos meios acadêmicos. Muitas dessas discussões tentam – ainda sem o olhar distanciado de que talvez necessite o crítico – analisar as dimensões e articulações da literatura brasileira atual. Há muito que se debater para conseguirmos contemplar com alguma competência o vasto corpus da produção brasileira literária atual. A professora Regina Dalcastagné, da Universidade de Brasília, afirma que há um número crescente de pesquisadores interessados no assunto. Há 15 anos estudando Literatura Contemporânea, ela aponta para questões interessantes da produção atual. Uma delas é a de que a literatura brasileira deste tempo seria “um espaço pouco plural, dominado por homens da classe média, que escrevem apenas sobre os dramas vividos na metrópole por seus pares de estrato social”5, ou seja, o campo literário brasileiro ainda é

Em entrevista a Luiz Rebinski Junior, na matéria “Radiografia da Literatura Brasileira”, Cândido, Paraná, p. 4, abril, 2014, nº 33. 5

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extremamente homogêneo. O domínio da norma culta serve também como fator de exclusão. Ela explica que, com raras exceções, nossos autores seguem o modelo de um fio de trama, que conta com poucas personagens, pouca complexidade e, curiosamente, poucas páginas. Nesse aspecto, podemos dizer que EAF aparece como exceção já que os narradores escolhidos são invariavelmente indivíduos marginalizados ou proscritos da nossa sociedade. Os dramas apresentados também não remetem a questões de tecnologia, relações superficiais ou inúmeras atividades concomitantes da vida acelerada e cosmopolita. Em EAF, as histórias parecem estar fora de seu tempo, não só porque são anacrônicas em relação ao presente como raramente acontece com as narrativas contemporâneas, mas porque lidam com os traumas de maneira desatualizada, obsoleta. Percebem a realidade de uma maneira distinta e reclusa. Outra questão para a literatura contemporânea é o papel da crítica. Segundo o professor João Cezar de Castro Rocha (2012), “hoje em dia, crítico algum possui influência suficiente para determinar o fracasso ou êxito de um autor”, e mesmo os livros mais vendidos e adorados pelos leitores podem contribuir para a conquista de um público ledor – embora muitas dessas obras tenham certa ingenuidade linguística e narrativa. Nesse caso, a esperança é que esses autores se dediquem a aprimorar sua capacidade de expressão. Por outro lado, Regina Dalcastagné diz que os muitos autores contemporâneos sabem que vender demais pode significar uma desqualificação de sua obra. Abre-se outra discussão importante. Como legitimar essa produção atual dentro do contexto acadêmico e escolar, sabendo que a crítica – em especial a que aborda a literatura contemporânea – não é mais formada apenas por professores e pesquisadores, mas também por editores, livreiros, jornalistas, gestores públicos da cultura e até pelos próprios escritores? A quem cabe, portanto, a distinção entre o que é ou não literatura na atualidade? Quem qualifica nossa literatura de hoje? Sobre isso, o professor Karl Erick Schøllhammer faz uma consideração importante:

(...) o escritor brasileiro se depara logo de saída com o problema de como falar sobre a realidade brasileira quando todos o fazem e, principalmente, como fazê-lo de modo diferente, de modo que a linguagem literária faça uma diferença (2011, p. 56).

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Assim, o ponto de partida para essa discussão parece ser um pouco mais complexo do que o que acontecia antigamente, pois o próprio escritor da contemporaneidade já se encontra em outro lugar. Para Dalcastagné, a definição mais aceita de literatura abrange um “espaço privilegiado de expressão, que corresponde aos modos de manifestação de alguns grupos” (2012, p. 12), ou seja, existem outras tantas produções que são deixadas de lado de antemão. Para Marisa Lajolo, a escola é “uma das mais importantes instâncias que legitimam uma obra, não só como boa ou má literatura, mas como literatura ou má literatura” (1990, p. 21). Já na década de 60, Massaud Moisés abordava a debatida questão dos clássicos – entendendo “clássico” como referência dentro de um conjunto – por suas camadas residuais. Assim, quanto maior fosse a historicidade da obra – “circunstâncias históricas vividas; a moda, o gosto pequeno-burguês, as banalidades de alcova, etc” (1968, p. 286) – menor seria seu resíduo, sua marca; e vice-versa: quanto mais densa fosse a camada residual, menor sua historicidade. Como aplicar esse procedimento na produção literária contemporânea? Quem poderia agora definir quais as obras que contêm efetivamente essa camada residual? Sobre a concepção do canônico, o crítico Jaime Ginzburg, em uma discussão mais recente, rebate: “A posição canônica com relação à literatura contemporânea, de modo geral, corresponde a uma atitude hierárquica, nostálgica, em que o passado é superior ao presente” (2012, p. 218). Dialoga, portanto, com o que Ítalo Moriconi também pontua em sua fala, no sentido de termos sempre que lidar com a ideia de que a literatura do passado é sempre vista como o grande modelo de qualidade e com parâmetros, dificilmente, alcançáveis. A velha concepção de Antônio Candido, por exemplo, por muito tempo, fundamentou a visão mais aceita do estudo da literatura. É a visão de que a integridade da obra só pode ser entendida

fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como elementos necessários do processo interpretativo (1975, p. 4).

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Como essa é uma noção atemporal, continua sendo ainda pertinente quando falamos de literatura contemporânea. No entanto, o próprio crítico já admitiu que não lê nada novo há cerca de 20 anos, não podendo, portanto, emitir nenhum juízo acerca da nova safra de escritores brasileiros. Resta que os estudiosos de hoje se debrucem sobre isso. Para Jaime Ginzburg, a reflexão sobre a literatura atual deve ser sistematizada no âmbito dos narradores, pois alguns escritores têm desafiado a tradição dando voz a sujeitos tradicionalmente ignorados ou silenciados. Ele acredita também que há uma presença recorrente de narradores descentrados, ou seja, aqueles que iriam contra

a política conservadora, a cultura patriarcal, o autoritarismo de Estado, a repressão continuada, a defesa de ideologias voltadas para o machismo, o racismo, a pureza étnica, a heteronormatividade, a desigualdade econômica, entre outros. O descentramento seria compreendido como um conjunto de forças voltadas contra a exclusão social, política e econômica (GINZBURG, 2012, p. 201).

Ou seja, é preciso observar o todo, considerar as vozes silenciadas, prestar atenção nas falas que ainda ecoam e perscrutar o que dizem. E aqui, os sujeitos de EAF têm muito a dizer, porque reveem justamente o papel dos narradores. Os mesmos que pareciam estar emudecidos, mas que agora constroem essa “poética de restos”, como afirma Ginzburg. Isso porque partem de questões sobre o passado que, no entanto, são colocadas à tona para mostrarem essa resistência a um mundo tecnicista. Por isso, é fundamental a busca que os escritores têm empreendido por lugares de enunciação criativos, como acontece em EAF, em que as falas são sempre articuladas por seres em decrepitude. Mais adiante, falarei mais especificamente sobre os narradores. Por hora, fica a advertência de que, acima de tudo, é importante que se debata a literatura contemporânea, compreendendo que não há apenas uma maneira de estudá-la ou analisá-la. Pois a literatura de hoje tem de se tornar cada vez mais democrática, rompendo com os muros acadêmicos elitizados que há tanto tempo fundam nosso repertório artístico e cultural. A pluralidade de ideias e leituras é o que mantém nossa cultura e estudo caminhando em terreno fértil. O livro organizado por Helena Bonito Pereira, por exemplo, Novas leituras da ficção brasileira no século XXI (2011), dá maior relevo às “narrativas literárias brasileiras recém-publicadas”, estimulando o debate acadêmico. O estudo reúne textos críticos sobre as obras contemporâneas. Como explica a autora, esse esforço está atrelado a questões como 35

o papel ou o lugar da história literária junto aos pesquisadores; o modo, o campo, os limites adequados para a seleção dos dados; as bases para o agrupamento dos produtores e produtos literários em escolas, estéticas, movimentos e similares (PEREIRA, 2011, p. 33).

Para ela, o estudo de literatura na escola de nível médio segue uma ordem cronológica rígida e exagera a aproximação com a história literária fazendo com que os fatos literários pareçam “congelados em um passado definido e estático”, distanciando o grande público “da possibilidade de entender o que é literatura e da oportunidade de conhecer a literatura de seu tempo” (PEREIRA, 2011, p. 31). Considerando a produção atual, ela afirma haver uma consciência cada vez maior dos escritores de uma criação literária que busca novas formas de reflexão sobre a linguagem, o texto e a ficção, em exercícios metalinguísticos e intertextuais (PEREIRA, 2011, p. 43). A disposição em quebrar a conhecida barreira do distanciamento temporal é apresentada também no livro de Beatriz Resende, Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI (2008). Ela explica:

O temor da avaliação equivocada ou de se deixar levar por um entusiasmo fugaz quase sempre leva o crítico à prudência de deixar passar algum tempo antes de se ocupar de novo, especialmente quando se trata de literatura (RESENDE, 2008, p. 7-8).

Também com uma seleção de autores atuais, a pesquisadora expõe algumas características que, a seu ver, já podem ser observadas: a fertilidade – pois se publica muito –; a qualidade dos textos e preparação com a obra; a multiplicidade – aparente na linguagem, nos formatos e na relação com o leitor. Resende trata também da presentificação que aparece como um sentido de urgência, em que é necessário narrar o presente e suas novas configurações. Isso se evidencia pelas atitudes dos novos atores no universo da produção literária: moradores da periferia, presos e donas de casa passam a ser as novas vozes na literatura, recusando o papel mediador de grandes editoras, por exemplo. Ainda mais interessante é perceber que essa presentificação perpassa também pelos aspectos formais com textos curtos e enxutos e, por vezes, fragmentado. A intervenção do mundo virtual ressoa evidente nas novas possibilidades de escrita.

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Nesse ponto, vale a ressalva em mostrar que a obra de EAF parece destoar dessa presentificação. Como se disse, há nela, um movimento de retorno ao passado, ao antigo, às narrativas gregas clássicas. Há ainda uma vontade orgânica de narrar, que trata o presente como um contexto distante, de que não faz parte, não se apropria, pois sente-se deslocada. O texto, por sua vez, aparece em uma forma mais complexa que a maioria das narrativas contemporâneas. Exige esforço e paciência do leitor para conseguir acompanhar algumas construções textuais mais elaboradas e compreender as referências a escritores e autores de um contexto mais erudito. É, portanto, o contrário da urgência de que fala Beatriz Resende. Pede reflexão, meditação, e acima de tudo, tempo. Algo que nos parece precioso atualmente. Há, finalmente, um outro ponto comentado por Beatriz Resende que devo mencionar: a manifestação de forte sentimento trágico, que se realiza sempre no tempo presente. Ela explica que trágico e tragédia estão incorporados ao cotidiano, especialmente no caos das grandes cidades, e a vida só se torna suportável pelo consolo da arte. Quanto a esse aspecto, os narradores de EAF mostram-se exemplares. Estão envoltos nas pequenas catástrofes diárias, analisando a violência urbana, a tristeza e a maldade, mas procurando tirar desse contexto, alguma forma de poesia, em que os adágios de Erasmo de Rotterdam e os ensinamentos de Antígona aparecem como algum alento a uma realidade sofrida. Por fim, Resende conclui que outros elementos são partícipes da narrativa contemporânea: a literatura excessivamente realista, o relato da violência e a cidade como locus de conflitos privados e públicos que acabam por ameaçar o presente e fazer o futuro parecer impossível. Advertindo para o papel do escritor nesse contexto, mais uma vez é a pesquisadora Regina Dalcastagnè que elucida. Ela conta que este “se vê obrigado a, de algum modo, se expor – normalmente a partir de uma personagem, com características próprias, mas algumas vezes exibindo-se com nome e sobrenome, confundindo ficção e realidade (...)”. Segundo ela, hoje o espaço da ficção é tão traiçoeiro como a realidade, em que “reafirmam-se, no texto, a imprevisibilidade do mundo e as armadilhas do discurso” (DALCASTAGNÉ, 2001, p. 128). Assim, explica a professora, a narrativa contemporânea não tem mais “a noção de verdade indiscutível”, como anunciou Umberto Eco, por conta das diversas modificações sociais, político e históricas que “foram impulsionando homens e mulheres a duvidarem, a

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reconhecerem todo e qualquer discurso como um espaço traiçoeiro, contaminado de intenções, e de silêncios imperdoáveis” (DALCASTAGNÉ, 2001, p. 127). A obra de EAF encontra nessa questão um paralelo estreito. Muitos de seus dilemas pessoais, revelados – propositadamente ou não – em entrevistas ou declarações, aproximam-se da sua produção literária. Na verdade, esse processo já existe desde o início de sua carreira como escritor. A linguagem foi um dos recursos usados para a construção da personagemnarrador-escritor. Em entrevista de 2005, para responder sobre a criação da sua estética, EAF usa os mesmos artifícios sintáticos e léxicos de sua produção literária da época:

1. Você, mineiro de Araxá, há 40 anos habitante de São Paulo, começa a aparecer com escritor aos 55 anos, com Grogotó, no ano 2000. Normalmente, e você deve saber isso, num Brasil recente, as pessoas publicam muito cedo e tudo parece ser feito com muita pressa. O que talvez sugira algo como: o escritor publica antes de escrever, o crítico julga e define o que não lê e o leitor termina lendo o que ainda não está escrito. Onde você coloca o seu trabalho em relação a estas questões, por exemplo? Evandro: Minha questão é etílica: vida toda quase numa beberronia daquelas aie trabuzana que só vendo; olhos desde sempre avinhados; anos seguidos literalmente inebriantes; lia nada escrevia nada; geraçãoderrubar-ditadura-nelas-mesas-de-bar; discutia ad nauseam Marx sem nunca ter lido orelha sequer dele Capital; brocoió da silva xavier; sempre fui; súbito infarto chega a furta passo catrapus! hã vida virou pelo avesso; 45 anos nos costados; dez dias nela UTI trinta dias nele hospital; quatro safenas cousalousa; nunca mais um único cigarro nunca mais brueguice nenhuma; (...)6

Fica claro que as respostas foram redigidas e não respondidas oralmente. Ou seja, é a linguagem escrita elaborada construindo também a suposta figura do autor, que aqui se apresenta como um personagem. Um discurso cheio de pausas que procura imitar uma oralidade, mas que é a sua própria armadilha já que dificilmente alguém usaria um linguajar tão elaborado e tão farto de expressões raras. Além disso, se a resposta fosse realmente transcrita da fala, o que leríamos em forma textual seria uma sequência de reticências e não esse encadeamento exagerado de “pontos e vírgulas”.

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Entrevista concedida em 2005 à revista Oroboro que consta na dissertação de Mestrado sobre o autor de Julia Vasconcelos Sttudart; Evandro Affonso Ferreira: vidas desengraçadas e o arquivo debilitado, Florianópolis, UFSC, 2008, p. 148.

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A linguagem que o autor usa se assemelha em muito àquela que compõe a primeira fase de sua produção literária. Veja-se, por exemplo, o trecho abaixo do livro Catrâmbias (2006):

(...) sinto-me bem melhor diante deles todos aí eh-eh pantomimistas das supostas razões; seres de juízo aparentemente prepósteros; aqui estou encontrando aos poucos minha ipseidade; agora apre preciso adquirir um self coisa nenhuma hã me preocupar com ele lúmen rationale da razão qual nada; vida puh desde sempre fértil em espinhos ervas daninhas que tais... (FERREIRA, 2006, p. 12)

Aqui percebemos as mesmas pausas com os “pontos e vírgulas”, as expressões pouco conhecidas como “prepósteros” e ainda o uso de onomatopeias, como “hã” ou “puh”. Ou seja, a correspondência na linguagem dos narradores e do autor é proposital. Além disso, nessas primeiras obras, a forma é a principal questão literária. Em outro trecho da mesma entrevista, autor-narrador-personagem revela que não tem preocupação com o enredo, este surge em segundo plano como efeito colateral da criação da forma. Ao ser perguntado sobre o que move a escritura de seus livros, ele explica: “(...) motivo um só: forma; assuntos vão surgindo a flux nos vestígios da forma”. E, logo em seguida, completa:

Sou obsessivo pela forma; muitas vezes fico três quatro horas num trecho de dez linhas; idiotice sei disso mas diacho gosto; deveria ser um Jobim um Paulinho da Viola um Cartola não um escritor; pena; consigo cantarolar direito sequer atirei o pau no gato; vexame; reatando fio da meada gosto-faço literatura sonora; pode não ser boa mas tem sonoridade; tem sim; mania; obsessão; planejo nada não; é trabalho duro; sangue suor som7.

Zaratempô!, como veremos adiante, também irá trabalhar essa fusão. Na verdade, a questão se mistura entre a ficção e a realidade, na medida em que a obra se constrói como literatura enquanto responde a uma crítica feita pelo professor Paulo Franchetti, sobre sua obra anterior Erefuê! Ao longo de seu trabalho, vamos percebendo que é como se EAF criasse uma personagem idealizada de escritor, aquele de quem saberemos a verdade final, a essência do texto, mas que nada mais faz, senão enredar-nos ainda mais na teia imbricada entre

7

Entrevista que consta na dissertação de Mestrado sobre o autor de Julia Vasconcelos Sttudart; Evandro Affonso Ferreira: vidas desengraçadas e o arquivo debilitado, Florianópolis, UFSC, 2008, p. 148.

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ficção e realidade. E, nesse sentido, reafirma a impossibilidade de saber a intenção e da estrutura psicológica do autor. Outros fatores também se tornam relevantes nas obras mais recentes do autor. O fato de EAF se declarar um misantropo8, por exemplo, um ser avesso às socializações rotineiras, é fator bastante explorado nas páginas de Minha mãe e O mendigo9, pois ambos narradores não gostam de fazer parte nem da clientela da confeitaria tampouco da farandolagem, respectivamente. Escolhem observar de longe. Assim como a narradora doente de Os piores dias que, reclusa em seu quarto de hospital, prefere imaginar-se entre os outros, sem ter contato com nenhum deles. Esse mesmo procedimento acontece no caso da escritora e filósofa Marcia Tiburi, que aparece em homenagem singela nas páginas de Minha mãe como “amiga filósofa”. Em entrevistas com EAF e Tiburi sabemos da amizade dos dois. O livro posterior, O mendigo, traz inclusive um agradecimento: “Obrigado, amiga Marcia Tiburi, pelo seu gesto de generosidade”. Ainda em O mendigo temos um caso exemplar na escolha do nome da amada. O narrador-mendigo diz que seu grande amor o abandonou. Por causa disso, tornou-se pedinte e passou a escrever a letra “N”, inicial do nome dela, em cantos diversos da cidade. Ora, se lermos a epígrafe da obra temos: “‘A loucura às vezes chega quando se é tragado pela perda; é cegueira lúcida que despedaça a alma.’ Najla Assy”. E se voltarmos a primeira obra da trilogia, Minha mãe, leremos a seguinte dedicatória:

Este livro é para você, Najla Assy, que à semelhança de Virgílio conduziu-me pelos surpreendentes e intricados e fascinantes caminhos dos questionamentos. Sim: dedicado a você que me ensinou a pensar.

A escolha da letra “N” como inicial não é arbitrária. De fato, quer estreitar ainda mais a confusão entre esferas distintas. A quem interessa essa mistura de aspectos? O que isso nos diz? Como explica Moriconi, essa é uma marca dos textos contemporâneos:

O prosador contemporâneo frequentemente se faz presente em seu relato, seja de maneira real, seja simulacral, explorando e tematizando a situação de enunciação em que se produz sua ficção e fazendo do discurso 8

É possível assistir a várias entrevistas com Evandro Affonso em que ele declara ser pouco sociável. Os vídeos constam nas referências bibliográficas. 9 Para facilitar a leitura, usaremos também estas formas menos extensas.

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autobiográfico autoral elemento constitutivo do foco em primeira pessoa (MORICONI, 2006, p. 160).

Todos esses indícios apontados na obra de EAF podem nos ajudar a pensar no lugar que autor contemporâneo ocupa hoje. Mais adiante, permite-nos pensar também na questão límbica que me proponho discutir nesse trabalho. De fato, a literatura segue, como era de se esperar, o mundo líquido proposto por Bauman, em que as definições e os limites precisam ser cada vez mais desintegrados. O mesmo passa a acontecer para papéis tão fundamentais dos estudos literários. Onde antes sabíamos existir o narrador e o autor, agora temos narrador-personagem-autor, numa esfera única sem limites definíveis. A relação do leitor diante da obra escrita sob esse modelo é confusa, como se pretende afirmar ser nosso mundo atual. Se o mundo nos parece indefinível, não é de se estranhar que o sejam também os romances contemporâneos. Esse artifício, no entanto, é ainda mais extrapolado na produção de EAF quando ele insiste em juntar por meio de entrevistas e declarações as esferas do literário e do privado. Tornando-se figura uniforme, ao mesmo tempo compacta e difusa. Resultado de seu processo com o fazer literário, o escritor quer ser, então, a própria obra. Confundindo-se com ela, vivendo para ela e dela.

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3.1. Quem fala sobre o autor Evandro Affonso Ferreira

Autodidata, nascido em 1945, em Araxá (MG), muda-se para Brasília em 1960 onde começa a trabalhar como bancário. Em 1982, já morando em São Paulo desde 1964, exerce função de redator publicitário. Ganha o “Galo de Ouro” pelo melhor anúncio do ano, em 1990. Aos 45 anos, sofre um infarto e vai para UTI; a experiência faz com que se dedique mais à literatura e funde o sebo “Sagarana”10. Em 2002, decide fechar o sebo, mas três anos mais tarde retoma a atividade de alfarrabista com o “Avalovara”, o qual acaba nas mãos do amigo jornalista e escritor Bernardo Ajzenberg. Como vimos, o autor publicou até agora 10 livros sendo que, nos quatro últimos, seu estilo de escrita mudou bastante, mostrando-se já no título. Ainda que tenha alguns prêmios na estante, pouco se fala criticamente sobre a obra do autor. Em geral, há resenhas e pequenos estudos publicados por jornalistas e resenhistas, que, em sua maioria, estão em sites ou revistas virtuais, característica bastante comum perante as obras contemporâneas. Possivelmente também seja mais fácil (na era cibernética) publicar artigos ou resenhas virtuais, do que investir em um estudo acadêmico mais aprofundado. Dessa forma, os textos são breves, e invariavelmente procuram evidenciar como a proposta literária de Evandro Ferreira é promissora, funcionando como exaltadores de sua obra. Para apontar algumas críticas mais importantes, podemos começar com o caso de José Paulo Paes que em seu prefácio a Grogotó! relembra a antiga carreira de publicitário do autor e felicita-o por ter escolhido a de escritor. Reconhece nos minicontos de Evandro Ferreira a técnica do twist ou final inesperado, além da escrita concisa que qualifica as narrativas como epigramáticas e a exploração de um vocabulário pouco usual. Na edição da Topbooks de Grogotó!, na orelha do livro, Bernardo Ajzenberg atenta para o “olhar inusitado sobre o ambiente urbano” que mostra violência, miséria, medo, preconceito, ciúme e traição de maneira sintética. Na contracapa, Moacyr Scliar diz que Evandro A. Ferreira é “um colecionador de tipos insólitos, de situações inusitadas”, e sua As informações biográficas foram retiradas do livro Lembranças do Presente – o conto contemporâneo (org. Alcir Pécora, Cotovia, Lisboa, 2006), de entrevista para o programa “Imagem da palavra” disponível em http://www.youtube.com/watch?feature=endscreen&v=0o44gf49Y0c&NR=1, do site da Editora Record – http://www.record.com.br/autor_sobre.asp?id_autor=6075 e do site Itaú Cultural, na seção de biografias – http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_lit/index.cfm?fuseaction=biografias_texto&cd_ver bete=5777&cd_item=35, todos com acesso em 30/09/2012. 10

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“notável economia e feroz humor, vão direto aos pontos vulneráveis da condição humana”11. O mesmo entusiasmo aparece em Alcir Pécora. Na organização de um volume de contos brasileiros, Lembranças do presente – o conto contemporâneo (2006), inclui nosso autor. Segundo o pesquisador, a composição de Evandro Ferreira tem dois pontos onde apoia seu eixo: “a forma precisa de compor a disposição ou sequência das ações” e “sua linguagem peculiar” (PÉCORA, 2006, p. 32). Com uma seleção de contos de Grogotó!, esclarece que “apesar da aparência de neologismo, todo o léxico grogotês está dicionarizado” (PÉCORA, 2006, p. 32) e que seu “efeito colorido, pitoresco” dá à linguagem um “caráter afetivo, sentimental, mas também ensimesmado e resmungão – numa palavra, sistemático, no sentido regional do termo, isto é, a meio caminho entre o lunático, o obsessivo e o caduco” (PÉCORA, 2006, p. 33). Anos depois, quando do lançamento do penúltimo livro do autor mineiro, Pécora assinala que a invenção de EAF “está baseada no exercício estilístico, na frase lapidar, no léxico explosivo e farfalhante, ele tem de permanecer em constante busca, para que a invenção não se torne apenas maneirismo ou um método de rebuscamento formal” 12. Outro professor da Unicamp, Paulo Franchetti, comenta a seu respeito. E aqui a intervenção crítica tem caráter especial. Quando da publicação do livro Erefuê, o estudioso comenta a obra com um artigo intitulado “No limite”13. Diz se sentir desestimulado com o estilo de linguagem que se repete e acaba por não ter mais eficiência e funcionalidade na narrativa, servindo apenas como um acúmulo despropositado de referências, frases e informações. Explica que os procedimentos sintáticos e escolha vocabular apareciam em Araã com vitalidade e sem excesso de maneirismo, mas que em Erefuê! este passa a ser o ponto absoluto da obra, tornando-se um “estilo fixo, aplicável a qualquer objeto, impermeável a qualquer situação particular”. Tempos depois, EAF publica Zaratempô! e o romance surpreende positivamente Paulo Franchetti. Na resenha seguinte sobre Evandro Ferreira, o professor explica sua admiração:

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Comentários retirados da edição de Grogotó!, Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. Entrevista encontrada em artigo já mencionado sobre lançamento do livro Os piores dias de minha vida foram todos. “Evandro Affonso Ferreira fecha sua 'trilogia do desespero' com lirismo e humor”, O Globo, 11/10/2014, (http://oglobo.globo.com/cultura/livros/evandro-affonso-ferreira-fecha-sua-trilogia-dodesespero-com-lirismo-humor-14204617, acesso em 04/03/2015). 13 A resenha de Paulo Franchetti, “No Limite”, está disponível em: acesso em 04/03/2015. 12

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Leio agora Zaratempô! e encontro ali tanto a minha própria pergunta quanto a resposta a ela. A pergunta veio da forma mais inesperada, como incorporação, transcrição do meu próprio discurso crítico, no tecido da novela. A resposta está dada com a solução narrativa original, que transforma o livro numa aguda reflexão sobre o poder da palavra literária e resolve o impasse do discurso idiossincrático pela sua assunção declarada como voz autobiográfica14.

Ou seja, o texto de Paulo Franchetti aparece nas páginas de Zaratempô!, mostrando que o autor enfrenta a crítica sem medo. Fazendo sua criação transitar entre o espaço da ficção e da realidade. Ao longo do estudo, reiterarei que este é um artifício por vezes utilizado por EAF, resultando em algumas concepções importantes. Zaratempô!, portanto, é um livro que questiona as possibilidades da criação literária, reflete sobre a palavra e as diferentes vozes na narrativa ou testemunho. A solução ao dilema proposto por Franchetti foi transformar a linguagem idiossincrática em própria voz autoral como já vinha fazendo nas entrevistas. Portanto, Franchetti parece satisfeito com o resultado:

E o que o leitor tem na frente dos seus olhos é um discurso poderoso, destinado a apagar, pela impressão de honestidade, de veracidade e de pungência sentimental, qualquer outra questão, inclusive as várias questões críticas que o livro vai erguendo e comentando, que passam a valer mais como testemunhos da coerência desse discurso pessoal, do que como pontos de interesse abstrato15.

A ousadia de Evandro é o que impressiona o professor. Conclui, satisfeito:

momento singular de triunfo da literatura e de testemunho do poder vivificador da invenção, quando ela não recua perante os desafios trazidos pela existência e liberdade de interpretação do olhar do outro 16.

Antes de passarmos às mudanças formais na obra de EAF, cabe fazer alguns comentários sobre o único trabalho acadêmico até agora elaborado sobre sua obra. Julia Studart estuda em sua dissertação os procedimentos linguísticos mirabolantes de EAF partindo das personagens – chamadas por ela de “estúpidas e infames” – que estão presentes nas suas primeiras obras. As personagens são associadas a esses restos que nos Paulo Franchetti, “Oigalê Zaratempô!”, Revista Virtual Cronópios, Literatura e arte no plural, 17 de janeiro de 2006. Disponível em: , acesso em 04/03/2015. 15 Idem. 16 Idem. 14

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passam despercebidos e para construir essa percepção ela estabelece um diálogo com as artes plásticas e com outras narrativas. Ela lança mão de conceitos de alguns pensadores importantes como Maurice Blanchot, Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Giorgio Agamben, Georges Bataille, Roland Barthes, entre outros. A grande qualidade do trabalho é percebida pelo empenho em tratar as narrativas de EAF “no tempo do enquanto as coisas se movem” (STUDART, 2008, p. 132). Há, por fim, a sugestão de que os livros publicados até aquele momento seriam, na verdade, um livro só, formando um grande dicionário de palavras raras, de certa forma, uma biblioteca de Babel. Sua pesquisa é justificada como sendo uma iniciativa nos meios acadêmicos para que cresça o interesse acerca do autor. De certa forma, minha pesquisa tenta dar continuidade ao trabalho iniciado por Julia Studart. Como a forma não é mais o elemento crucial para a construção literária, outros aspectos importantes aparecem para serem analisados. Com uma escrita bastante experimental, no sentido de não ter um projeto literário definitivo, é possível dizer que ainda surgirão outras análises acerca desse autor. Acredito que, nesse momento, é preciso que nos debrucemos sobre o que diz a obra do recluso escritor de Araxá, no sentido de tentar entender como a escrita se transforma a reboque dos conteúdos tratados. Entretanto, antes de iniciar essa investigação, cabem alguns comentários sobre as mudanças estilísticas da sua produção.

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3.2. Processos da criação literária – transformações da produção

A linguagem peculiar de EAF é o caráter que se sobressai no início da carreira. Colecionador de palavras pouco conhecidas, seus primeiros livros trazem um vocabulário distinto, em parte da oralidade, em parte da erudição curiosa, com o qual cria trechos complexos, mas com sonoridade aguçada, pois faz uso de onomatopeias e interjeições. Veja-se, por exemplo, um dos minicontos de Grogotó!:

Oxe! Salaz canalha talufão sicofanta mendaz, melhor dar o calado como resposta, furbesco pulha biltre calafange bandurrilha, deixa estar, daqui a pouco, pronto, serena os ânimos, zaragateiro velhaco pangarave cafangoso balabrega, acho que desta vez meti os pés pelas mãos, farrombeiro cretino pastrana socarrão, voz ficando rouca, bilontra fúfio zabaneiro... pronto, abaixou o facho, ufa, dois anos de casado quase, ainda não me acostumei com as espinafrações dela, esposa lexicóloga (FERREIRA, 2000, p. 82).

O encadeamento proposital das palavras estranhas ao léxico corriqueiro é o que traz o primeiro impacto no leitor. A rigor, há uma narrativa curta e simples, sem grandes elaborações de trama ou encadeamento de ideias. Pelo que podemos depreender, o marido ouve passivo os xingamentos da mulher. O estranhamento em relação às palavras desfaz-se ao final do conto, quando o narrador, ou seja, o próprio marido, revela ser casado com uma lexicóloga. Ou seja, mais entusiasmo com a forma que o conteúdo da narrativa em si, como o próprio autor apontara. Essa será a marca que acaba por se transformar em sua assinatura. Como podemos ver, ele permanece com esse estilo até a publicação de Catrâmbias! – “Oigalê! vontade súbita de ataganhar espotejar cousalousa pássaro enxundioso aquele andando à matroca sobre muro panóptico quáquáquá huifa gosto quando me apanho de rebate assim saltaricando de rir (...)” (FERREIRA, 2006, p. 42). Nesse trecho, por exemplo, vemos além do léxico raro, algumas onomatopeias como “quáquáquá” e “huifa”, também bastante comuns no seu discurso. Em uma análise mais cuidadosa sobre o aspecto formal, Paulo Franchetti ressalta alguns procedimentos dessa escrita. Explica que há três traços característicos em relação à 46

sintaxe. O primeiro é o uso pleonástico do objeto. Ou seja, na substituição do artigo definido ou indefinido por um pronome redundante. Isso acontece em casos como “ainda me lembro deles rapazes de sexo ambíguo”, “nada mais existe em respaldo dela existência”, “na forquilha dele meu estilingue havia cicatrizes de vários assassinatos infantis”. O segundo traço é a posposição do pronome demonstrativo, como em: “principalmente manhã aquela em que ouvi”, “impossível esquecer pastor predicante aquele na pracinha”. E o terceiro é o frequente uso de palavras onomatopaicas: “aceito sim obrigado gluge gluge gluge huumm água gelada”, “lembranças chegam de cambulhada ixe jovenzinho catorze quinze se tanto puh casas todas de madeira”17. No novo projeto literário, nova fase do autor, muito dessa obsessão pela forma será abandonada. No entanto, ela não desaparece por completo.

*

*

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A transformação de Catrâmbias! para Minha mãe se matou sem dizer adeus deixa claro que há outra perspectiva para a escrita, em que a preocupação com o conteúdo da trama, com a mensagem, passa a ser o mais importante. Os narradores querem se fazer entender. O suicídio da mãe, sem nenhum aviso, é o motor para seu discurso na primeira obra de novo formato. Em O Mendigo, a loucura causada pelo abandono é o princípio gerador da narrativa. E em Os piores dias, a necessidade de se despedir é fundamental para o discorrer literário. Ou seja, a fala é sempre estimulada por situações de decrepitude e o tema sempre terá um tom pessimista. Quanto aos aspectos formais, daqueles traços listados por Franchetti, ficam apenas algumas poucas onomatopeias, como nesses trechos: “Ouça: é o ploque-ploque do sapato

Paulo Franchetti. “No Limite”. , acesso em 04/03/2015. 17

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dela”18 (O mendigo) e a insistência da interjeição “A-hã” no início de uma assertiva, que vem seguida dos dois pontos: “A-hã: decifra-me ou te devoro”, “A-hã: somos todos miseráveis”, “A-hã: estou falando dele, Erasmo de Rotterdam” (O mendigo). Esses traços são menos aparentes em Minha mãe e Os piores dias. O recurso aproxima a narrativa da oralidade, que será marcada por expressões repetitivas e pela fala fragmentada. O mesmo artifício dos dois pontos é usado com outras palavras, por exemplo: “Sim: a todos nós” ou “Veja: levantou-se”, “Ouça: é a voz dela cantando My Funny Valentine” (O mendigo), “Cena felliniana: ator amador vestido a caráter dublando Maria Callas” ou “Suicídio: pá de cal voluntária nele próprio infortúnio” (Os piores dias). O recurso imprime uma pausa maior ao discurso, além de chamar mais a atenção para o que será dito em seguida. A preocupação com a sonoridade permanece. Observem-se estes trechos também de O Mendigo: “Agora, rindo riso lambuzado, mostra a boca oca igual túnel miniaturizado” – além da rima em ‘-ado’ e ‘-oca’, há a aliteração com o som do ‘r’ e do ‘s’, já em “É loucura de cócoras”, “malvadeza em dose dupla dos deuses dos desamparos” ou “pássaros de asas desassossegadas”, “prática, pragmática, partícipe” – a aliteração e assonância são marcas bastante claras. Nessa nova fase, entretanto, se aproveita de um léxico mais comum, não tão obcecado pelas palavras sonoras raras, mas constrói a fala ainda na escolha por fonemas semelhantes. Mais adiante, tratarei mais detalhadamente dos recursos sonoros presentes nos textos, na medida em que eles interferem na interpretação das mensagens dos narradores . Já presente em outras obras, há outro artifício – também às vezes relacionado ao som, mas não sempre – que é a justaposição de palavras. Esse procedimento pode ser construído de três formas. Primeiramente, como reiteração ou pleonasmo, pois une palavras de semântica similar, como em: “nunca-jamais”, “vi-vivi”, “palavras-acalanto”, “tudo-todos”, “firmeconstante” (O mendigo), “lenta-gradual”, “dizem-fazem” (Os piores dias), “perplexodeslumbrado”, “chuvosos-tempestuosos” (Minha mãe). Há também a junção de palavras de sentido diverso, nem sempre contrário: “nebuloso-ridículo”, “esperança-abstraimento”, “doçura-amargura” (O mendigo), “passos18

Optei por não colocar a referência bibliográfica ou números de páginas quando estiver tratando das três obras escolhidas para essa pesquisa. São inúmeros os exemplos e trechos citados e analisados ao longo do trabalho, ou seja, exibir a referência poderia prejudicar a fluência da leitura. No mais, ao longo do texto procuro sempre mostrar de que obra retiro o trecho em questão.

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bumerangue”, “prêmio-senilidade” (Os piores dias), “pessoas-pósfácio”, “naturalinequívoca” (Minha mãe). E, por fim a combinação em que a segunda palavra qualifica a primeira: “mulhermolusco”, “menino-borboleta”, “poder-projétil”, “oração-gota” (O mendigo), “homenssanduíches”, “quarto-invólucro” (Os piores dias), “mãe-professora”, “vocábulos-couraça” (Minha mãe). Somam-se ainda os fragmentos e palavras em latim, ocorrência já presente também nas suas publicações anteriores, mas aqui mais recorrente, principalmente quando insere os supostos adágios de Erasmo de Rotterdam: “Menino-borboleta já está na feira da rua de cima. Generoso, trará, como sempre, frutas machucadas para todos. Similis simili gaudet – O semelhante regozija-se com o semelhante”. Ou em: “É respeitado: líder congênito. Inverte provérbio segundo o qual A bove maiore discat arare minor – O boi mais novo aprende a arar com o mais velho”. Cabe ainda citar mais um recurso comum: a repetição de algumas expressões ao longo de todo o discurso. Em O Mendigo, por exemplo, essas seriam as mais recorrentes: “Sei sinto pressinto”, “Ela virá eu sei”, “Também eles (elas, ele) chamam-me à memória (...)”, “ACABOU-SE;

ADEUS”

e “in totum”. Essa repetição – à moda de cantilena, cantiga,

melodia ritmada – manifesta e corrobora a contínua preocupação com a sonoridade. Agora mais carregada de significados, ou seja, de um valor semântico, ainda com certa insistência na raridade das palavras e nos sons onomatopaicos inusitados. Nesse sentido, vale ressaltar que o colecionismo de palavras raras ou obsoletas como procedimento revela muito de sua proposta literária. Como tenho dito até agora, EAF parece ser um escritor deslocado das “rodinhas” de escritores contemporâneos. Enquanto eles negam a questão da tradição, Evandro Ferreira faz questão de colocá-la à tona. Quer, portanto, operar com esse catálogo morto de palavras. Dessa forma, o que temos é, na verdade, uma atualização desse arquivo na contemporaneidade. Os procedimentos de sua técnica criativa formal vêm claramente de um processo experimentalista. Aqui vale a ressalva de que Evandro Affonso Ferreira é um escritor autodidata que se guia pelo esforço e a leitura obsessiva. Essa é uma característica importante, pois mostra seu afastamento em relação aos meios acadêmicos e jornalísticos, por exemplo. É, ao que parece, um trabalho de pertinácia em que sua formação como leitor tem mais relevância que sua formação profissional. Quando da publicação de Os piores dias de minha vida foram todos, EAF revelou em entrevista ao O Globo: 49

Quando escrevo dou o máximo de mim. Nem sempre o leitor faz o mesmo. Para escrever um livro, leio muito. Não quero dizer que isso seja bom ou ruim, mas me dedico. Logo, o leitor também tem que ser dedicado. Estou sempre querendo dificultar a vida do leitor19.

Dificultar a vida do leitor apressado é precisamente o objetivo dos narradores de EAF. A anacronia a que se dispõe é a estratégia que ele usa para o labor literário. Fica claro que não podemos tratar as palavras do autor como a verdade absoluta sobre sua obra. No entanto, é importante perceber que esse deslocamento aparece como artifício intencional. É a materialidade surgindo como caminho para um universo específico que se apoia em dilemas comuns, mas que são percebidos de forma distinta.

“Evandro Affonso Ferreira fecha sua 'trilogia do desespero' com lirismo e humor”, O Globo, 11/10/2014, (http://oglobo.globo.com/cultura/livros/evandro-affonso-ferreira-fecha-sua-trilogia-do-desespero-comlirismo-humor-14204617, acesso em 04/03/2015). 19

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4. NA CIDADE APRESSURADA

Julia Studart, em sua dissertação sobre a primeira fase de Evandro Affonso Ferreira, propõe que as obras sejam lidas como uma só porque são construídas com discursos semelhantes. Também porque tratam de temas similares e trazem personagens sempre marginalizados ou descompassados. O mesmo movimento pode-se verificar na trilogia estudada nessa pesquisa. As relações entre as obras são tão íntimas que poderiam ser certamente ser lidas como uma só. Se as personagens dos livros anteriores já eram percebidas como desajustadas, essa peculiaridade passa a ser mais adensada com os narradores da trilogia. Embora os eles sejam distintos e inseridos em espaços diferentes, suas reflexões e concepções diante da experiência da vida em muito se assemelham. São narradores contraditórios que se colocam diante de dilemas insolúveis. A noção mais importante que deixam é a de vida-estanque, paralisada ou suspensa, propiciada pela incapacidade de agir perante as fraquezas e desgostos. Para livrar-se dessa angústia usam a palavra como processo terapêutico ou, melhor dizendo, como manifestação provisória. O vernáculo irá se apresentar como única saída plausível diante das incertezas em que os narradores se colocam. Em certo sentido, as obras são uma grande homenagem à força da literatura. Para iniciarmos nosso percurso é importante conhecermos melhor os três narradores. As três obras são narradas em primeira pessoa, acompanhando seus confusos fluxos de pensamentos. Nesse ponto, é importante destacar que a narrativa se passa quase inteiramente no mundo interno desses narradores. Isso indica que as ações e reviravoltas no enredo são praticamente inexistentes. Os únicos grandes acontecimentos possíveis são a chegada da morte, da loucura ou da amada. O que se narra, no entanto, é a espera por esses eventos. Portanto, a voz atormentada falará incessantemente para tentar acalmar-se diante da possibilidade da finitude. É o narrador no divã, o leitor como psicanalista silencioso. Outro elemento comum é a frustração diante da ausência de uma personagem – alguém que partiu ou morreu – para cada um dos narradores. Como veremos, essa falta implicará em reflexões sobre solidão e vazio.

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Por fim, cabe lembrar um último elo comum. Todas as obras trazem também um outro personagem que se sobressai, na medida em que será usado para suprir a falta e ausência causada pelos que se foram. Essas figuras acabam servindo de apoio para os narradores. Funcionam, desse modo, como personagens conselheiras, orientadoras dos passos que poderiam ser seguidos nos fluxos contínuos de consciência. Entram nos livros com aforismos, adágios, anedotas e conselhos que sobrevoam as obras como respingos de sabedoria. São os que chamarei de personagens-mentoras.

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4.1. Moribundo

“A vida é ruim, eu sei”. Assim começa a trilogia do desespero com o título Minha mãe se matou sem dizer adeus. Um velho de 80 anos senta-se à sua “mesa-mirante” em uma confeitaria, possivelmente dentro de um shopping, a que chama de “templo moderno”. Está lá para relembrar-se da vida medíocre que teve enquanto espera sua morte chegar. Quer conseguir, ao longo de suas divagações, escrever um livro completo, “livro-ômega”. Mas ele não sabe bem o que escrever e, enquanto não escreve, está escrevendo para nós mais um livro inconcluso. Estamos diante da metalinguagem às avessas, em que o nãofazer, culmina em livro feito. Narrar quando não se pode/quer narrar. Lá fora, chove. Chove sempre. É sempre domingo, e a chuva é um choro contínuo e persistente, concretização da melancolia. Há uma esperança vaga de que caia sobre ele um “raio personalizado” que o mate logo. Não gosta da vida, mas tem medo da morte. O discurso insistente é atravessado por paradoxos. Crê ter uma vida medíocre, mas, prepotente, quer um raio fatal feito apenas para ele. Quer que a morte seja seu momento especial, seu momento Macabéa, sua hora da estrela. Enquanto a morte não chega, fia-se na palavra para sobreviver, “o verbo é minha âncora”, ele diz. Mais que isso, o verbo é sua religião. Ao longo da leitura, vamos entendendo que o verbo é o único elemento em que realmente acredita. A reflexão sobre a morte está sempre associada à mãe “feia bêbada louca” que, segundo ele, matou-se sem deixar nenhum aviso prévio. A história da mãe, melhor dizendo, a história da infância será retomada em diversos momentos da narrativa, e percebe-se certo ressentimento em suas lembranças. A compensação por esse mal-estar vem da “amiga filósofa” que, diferentemente dele, recebeu uma carta-despedida da mãe e entregou-a ao nosso narrador. “Essa missivalimite me deixa in extenso livre de inquietações. Não fico um dia sem pronunciá-la em voz alta”. A amiga filósofa – que sempre aparece numa “quase quinta” – funcionará na narrativa como essa espécie de guia, é a personagem-mentora a quem o narrador reservará notável admiração. Segue seus conselhos, exibe seus aprendizados, sua sabedoria. Da sua mesa-mirante, ele observa a garçonete ruiva, os amigos judeus, o poeta com Parkinson e Virginia Woolf. A pulsão ficcionista cria para os passantes histórias mínimas, 53

diálogos telepáticos, descreve-os com atenção. Cada pequeno relato é seguido de uma breve reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo a sua volta; é o ambiente externo estimulando a introspecção:

Senhora octogenária na mesa ao lado lê jornal para a moça que faz ouvidos moucos. Esta me disse telepática: sou paga para acompanhá-la; não para ouvi-la. É a decrepitude trazendo-nos o brinde-humilhação antes do presente-morte. Mas ela senhora decrépita continua. Possivelmente sabe que envelhecer é abater o próprio orgulho. Pela fluência se percebe que a decrepitude não lhe trouxe tibieza no ato de ler em voz alta. Concluo que este acontecimento aparentemente vexatório é calculado: lê apenas para exercitar a locução. Slogan dos decrépitos: ABSTRAIR PARA NÃO DESISTIR.

Nesse trecho, o narrador, ao perceber a leitura da senhora, despertará para a reflexão sobre o que chamará de abstraimento. Ele nota inicialmente o desconforto da acompanhante e parte para composições lexicais antagônicas, em que “brinde” e “presente” tem suas qualidades exultantes soterradas pelas palavras “humilhação” e “morte”, mostrando sempre a dualidade como um ponto decisivo da existência humana. O narrador percebe, por fim, que o movimento da octagenária é proposital e que ela não se importa com o que pensam. Abstrai-se do mundo para continuar vivendo, desapega-se das ideias e das vergonhas, esquece a “morte” e a “humilhação”. E ele conclui com uma ponderação mais profunda: se não quisermos desistir, é preciso que aprendamos a conviver com esse abstraimento, afinal, a vida não será apenas uma série de conveniências sociais. O livro se divide em 17 capítulos, sem títulos. Todos iniciam com o mesmo comentário sobre o domingo quase sempre chuvoso, que pode facilmente ser associado a um sentimento melancólico, gerador do discurso tão ininterrupto como a chuva. Assistimos, ao longo das páginas, à vida incompleta de um moribundo indeciso, em sua tentativa aparentemente frustrada de escrever uma obra até o fim. A quase morte, “quase quinta”, quase concluso, quase finito. Fechamos o livro, e ficamos em suspenso.

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4.2. Mendigo

Recebeu um bilhete elíptico: “ACABOU-SE, ADEUS”. A amada o abandonara. Outra vida começava para aquele que diz ter sido fidalgo. A mensagem concisa o levou para as ruas, onde vaga há dez anos como mendigo na esperança de reencontrar seu grande amor. É assim que se inicia a narrativa de O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam. Com 127 páginas, o livro mostra a fala (ou pensamento?) de um homem sensível, instruído intelectualmente, que tenta aliviar o desespero da espera de um retorno imaginado enquanto conversa com um interlocutor. A semelhança com Riobaldo não parece ser coincidência. Como os outros dois livros, também traz a mesma estrutura de um narrador num diálogo/monólogo compulsivo com um ou mais interlocutores. Neste caso, afinado com o discurso do cangaceiro de Guimarães Rosa, conversa com alguém a quem chama de senhor – “Sei não senhor; nunca soube de seu paradeiro”. Como a voz desse senhor nunca aparece, podemos apenas supor que somos nós, os leitores, que estamos ali, diante do mendigo. O relato acontece enquanto ele espera que o desvario se instale em sua mente. Mas o percurso fica custoso quando essa demência precisa destruir inúmeras memórias e uma atividade intelectual intensa. Assim, enquanto a loucura não chega, o olhar atento e culto do mendigo vai dar atenção a sua volta, aos mendicantes e aos transeuntes. E cada movimento externo da cidade é combustível suficiente para uma sequência de lembranças e elucubrações.

Parece gente. Mas pode ser rato ou gato ou lagarto. Seja o que for, vale menos que o próprio cobertor. Ne quid nimis – Nada em excesso. Ironias cabem a todo instante em qualquer lugar – até aqui no fundo do poço. Rosto ficou descoberto: é mulher. Farrapo feminino. Amada aquela que levantou âncora pudesse providenciaria agora par de chinelos para pobrediaba desvalida. Veja: desprezada pelos pares: fede muito. Possivelmente havia alguma beleza debaixo daquela ferrugem. Tem corpo esguio. Caminha com certa elegância – apesar da podridão. São as surpreendências da vida. Há dez anos ando a trouxe-mouxe pelas ruas sem nunca ter tido curiosidade em saber passado de nenhum maltrapilho. Sequer dele menino-borboleta que às vezes comete de moto próprio algumas confidências. Faço ouvidos moucos – modo geral.

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Como se vê, o tempo presente contemplado pelo mendigo traz sempre à tona a lembrança da amada. O momento narrado acima é do surgimento de uma nova figura no grupo da farandolagem. Ao vê-la, o mendigo passa a fazer conjecturas sobre a vida dela, para em seguida assentir contraditoriamente que nunca teve curiosidade em saber sobre a história dos maltrapilhos. Mesmo para aquele, a quem ele chama talvez carinhosamente de “menino-borboleta”, não houve demonstração de interesse. Em termos estilísticos, o trecho acima consegue representar bem aspectos que são perceptíveis nos três livros: a repetição insistente de palavras, a fragmentação das frases, as pausas acionadas pelos dois pontos, o uso de termos regionais e obsoletos, a pouca adjetivação, a tendência a nomear de forma inusitada os seres e sensações, as palavras e frases de efeito sonoro, as inversões sintáticas, as palavras em latim. Esse livro, em especial, é escrito em apenas um parágrafo, que é concluído apenas em sua última página. No trecho acima, mesmo com certo embaralhamento na tessitura discursiva – que faz digressões, aponta para diferentes instâncias temporais, enquanto mistura termos de diferentes campos intelectuais – conseguimos estabelecer certa coerência entre as palavras. À medida que a nova pedinte avança sobre o grupo, o mendigo descreve-nos os movimentos: o rosto sendo descoberto pelo cobertor, a rejeição dos outros, o tipo de corpo e a maneira que caminha. Isso sem deixar de lembrar sua amada que, naturalmente, passa a invadir a cena com algum gesto de bondade, como que para reiterar os traços românticos e idealizados que são sempre assegurados a ela. E aqui nos deparamos com um obstáculo: há certa consciência nesse olhar, certa compreensão, certa empatia que talvez não seja permitida aos que se veem realmente loucos. Mais adiante, retomaremos essa condição. A personagem-mentora desta obra é Erasmo de Rotterdam, a quem o mendigo venera enquanto exibe nas páginas as infinitas sabedorias do pensador renascentista em forma de supostos adágios que são coletados de um pequeno livro que carrega consigo. No mais, são todos os outros personagens anônimos – mendigo, ouvinte e amada. A esta última, todavia, é reservado certo artifício especial: ele declara ser a letra “N” a primeira de seu nome, mas faz suspense sobre as quatro letras finais. Seu vício é marcar o corpo e a cidade com esta inicial – “logomarca da esperança”. “N” de “nada”, “nunca”, “nascituro”, “náufrago”, “natimorto”, “nebuloso” ou “niquilidade”. A enxurrada vocabular entrecortada pelo refrão insistente – “ela virá eu sei”. Na contramão da probabilidade, o mendigo é uma personagem carregada de poesia e cultura, faz arte com resto e sobras, com o monturo. Enquanto tenta arrefecer a “loucura 56

in totum” que o espreita, contempla a cidade com olhar de poeta niilista, desvelando nas figuras da farandolagem que o rodeiam as aflições e dores dos seres urbanos, a essência dos seres humanos – “O insólito alheio condimenta nossas vidas”, ele reitera. Em seus preâmbulos, mostra que a vivência nas ruas traz potência para sua linguagem, permitindo que ele faça poesia da dor, do isolamento, da tristeza e da morte. Como nesse excerto, em que traz uma definição poética do sentimento da solidão:

Veja: maltrapilho de arrasto agônico lambuza barba com fiapos de manga; está voltando para seu espaço também imundo debaixo deste mesmo viaduto a cinco quadras daqui. Com esse caminhar tartarugoso chegará possivelmente depois de amanhã. Segue devagar, solitário. A-hã: solidão é melancolia travestida de saudade.

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4.3. Doente

Estamos agora diante de Antígona. Ela será a personagem-mentora para mais um passeio nas reflexões pessimistas. Desta vez, temos perante nós uma narradora, uma mulher perto de seus 50 anos de existência. Ela se encontra na cama de um hospital, sozinha em um “quarto-fúnebre”, sofrendo de câncer e mais uma vez esperando o fim trágico: a morte ou a loucura. Para fazer companhia a ela, a narradora invoca a personagem grega, por quem mostra grande admiração. Inicia dizendo que as duas devem ser de mesma genealogia, já que também está sendo enterrada viva. A força feminina reverbera na obra e a escolha de Antígona como mentora para mais um processo de introspecção é decisiva. Dos três narradores apresentados na trilogia, a doente parece ser aquela que mais tem certeza sobre a morte e é, sobretudo, a mais pessimista. Fecha, portanto, com “chave de ouro” uma sequência que tem por objetivo ser deprimente, escancarar as dificuldades e a miséria humana. Chega a fazer campanha contra a existência humana:

(...) acho que eu não deveria ter havido; não deveria ter sido principiada; meu princípio implacável de justiça comigo mesma me impõe obrigações como dizer alto e bom som que maioria lá fora também é desnecessária, não deveria ter feito sua estreia; (...)

Sua espera angustiante pela morte autoriza-a a delirar e imaginar-se em muitos lugares. Um de seus devaneios mais comuns é ver-se andando nua pelas ruas da cidade. Outra vez temos a experiência da vida externa, ou seja, fora da solidão daquele quarto, fora de seu íntimo. O mundo imaginado à sua volta é o motor para as reflexões mais profundas da narradora. Seus aforismos são, na verdade, o retrato de um modo de pensar sobre uma sociedade hipócrita que insiste em não encarar as próprias mazelas.

Admito: ficar sentada no banco desta capela olhando para o infinito abranda sim a alma, principalmente enquanto música sacra suave vem lá de trás do altar. Senhora de joelhos três bancos adiante está quem sabe pedindo para santo qualquer correr esponja sobre seus últimos procedimentos irregulares; não há a menor possibilidade de se desfazer

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tempo todo das transgressões de preceitos religiosos; beata ali não sabe mas está rezando preces de Sísifo.

A religiosidade, como podemos ver no trecho acima, é um dos aspectos criticados e relacionados à hipocrisia. No exemplo, a mitologia grega aparece para retomar um pensamento importante, ou seja, a ineficiência da religião. As “preces de Sísifo” remetem a história dessa personagem grega que, castigada pelos deuses, deveria empurrar uma pedra até o topo de uma montanha. No entanto, a pedra rolava abaixo todas as vezes, fazendo com que Sísifo tivesse que carregá-la novamente e sugerindo que seu trabalho seria infinito e, possivelmente, inócuo. Da mesma forma, são vistas as orações da mulher na igreja; por mais que consiga perdão pelas suas transgressões, haverá outras, e ela nunca estará livre das punições. Seria um pecar e perdoar constante. A onipresença da narradora fica aparente não só porque na sua imaginação ela pode colocar-se em qualquer lugar ou situação, mas também porque retoma momentos das duas primeiras obras, ora quando conversa com um mendigo, ora quando diz desejar estar em uma confeitaria dentro de um shopping. Fecha a trilogia com sua narradora-personagemomni. Ela, a mais poderosa de todas, a da experiência final, a da finitude, da sabedoria essencial, dona da verdade, dona da morte, dona da vontade, Antígona. Se em Minha mãe a saudade era materna e em O mendigo a ausência era da amada, agora, a narradora lastima a perda do amigo escritor. Relembra com carinho das conversas entre os dois e de como, de alguma forma, aproximava-se de algo semelhante à felicidade quando estavam juntos. Como mostrou-se, a falta de um “outro” é constante nos três livros e, a partir disso, veremos como o sentimento de incompletude seria o propulsor para leituras pertinentes da obra de Evandro Affonso Ferreira. Esse será o início de nosso caminho.

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PARTE II – O TRAUMA DA EXISTÊNCIA

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1. COMO SE LIVRAR DO VAZIO

O projeto literário de EAF nas obras aqui analisadas consolida-se na construção de contraposições seja pelo conteúdo ou pela sua forma textual. Ao longo de suas páginas, colocam-se as questões sobre vazio e pleno; completo e incompleto; ausência e presença; concluso e inconcluso; loucura e sanidade e assim por diante. Desse processo de antinomias resultam ainda dois debates indispensáveis: a oposição polêmica entre vida e morte, na medida em que explora e extrapola esses conceitos; e, por fim, o estado transitório que se instaura quando se discutem noções opostas. Isso porque justamente por apontar os eixos antagônicos e relativizá-los, os três livros analisados mostram que esses limites podem não ser assim tão claros. A esse estado dei o nome de “limbo”, já que os narradores utilizam esse termo algumas vezes no texto. Nesse primeiro momento, gostaria de apresentar como essas vontades adversas aparecem nos textos e como isso pode influenciar em termos de construção poética e proposta literária. Sabemos que os protagonistas das obras são os próprios narradores: um velho, um mendigo e uma doente. Para esses três – como aprendemos ao longo da leitura – há sempre alguma privação íntima e pessoal. Os narradores sentem falta da mãe suicida, da amada perdida e do amigo extinto, respectivamente. Uma análise mais minuciosa mostra que a noção de incompletude e vazio é sentida, sobretudo, por essas ausências. No entanto, elas não serão a única maneira de abordagem em relação a essa sensação. Isso aparecerá também em outros personagens e em outros recursos tanto linguísticos quanto estruturais. Na primeira obra, temos a ausência da mãe, a mesma que é apresentada no título, Minha mãe se matou sem dizer adeus. Descrita como “feia bêbada louca”, ela aparecerá sempre durante as lembranças de infância do narrador, pois se matou quando ele tinha apenas 9 ou 10 anos de idade. Ela gostava de pintar retratos e brincava com o filho como se tivesse a idade dele: Minha mãe desata de súbito pião da fieira fazendo-o virar na calçada; agora o apoia ainda girando sobre a palma da mão. Tenho cinco seis anos se tanto. Fico perplexo-deslumbrado com tão encantador malabarismo. Mãe-moleque. Veio menina por descuido da natureza; viveu menino tempo todo. 61

A relação materna é contada ao longo de flashes de memórias, sem ordem cronológica. Nessas recordações, descobrimos que embora louca, ela protegia o filho abafando com seu corpo o estrondo dos trovões, enquanto cantava “My funny valentine”. Aprendemos que quando ela passava mertiolate, assoprava, enquanto o menino chorava. Ensinava-o a segurar o lápis e a escrever munindo-o “de vocábulos para lutar tempo todo contra vontade de desistir de existir”. Oferecia a ele manga verde com sal, enquanto tinhao no colo, recostada num tronco de árvore. Faziam juntos arapucas para capturar pintassilgos; jogavam bola com gol improvisado entre dois troncos de mangueira; empinavam papagaio num terreno descampado; miravam no alvo com as bolinhas de gude em um canto liso e limpo do quintal; sentavam-se no alto do grande tronco da mangueira; desciam a ladeira no carrinho de rolimã. Brincavam, enfim, mãe e filho. De igual para igual, “mulher-moleque”. O narrador aponta, portanto, para uma infância quase comum, de uma relação amorosa e tranquila. Mas, aos poucos, as memórias também nos levam a perceber que pai e mãe discutiam muito, e que ele chegava a espancá-la – não sabemos se antes ou depois da bebedeira dela. E vamos conhecendo uma mãe triste, desajustada, desajeitada, submissa, cabisbaixa e introspectiva – quando estava lúcida –, mas que “Revoltava-se às vezes titubeante, blindada pela couraça da bebida; e apanhava”. Quando essa mãe se suicida, esquece-se de dizer adeus, deixa o ato de despedida inconcluso. Incompleto como serão as muitas etapas da vida desses três narradores. A figura materna contraditória, que alterna entre o amor de mãe e o comportamento desajustado, tipifica mais uma oposição durante a morte, pois ao se matar, não se despede do menino. Há aí uma sobreposição de desacertos, já que a mãe além de oscilar entre uma personalidade gentil e louca, comete seu ato suicida sem dar nenhuma explicação ou deixar algum bilhete despedindo-se. Para o filho é como ela se tivesse ido embora, mas continuado a existir. Essa partida que não se completa relaciona-se a esse estado límbico no qual quero me debruçar mais adiante. Entretanto, gostaria de discutir aqui sobre as formas que o narrador encontra para preencher essa primeira sensação de ausência que se constrói pelo ressentimento por não ter tido a despedida que desejava. Uma das alternativas é ler obstinadamente a carta de despedida de outra mãe suicida, a mãe de sua amiga filósofa.

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Como vimos, essa amiga servirá como mentora para o narrador, na medida em que interfere na narrativa com conselhos e aforismos referentes ao comportamento humano. Além disso, ela entrega para o narrador um presente inestimável: uma carta de despedida de uma mãe que também se suicidou. Sua leitura implicará em artifício inusitado para o preenchimento da sensação de falta que a mãe lhe deixou. Mais interessante ainda é pensar que não é a falta da mãe que parece lhe preocupar, à princípio, mas a inexistência de sua despedida. Ao longo do texto, percebemos que a carta seria apenas uma metonímia para a figura materna e que, na verdade, ele precisa presentificar essa mãe, torná-la real novamente de alguma forma. Assim, a ausência da despedida da mãe será reiterada ao longo de toda a narrativa e é justamente este movimento que acaba presentificando-a. Arma-se, portanto, um jogo de oposições. Vemos que o “não-estar lá” tenta curar-se para um “estar lá”, ainda que em forma de lembrança e pelas palavras. Ou, se quisermos ir mais adiante, em forma de ficção, em forma literária, pois é na sua literatura que o narrador passa a conquistar o território da ausência e da presença. Este recurso aparece nas três obras: por meio das ausências, os narradores constroem a presença das personagens amadas que se foram. A perda da mãe, nesse caso, é também a perda da infância e da vontade de viver. Segue-se então que as três personagens ausentes – mãe, amante e amigo – funcionarão como metáfora insistente para perdas outras que se podem cooptar a partir de uma ausência inicial, ou seja, a ausência primeira dessas personagens. Quando a mãe se suicida, uma parte do narrador – sua infância, seus momentos de alegria, sua compreensão de experiência materna – morre também. E esta incompletude, sentida em primeira instância pelo afastamento da mãe, reverbera em outros tantos campos de sua vida e, consequentemente da narrativa. Nas entrelinhas, é como se o narrador dissesse que todos os seus infortúnios fossem resultado deste traumático incidente. Na verdade, ele acaba denunciando algo ainda mais grave. Logo após anunciar a morte da mãe, o moribundo – que diz, aliás, estar morrendo naquele mesmo dia em que nos relata todos esses fatos – avisa-nos de que está triste, “não porque vou deixar a vida; mas porque nunca estive nela”. Então, o leitor se dá conta de que não é apenas um luto pela pessoa que se perdeu, é antes a consciência de que existe um vazio em si mesmo, ou seja, de que ele vive em ausência, já que não está na própria vida. Fica implícita também a necessidade de inteireza, de recuperação de uma parte que se perdeu. Um desejo que, como veremos, será explorado da mesma forma nas três obras. 63

Nisso consiste, portanto, sua ideia de amor. Neste procurar pela restituição de uma inteireza originária, de uma completude, na busca de um estado primitivo. É também uma concepção antiga, que a princípio pode parecer ir na contramão de um sentido de contemporaneidade. Na verdade, essa noção de um retorno a origem como saída para corrigir o presente não pode ser invalidada apenas por ser antiga. Sabemos que ela, em muitas partes, identifica-se, na verdade, com um modo de ser atemporal. E essa ruptura, essa nostalgia pela integridade, ou seja, a impossibilidade de restaurar essa plenitude primeira, ou ainda, podemos dizer, essa incompletude constitutiva, são definições completamente contemporâneas sobre o desejo, são elementos que, queiramos ou não, compõem o nosso imaginário do desejo. Para entendermos melhor, seria interessante recorrer à conhecida parábola de Aristófanes, apresentada em O banquete, de Platão. Segundo seu relato, na Terra, havia antes três sexos humanos: o feminino, o masculino e um terceiro, conhecido como andrógino. Esses, além de formas redondas, tinham quatro mãos, quatro pernas e uma só cabeça para dois rostos opostamente colocados. Como eram robustos, vigorosos e cheios de coragem, os andróginos resolveram escalar o céu e atacar os deuses. Zeus, após refletir com os demais deuses sobre como deveriam reagir diante do desacato, resolveu então cortar cada um deles em duas partes, pois assim seriam mais fracos e estariam em maior número para continuar servindo aos deuses. Ordenou, por fim, que Apolo curasse-lhes as feridas e virasse-lhes os rostos para o lado do corte. Ele o fez, e deixou o umbigo, para que se lembrassem do castigo. E assim, cada uma das metades passou a procurar a outra. Mais tarde, Zeus colocou seus órgãos para frente, para que pudessem procriar 20. Num sentido mais amplo, essa história nos ajuda a compreender de que trata afinal essa incompletude, aparente nos narradores das obras, na medida em que buscam na mãe, na amada e no amigo esta parte que lhes deixaria supostamente inteiros. Diz o mendigo sobre sua amada: “Perdendo-a perdi ato contínuo a bússola, o leme, o prumo. Perdi a outra metade da esfera de que falou Platão. Vítima fatal da incompletude – sou sim”. Coincidência ou não, são sempre as partes de gêneros opostos – feminino e masculino – que devem novamente se encontrar – filho x mãe, mendigo x amada, amiga x amigo. Outro detalhe importante é a procura partir apenas de uma dessas partes, no caso, os narradores, pois os outros (ausentes), seja por morte ou desaparecimento, não aparecem 20

Essa parábola consta no livro de Platão, O banquete. Trad. Jorge Paleikat, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

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efetivamente nos livros, portanto, não estão à procura de nada. O fato de a busca vir aparentemente apenas da parte dos narradores não deixa de ser significativo, já que mantém como centro o discurso pessimista e, ao mesmo tempo, abre para a possibilidade de um imaginário forte, pois essas personagens ausentes poderiam ser apenas resultado de uma invenção literária desses narradores. Nesse caso, essas três personagens-ausentes serão o ponto de apoio fantasioso para que esses narradores possam sobreviver a essa vida de miséria e desesperança. Mais adiante, na obra de Platão, Sócrates desenvolve melhor essa ideia da incompletude relacionada ao amor. Ele explica que o amor é a busca de algo que não se tem, que se carece, mais ainda, a procura por algo que está fora dele, que o preencha. Mas esse preenchimento não pode ser apenas no presente, pois se possuímos naquele momento, desejamos também no futuro. Portanto, o amor seria querer algo que o preencha sempre, que seja perene, eterno, imortal. Disso tudo, podemos concluir que o desejo é uma fraqueza que torna os homens mais servis e mais enfraquecidos. É justamente nessa condição em que os narradores da trilogia se encontram. São fragilizados pela perda de uma parte, pelo corte, pelo rompimento, enfim. A necessidade de preencher esse vazio, como dissemos, irá se mostrar de várias formas nas três obras. Em Minha mãe, uma delas é a capacidade inventiva do narrador, em que a literatura aparece mais conveniente para esse propósito. Dono da palavra e do texto, o velho escritor cria para si a amiga Virginia Woolf com quem diz ter passado seis meses junto, na mesma “mesa-mirante”. A literatura serve-o duplamente; primeiro, porque recorre a uma personagem do contexto da história literária, e depois, porque permite que sua imaginação o coloque diante da escritora, seja íntimo dela, ouça suas confidências, descubra seus segredos:

Gostava dela apesar do silêncio angustiante. Seu olhar sim era eloquente. Considerava meus questionamentos tediosos. Conservava-se arredia diante de minhas coscuvilhices literárias. (...) Amiga Woolf era extremamente melancólica. Bonita. Beleza Britânica sem alarde. Encantamento sóbrio. Gostava de vê-la conduzindo suavemente a xícara de chá até os lábios. Nesses quase seis meses de discreta convivência acho que sorriu para mim duas três vezes se tanto. Concordava discordava com sutis meneios de cabeça.

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Não só Virgínia Woolf preenche o vazio na existência do narrador. Escritor compulsivo, ele transforma todos a sua volta em personagens efêmeras, para que elas lhe tapem seus buracos. Sentado à mesa da confeitaria, fica olhando as pessoas que por lá transitam. Repara nas vestes, nos olhares, nas vozes, nas falas, e nas fraquezas e sutilezas do comportamento humano. Um possível shopping – “templo moderno” – transforma-se em território profícuo para invencionices. Aliás, não poderia haver melhor espaço para a discussão do vazio que um shopping. É naquele templo que saciamos nossos inúmeros desejos, seja por objetos materiais seja por anseios mais abstratos como a popularidade, a felicidade, a segurança, o status de consumidor, a viagem dos sonhos etc. O shopping com suas vitrines passa a ser a coisificação dos poderes supremos do mercado de consumo. Sua capacidade de alienação e distanciamento da realidade é notável. De modo que, colocar no shopping, em uma confeitaria, um velho escritor decrépito é montar também a cena perfeita de antagonismo. Enquanto o shopping traz o novo, o narrador relembra o velho. Além disso, o que um velho moribundo pode efetivamente desejar em um shopping? Ainda mais se estivermos falando de um senhor que tem um olhar pessimista perante a vida, em que um colar de brilhantes importa menos que uma meia furada. É aí que se encontra também o motor propulsor dessa narrativa, porque olhar o novo lembrando sempre o passado e a suspensão do tempo, faz com que a narrativa não caminhe, não se enrede em ações, fique, portanto, estagnada. Mesmo porque o velho narrador contamina o ambiente de consumo com suas experiências mórbidas, derrotistas e infelizes. Um idoso sentado à mesa da confeitaria é, em certo sentido, tragicômico. É a lembrança desagradável de que nenhum daqueles produtos vendidos e comprados compulsivamente fará a humanidade fugir do evento inexorável que é a morte. Logo, o que mais interessa ao narrador é justamente aquilo que é invendável, as narrativas humanas. E o shopping, à mesa da confeitaria, será, portanto, seu espaço para “consumo”, lugar onde vê e cria histórias. São inúmeras personagens, seres desejantes, que povoam seu livro inconcluso. Algumas chamam mais atenção: o senhor decrépito – “poeta pego pelo Parkinson” – que insiste em andar trêmulo com sua bengala; a diabólica e sedutora garçonete ruiva; a mãe e esposa que se apaixona pela mesma garçonete ruiva; a senhora que está esperando sua torta de peras ao vinho; o grupo de amigos judeus que gargalha efusivamente; há também um outro judeu específico a quem o narrador cumprimenta em iídiche dizendo 66

“íngale” (criança) e a moça de figurino exótico que carrega consigo um “Sol”. Com todas essas figuras, tem diálogos telepáticos. O transcrito abaixo é um exemplo desse recurso e, inclusive, menciona um trecho bíblico, mostrando a pluralidade de conhecimentos do narrador:

Continuo triste. Solitário também. Por isso invento amigos telepáticos. Digo agora para senhor possivelmente septuagenário – na segunda mesa à esquerda que acaba de fechar o jornal e colocá-lo sobre a mesa – que não há nada novo sob o Sol. Sorri aquiescente; e diz que a menção ao Eclesiastes o faz lembrar Salomão e que sequer este sábio babilônico conseguiu criar antídoto para frustrar a ação da própria decrepitude. Agora foi minha vez de sorrir concordante.

Os diálogos telepáticos contrapõem o silêncio incômodo das personagens que transitam pelo “templo moderno”, em contínua adoração muda aos objetos de consumo, preenchendo vazios com frivolidades materiais. É perceptível que o vazio do narrador também precisa ser preenchido de alguma maneira, ainda que seja por uma fala telepática, calada e ilusória. Criando pequenas narrativas para seu livro de memórias, ele procura preencher o seu vazio existencial. O velho narrador é, portanto, um voyeur da vida humana, as personagens lá fora se confundem com o próprio meio. São tão descartáveis quanto os produtos que compram. E ao olhá-las, o narrador percebe também suas próprias fraquezas. O mundo a sua volta faz parte da obra que o escritor não consegue escrever. Reverbera até mesmo na obra em si, quando o narrador admite que ela não será publicada e não terá, portanto, nenhum leitor. O paradoxo, continua sendo a proposta apontada inicialmente, em que as contradições constroem a própria narrativa e fica claro que, há nisso, certa ironia. E, em determinado momento, a narrativa se volatiza mais ainda: como escrever um livro sobre sua vida anunciando que nunca se esteve nela, pois viveu em ausência? Para isso, ele usa do artifício do voyeur, fala dos outros para não falar de si. Mas o efeito é mais uma vez incongruente, pois na medida em que disserta sobre personagens alheias, passa a remontar suas próprias lembranças de infância, relata seus sentimentos em relação à vida e à morte. Quanto mais quer ser superficial ao retratar transeuntes em um shopping, mais se aprofunda em discussões epistemológicas e pessoais. E quanto mais se aprofunda, mais pessimista se torna, fala da vida pensando fixamente na morte, ou viceversa. 67

O pessimismo do narrador chegará a limites extremos em consonância com a citação de David Hume, na entrada da obra, que diz que “a vida do homem não tem maior importância para o universo do que a de uma ostra”. Mais adiante, veremos também que esse pessimismo em muito se assemelha às concepções filosóficas de Arthur Schopenhauer. Ora, se não vale a pena viver, se estamos aqui sem nenhum motivo, se devemos morrer, por que escrever? A justificativa é simples, ele é viciado em palavras: “a palavra é minha âncora”. Observemos, primeiramente, essa metáfora. Âncora implica atracamento, pausa, estanque, retenção, amparo. Logo, a palavra é responsável por não o deixar se perder no vazio de seu pessimismo. Âncora está também relacionada à amada: em O mendigo, ela é “aquela que levantou âncora”. Palavra e amada passam a cumprir função de extrema relevância, preencher os vazios, tentar apagar a sensação de incompletude. Fica subentendido que o amor e a literatura completariam, portanto, nossas lacunas. Ou ainda, que, na falta do amor, as palavras tentarão cumprir esse papel. Se esta incompletude é percebida na ausência da mãe, ela é ainda mais profunda na omissão da amante, em O mendigo. Mais adiante, em O banquete, uma suposta Diotima explica a Sócrates que o desejo do amor não é só o desejo do que é belo, e sim, o desejo de procriação no belo. Esse enamorar-se iria relacionar-se a uma questão mais profunda, que é o desejo de procriação. No entender do filósofo Arthur Schopenhauer, todo ato de enamorar-se, por mais etéreo que possa parecer, está sempre atrelado unicamente a um impulso sexual (SCHOPENHAUER, 2004, p. 7). Para ele, esse desejo é, na verdade, a Vontade, e a única missão da Vontade é a perpetuação da espécie humana. Desse modo, a consciência humana é iludida unicamente para atingir a meta da procriação. Isto posto, aprendemos que a missão da Vontade “apresenta-se na consciência do enamorado sob a máscara da antecipação de uma bemaventurança infinita, que seria encontrada por ele na união com este determinado indivíduo feminino” (SCHOPENHAUER, 2004, p. 44). Essa ideia de bem-estar eterno já havia sido prenunciada por Sócrates. E é dessa perspectiva que se constrói a estrutura da personagem mendigo. O reencontro com a amada significa a felicidade plena, mais que isso, a completude eterna. A meta da procriação da filosofia proposta por Schopenhauer não irá aparecer claramente no texto da trilogia, mas revelará os efeitos dessa busca insaciável, ou seja,

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como a ilusão movimenta o narrador que busca completar-se por querer saciar um desejo. Continuando a explicar os efeitos do amor sob os homens, o filósofo diz:

Nos graus supremos da paixão, essa quimera é tão radiante que, se ela não pode ser realizada, a própria vida perde todo o encanto, parecendo tão vazia de alegria, insossa e intragável que o desgosto ultrapassa os terrores da morte, por isso, às vezes, é voluntariamente abreviada (SCHOPENHAUER, 2004, p. 44).

De mesmo modo, o mendigo afirma que ao perder sua amada, perdeu “ato contínuo a bússola o leme o prumo”. Sem ela, ele se sente amputado, “ave sem possibilidade de voo”, “vítima fatal da incompletude”. A gradação ininterrupta do narrador mostra que o desgosto apontado pelo filósofo, aplica-se ao mendigo. Toca também no que diz respeito ao suicídio, opção mencionada pelo narrador: “só a morte alivia”. Há, por fim, uma última sugestão de Schopenhauer, que o mendigo pensa em cumprir também. Diz o filósofo: “(...) a saída é o suicídio, (...) a menos que a natureza, para salvar a vida, faça com que apareça a loucura, que envolve com seu véu a consciência daquele estado desesperado” (SCHOPENHAUER, 2004, p. 44). Como sabemos, a loucura é o grande mote da segunda obra da trilogia de EAF. Portanto, é como se o mendigo cumprisse à risca, a cartilha elaborada pelo filósofo pessimista. Nos capítulos seguintes, debaterei mais profundamente sobre as questões do suicídio e da loucura. Atentando para o discurso do mendigo, notamos que ele transita em três eixos básicos: o lugar a sua volta – no caso a cidade, embaixo de viadutos –, a amada – que sumiu deixando apenas um bilhete – e Erasmo de Rotterdam – de quem traz o livrinho de adágios. Os pequenos acontecimentos diários da mendicância são relatados em detalhes, e partem das percepções de mendigo peculiar, ou seja, culto. Percebe-se pelo discurso que ele faz questão de reiterar que não é um mendigo comum, pois sua intelectualidade o separa dos demais. Os breves relatos sobre as ações a sua volta funcionam como gatilho para a segunda instância de sua fala, sobre a amada. Quando trata dela, o tempo oscila entre passado e futuro – a memória de seu amor confunde-se com o desejo de reencontrá-la. E é notório como a figura da amada enleia-se com a de Erasmo, que vai aparecendo no texto sem ser anunciado, construindo assim uma idolatria múltipla pela amada e pelo pensador humanista. Como acontece no excerto seguinte: 69

Oi, meu amado, voltei. O desvario tem dessas surpreendências reiterativas. Oi, meu amado, voltei; refrão-combustível-diário dela minha desvairança branda e lenta e gradual. Dizia que a beleza murcha como as rosas, e que os amigos passam como as andorinhas, e que a vida é incerta e que a morte nivela tudo. Sim: Erasmo de Rotterdam – educador dos educadores. Dizem que, durante uma visita à Bélgica, livrou alguém das malhas da Inquisição, argumentando, junto a amigo influente, que o inquisidor era mais digno da fogueira do que a vítima.

O período que se inicia por “Dizia que a beleza...” é justamente a parte de transição entre a figura da amada e a de Erasmo de Rotterdam. Quando usa o verbo “dizia”, com um sujeito elíptico, não sabemos a quem está se referindo, somos induzidos a acreditar que seja a amada. Mais adiante, percebemos que se trata do pensador humanista, mas a ambiguidade estrutural já atingiu seu objetivo, qual seja, o de fundir as imagens da personagem-ausente e da personagem-mentora. Esse artifício é usado diversas vezes ao longo do texto. É interessante notar também como o discurso de Erasmo ocupa, na verdade, uma função específica no que concerne o aspecto discursivo e textual da obra. Os vazios deixados pela ausência da amada são preenchidos textualmente por curiosidades sobre o humanista ou pelos seus supostos adágios. “Este livrinho de adágios é minha bíblia. Sempre que algo me inquieta abro-o ao acaso”, ele diz. Inquietar-se seria dar vazão ao sentimento de incompletude, e para que isso não aconteça, ele abre sua “bíblia” a fim de se sentir apaziguado. Os adágios são apresentados em latim, e em seguida, traduzidos ou explicados:

Agora sou isto que o senhor vê: andarilho a trouxe-mouxe cujo capital resume-se num tatame, num adagiário. Ouça: Homo totens moritur, quatiens amittit suos – o homem morre tantas vezes quantas vezes perde os seus. Veja: ela aconchegou o urso de pelúcia entre os braços do menino-borboleta.

Nesse trecho fica bastante clara a maneira como a expressão em latim serve para fazer a transição entre uma reflexão pessoal e a narração dos fatos que estão acontecendo diante do mendigo. Ou seja, o adágio serve como um “remendo” para o fluxo de ideias e, nesse sentido, ocupa o “vazio textual” a que estou me referindo. É como se a presença de Erasmo perfurasse o texto com pequenas doses de sabedoria que contribuiriam para a

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construção de um discurso mais elaborado intelectualmente, mas também mais disposto a uma percepção fragmentária e esquizofrênica. Em outros momentos, o adágio serve como “ponto de costura” para um raciocínio, não traz uma nova ideia, mas ratifica a ação narrada anteriormente. Veja-se, por exemplo, o trecho abaixo, em que dois personagens da farandolagem estão lendo notícias de jornal:

Leitura é lenta, claudicante, tropeços amiúde: mulher-molusco é vítima da miopia – além da pouca escolaridade. Não importa. Ouça: riem. Possivelmente divertem-se com previsão paradisíaca do horóscopo de um deles. Omnia esculenta obsessis – Para quem está sitiado, tudo é alimento. Sim: menino-borboleta exige que maltrapilho alcoólatra de rosto intumescido vá tossir noutra praça qualquer: está atrapalhando sua noticiadora.

A expressão latina confirma como a leitura, no caso dos dois personagens mendicantes, pode servir de consolo diante da situação deplorável em que vivem. Em seguida, já se coloca imediatamente outra narrativa de ação e mais uma vez o adágio serve como retalho nesse tecido de falas. Sabe-se que o livro de adágios de Erasmo de Rotterdam, depois de muitas revisões e edições, contava com 4.151 expressões em latim. Na narrativa de EAF, o mendigo diz que seu livrinho tem oitocentas expressões. A obra é muito rara e dificilmente encontrada. Há apenas uma edição em latim e grego com tradução para o francês, mas que ainda não está disponível para venda21. Nesse ponto, não podemos deixar de relembrar a obsessão em compilar palavras, evidente no início da carreira de EAF. No mestrado de Julia Studart, a autora chega a dizer que o dicionário de expressões raras, elaborado durante quinze anos pelo escritor, estava prestes a ser lançado. O instinto de colecionador aparece na narrativa, portanto, em forma de livro humanista. Ao todo são 35 adágios citados em O mendigo. Ao serem comparados com a edição dos adágios de Erasmo disponível na internet22, 15 constavam na obra do humanista. O que leva a crer que os outros 20 foram criados pelo próprio autor. Na sua maioria, as expressões latinas estão construídas adequadamente, trazendo poucos desvios. E as

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Segundo a informação deste site francês , acesso em 23/11/2015. 22 A edição pode ser consultada no site: < https://archive.org/details/ErasmusAdages0-985Tome1BellesLettresEtLeGracJ-cSaladinEditeur> , acesso em 23/11/2015.

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traduções que aparecem em seguida são, em geral, bastante apuradas, e coerentes com as expressões latinas23. Vale atentar ainda para o fato de o latim ser uma língua antiga e já obsoleta. Portanto, mais uma vez, é o elemento antigo que ressoa nas páginas da literatura contemporânea. Ao lermos a obra, temos a impressão de que o sentimento do pensador humanista pulsa continuamente nas linhas da narrativa. Se atentarmos para as três personagens-mentoras das narrativas da trilogia, como apontei anteriormente, fica claro também que as referências são passadistas. Erasmo e Antígona são referências do latim e do grego, respectivamente; enquanto a amiga filósofa remete a um tipo social bastante importante da Idade Clássica e hoje em dia não tão popular, tampouco respeitado como antigamente. A personagem-mentora de Minha mãe tem seus ensinamentos usados da mesma forma, com inserções muitas vezes aleatórias ao longo do texto. Eles aparecem inesperadamente no discurso, ocupando os espaços em branco, os “vazios textuais”:

Meu pai pendura quadros de minha mãe na parede do corredor de casa; seis; todos do tamanho de caixa de sapatos na horizontal; pavorosos. Atitude inexplicável: ele nunca gostou dela sequer como artista. Uma promessa de luz está sempre contida nos subterrâneos da negação – ela amiga filósofa me disse numa quase quinta. Vejo aqui desta mesa mirante com nitidez que se minha mãe fosse verdadeiramente louca pintaria melhor.

Nesse excerto, como no exemplo dos adágios de Erasmo, o aforismo da amiga filósofa é o suporte para a reflexão passar do sentimento do pai para a quase loucura da mãe. O ditado não é de fácil compreensão e pode estar relacionado tanto à negação do pai em fingir que não gostava da mãe quando realmente a amava, quanto à própria mãe do narrador, que poderia mostrar algo de luminoso em suas pinturas ainda que tivesse negado a própria existência suicidando-se. De qualquer forma, o ensinamento da amiga filósofa fica relativamente solto diante do fluxo de raciocínio, como se houvesse uma interrupção no pensamento, que na verdade é o gerador do salto temático para relembrar a loucura da mãe. É, então, o preenchimento de um vazio, do momento transitório, do branco da página. 23

Para essa verificação, contei com a ajuda generosa de Kátia Teonia Costa de Azevedo, Professora Assistente de Língua e Literatura Latina na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Segundo ela, as expressões em latim estavam quase sempre coerentes e as traduções também se aproximavam bastante de uma mais meticulosa, à exceção de alguns detalhes que poderiam ser revistos.

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O mesmo processo ocorre com a carta-despedida da mãe da amiga filósofa, e com os próprios conselhos dela. Sobre o vazio no discurso, vale recorrer a um interessante trabalho de Jacques Derrida, O cartão postal – de Sócrates a Freud e além, de 2007. Nessa obra, as cartas apresentadas por Derrida têm também a voz em primeira pessoa, como os narradores da trilogia. Um alguém anônimo fala/desabafa/delira/devaneia para um outro, não se sabe quem. E o assunto da mensagem não é o mais importante, mas antes a necessidade de se comunicar; ainda que sejamos nós leitores respondendo as próprias perguntas. No caso de Derrida, a proposta é bastante ousada, pois deixa propositadamente espaços em branco, lacunas em meio às frases. Suas cartas são também para uma amada incógnita. O trecho abaixo consegue explicitar o que estou dizendo: Um dia, há anos, você me escreveu isto, que eu o amnésico, sei de cor, enfim mais ou menos: “é curioso constatar que geralmente eu não respondo às suas cartas nem você as minhas ou nós deliramos, cada um sozinho, para nós mesmos. Esperamos uma resposta ou outra coisa? Já que no fundo não perguntamos nada, não, não colocamos nenhuma questão. A reza ”. Bom, ligo para você daqui a pouco. Você sabe tudo antes de mim você me precederá sempre. (DERRIDA, 2007, p. 26)

A falta de assinatura, de palavras, de perguntas e de respostas fica, paradoxalmente, explícita nas cartas. O vazio de Derrida aparece tanto nos espaços em branco propositais, como na necessidade de estar se comunicando sempre, na medida em que não deixa que o vazio seja sentido plenamente. Aproxima-se do que é discutido em sua obra Gramatologia, ou seja, o empenho em construir um sistema de pensamento sempre aberto, que jamais se enclausura em uma fórmula ou um método. Como explica o professor Haddock-Lobo, Derrida trabalha com “conceitos que não conceituam, que não pretendem dar conta de um sentido ou um significado fechado e que, por isso, inauguram uma outra forma de relação entre as palavras e as coisas” (2014). Assim, o discurso literário pode sempre estar inaugurando uma variedade infinita de interpretações e conceitos. E é importante entender que silêncio e fala funcionam da mesma forma, no sentido de que ambos estão sempre dizendo alguma coisa.

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O mesmo discurso desenfreado das cartas de Derrida aparecerá na fala do mendigo, tentando ocupar essa sensação causada pela falta de sua amada, mas também pela dor da existência em si, um vazio que seria comum a todos. Retomamos, facilmente, a mesma sensação do narrador moribundo que vivia em ausência, e a morbidez solitária da narradora doente. A diferença entre os narradores e Derrida é que nos primeiros não há espaço para existir o vazio – que, no caso do filósofo, ele quer comunicar. Nas obras de EAF, o vazio será ocupado ora pela fala ininterrupta, ora pelos trechos da carta da mãe-suicida da amiga filósofa, ora pelas intromissões incoerentes sobre Erasmo e seus adágios, que aparecem impetuosos, perfurando o discurso. Ou ainda pelos aforismos repentinos da amiga filósofa, ou as homenagens às atitudes de Antígona. Enfim, é a inevitabilidade desenfreada de preencher as páginas, o espaço textual. Essas mesmas lacunas já haviam sido propostas, por exemplo, por Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas, em capítulos como “O velho diálogo de Adão e Eva” ou “Inutilidade”. Nesses, os pontos deixavam exposto o branco da folha para que o leitor o preenchesse como lhe convinha. Fica evidente a ideia de que há um vazio intencional e necessário a ser exposto na linguagem literária. E, nesse sentido, os narradores pessimistas estabelecem um diálogo com a ausência provocativa do escritor realista. Assim, enquanto Derrida e Machado deixam para o leitor o preenchimento de um vácuo, de um espaço, de uma incompletude, os narradores da trilogia optam por não nos dar nenhuma chance. Isso pode ser lido como um grito de desespero ou como um aviso indesejado. Dar espaço ao vazio seria também dar espaço a reflexões ainda mais profundas e íntimas, entrar em contato com uma parte de si que eles (nós?) não querem encontrar, tampouco aceitar que existam. Daí deriva também a obsessão do mendigo em preencher com a letra “N” todos os espaços vazios da cidade – “ópio grafítico” –, tatuar em seu corpo e no tatame em que dorme, a primeira letra do nome da amada. Portanto, não só a narrativa acaba preenchida em seus vazios, como também o cenário dela, seu espaço de criação. As lacunas todas preenchidas por qualquer superficialidade, trivialidade, como produtos na vitrine de um shopping. Não há que se deixar espaço para a profundidade. Ainda que ela esteja ali, latente.

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Ironicamente, o próprio mendigo se vê como ser superficial, e a amada, representação do próprio vazio, seria essa profundidade. Criticava minha incapacidade de fazer o possível para me aproximar pelo menos do pórtico de seu lado sombrio. Agora falo dela amada imortal. Insólito e insensível; você é insólito e insensível. Silenciava-me. Sempre guardo silêncio diante do inexorável. Década depois concluo que não consigo mergulhar sequer nos subterrâneos de mim mesmo. Nadador que não se aproxima um palmo se tanto mais adiante da parte rasa do rio. Sersuperfície – sou sim. Ela, de natureza oposta, sempre foi dos aprofundamentos.

A mesma relação será construída em relação a narradora doente e seu amigo extinto. “Ao lado dele ia além da superfície das coisas”, ela diz. Mais uma vez, masculino e feminino se sobrepõem, é a busca incessante por se sentir completo. Nos desvarios da narradora, percebemos que seu amigo agia sobre ela exatamente da mesma forma que a amada sobre o mendigo. Ela também se sente incompleta sem ele por perto. Do mesmo modo sente-se amputada, pássaro de asas quebradas e se acha superficial depois de sua morte. Vive agora em ausência como o narrador moribundo. E idealiza a relação entre ela e o amigo: “Juntos, tínhamos a sensação utópica de que estávamos destinados ao eterno; de que não éramos estranhos ao mundo; de que podíamos esquecer vez em quando que toda a vida humana é constantemente abalada de um lado para o outro – entre a dor e o tédio”. Amigo e amante representam a profundidade e cumprem esse papel de aquietar a alma dos narradores. Para a narradora doente, a ausência também pode ser preenchida pela sua onipresença no espaço urbano:

Jeito é transcender-me nas andanças imaginárias lançando mão dela minha ubiquidade delirante. Para abafar meus gritos agudos, penetrantes, lanço mão dele meu delirante dom da ubiquidade caminhando nua pelas ruas desta cidade.

O vazio deixaria de ser sentido enquanto sua existência estiver por todos os lados. Nesse caso, a relação é quase divina, pois ela se sente como Deus, na medida em que poderia estar ao mesmo tempo em todos os lugares. Essa onipresença é também uma maneira de não se sentir totalmente humana, como um espírito que vaga observando a vivência alheia.

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Ela avisa que quando está próxima de seu vazio, entrega-se a este exercício, libertando-se daquilo que a prende ao seu estado humano:

Quando estou desabando nele meu próprio vazio, quando os momentos se tornam ainda mais desolados, rendo-me aos sonhos, entrego-me ao devaneio, desvencilho-me imaginosa destas amarras intensivistas, caminhando nua pelas ruas à semelhança dela Hipárquia – tentando possivelmente iludir a verdade oprimida pelo turvejar da desesperança e suas incansáveis eflorescências.

A menção à Hipárquia é totalmente coerente. Conhecida como uma das primeiras mulheres filósofas na Grécia, nos anos 300 a.C., nascida em Marôneia, irmã de Metrócles, Hipárquia sentiu-se atraída pelas doutrinas da escola Cínica, corrente que acreditava que a vida deveria estar de acordo com a natureza e pregava que se vivesse na virtude. Hipárquia se apaixonou por essas teorias e pela maneira de viver de Crates, um dos seguidores cínicos. Ela chegou a ignorar qualquer de seus pretendentes, abrindo mão da riqueza, nobreza de nascimento ou beleza dos mesmos. Obcecada por Crates, Hipárquia ameaçou seus pais, dizendo que se mataria se não lhe fosse dada em casamento. Os pais, não sabendo como agir, suplicaram a Crates que a dissuadisse de seus propósitos. Ele, tendo recorrido de todos os expedientes, finalmente, vendo que não era bem-sucedido, levantou-se diante dela e tirou toda a sua roupa, dizendo: “Eis o futuro esposo, e aqui estão os seus bens; decide, portanto, pois não poderás ser minha consorte se não te adaptares ao meu modo de viver” (DIOGÊNES, 1988, p.177). Ela aceitou prontamente, casou-se com ele e passou a acompanhá-lo onde quer que ele estivesse. Mais tarde, um dos filósofos, Teodôros, questiona seu lugar como filósofa nos espaços intelectuais da Grécia e decide enfrentá-la durante um banquete, tentando tirar-lhe a roupa. Surpreendentemente, Hipárquia não demonstra nenhum espanto ou perturbação, mantendose firme diante de todos. A referência perturbadora da antiga filósofa mostra-nos a relação que a narradora tem com a vida. Caminhando nua, ela se desfaz de tudo aquilo que é da materialidade, da superficialidade, do consumo. Viver com nada, como em Hipárquia, é precisamente o que quer essa narradora. Sua nudez é, desse modo, representativa de um modo de pensar, em que ela se desprende das condutas sociais para entregar-se ao mundo de forma mais pura, menos intoxicada pelas adversidades da socialização humana.

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Além disso, ao referir-se a Hipárquia, a narradora mostra também a inadequação da filósofa diante do meio em que convivia, que é exatamente a sensação que a doente tem. Aponta ainda para a coragem de Hipárquia diante de uma sociedade machista, regulada pelos pensamentos masculinos. Por isso também é importante notar a relevância em se colocar como narradora uma mulher, que tem como personagem-mentora também uma mulher, Antígona. Fica a mensagem importante da onipresença e força das figuras femininas diante de um mundo tão desestruturado. Em todas elas, a intelectualidade é o traço aparente que demonstraria esse poder. A narradora caminha como se flanasse, sobrevoando os espaços da metrópole, observando cenários da cidade apressurada que processa com olhar caleidoscópico, descrevendo em sequência acelerada os pequenos acontecimentos diários, mas com percepção aguçada para as sutilezas da vida humana, sem deixar de emitir juízos próprios. “Jeito é flanar, deambular imaginosa nua pelas ruas desta cidade, igual àquele estrangeiro baudelairiano que ama apenas as nuvens que passam... lá, lá, adiante”, diz a narradora. Chegamos a um ponto importante. Ela refere-se a este pequeno poema em prosa de Baudelaire:

I ESTRANGEIRO — A quem mais amas tu, homem enigmático, dizei: teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão? — Eu não tenho pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão. — Teus amigos? — Você se serve de uma palavra cujo sentido me é, até hoje, desconhecido. — Tua pátria? — Ignoro em qual latitude ela esteja situada. — A beleza? — Eu a amaria de bom grado, deusa e imortal. — O ouro? — Eu o detesto como vocês detestam Deus. — Quem é então que tu amas, extraordinário estrangeiro? — Eu amo as nuvens... as nuvens que passam lá longe... as maravilhosas nuvens! (BAUDELAIRE, 2006, p. 19)

Esse resgate nos conduz a uma relação significativa com os narradores. Ensina, primeiramente, que o fato de a narradora doente estar nua mostra seu desprendimento com 77

as relações humanas e materiais. Se o estrangeiro não se relaciona com parentes, com amigos ou com a própria pátria, é assim também que se sente a narradora e, da mesma forma, o velho e o mendigo. Sem compromisso com a moral ou os bons costumes, o forasteiro baudelairiano nega Deus. Porque seu compromisso era com sua filosofia de vida, era com ele mesmo. Percebemos que se ele se importasse com o que diriam de suas respostas, não as teria respondido. No entanto, respondeu-as como achava que deveria. Se amasse, amaria a beleza, que é subjetiva. E ele também não se importa com dinheiro, como os nossos narradores. E, por isso mesmo, seria mais simples amar as nuvens, pelo que elas têm de etéreo, fugaz, inatingível e impalpável. Ou ainda, porque delas ele faria o que desejasse: enxergaria qualquer coisa de acordo com suas vontades e possibilidades. Poderia segui-las até onde quisesse ou pudesse seguir. É mais fácil amar aquilo que não se possuirá nunca de fato. Dessa forma, as perdas não são sentidas de forma tão contundente. É, na realidade, uma forma de tentar se proteger do sofrimento. É disso que se trata para os narradores. Todavia, é a total recusa em criar vínculos que contraditoriamente faz sobressair a sensação de vazio. Quanto mais eles tentam se desligar de tudo para não ter como sentir mais as perdas, mais se percebem sozinhos, isolados, proscritos, enfim, em ausência. Dentre os narradores, a doente parece ser a que mais acumula perdas, faltas, ou vazios, por assim dizer. Em suas palavras, “vítima de uma longa interminável entre aspas litania de perdas”. Sua trajetória de prejuízos inicia-se com a perda do riso – “dentes ainda na juvenescência saíram dos quícios dos eixos; apodrecimento precoce”. Segue-se então a perda do primeiro namorado em um acidente de carro; a lembrança dos últimos suspiros da respiração ofegante da avó materna; a corda pendurada no galho remontando suicídio de tio solteirão; o câncer no intestino que leva a irmã mais velha; o Alzheimer que acaba com avô paterno; a tristeza em ver partir a afilhada anoréxica; a imagem de tio querido estropiado no IML após acidente automobilístico; o ex-namorado que morre no hospício de cirrose hepática; a saudade da extinta amiga professora; o infarto fatal de jovem amigo de sua juventude; e o envenenamento de avô enigmático por uma meretriz. Diante de tantos desastres, é possível entender porque os piores dias de sua vida foram todos. Fica o trauma das perdas e a falta de vontade de se relacionar. A ubiquidade da narradora pode ser associada também a figura do flâneur. Em seu texto, “O flâneur”, Walter Benjamin discute como Baudelaire e Edgar A. Poe entendem 78

essa personagem parisiense que nasce no século XIX. Para o filósofo, o flâneur “é um abandonado na multidão” (BENJAMIN, 1994, p. 51). Seu olhar tenta lutar contra o tédio da vida cosmopolita, agindo como detetive da cidade que o cerca, fascinado pelas pessoas ao seu redor. “Paisagem – é nisto que a cidade de fato se transforma para o flâneur”, explica o filósofo em seu livro Passagens (2007, p. 462). O vazio sentido pelo flâneur é também preenchido pelos interesses alheios que ele toma emprestado ou inventa de desconhecidos. Baudelaire, o flâneur por excelência, “amava a solidão, mas a queria na multidão” (BENJAMIN, 1994, p. 47). Portanto, não é só a narradora doente, mas também o velho moribundo e o mendigo que podem ser aproximados dessa imagem. Pois é exatamente assim que eles se sentem, proscritos e solitários, mas necessariamente imersos em um grupo. Abandonados na multidão, lutando contra o tédio da vida urbana. O movimento das galerias descritos por Benjamin passa a ser o caminhar dos transeuntes no “templo moderno” do narrador moribundo. Os diálogos que ele inventa para preencher o vazio do livro são criados exatamente pela “flanerie”. Temos o velho diante da confeitaria e o mendigo embaixo do viaduto com seu grupo de farândolas. Todos incógnitos em meio às pessoas. E a mulher enclausurada, flanando imaginosa pelas ruas da cidade se vê sozinha em seu quarto fúnebre, por isso precisa projetar-se para fora de lá, imergir em outros tantos espaços – Catedral da Sé, Rua São Bento, Cemitério da Consolação, Teatro Municipal, etc. Ela precisa sentir-se figura perdida em meio a tantas outras. É a falta preenchendo os espaços vazios da cidade e das páginas dos livros. Nesse processo de ociosidade é que se constrói a literatura. A flânerie, como explica Benjamin, “se baseia, entre outras coisas, no pressuposto de que o fruto do ócio é mais precioso que o do trabalho. Como se sabe, o flâneur realiza “estudos”” (2007, p. 496). Compreender o vazio, como veremos, tem forte ligação com a morte ou a finitude; existe, portanto, um empenho nesse sentido por parte dos narradores. Há também a necessidade de escancarar esse vazio incômodo, ainda que ele seja mascarado pelo uso compulsivo das palavras, no uso de adágios, aforismos, pequenos diálogos, placas, etc. É a palavra-retalho, atadura, que tampa buracos. A própria narradora percebe que não conseguimos manter o silêncio – o vazio – porque ele é desconfortável:

Somos de natureza atoleimada, relegamos o silêncio ao plano das coisas inúteis; não sabemos que os olhares incisivos e os sorrisos desartificiosos

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substituem satisfatoriamente diálogos supérfluos, desconsideramos o gesto a mímica o meneio; carecemos da verbosidade.

Continuamos falando ainda que seja para dizer nada, porque as palavras têm sua importância. A necessidade de não deixar os espaços vazios se notarem é tão grande que faz com que os vocábulos apareçam amontoados e em desordem, como que empilhados sem critério, perdendo significados, sendo coisificados. Esse processo é bastante aparente no olhar da narradora doente sobre a cidade, quando passa a mostrar as placas da cidade de forma arbitrária. Ela sobrepõe as mensagens e usa inclusive as letras maiúsculas para reiterar a prolixidade: “COMPRO E VENDO LIVROS USADOS

X-SALADA

CALABRESA

COM

MOLHO

MISTO

QUENTE

CHURROS

CHAVEIRO

ENCANADOR 24 HORAS RENT A CAR SEX SHOP CAÇADOS FINOS LEITURAS DE TARÔ”.

A força da palavra é também o mote do amigo extinto. Segundo a narradora doente, ele dizia que a literatura seria “uma das formas mais elevadas de dar sentido à vida, de lutar contra o absurdo existencial”. O uso do vernáculo seria, então, a arma de resistência para conseguirmos superar o disparate que é a existência. Uma experiência cheia de faltas e vazios. Em meio aos muitos diálogos entre as obras, cabe lembrar que a amada do mendigo era oncologista. Portanto, enquanto o amigo escritor exalta a palavra, a amada, lembra-nos da morte, o vazio maior, ou a experiência da plenitude. A relação que se estabelece entre esses dois personagens-ausentes assume também um diálogo entre si. Enquanto a amada percorre os vazios deixados pela morte por ser oncologista, o amigo escritor tenta se salvar do vazio por meio da palavra. Fica sempre a mensagem de morte, de vazio e de que o uso da palavra desponta como solução provisória, ou ainda, como apaziguamento para os males de uma realidade aflitiva. Existe ainda outra forma textual de apresentar esse vazio. Dá-se pela insistência no prefixo “des-”. Essa obstinação aparece de forma menos intensa em Minha mãe, mas traz alguns termos, sobretudo na parte final da obra, como: “desfecho”, “desprevenido”, “desestruturando”, “desencontro” e outros tantos. Já em O mendigo, a preferência por palavras que levem tal morfema é notória: “desvario”, “desvairamento”, “desprovido”, “desamor”, “desconforme”, “desatino”, “desinventar”, “desajeitoso”, “destrambelho”, “desesperança”, “desirmanado”, “desabando”, “descrença”, “desespero”, “desencanto”, “despreparada”,

“desvalido”,

“desconfiam”,

“desprendimento”,

“desprezada”,

“desacolhedor”, “desassossegadas”, “desaparecimento”, “descuidei”, “desarrumações”, 80

“desacreditando”,

“desfecho”,

“despertador”,

“desiludido”,

“descorporificado”,

“desarranjamento”, “desamparo”, “desfaço”, “desabafo”, “descomunal”, “destempero”, “deslembrança”, “desnecessária”, “desprendeu”, “desistência”, “desalento”, “desrazão”, “deslocado”, “desarranjos”, “desajustes”, “desleixado”, “desequilíbrio”, “desafeto”, “desinfetante”, “desabrigo”, “desgaste”, para citar algumas. Além dessas, há algumas variantes e a repetição de outras, em especial a palavra “destrambelho”. Já em Os piores dias, o recurso torna a ser bastante visível com palavras como “desencanto”, “desespero”, “desengano”, “desmesura”, “descalabro”, “desalento”, “desgraçadamente”, “descrença”, “desfecho”, “desabando”, “desolados”, “desassociados”, “desemparelhada”, “desconcertantes”, entre muitas outras. A escolha pelo prefixo é planejada e reforçada quando aparece também em neologismos como “desrazão” ou “desajeitoso”. Se procurarmos o seu significado, percebemos que a insistência é realmente proposital. No Dicionário Houaiss, encontramos a seguinte definição: de form. vern., extremamente prolífico, sobre o qual comenta J.P. Machado: “De indubitável origem latina, não se esclareceu ainda definitivamente de que palavra ou locução; há duas sugestões: dis-, para uns; de ex para outros (...)”; exprime sobretudo: 1) oposição, negação ou falta: desabrigo, desamor, desarmonia, desconfiança, descortês, desleal, desproporção, dessaboroso; 2) separação, afastamento: descascar, desembolsar, desenterrar, desmascarar; 3) aumento, reforço, intensidade: desafastar, desaliviar, desapartar, desferir, desinfeliz, desinquieto; ver o que é dito in fine de de-, sem conexão com este des-

Atentemo-nos, principalmente, para o primeiro e segundo verbete, em que se apontam as definições de “falta”, “separação” e “afastamento”. O autor faz questão de reforçar essa ausência ou falta por meio de prefixos espalhados ao longo da obra. Ainda que imperceptível no início, essa iteração vai tomando uma forma incômoda ao longo da leitura, apontando para a ferida do mendigo e da qual compactuam os leitores, a sensação do vazio, da incompletude, de não se sentir satisfeito nunca. Outro dado referente à escolha desses prefixos novamente é o fato de Evandro Affonso Ferreira ser um colecionador de palavras raras ou desconhecidas. Isso implica, obviamente, o conhecimento mais profundo do vernáculo e o trabalho atento com os prefixos. Mais um artifício formal presente em O mendigo corrobora essa hipótese do “vazio textual”. O trabalho com efeitos sonoros se associa aos significados das palavras. A 81

determinada altura, ao falar sobre sua amada, o mendigo diz: “Eu, desajeitado para quase tudo; deslocado também. Ela, ao contrário, prática, pragmática, partícipe”. Fica clara a brincadeira com as palavras, que mostra, mais uma vez, o jogo de oposições. Ele é superfície e ela, profundidade; ele é inapropriado, incompatível e ela é funcional, ativa, realista. Nele, há o vazio do prefixo “des-”. Nela, a força explosiva do fonema “p”. Essa inadequação do mendigo é presente nos outros dois narradores – o moribundo e a doente. E a palavra “insólito” que aparece seguidamente nas três obras consegue mostrar claramente essa percepção. Em diversos momentos, os narradores utilizam-na: “(...) aproximando-me mais descubro que pela insistência em repetir a palavra

INSÓLITO

está tentando se comunicar inutilmente com minha mãe”, “Por enquanto continuo vida melancólica e insólita e insossa aferrando-me à palavra feito ostra ao rochedo” (Minha mãe); “Dizia-me sorrindo: quero subir na popa de um deles, abrir os braços, gritando: Amo você, o mais insólito dos insólitos da terra do céu do mar”, “Niilista lírico – sou sim. Sempre fui. Insólito também – diria amada imortal” (O mendigo); “Panfleto insólito este aqui afixado no poste:

TRAGO SEU AMOR DE VOLTA EM

48 HORAS”, “Prazer insólito agora

neste quarto fúnebre é fazer mentalmente meu inventário das dissoluções” (Os piores dias). Insólito refletiria, portanto, essa postura que não é habitual, ou seja, algo infrequente, raro, incomum, anormal. Esse é um sentimento comum aos três narradores. Eles vivem em uma realidade que consideram distinta das outras, não se identificam nem com aqueles que estariam em situação semelhante. A repetição da palavra “insólito” ao longo dos três discursos ratifica esse desajuste dos narradores, na medida em que se colocam também como seres estranhos dentro de uma sociedade que ignora seu próprio desconcerto. Eles não são parte desse todo, são pedaços isolados, descolados e, ironicamente, parecem não fazer falta. O mendigo, por exemplo, não consegue amoldar-se ao mundo mendicante a sua volta – “Não me junto nunca-jamais aos outros maltrapilhos”. Pelo contrário, sente-se deslocado, pária, marginal na própria marginalidade. Não se permite fazer parte da farandolagem. Sua mendicância, ele diz, é voluntária e suas cicatrizes são internas. Ironiza: “Desperto jamais o ânimo do diálogo. Procuro não ser compadecido: somos todos miseráveis – cada um à sua maneira. Mantenho distância. Sou possivelmente o mais misterioso e folclórico desvalido da cidade”. Curiosamente, além de não se juntar aos mendigos, revela também certa arrogância ao diferenciar-se. Sente-se como poeta 82

incompreendido em meio à marginalidade – “Deveria ser contrário a todas as leis da natureza abandonar crianças e poetas: somos frágeis demais”. Essa mesma presunção é percebida no narrador moribundo. Em um dia chuvoso, enquanto escreve seu livro inconcluso, declara saber que o momento de sua morte chegou, e que logo um raio irá atingi-lo e matá-lo de vez. Fica à espera de um “raio personalizado”, que o tire repentinamente daquela realidade. Há uma expectativa de que o mundo tenha se modificado apenas para tirar alguém “tão importante”, diferente, peculiar da face da Terra: “Pelo semblante sereno de todos à minha volta concluo em definitivo que o cataclismo que se aproxima apressado é apenas meu. Personalizado”. Ou quando anuncia: “Garçonete ruiva confirma: sim senhor escritor, está chovendo relampejando trovejando para todos nós. Tranquilizo-me: o mundo não se personalizou de vez”. Sentir-se tranquilo, nesse caso, é apenas ironia, pois acredita ser de uma estirpe única, especial entre os outros. Mais adiante, volta a reafirmar sua exclusividade: “Descarga elétrica – semelhante àquele dispositivo pirotécnico que sai ziguezagueando rente ao chão – poderá entrar de súbito me procurando”. Da mesma forma, a doente moribunda de Os piores dias também se sente superior e inigualável, e acredita ter só para ela “reino personalizado de punição”. E, como o mendigo, a narradora “queria distância de todos”. A mãe do moribundo egocêntrico também é vista como pária, deslocada, como ele próprio se intitula. É sentimento mútuo do mendigo, do moribundo, da mãe suicida, da doente. Não se identificar com as partes a sua volta é o que faz desses mesmos personagens, indivíduos a frente de seu tempo. São poetas, artistas e, portanto, contemporâneos. Esse desajuste aparente dos narradores atende exatamente o que propõe Giorgio Agamben quando fala sobre o contemporâneo. Citando Nietzsche, o filósofo italiano explica que os verdadeiros contemporâneos são aqueles que não coincidem perfeitamente com seu tempo e, por essa mesma razão, pertencem a ele. Eles não estariam adequados às pretensões de seu tempo, e seriam, portanto, inatuais. Mas é justamente esse anacronismo e deslocamento que faz com que sejam capazes, mais do que outros, de perceber e aprender o seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 58-59). Mais adiante, completa: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. Portanto, aquele que “mergulha a pena nas trevas do presente”, “que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p. 62-64). Ao 83

passo que a narradora doente confirma: “Eu? Vida toda tenebricosa; feixe de luz solar nunca nele meu caminho; trajetória sempre nevoenta”. A imagem da escuridão, presentes nos adjetivos “tenebricosa” e “nevoenta”, tem papel fundamental, pois é dela que se aproxima a concepção de contemporaneidade. Desse modo, a estranha afinidade dos narradores com a filosofia pessimista de Arthur Schopenhauer, que poderia parecer desatualizada, passa a fazer mais sentido quando pensamos na trilogia por essa perspectiva. Os narradores seriam um aviso de que é preciso mirar o passado para conseguirmos enxergar as mazelas ainda incrustradas do tempo presente. Por isso também se justificariam as inúmeras referências a pensadores, escritores, cineastas e cantores de época distante da atualidade, que aparecem constantemente nas três obras. O resgate ao passado é a possibilidade para um encontro implacável com o presente. O jogo entre presente e passado é contínuo. Em Minha mãe, o filho resgata insistentemente as lembranças de sua infância com a mãe. Em O mendigo, um homem apaixonado relembra com saudade dos momentos inesquecíveis com sua amada. E, finalmente, em Os piores dias, uma doente terminal procura repassar seus poucos instantes de felicidade ao lado de um amigo já falecido. A busca insaciável pela satisfação, assim como acontece em nosso modelo de vida atual, será ainda mais frustrada, já que procuram a felicidade em uma instância inviável, ou seja, no passado. Mas, concordando com Agamben, entendemos que é esse mesmo desconcerto com o mundo que faz os narradores captarem-no de uma outra forma, onde a escuridão prevalece quase sempre. Por isso mesmo, os temas centrais de sua obra – vazio, morte e limbo – poderiam parecer pessimistas demais para o leitor de hoje, no entanto, são inegavelmente atuais. Sua proposta literária prima por inserir em um mundo cheio de superficialidades uma discussão mais profunda daquilo que pretende ser renegado por nós mesmos no momento presente. Ao falar de Os piores dias, Márcia Tiburi completa,

Trata-se de resistência política que se elabora como atenção e respeito ao excluído. (...) Trata-se do excluído também relativamente à forma de pensar, daquele que, perplexo com as atitudes humanas, se retira para ver melhor, para contemplar e, no ato de sua contemplação, sai da caverna,

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como o herói platônico e descobre, estarrecido, que o ser humano é feito de desespero24.

A relação entre passado e presente também é apontada por Agamben. Ele explica que entre o arcaico e o moderno há um compromisso secreto, pois a resposta do presente estaria escondida no imemorial e no pré-histórico. Portanto, pode-se dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver e, restando não vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem jamais poder alcançá-la (AGAMBEN, 2009, p. 70).

Na compreensão de Agamben, o presente seria aquela parte não-vivida de todo o vivido e a atenção a esse não-vivido é a vida do contemporâneo. Ser contemporâneo seria, portanto, voltar a um presente em que jamais estivemos. E assim nos deparamos com a seguinte questão: que presente não vivido é esse que os narradores de Evandro Ferreira poderiam nos mostrar? A relação com a poesia se dá sobretudo porque mendigo, moribundo, doente e mãe suicida não compreendem essa realidade nem as relações de afeto da maneira que são dadas na atualidade. Enquanto tentam resgatar inocuamente o que foi vivido no passado, veem o presente como essa porção não vivida, que é vista como escuridão. No caso do mendigo, por exemplo, quando fala de amor, a recorrência de personagens gregos e clássicos é aparente, o retorno à antiguidade é frequente e revela esse deslocamento. Ele e amada, diz, amavam-se “às escâncaras (...). À semelhança de Abelardo e Heloísa”; ficavam “horas seguidas debaixo da cama. Ela se metamorfoseou em São João Crisóstomo” e ele “em Demóstenes”. Repete seu refrão persistente: “ela virá eu sei é minha entre aspas teia de Penélope”. Na verdade, a amada é para ele a própria poesia, e uma poesia de tempos antigos – “Hoje sei que fui poeta despreparado para tanta poesia. Persona-poema. A-hã: estou falando dela amada que levantou âncora. Agora sou poeta moeda inútil: sem frente e verso”. Já para o moribundo, a relação afetiva parece estar no mesmo tom: “Às vezes penso que um grande amor aquietaria minha inquietude. Poderia ser à semelhança de Abelardo e 24

O trecho se encontra em resenha feita para a Revista CULT sobre Os piores dias de minha vida foram todos e pode ser encontrado no site: , acesso em: 07/01/2017.

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Heloísa”. Ou seja, o amor idealizado aparece como o salvador, a solução das inquietações da alma dos poetas clássicos. Por fim, essa referência aparece também na última obra, Os piores dias, mas com uma explicação mais detalhada sobre os amantes:

Lembro-me ato contínuo delas cartas de Abelardo e Heloísa. Penso no amor impossível dos dois amantes, na lenda segundo a qual ao abrirem a sepultura de Abelardo para lá depositarem o corpo de Heloísa encontraram incorrupto o cadáver do filósofo – de braços abertos esperando quem sabe a chegada da amada.

A história desses dois amantes, retomada nos três livros, passa-se na França do século XII e está entre as mais tristes histórias de amor. Heloísa havia sido aluna de Abelardo, até que se apaixonaram e começaram um relacionamento secreto. Ao descobrir o segredo dos dois, o tio de Heloísa, Canon Fulbert, manda que castrem Abelardo e é o que se sucede. Abelardo então vira monge, enquanto Heloísa vai para um convento. O amor dos dois, entretanto, será celebrado por meio de muitas cartas que trocavam entre si, mesmo não podendo nunca mais estar juntos. Um fato curioso é que o discurso nas cartas era regado de discussões sobre filosofia e teologia. A história dos dois aproxima o sentimento amoroso da intelectualidade. Além disso, é, em última instância, um amor que se transmitiu pelas palavras – tão caras à obra de EAF – na medida em que se trocavam as inúmeras correspondências. A mesma acepção de afeto é feita nas narrativas da trilogia. É um amor idealizado, que se instaura em um terreno de intelectualidade prolífica. E é o amor impossível, não realizado, do campo das ideias, pois a parte buscada encontra-se ausente. É, assim, um modo de amar já obsoleto na cultura contemporânea ocidental. Assim, ao remeter a uma história da Idade Média, a relação amorosa do mendigo indica que ele está ultrapassado no que diz respeito aos relacionamentos atuais, que são mais flexíveis, mais fugazes, menos comprometidos e se projetam basicamente para uma busca constante de prazer, principalmente, o físico. É fundamental, portanto, entender como essa relação com a incompletude e o vazio, apesar de parecer uma questão anacrônica – porque se apresenta soldada em discursos tidos como obsoletos – é discussão manifesta em uma literatura que agora se constrói em meio a infinitas reflexões e teorias sobre o “eu”. A trilogia, ao colocar em cena três narradores-personagens-limite, expõe também a fragilidade de uma sociedade hipócrita e 86

superficial que lança mão de todos os subterfúgios para não ter que entrar em contato consigo mesma, ignorando aquilo que está a sua volta e que lhe pareça desnecessário como os próprios moribundos, mendigos e doentes. Nesse sentido, tudo que se relaciona ao consumo pode ser associado a esse desespero de fugir do vazio. É o que aponta Bauman, em seu Amor Líquido. Ao dissertar sobre o homo sexualis, reitera a necessidade de se relacionar do homem contemporâneo. Ainda que tenha conquistado cada vez mais sua individualidade, sente-se sempre incompleto e insatisfeito. Isso porque o vazio parece querer despontar o tempo todo e é preciso que ele seja suprimido. Para Bauman, as formas de que o indivíduo se utiliza para acabar com essa insatisfação são inerentes ao modo de viver na contemporaneidade. Do sexo ao celular, ele assinala também o gasto descomedido. A questão do vazio existencial está obviamente atrelada ao consumismo exacerbado, como explicitou Bauman. O capitalismo, na medida em que vende esse conceito de que a felicidade pode ser alcançada por meio da posse de objetos que garantem curar as dores da existência humana, produziu uma nova forma de escravidão invisível, que faz do homem um obstinado e cego perseguidor do prazer. Torna-o um consumidor compulsivo e perenemente insatisfeito. Na sociedade de consumo, “a promessa de realização de um desejo passa de um objeto a outro, e o que sustenta essa situação é a expectativa de que no novo objeto o consumidor encontrará aquilo que supostamente lhe falta” (BENEDETTI, 2015, p. 132-133). Ou seja, na ânsia de não sentir esse vazio existencial, o homem busca no consumismo, no individualismo e na falta de limites os pretextos para seu tamponamento. O sexo descompromissado e o consumo desenfreado são aproximados, sendo recursos dos quais os homens se aproveitariam nessa busca incansável pela completude. Para o sociólogo Bauman, nossa cultura consumista favorece esses comportamentos na medida em que está o tempo todo oferecendo produtos prontos para o consumo imediato, que geram um prazer passageiro, uma satisfação instantânea e resultados que não exigem efeitos prolongados (BAUMAN, 2004, p. 21). Ele também remete ao shopping, notando que os consumidores não compram mais para saciar um desejo, mas sim por impulso, pois o desejo leva tempo para crescer e amadurecer. E esse fator, segundo o sociólogo, parece irritante à sociedade de hoje. Ele conclui: “As agonias atuais do homo sexualis são as mesmas do homo consumens. Elas nasceram juntas. Se um dia se forem, marcharão ombro a ombro” (BAUMAN, 2004, p. 67). 87

Portanto, o anacronismo do mendigo se dá, na verdade, na maneira em como ele busca preencher sua sensação de incompletude eterna. A mesma a que todos os seres da contemporaneidade sentem. Aquela a que nos remeteu Platão, pelo discurso de Sócrates, a mesma que nos mostrou Schopenhauer quando disserta sobre a Vontade, o desejo. No entanto, “a mudança que há entre arcaico e moderno está apenas na plasticidade da ilusão”, elucida Marcia Tiburi. Pois, ela completa,

continuamos supliciados, mas acreditando agora nas marcas, no dinheiro, nos ornamentos, contentes no campo da “patetice humana”, cegos para o poder da Vanitas, a vaidade que serve apenas para enganar a morte. E que, certamente, não a engana25.

A busca do mendigo é diversa do modo de viver atual, concentra-se em um único amor, idealizado, isento das tecnologias, aparelhos eletrônicos e outros equipamentos que estimulam as relações efêmeras e imediatistas assinaladas por Bauman. Não é de se estranhar que em um mundo de consumo, de produção em massa de equipamento e lixo, ele se sinta como resto, sobra, ruína. A vida consumista promove sempre a novidade e a variedade, as coisas e pessoas tendem a ser cada vez mais descartáveis. O que acontece com os narradores desajustados caminha justamente em processo inverso. Pois eles se seguram nas suas marcas pessoais íntimas, permanecem na sua escassez de recursos usando os mesmos bens, o mesmo tatame, a mesma mesa-mirante, o mesmo quarto-fúnebre; querendo e idealizando as mesmas pessoas. Eles são os excluídos da sociedade de consumo. Logo, são vistos como fracassados, inadequados e incompetentes. Basta retomar o narrador moribundo de Minha mãe e sua percepção do próprio declínio. Enquanto olha atentamente os outros no shopping, procura esquecer a própria ruína – “aqui desta mesa-mirante observo o anoitecer dos outros para esquecer-me do próprio crepúsculo”. Já em Os piores dias, a doente ao imaginar-se na cidade apressurada de seu quarto-sepulcro, consegue visualizar esses “seres-sobras”, essa “gente-escorralho”. E conclui, “Doloroso demais destino manejar nosso leme regular nossa marcha na direção das coisas restantes”. E, como os outros, ela tenta esquecer a própria desgraça, “não aprecio os próprios despojos”. 25

O trecho também se encontra em resenha feita para a Revista CULT sobre Os piores dias de minha vida foram todos e pode ser encontrado no site: , acesso em: 07/01/2017.

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Os três narradores são, portanto, conscientes de que são sobras. Ser mendigo, decrépito ou estar morrendo de câncer são as dores inefáveis, que precisam estar excluídas da completude universal, não podem fazer parte de uma totalidade, não dessa que gostaríamos de exultar. São também seres incompletos porque, ao se sentirem rejeitados, como sobras, sentem o difícil vazio da existência. Essa dor atinge aqui seu limite máximo, porque estão despojados de toda e qualquer trivialidade que lhes faça ficar alienados, e a força da palavra ressoa como a esperança derradeira. Eles não têm mais parentes, não têm mais amigos, não possuem bens, não têm mais objetivos, como o “estrangeiro” a que se referiu Baudelaire. Não há nada que, efetivamente, prenda-lhes à vida. Caminham na nudez metafórica que a alma pode lhes impingir. Nudez que aparece, como vimos, de forma tão clara para a narradora doente. Por isso também estão autorizados a flanar pelas cidades sem nenhuma preocupação em atender as condutas sociais e cosmopolitas. Nada mais lhes assombra. Diz a narradora:

(...) cultivo imaginosa a arte da flanância, tentativa de me levar para além de mim mesma; de preencher minhas horas ocas: caminhar para me apaziguar. Impassível e entorpecida e alheia ao espanto, nada mais me apanha de rebate. Tornei-me indiferente às surpreendências; vejo televisores ligados, em todos os lugares possíveis inimagináveis – restaurantes e lojas e hospitais e farmácias e funerárias – de mútuo acordo com a parvoíce humana.

E esse é um artifício crucial para entender o funcionamento desses narradores. Ao desprenderem-se totalmente da vida mundana, entendem que só lhes resta olhar ou imaginar o mundo a sua volta escancarando as misérias alheias, percebendo a alienação incontrolável pelas telas das tevês. Ao mesmo tempo, sabem, intimamente, que são como os outros, todos eles miseráveis. E, então, podemos dar um passo adiante e entender que não só por seu status social baixo, que poderia ser visto como os restos de uma sociedade, mas também por identificar a figura do poeta com a parte rejeitada deste mesmo âmbito, o mendigo atenta para o fato de que a maioria – e não só eles, restolhos incômodos – não quer ser/ver/ter essa parte execrável, é preciso escondê-la de si mesmo, olhá-la de longe, vê-la nos outros. O inferno são os outros, diria Sartre. O mendigo concorda: Sim: neste segmento não manifesto variedade da maioria; somos quase todos adeptos do voyeurismo cataclísmico. É excitante ver o mundo 89

desabando-se. Desde que seja do outro lado da calçada. Ver, em vez de ser, escombros. Sei que há dez anos sou restos de meu próprio desmoronamento. Ruínas de mim mesmo.

A consciência de que ele é sua própria ruína ou desmoronamento faz do mendigo essa figura limítrofe, a qual caminha lado a lado com a riqueza dos objetos de consumo e das relações que se medem antes pela quantidade que pela qualidade, mas que ignora os traquejos sociais necessários para se estar nessa sociedade. Moribundo, mendigo e doente são o doloroso resultado de uma dinâmica social possivelmente equivocada. A lição que aprendemos, todavia, é que não se pode ignorá-los. Pois a metrópole funciona como metáfora da vida e nos avisa constantemente daqueles “recantos esconsos” que gostaríamos de esquecer. Dessa forma, como o narrador moribundo de Minha mãe e da doente de Os piores dias, o mendigo não consegue se adequar a esse novo estilo de se relacionar, rápido, frenético, descartável. Tem consciência disso: “Choro sempre. Lágrimas se refazem com a lembrança. Outro dia transeunte perguntou-me se estava faminto. Não, moço, choro de saudade – respondi-lhe. Seguiu indiferente: fome de amor não comove”. É, enfim, da linhagem dos poetas românticos que idealizam uma musa. Caminha sozinho nesse universo de ilusão. A amiga filósofa, o amigo extinto e Antígona, as personagens-mentoras das narrativas, são, depois das personagens-ausentes, os segundos pilares que sustentariam a esperança de uma vida melhor. Na verdade, o abandono a que são relegados é a verdadeira doença que os maltrata. “Minha oncologista irá salvar-me deste câncer que, eufemísticos, chamamos de abandono”, diz o mendigo. O câncer não é só a doença da narradora, é também tudo aquilo que destrói, que massacra, que suprime o que ainda resta de bom. E, nesse sentido, as figuras mentoras surgem como os pontos de resistência, que podem mostrar o caminho para que não haja desistência ou cansaço, pois a mensagem final deve ser a de que ainda há algo que se possa fazer. Em O mendigo, há ainda outro momento em que vemos resquícios de uma esperança, quase perdida entre os escombros da cidade apressurada. Na narrativa dos viadutos, o mendigo identifica-se com o pássaro de asas quebradas, que não pode voar. Para ele, já não resta possibilidade de salvação. Mas há duas personagens importantes: a “mulher-molusco” e o “menino-borboleta”. São os “seres-caramujos”. Antes de examinálos, vale fazer uma breve reflexão sobre a aproximação das personagens com os animais. 90

Além de fazer referência clara à obra de Ovídio, As Metamorfoses, revela a sobrevivência instintiva a que essas figuras se submetem. Vale lembrar também a citação da primeira obra da trilogia, em que David Hume diz que, para o universo, a vida de um homem não valeria mais do que a de uma ostra. Nesse sentido, seres “humanos” ou “caramujos”, somos todos o mesmo resto para a natureza. A narradora de Os piores dias nos relembra essa relação entre humanos e bichos. Explica: Bairro até as bordas replenados de cães. Solidão da cidade grande faz quase todo mundo entranhar-se no afeto pelos animais domésticos. Não gosto. Tempo todo guardei neutralidade fui indiferente. Acolhi com repugnância bicho de todos os naipes – asco congênito. Tal engulho foi pouco a pouco criando corpulência na direção dele ser humano (...)

Para ela, bichos e pessoas causam rejeição, mas, curiosamente, não podem ser colocados no mesmo nível. Em Os piores dias há, inclusive, certa hierarquização em relação aos elementos da natureza. Remetendo a ostra de David Hume, as associações costumam se identificar com o estado de espírito da personagem. Por exemplo, quando a narradora estava na presença de seu amigo extinto a relação mostra força, imponência: “Ao lado dele amigo escritor extinto sentia-me leoa-marinha”. Em seguida, quando percebe a ausência dele, associa-se a algo mais rudimentar, mais insignificante: “agora alga, apenas alga”, ela diz. Ou ainda, “sem ela sua amizade me transformei num ser estranho, numa dessas conchas fósseis não classificadas em nenhuma espécie conhecida”. Também se entende como pássaro sem asas ou ainda como um gato descuidado quando trata da sua relação com a vida – “Vida toda vivi a semelhança de gato incauto que engole toda a linha que ele mesmo desenrola”. “Vida toda assim: enrodilhado em mim mesmo; homem-caramujo”, diz o velho narrador, reforçando a imagem híbrida entre humano e molusco. Nas escalas de hierarquias, o molusco só não seria mais inferior que uma alga, ou uma ostra. Mas o molusco tem a capacidade de esconder-se sobre si mesmo, ensimesmar-se, encontrar em si a própria casa ou, ao menos, habitá-la. Tem também a possibilidade de estar sem pensar, o que seria um calmante para as angústias humanas do velho moribundo. O ser viscoso começa a parecer mais interessante sob esse aspecto. Porque, inconsciente do mundo, parece não sofrer, ignora a finitude e as desgraças que fazem do ser humano um sujeito tão passível de sofrimento. Em seguida, o moribundo constata: “Ultimamente me pareço mais com homem-parede revestido de papel-palavra”. Agora, estamos diante da impassibilidade 91

máxima, do inorgânico. Ser inanimado, que se protege pelas palavras, formando com elas seu escudo. “Às vezes penso que nasci apenas para escrever; não nasci para viver; escondo-me atrás das palavras”, ele diz. A necessidade de abster-se na sua relação com o mundo é muito mais uma desesperada busca pela cura das dores humanas que uma possibilidade verdadeira para sua existência. Não há como existir abstendo-se. Mas ele quer existir sendo palavra. Isso, em certos momentos, parece mais possível. Vale acrescentar que no entendimento de Arthur Schopenhauer, humanos e animais, assim como a natureza e o mundo de uma forma mais ampla, fazem parte de uma existência contínua e sem fim, sendo uma só unidade. Para o filósofo, tanto os bichos como nós temos a manifestação da vontade, ou seja, ambos “querem”, “desejam”; a diferença é que o animal sente e percebe, enquanto o homem pensa e sabe. No entanto, todos os seres vivos são unos com o mundo, impõe-se em nós o sentimento de que o mundo não estaria menos em nós do que nós nele. Assim, passamos a entender que as referências aos animais na trilogia fazem parte de um conceito mais profundo de existência, ainda que pessimista. Debruçarmos sobre essas aproximações passa a ser importante para uma melhor apreensão da obra de EAF. Na medida em que entendemos essa noção de unidade, conseguimos ver como a construção das personagens combinadas com bichos nada mais é que uma expressão da compreensão de que seres humanos, ou não, têm uma existência insignificante diante da complexidade que é o universo, de que a existência só é válida quando centrada no próprio eu, pois se colocada em xeque diante de um contexto mais abrangente, certamente, será vista como inútil e desimportante. Mas isso não significa que os narradores irão se furtar à tarefa de narrar. Isso é inevitável. Isso é o que os faz sentir relativamente vivos. Assim, veremos que nessa selva de pedras e asfalto, uma moça enclausura-se pesarosamente numa caixa de papelão – “Caminha arrastando-se feito lesma. Tristeza possivelmente transformou-a num molusco”. Por sua vez, um garoto que também faz parte da farandolagem ainda tem a gana da infância que espera manifestar-se com o quebrar do casulo, há nele certeza de uma felicidade futura – “Veja: borboleta. Sim: pousou agora sobre o ombro daquele menino”. A relação entre a mulher-molusco e o menino-borboleta é um caso à parte na narrativa. Revela, entre outros aspectos, essa necessidade humana de aplacar a incompletude. Novamente apontando para o contraditório, esses dois personagens se envolvem de maneira oscilante, que varia entre a raiva, o ódio e a complacência, o amor – 92

uma “nolens volens”, como classifica o narrador, ou seja, um “não querer, querendo”. O que vemos é uma tentativa desses “seres-caramujos” de se completarem um no outro. Mutilados, restos, monturos, tentam, à sua maneira, suprir uma carência vital. Seus gestos são simples e, quase sempre, contraditórios. Às vezes, ficam juntos lendo jornal, outras, discutem. Dividem a comida, cuidam um do outro, mas também se afastam, brigam. Há uma insistência do menino em deitar-se no colo da mulher, o que ela, à princípio, aceita. Constrói-se uma relação quase maternal. Em seguida, vê-se a ruptura. Isso porque o menino invariavelmente tenta morder as partes íntimas da mulher, e ela acaba rechaçando-o. Essa relação dúbia, mal configurada, de limites oblíquos, será melhor tratada quando estivermos no capítulo sobre o “limbo”. Por hora, cabe-nos atentar para a necessidade do encontro que essas duas personagens estão transmitindo. O “menino-borboleta” especialmente projeta sobre o livro certa resistência às decadências que estão em torno de si e perpassam o olhar do narrador mendigo. A juventude afronta de seu jeito pueril as perspectivas desiludidas do mendigo e da sociedade. Enquanto luta para sobreviver, o menino acredita encontrar o amor nos recônditos da miséria. Não desiste. Em determinado momento, chega a trazer para a mulher-molusco um presente: Veja: menino-borboleta trouxe pequeno vaso de girassol para a mulher molusco. (...) Amor enigmático do casal tem o mistério do cogumelo que emerge lúdico do fundo do esterco. Atitude inesperada: mulher-molusco atira de súbito girassol ao chão – despedaçando-o com os pés. Possivelmente não se ilude com esse fio de Ariadne em forma de flor. Menino-borboleta fica perplexo. Farândola toda espera reação enfurecida do ofendido. Mas este surpreende mostrando que seu amor sobrepuja a fúria retirando-se estoicamente.

A oposição se dá em muitos aspectos. Primeiramente, na idade dos amantes, pois o menino é muito mais jovem que a mulher-molusco. A escolha dos animais que os representam também é significativa. Enquanto a mulher é simbolizada por um animal de corpo mole e mucoso, que se arrasta para se locomover, o menino, por sua vez, é associado a um inseto voador, ágil, de cores vibrantes, a própria metáfora de infância e juventude. É como se a vida não o tivesse ainda corrompido. Sob outro aspecto, no trecho acima, podemos contrapor o esterco e o cogumelo lúdico, que nos mostraria por meio dessa imagem a persistência de uma infantilidade iludida, em que haveria uma vida teimosa, em meio a dejetos, rejeitos, miséria. A flor no asfalto, de Drummond.

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As atitudes das personagens são, como sempre, antagônicas: enquanto ele a presenteia com um girassol, simbolizando mais uma vez a vida, o sol, o renascer, a mulhermolusco destrói-o, pisa-lhe em cima, como para extinguir qualquer vestígio de amor e esperança de uma puberdade ignorante. Ainda assim, o menino não se rebaixa, sai com firmeza e coragem. E essa coragem, narrada como em um roteiro cinematográfico, merecerá a atenção do mendigo. O narrador nos mostra aos poucos que, além de simbolizar a esperança, o meninoborboleta tem também poder no grupo de mendicantes. O mendigo chama-o de “influente infante” e percebe que ele é respeitado pelos outros mendigos. Além do efeito de sonoridade, o novo apelido faz-nos refletir sobre a palavra “infante”. O termo significa menino ou criança, mas também carrega o sentido de filho de reis, porém, não herdeiro do trono, em Portugal e na Espanha. Infante seria ainda o soldado de infantaria. A todas essas acepções junta-se o adjetivo “influente”, que, por seu uso, é muito associado a gestos e ações políticas, atos, portanto, de poder. Percebemos, assim, que o trabalho com as palavras em relação às personagens, assim como aquelas com o uso de prefixo “des-” mostram que o interesse do autor em trabalhar a estrutura e efeitos semânticos e sonoros, como acontecia de maneira mais enfática no início de sua carreira, não foi deixado de lado. Por outra via, nesse labor literário foram inseridas discussões de caráter mais profundo, desse modo, revelando uma obra de caráter mais maduro. O “influente infante” é o filho ilegítimo dos reis, o soldado da infantaria, o líder do grupo, mas é, antes de mais nada, infantil, pueril, criança. É a novidade que pode renascer do esterco a que o mendigo se refere. A construção da personagem menino-borboleta seria, então, a contrapartida a esse mundo de miséria em que vagam “seres-caramujos”, escondidos, rastejantes, sujos e maltrapilhos. A analogia aqui é também de outra ordem, mais latente. Esses “seres-caramujos” são as partes esquecidas de nós mesmos, essa que não queremos ter contato, o vazio que não se pode pôr em cena, pois assusta. A esperança deposita-se em uma criança por sua ingenuidade em relação ao mundo. Os velhos e adultos já estão perdidos nas sobras e no monturo. Resta-lhes apenas, fazer poesia, para aqueles que podem fazer poesia. Para os demais, resta que se embriaguem até morrer, ou que se droguem, pelas televisões, pelo consumo desenfreado, pelas relações efêmeras, supérfluas, destroçadas, arruinadas.

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Entendemos que essa sensação de ausência é uma parte muito íntima, dolorida e pouco olhada, mas que deve ser abraçada para que possamos compreender o que de fato é ser humano. Até porque a ausência sobrevive intrínseca aos seres humanos. Na sua perspicácia peculiar, o poeta Carlos Drummond de Andrade já havia entendido que é necessário darmos conta desse vazio, dessa ausência. E, diferentemente do que propõem os nossos narradores pessimistas, esse sentimento passa a ser visto como um alento para a existência, na medida em que o assimilamos e aceitamos. Em poema para a poetisa Ana Cristina César, que se suicidou aos 31 anos, ele nos avisa:

Ausência Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim. (ANDRADE, 2015, p. 21)

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Reafirmando o que se disse no início desse capítulo, a proposta literária da trilogia de EAF recai sobre a concomitância de opostos – amor e ódio, vazio e completude, presente e passado, lacunas e preenchimentos, esperança e desistência, e assim por diante. Espero ter conseguido demonstrar até aqui que a incompletude ou vazio ao qual me referi pode se dar em inúmeros aspectos propostos nessas três obras, desde pelas opções formais do texto até pela escolha narrativa, em que o conteúdo da mensagem passa a ser também importante. Na trilogia de EAF, a literatura desponta como uma voz esquecida, mas que diz muito sobre o que vê e respira. O processo do fazer literário aparece como resposta aos 95

anseios e crises existenciais dos narradores. Por fim, é importante entender que ao pensar sobre um vazio existencial, os narradores estão em diálogo estreito com a morte. É disso que tratarei no próximo capítulo.

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2. COMO SE LIVRAR DA MORTE

Até aqui nos foi possível elucidar sobre algumas partes importantes na construção dos narradores e na estrutura das obras. Cabe-nos agora analisar uma questão pungente nos três livros: a morte. Mais uma vez, a filosofia pessimista de Arthur Schopenhauer contribui para algumas compreensões. Para ele, a morte é o gênio inspirador ou a musa da filosofia. Ele acredita que dificilmente teríamos filosofado sem ela. A razão humana seria a geradora dessa certeza assustadora, culminando em nossa maior angústia, a angústia da morte. Afinal, o homem caminha todos os dias para ela com pleno conhecimento, e tal consciência faz que a vida atinja certa forma melancólica. Filosofar sobre a morte é a esteira condutora das obras de EAF. E, nesse percurso, atingimos um estágio de pessimismo contraditório, pois ao mesmo tempo em que os narradores negam a vida – na medida em que entendem, assim como Schopenhauer, que viver é estar em sofrimento – não conseguem desvencilhar-se dela, tentando de alguma forma fazê-la perdurar. Schopenhauer acredita que em toda parte há uma luta infatigável, um combate obstinado pela existência e pela vida, que trabalha com todas as forças corporais e espirituais para se afastar de todos os males e perigos que podem irromper a qualquer momento. O que se ganha nessa luta, entretanto, é a própria existência e a vida mesma. Daí advém também um sentimento de frustração. Há ocasiões em que a existência fica sem dor dando chance ao tédio, que chega ao fim rapidamente com novas aflições (SCHOPENHAUER, 2012, p. 141). Segundo o filósofo, o tédio pode ser encontrado mesmo por detrás da miséria e acontece até com os animais mais inteligentes, pois, ele diz:

(...) é uma consequência do fato de que a vida não tem nenhum conteúdo verdadeiro e genuíno, mas se mantém em movimento apenas através da carência e da ilusão: tão logo isso cessa, torna-se evidente a completa pobreza e o vazio da existência” (SCHOPENHAUER, 2012, p. 141).

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Essa será a conclusão a que chegarão os narradores. Perceber a inutilidade da existência é perceber também esse vazio. Assim, a morte ficará à espreita como que anunciando o fim desse sofrimento. Enquanto ela não chega, há que se manter em “movimento” e isso será feito pelos narradores sobretudo por vias literárias. Assim, a morte irá aparecer nos discursos a todo instante. Em Minha mãe, por exemplo, o narrador de oitenta anos repete insistente que não consegue se suicidar porque é medroso. Ao recuperar sua história de vida, resgata a morte da mãe e, em seguida, a do pai. Já em O mendigo, o narrador fica indeciso entre cometer ou não o suicídio e reitera, como no primeiro livro, que possivelmente não tem coragem para tal. Ainda nesta segunda obra, assistimos à morte de um outro mendigo, um bêbado. Olhar os miseráveis embaixo do viaduto onde está o mendigo é vivenciar a própria espera de mortes lentas. E quando chegamos a Os piores dias, deparamo-nos com a voz da narradora que padece de um câncer em seu estágio final, esperando, portanto, sua morte iminente. Na sua narrativa, aprendemos sobre a morte do amigo extinto e mais uma série de perdas de amigos, parentes e namorados, cada um com uma morte distinta, como vimos no capítulo anterior. Portanto, a “não existência” ou a possibilidade da “não existência” é pulsante na trilogia. Para o velho narrador de Minha mãe, “não há nada mais conciso e objetivo e implacável do que ela – a morte”. A obra se abre com o refrão categórico “A vida é ruim; eu sei”, para em seguida entendermos que o narrador não irá cortar a teia da própria vida como sua mãe porque é medroso, sempre foi, não tem coragem de finalizar o ato, prefere assistir à morte a sua espreita, cada vez mais próxima. Resta-lhe, enfim, desejar que seu falecimento chegue logo. Já a narradora doente afirma que “esperar o ápice da obscuridade, a morte, é a mais profunda das agonias”. Ela e o mendigo também declaram sentir medo, medo de quase tudo, inclusive da morte. A filosofia de Schopenhauer fala também sobre esse receio. Explica que embora as opiniões e os tempos mudem, a voz da natureza permanece a mesma e sempre anuncia claramente que a morte é “um grande mal”. Para a natureza, portanto, morte significa aniquilação. “E que a morte é algo sério, deixa-se já inferir do fato de que a vida, como cada um sabe, não é nenhuma brincadeira. Nada temos de melhor a merecer do que ambas” (SCHOPENHAUER, 2004, p. 62), esclarece o filósofo. E, nesse aspecto, os narradores de EAF estão plenamente de acordo: a vida é difícil, ruim, mas todos merecem tanto a vida 98

quanto a morte. Schopenhauer afirma também que o temor da morte não é exclusividade dos seres humanos, pois existe independente de todo e qualquer conhecimento, afinal, os animais possuem esse medo, ainda que não conheçam racionalmente a morte. E conclui que esse “temor da morte à priori é, entretanto, justamente apenas o reverso da Vontade de vida, que nós todos somos” (SCHOPENHAUER, 2004, p. 62). Logo, os seres-caramujo, pássaro de asas quebradas, mulher-molusco e menino-borboleta, ainda que em sua consciência limitada de animais, temerão também a chegada da morte. Disso tratará também Freud quando formular seus conceitos a respeito da pulsão de vida e morte. O psicanalista fará, na verdade, novas leituras para algumas das mais importantes ideias de Schopenhauer. Os dois tratam a sexualidade como fator importante para a manutenção da espécie humana. Um trata-a de maneira filosófica, enquanto o psicanalista a retoma com uma roupagem mais científica. Mais importante é a necessidade que ambos veem no complexo entendimento da relação morte e vida. Se em Schopenhauer entendemos que a morte é a meta final de todo ser vivo, em Freud essa associação é explícita quando tratarmos de pulsão de morte. Portanto, podemos entender que as pulsões de vida tendem a conservar as unidades vitais existentes, enquanto as pulsões de morte representam a tendência fundamental de todo ser vivo a retornar a um estado anorgânico, como já postulara filosoficamente Schopenhauer. Freud compreende também que a Natureza pode ser considerada eterna, já que mesmo sendo destruída ela retorna a cada ano (FREUD, 1980). No entanto, como explica o psicanalista em seu artigo “Sobre a transitoriedade”, há uma angústia humana em perceber que fruir a beleza da natureza é perceber também sua transitoriedade, e isso pode causar certa antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza. A compreensão de estarmos vivendo como seres transitórios e frágeis nos coloca então em certo estado de luto constante, uma vida como sofrimento, como havia postulado Schopenhauer. Nas narrativas da trilogia, essas percepções entre a fruição e o luto aparecem também oscilantes. Há momentos em que vemos a força vital da palavra e outros em que há a necessidade de destruição como forma de aceitação de nossa transitoriedade. Ou seja, embora a morte seja desejada pelos narradores, ela não será tão rápida, e eles sobreviverão ainda muitas páginas. Nesse ponto, chegamos a importante relação que se constrói entre vida e palavra no texto. Em Minha mãe, fica bastante claro que estamos tratando de um processo metalinguístico, já que o narrador está sempre anunciando na obra seu próprio processo de 99

escrita. Aprendemos que ele tem necessidade de “escrever para não morrer”. E entendemos que a palavra representaria metaforicamente o sangue ainda nas veias de um ser vivo. Logo, se calarmos as palavras, estancamos o sangue, e presenciaremos a morte, ou seja, o fim da obra. A leitura atinge então um movimento mais interessante, na medida em que se faz necessária para certa forma de vida que renascerá a cada vez que pegarmos o livro e lê-lo. O que presenciamos é um processo singular em que o ato da leitura é mais que partícipe de uma intenção literária, é a própria vida que se dá ao livro e ao texto. É como se vivêssemos e morrêssemos a cada vez que lemos a obra, dado que a vida aqui é metonimicamente representada pelas palavras. Logo, findar a leitura é presenciar a morte. A linguagem será sinônimo da existência. É mais uma vez a sutil homenagem que se faz a Machado de Assis, em seu Memórias póstumas de Brás Cubas. O defunto-autor sobreviverá pelas palavras como os narradores. “Será minha primeira obra concluída;” – diz o velho narrador de Minha mãe – “primeira a ser possivelmente publicada. Póstuma”. Em Minha mãe, as palavras são a argamassa necessária para a construção do narrador. E, dessa forma, vida e morte se misturam e se confundem. No trecho abaixo, é possível perceber como palavra e narrador estão amalgamados, são uma coisa só, existem como equivalentes:

Palavras chegam cansadas; desiludidas talvez; possivelmente tristes também. Vocábulos preparando o funeral do escritor; verbos preparandose para o luto iminente. Sei que eles se acomodam tímidos-titubeantes neste bloco de rascunho. Filhos sussurrando em volta do pai num leito de morte. Foram muitas décadas de convivência. Aperfeiçoamentos mútuos. Uns lapidando os outros. Sempre respeitando a alternância do diapasão para beneficiar a afinagem do quarteto. É compreensível que autor e palavra e verbo e vocábulo todos estejam cabisbaixos neste momento de despedida.

Palavras, vocábulos e verbos formam com o escritor-narrador um quarteto simbiótico. O escritor só passa a existir conforme nascem as palavras, vocábulos e verbos no bloco de rascunho. São muitas décadas de convivência, ele diz. Entretanto, as palavras, vocábulos e verbos só existem porque o escritor usa-as, dá-lhes vida. Chegamos, enfim, a um círculo vicioso, à fusão vital, a dependência mútua, a unicidade necessária entre escritor e escrita. Em outro momento, o velho narrador explica que o verbo seria como o filho que não teve, e as palavras, a família que perdeu. Cada página concluída seria como

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se tivesse desenhado a própria árvore genealógica. O texto é ele, e ele é o texto. A mensagem é clara: é preciso sobreviver pela linguagem. Maurice Blanchot pode contribuir com essa discussão. Em “A literatura e o direito à morte”, o pensador retoma Hegel para explicar como a literatura só passa a existir no momento em que o indivíduo é impelido a colocar sua obra no papel. O escritor só de fato saberá de seus talentos e se conscientizará deles se os colocar na obra. Ou seja, ele só existe a partir da obra. Blanchot explica: “Suponhamos a obra escrita: com ela nasce o escritor. Antes não havia ninguém para escrevê-la; a partir do livro, existe um autor que se confunde com seu livro” (1997, p. 295). É exatamente esse processo que acontece com os narradores e suas obras. Relaciona-se com a conhecida acepção proposta por Roland Barthes em seu famoso texto “Morte do autor”, em que ele afirma que

(...) a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda a identidade, a começar pela do corpo que escreve (BARTHES, 2004, p. 57).

Porque, na verdade, a escrita e o escritor passam a ser uma coisa só, difundem-se nos seus próprios limites. Isso também o queria Mallarmé, quando explicava que era a linguagem que falava, não o autor. Por isso, sua poética consistia no esforço de suprimir o autor em proveito da escritura. Porque “(...) todo texto é escrito eternamente aqui e agora” (BARTHES, 2004, p. 61), o escritor nasce junto com seu texto e numa fusão de conceitos como aponta Blanchot. Esse procedimento, entretanto, para ser completado necessita de um outro, ou seja, um leitor. Sem a leitura, nem obra nem escritor existem. A coexistência, portanto, é ainda maior do que a postulada pelo narrador quando esse diz ser construído de palavras, vocábulos e verbos. Diz Blanchot:

É então que começa uma experiência desconcertante. (...) a obra desapareceu, ela se torna a obra dos outros, a obra em que eles estão e ele não está, um livro que toma seu valor de outros livros, que é original se não se parece com os outros, que é compreendido porque é o reflexo dos outros. Ora, essa nova etapa não deve ser negligenciada pelo escritor. Como vimos ele só existe em sua obra, mas a obra só existe quando se torna essa realidade pública, estrangeira, feita e desfeita pelo contrachoque das realidades. Assim, ele está na obra, mas a própria obra desaparece (BLANCHOT, 1997, p. 295). 101

A literatura pede a participação do outro para que possa existir, pois anterior a isso, a literatura encontra-se em ausência, descobre-se como o próprio Nada. Porque constatamos que para o escritor existir é necessário que sua própria obra, como foi antes idealizada e pensada, desapareça. E ela vai se desfazendo à medida que os leitores a preenchem com suas histórias de vida e seus repertórios pessoais, por isso Barthes reitera: “o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura” (BARTHES, 2004, p. 62). A escrita, portanto, deve ser admirada como uma grande performance. É a própria inauguração da vida que se instaura nas páginas brancas do papel. É a compreensão de que a literatura é um caminho possível, uma passagem que diz sobre nós mesmos e sobre nossa relação com o mundo. Para além disso, as diversas coexistências – o escritor, a obra, os narradores e os leitores – nos livros de EAF são fundadas em uma atmosfera de musicalidade. Como diz o velho narrador, alternam o “diapasão para beneficiarem a afinagem”. Há aqui um chamado para a questão sonora do texto. Não só porque há o trabalho com assonâncias, aliterações, onomatopeias e anáforas, mas também porque remete a uma musicalidade e ritmo incessantes, aparente não apenas formalmente, mas também como um conteúdo inerente à obra. Em primeiro lugar, as palavras servirão como notas musicais para uma cantilena imperativa, uma ladainha de vida, que precisa ser repetida insistentemente para que a existência não se extinga. Por isso, a obstinação por determinadas expressões ao longo das três obras. Na primeira, o narrador repete: “A vida é ruim; eu sei”, ou ainda, “É domingo. Chove choro”, “Tenho medo”, “sei-sinto-pressinto”. Enquanto na segunda, além de repetir em forma semelhante a expressão “sei sinto pressinto”, o refrão transforma-se em “Ela virá, eu sei”, ou ainda, “somos todos igualmente miseráveis”. Para a musicalidade do quarto fúnebre, a narradora, depois de passear nua pela cidade, retoma seu ponto de partida repetindo: “Agora aqui”, ou “Venha, luminosa Antígona, seja minha carpideira: também estou sendo enterrada viva”. O narrador de Minha mãe conclui inequivocamente: “Quando chega a decrepitude, a própria vida é uma ladainha”. Em seguida, há a imagem persistente da palavra como escudo protetor, como instrumento que o blinda e segura o narrador a sua existência terrena. A repetição dessa ideia também soará como uma resistência sonora. Em Minha mãe, são vários os momentos em que isso acontece: “Penoso trabalho este de fazer do verbo escudo; do vocábulo 102

esgrima contra o desejo de cortar a teia da própria vida”, “Escrever para não morrer; lavrar para não se matar”, “Ainda não cortei a teia da própria vida porque me seguro nas palavras; o vocábulo é minha âncora”, “O verbo é minha trincheira”, “Quem vida toda se escuda nos vocábulos para não ser influenciado pelo desejo de se matar não encontra espaço para o riso frouxo”, “Mas ainda tenho as próprias palavras que são meu ponto de apoio; ainda tenho meus vocábulos-couraça que me blindam o desejo de partir exabrupto”, “O vocábulo é meu espantalho”, entre outros. Essa fixação por ecoar uma ideia acaba trazendo certa monotonia ao texto, como se repetisse um refrão obsessivo. Assim, constrói-se uma cantilena singular, que busca atingir um ritmo e uma sonoridade quase que constantes, mas que desvelam, ao mesmo tempo, a angústia de situações conflitantes. São as palavras que compõem a melodia da morte, da loucura, da espera. Diz o velho narrador:

Embora consumido pela melancolia os verbos as palavras os vocábulos mesmo desestimulados escoam pelas frestas da tristeza. A poucos instantes da chegada de meu último suspiro continuamos juntos; morreremos entretecidos compondo cantiga de ninar para sempre.

O narrador moribundo não se furta em usar ainda aliterações pertinentes como: “Chove choro”, “Melancólico medroso medíocre”, “manhã de minutos imóveis”, “poeta pego pelo Parkinson”, “abraço-abrandamento”, para citar algumas. Já em O mendigo, além de sinalizar constantemente a ideia da loucura que se avizinha, podemos ver outros jogos sonoros interessantes, como: “vi-vivi”, “Além de patético, hipotético” ou “tatame testemunha intermitentes tosses”. Por fim, é possível retomar também alguns efeitos em Os piores dias, tais como: “aves de aviso vero”, “espaventada assarapantada” e “somsombrio”. Além disso, veremos que essa musicalidade melancólica e monótona está bastante associada a dois elementos da cena musical estadunidense: Billie Holiday e à lenta música “My funny valentine”, cantada por Chet Baker. Em Minha mãe, a cantora é lembrada como trilha sonora de velório:

Vejo desta mesa-mirante meu pai chegando na sala. Aproxima-se da vitrola com um disco na mão. Billie Holiday. Trilha sonora do velório. Odeio Billie. Todos que circundam o caixão reprovam gesto sacrílego do viúvo. Não entenderam a homenagem.

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A despedida da mãe louca e suicida é associada à canção de Lady Day, como também era chamada a cantora. A música acaba remetendo a uma lembrança ruim. A melancolia da artista remete a imagem triste da mãe suicida. Era também costume da mãe cantarolar “My funny valentine”:

Agora vejo minha mãe esfregando meu corpo com material fibroso untado com sabão. Reclamo: dói muito. Ela diz que preciso ir me acostumando desde já com as dores. Canta com dificuldade My funny valentine: está bêbada.

A lembrança para o narrador deixa-o aflito, pois associa a canção à dor, acaba por odiar também a música de Chet Baker. Já para o mendigo, a cantora lembra sua amada: “Vez em quando, nessas noites insones, cantarolo alguma canção de Billie Holiday. Gostávamos de ouvir Billie. A-hã: cantora melancólica. A vida é melancólica”. Ou idealiza o reencontro com a mesma trilha sonora: “Depois deitaremos no chão da sala e ouviremos Billie”. Chet Baker também aparece em O mendigo inúmeras vezes com “My funny Valentine”: “Foi bonito ver aquele saxofonista, dois anos atrás, tocando numa esquina My funny Valentine para senhora elegante, octagenária (...)”. Ou numa propagação de muitas vozes: “Chet Baker multiplicado por mil sobre as nuvens cantando My funny Valentine só pra mim”. No último suspiro de vida, em Os piores dias, a narradora conclui: “Pudesse falar, diria ao médico que acaba de abrir a porta, moço ainda, olhar inexperiente, que quero ser cremada ao som de Billie Holiday”. E fechamos o livro com a voz rouca da cantora, encerrando para sempre a dor de uma morte lenta e sofrida. Mas há algum resquício de esperança em meio a tanto pessimismo. Um episódio interessante, em Minha mãe, resgata a musicalidade em sentido um pouco diverso:

Meses atrás ouvi senhor judeu na mesa vizinha dizendo sorrindo íngale íngale para seu decrépito interlocutor. Achei bonito-sonoro. Dias depois num momento oportuno perguntei ao mesmo cavalheiro o significado de tal palavra; criança – ele me respondeu. Desde então, sempre que nos vemos pronunciamos o mesmo vocábulo quase que em uníssono. Esta deve ser a única amizade-íngale existente no mundo entre dois quase octagenários.

A sonoridade da palavra estrangeira desperta a curiosidade do narrador. Esse fato gerará nele o impulso de conversar com um dos judeus que sempre vê ao seu lado. 104

Conseguindo o significado da palavra, o velho moribundo parece ficar ainda mais satisfeito e conclui ter uma “amizade-íngale” com seu amigo judeu. Esse é mais um dos poucos momentos da narrativa em que o otimismo ou a amizade podem ser evocados como sentimentos de prazer. A referência à criança pode nos fazer lembrar do episódio do menino-borboleta que, de uma outra forma, também remetia a sensações agradáveis e de esperança. É novamente a figura infantil e pueril que dá conta de trazer uma ponta desse sentimento confiante para a narrativa. Mais adiante, o narrador moribundo retoma: (...) íngale – diz agora sorrindo meu outro amigo judeu. Íngale – correspondo sem também abrir mão do sorriso. Criamos espontâneos sinal cuja palavra nos leva por alguns instantes para dezenas de décadas atrás. Íngale. É sonoro ser criança em iídiche.

O narrador se deixa levar, portanto, por curtos instantes de prazer, de uma juventude que talvez fosse possível resgatar, de uma amizade que talvez fosse possível construir. Mas logo se percebe de volta em sua realidade interna hostil e admite: “Quando esse amigo passa por mim valendo-se desta senha aproprio-me ato contínuo de uma criança que nunca fui”. Percebemos, portanto, que há, para além da cantilena vital das palavras, uma trilha sonora incessante, lenta, fluida e que em tudo remete ao clima de tédio, sofrimento, melancolia e pessimismo, tão próximos do pensamento schopenhaueriano. Os romances e o fluxo de consciência dos narradores, nesse sentido, se aparentam com a música, pois ambos organizam um tempo interno. A própria trajetória de vida da cantora americana negra, Billie Holiday, afina-se com o olhar pessimista dos narradores. Filha de pais adolescentes, nunca foi realmente criada por eles. Aos dez anos de idade, foi abusada sexualmente e, mais tarde, acabou se tornando prostituta. Descoberta por acaso por John Hammond quando cantava em um bordel, Lady Day nunca teve nenhum preparo musical, cantava instintivamente. Sua voz parecia trazer à tona os anos de sofrimento. O sucesso durou pouco, pois foi consumida pelo álcool e pelas drogas. Morreu com apenas 44 anos de idade, vítima de cirrose hepática, num hospital de Nova York – vigiada e algemada na cama por policiais do departamento de combate ao narcotráfico26. A triste história da cantora tem a toada

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As informações foram retiradas do site da Carta Capital: , acesso em 11/12/2016.

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necessária para dar, com sua voz áspera e lúgubre, a impressão sonora adequada aos textos da trilogia. A história de vida de Chet Baker também não é muito diferente. Mesmo tendo conseguido estudar trompete quando jovem, não demorou muito para o americano de Oklahoma encontrar-se com as drogas, em especial, a heroína. Por conta delas, acaba perdendo todos os seus dentes em uma briga, como acontece com a narradora de Os piores dias. O episódio acaba influenciando na carreira do cantor, levando-o à derrocada. Por fim, tem uma morte suspeita ao cair de uma janela de um hotel de Amsterdã, em 198827. A voz rouca de Billie Holiday e o canto sussurrante de Chet Baker conseguem trazer a atmosfera de sofrimento que é coerente com a melodia literária proposta. Mostram ainda uma resistência dolorosa que se ocupa em desgostar de viver, mas sem a força de conseguir se matar. Com esse ritmo obsedante, tanto no estilo de escrita que proporciona e insiste na musicalidade, como nas referências musicais melancólicas, os narradores persistem. Persistem e existem. Persistem e existem pela escrita sonora, que performa e traz esse tempo interno das reflexões. Além dessa aproximação com a musicalidade, nos vários sentidos que acabei de apresentar, veremos que o processo de escrita quando relacionado à morte acaba por revelar outras possibilidades. Em Minha mãe, a força vital das palavras passa a entrar como tema na medida em que se fala sobre o próprio ato da escritura, ou seja, da metalinguagem. Compreendendo que o livro é sua manifestação de vida, o velho narrador chega ao limite em sua opção pelo metalivro. Não basta que ele disserte sobre seu fazer literário, é preciso prolongá-lo para outras instâncias. Então, passa a imaginar na própria obra uma possível coautoria: “Não sei como terminar este livro. Pensei agora pouco em aproximar-me dos amigos judeus para pedir que um deles ficasse de olho em mim para narrar em detalhes minha morte”. Mas ele desiste, acredita que será motivo de chacota. Em seguida, parte para outro exercício, não menos mórbido: narrar as várias possibilidades de morte que seriam contadas pelos judeus. No primeiro, um cavaleiro todo vestido de negro jogaria seu laço sobre ele. Num outro, subiria como uma nave espacial perfurando inexplicavelmente o teto. O seguinte diria que 27

As informações foram retiradas de artigos da Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo: e , acesso em 11/12/2016.

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viu quando ele deixou cair a caneta sobre a mesa, estando nitidamente pálido, deixando a cabeça pender vagarosamente sobre o bloco de rascunho. Um último dirá que o viu usando um punhal para perfurar o próprio ventre. Por fim, percebe que todo esse empreendimento imaginário é apenas a prática natural da literatura, e que será impossível enganar a morte. Mas o texto só morrerá quando morrer o escritor. E conclui retomando a homenagem à Brás Cubas: “Esta prosa nasceu conscientemente póstuma”. O narrador, compreende que ele próprio é o livro, e a fusão entre ele e o texto já atingiu, portanto, um estágio mais intenso. Para continuarmos essa reflexão metalinguística em Minha mãe, selecionei um trecho que me parece extremamente significativo, no sentido de que traz diversas possibilidades de leitura, além de abrir para uma outra compreensão importante também presente na terceira obra, Os piores dias. Por essa razão, será um pouco mais extenso:

Este não-existir para sempre me deixa espavorido. Daqui a pouco serei absolutamente nada. Coração bate alvoroçado quando permanecemos na frente dessa impossibilidade de tergiversar-se diante do inevitável desaparecimento total. Quando a morte se avizinha impossibilita mesmo à distância nossa capacidade de abstrair. É implacavelmente mnemônica. Tenho medo. Deveria ter morrido criança ainda – no momento seguinte a dissolvência dela primeira hóstia consagrada. Morreria possivelmente anjo. Medo pelo jeito procurando vivificar meu sentimento cristão primevo. Mas sei-sinto-pressinto que não há nada lá. Somos possivelmente seres-éter: nossa vida é nosso frasco. Tenho medo; vida toda fui medroso; tempo quase todo vivendo assustado escondendo-me atrás das palavras. O vocábulo foi meu escudo; o verbo minha trincheira. Escrevia para fortalecer-me diante dos sustos da vida. Agora escrevo para diminuir o impacto da chegada da morte. Livro-arrefecimento. Primeiro de minha obra inacabada-inédita com começo meio e fim. Quase não resisti a tentação de encerrar esse texto com a palavra frasco: SOMOS POSSIVELMENTE SERES-ÉTER: NOSSA VIDA É NOSSO FRASCO. Seria poético talvez. Mas acho quero viver algumas páginas. Acho que estou sentindo-me pela primeira vez escritor in totum; escritor num leito de morte sobrevivendo à custa da palavra-oxigênio.

No início desse trecho, o narrador retoma o medo da morte. A isso, ele soma também uma outra questão, o Nada. “(...) Serei absolutamente nada”, ele diz. Essa “não existência” que o aflige, como mostrei, é abordada por Schopenhauer. Nesse assunto, o filósofo traz mais uma análise interessante. Para ele, afligir-se sobre o tempo em que “não mais se será” seria absurdo. Isso porque não nos afligíamos no tempo em que ainda “não éramos”, “pois é indiferente se o tempo, não preenchido pela nossa existência, relaciona-se como futuro ou passado àquele que ela preenche” (2004, p. 67), explica Schopenhauer. 107

Afinal, quando somos, a morte não é, e, quando a morte é, não somos. No seu ver, portanto, o tema da morte é relativo e pode ser tido como mero processo de uma inteireza eterna. Isso porque ele acredita que o nosso verdadeiro ser é imortal, e que “o ser vivente não sofre com a morte nenhuma aniquilação absoluta, mas continua a subsistir em e com toda a natureza” (SCHOPENHAUER, 2004, p. 77). Ou seja, as consciências se acabam junto com as vidas individuais e a essência, ou a espécie, é que sempre permanece. E daí depreendemos, enfim, que o momento em que não somos morte é aquele momento que estamos simbolicamente em um frasco, como anuncia, em letras maiúsculas, o velho narrador. O frasco mencionado pelo narrador seria, então, o tempo em que somos, já que “nossa vida é nosso frasco”. E ele se aproxima da filosofia de Schopenhauer quando explica que somos “seres-éter”. Éter, no sentido de que somos essa substância indetectável, sem massa e sem volume que existe em todo o universo e o tempo todo, um tempo obviamente não cronológico. Em outro momento, o velho narrador reitera, “Vida quando se apaga vai para o mesmo lugar da luz quando desligamos o interruptor”. Ou seja, ela existe em algum lugar e é perene. Assim, nossa compreensão de vida seria aquela porção pequena de nossa existência etérea em que preenchemos um frasco, um frasco que é preenchido pela nossa existência enquanto somos seres viventes, orgânicos. Entender que o tempo em que somos é o tempo em que estamos no frasco é compreender também a existência em círculo. Como explica Schopenhauer, o círculo é o autêntico símbolo da natureza, pois ele representa o esquema de retorno. É através dessa consciência que atinamos também para uma existência permanente, já que sendo éter, continuaríamos o sendo ainda que fora do frasco. Assim, explica o filósofo, “todos e cada um que quer existir, existe continuamente e sem fim”, todas as espécies de todos os gêneros já se renovaram muitas milhares de vezes e ainda assim permaneceram os mesmos. Relembrando os personagens-caramujo do mendigo e da narradora doente, podemos pensar que não fará diferença se somos ostra ou homem. A existência humana ou animal é de um mesmo universo. No fundo, diz o filósofo, “somos unos com o mundo, muito mais do que estamos acostumados a pensar” e por fim, “impõe-se a nós o sentimento de que o mundo não está menos em nós do que nós nele, e de que a fonte de toda a realidade reside em nosso 108

interior” (SCHOPENHAUER, 2004, p. 100-101). Logo, se ao morrermos seremos nada, finalmente, podemos aceitar que nós somos desde sempre um Nada. E então percebemos a beleza do discurso do velho narrador, pois é capaz de revelar essa existência contínua, eterna, universal e etérea. Ser nada, acabar em nada. No entanto, ele não consegue desvencilhar-se do sentimento humano pungente de pavor e aflição. E compreendemos que o fato de o narrador constatar, como Schopenhauer, essa subsistência indestrutível não o exime de carregar consigo as sensações desesperadoras da possibilidade da morte, pois “quando a morte se avizinha impossibilita mesmo à distância nossa capacidade de abstrair”, explica o velho moribundo. Ele se aflige como qualquer outro que vivesse em ignorância, porque percebe que não somos feitos apenas da nossa concepção filosófica e existencial, mas, muito antes disso, somos feitos de sentimentos, de um mundo interno, e é essa a dinâmica mais orgânica que nos move no frasco da vida. Em outro momento de Minha mãe, o narrador reafirma “vida só é tolerável quando desligamos amiúde o pensar vivendo ao sabor do vento. Abstrair para não sucumbir”. Quer dizer, ainda que tenha a consciência ou a crença de uma existência como a proposta por Schopenhauer, ele percebe que é preciso tentar viver em abstraimento e voltar para um fenômeno mais superficial da existência, de outro modo, sucumbirá ou permanecerá em estado de luto, como antes anunciara Freud em seu texto sobre a transitoriedade. Logo, todas as percepções mais mundanas que são relatadas não só pelo velho narrador, mas também pela narradora doente e o mendigo, são, na realidade, dissimulações para eles mesmo, já que em seu íntimo percebem o mundo e a existência de uma forma distinta da maioria. Compreendem o eterno retorno e concluem que somos e sempre seremos nada. Por isso mesmo, existe certa ironia em dizer que deveria ter morrido “no momento seguinte a dissolvência dela primeira hóstia consagrada”, pois assim “morreria possivelmente anjo”. A religião ou a fé serviriam apenas como esse aparato superficial para a fuga de uma compreensão mais profunda. Essa crença religiosa estaria antes voltada ao campo das superficialidades, de um intelecto que usamos para servir na persecução dos pequeninos fins cotidianos, e não de um entendimento mais obscuro e misterioso. Está relacionada também a uma ingenuidade, já que o moribundo acredita ter tido um “sentimento cristão primevo”.

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O tema da divindade ou religião como possibilidade para a compreensão da morte é também um fator a ser levado em consideração. Em um dos diálogos telepáticos, o velho narrador imagina-se enviando um bilhete para um senhor decrépito solitário: “ah meu bom velho não se mate antes de refletir sobre a possibilidade da inexistência de Deus; sobre a possibilidade do Nada absoluto que nos espera do outro lado (...)”. Sua crença obviamente não é em deus nenhum e ele ressalta a possibilidade de que deve haver esse nada absoluto. O pensamento é coerente com o do mendigo: “Acho que Ele – em sua sagrada inexistência – consegue jeito nenhum ajudar ninguém”. Nem mesmo os ensinamentos de seu mentor Erasmo de Rotterdam fazem-no mudar de opinião:

Num debate, quando Lutero pediu: Deixai Deus ser Deus, Erasmo corrigiu: Deixai Deus ser Bom. Estivesse presente discordaria de ambos, implorando: Deixai Deus em paz nela sua sagrada inexistência.

E a narradora assegura: “Sou irreligiosa; que cada um resolva sem auxílio ou influência externa seus desarranjos suas inquietações seus fantasmas”. Há essa ironia, que se reafirma ao longo das obras, em mostrar que as crenças religiosas nada mais são que artifícios ingênuos usados para tentar acalentar as angústias humanas. “Fé inabalável apenas na palavra no verbo no vocábulo”, o narrador moribundo completará, mais adiante. E Schopenhauer concorda: “A palavra é a fonte de luz que destrói o véu de Maia” (SCHOPENHAUER, 2004, p. 93). Para filósofo, a vida é sofrimento, algo insuportável, pesado demais. A única saída é o asceticismo, dos budistas e dos santos, ou a arte. Em nosso caso, a saída é a arte pelas palavras, a literatura. Como explica o velho narrador, escrever o ajuda a sobreviver, mas fundamentalmente são as palavras, verbos e vocábulos, as ferramentas necessárias para a construção de infinitas realidades, possibilidade que a literatura oferece, a experiência da vida se fará pela linguagem. “Jeito é pavimentar de ilusão essa estrada de inevitável fatalidade”, completa o mendigo. A arte irá despontar então como alternativa para suportar o sofrimento e o medo constante de nossa suposta finitude. Pois é pela linguagem literária que podemos dar vazão a esses sentimentos mais angustiantes. Georges Bataille explica que “as artes – ao menos algumas delas – evocam incessantemente diante de nós essas desordens, esses dilaceramentos e essas degradações que toda a nossa atividade tem por fim evitar” (BATAILLE, 2015, p. 65). Assim, a arte literária seria esse momento em que nos 110

permitimos entrar com contato com as partes mais obscuras, menos conhecidas, mas que ali residem, inevitavelmente. No entanto,

Por menos peso que tenham, em última estância, esses elementos que queremos eliminar da nossa vida, mas que o desvio das artes traz de volta para ela, eles não deixam de ser signos da morte: se rimos, se choramos, é que, por enquanto, vítimas de um jogo ou depositários de um segredo, a morte nos parece leve. Isso não significa que o horror inspirado por ela tenha se tornado estranho para nós: mas que, por um instante, nós o superamos (BATAILLE, 2015, p. 66).

Os narradores escrevem, narram, falam ou discursam porque precisam sentir a morte de maneira mais leve, ainda que essa seja uma sensação passageira. Mas também para livrarem-se provisoriamente dela, para evitar pensar nela o tempo todo. Entretanto, o artifício caminha no sentido inverso, pois a morte é substanciada a cada página, e ao invés de afastarem-se dela, percebemos que ela passa a acompanhá-los. A morte, que seria, em verdade, o próprio Nada, é a compreensão mais suprema da existência; por isso é preciso falar tanto dela, distrai-la, distrair-se e essa missão é feita com e pelas palavras. Assim, cabe ao poeta ou escritor criar pela literatura essas inúmeras alternativas, desvendando aos poucos uma verdade mais complexa, retirando lentamente o véu de Maia mencionado por Schopenhauer. Também porque no entender do velho narrador, as palavras estariam de alguma forma protegendo-o da morte: “Escrever para esquecer de envelhecer; escrever para se arrastar tatibitate na vida feito este domingo que se arrasta no calendário. O vocábulo é minha redoma, as palavras são meu anel de Giges”. E mais uma vez, é preciso que retomemos Platão. Com a famosa fábula, o antigo filósofo nos fala sobre o senso de justiça. Diz o mito de Giges que após uma tempestade e um tremor de terra, o solo onde ficava o tal pastor se abriu. Admirado pela fenda, Giges desceu até o buraco feito e lá encontrou um cavalo oco. No interior dele, havia um cadáver que nada mais tinha senão um anel de ouro nas mãos. O pastor pegou-o e rapidamente percebeu que o anel tinha o poder da invisibilidade. A partir daí praticou uma série de ações, por vezes censuráveis, até chegar ao poder como um soberano (PLATÃO, 1971). Quando traçamos o paralelo proposto pelo narrador, em que as palavras seriam o seu anel de Giges, notamos novamente a importância e o poder que elas transmitem para 111

ele. A possibilidade de fazer-se invisível para poder julgar livremente e, melhor ainda, não ser julgado pela sociedade é o que faz a palavra, e a literatura consequentemente, mais potente. Isso porque, sem as amarras sociais a que estão relegados a grande maioria dos seres humanos, o narrador pode falar abertamente suas opiniões, seus medos, seus desejos, sem precisar usar do senso de justiça e moral tão enfaticamente abordado por Platão. Não importa se ele é justo ou injusto. Importa que ele se sente livre, ao menos no campo da literatura, para bradar aos quatro cantos aquilo que poucos ou ninguém gostaria de ouvir. É a mesma noção evocada pelo flâneur, com a diferença de que agora ele não é apenas anônimo, mas é também invisível. Relação semelhante pode ser feita quando tratamos da ubiquidade da narradora de Os piores dias. A ela também é designada a invisibilidade, pois transita imaginária pelas ruas de São Paulo. “Gosto de me imaginar parada nua na rua com meu anel imaginário voltado para a palma da mão – apropriando-me da mesma invisibilidade de Giges”, ela afirma. Ninguém a percebe, ninguém a julga e, como o moribundo, ela está livre para cultivar seus medos e angústias, fazer seus julgamentos, de forma verborrágica. Enfim, chegamos a relação íntima entre morte/vida, o Nada e a palavra, em que o escritor sentado à mesa da confeitaria imagina-se num leito de morte, sobrevivendo “à custa da palavra-oxigênio”. E os “N”s tatuados, desenhados e encravados do mendigo estão ali para dar esse mesmo aviso. Somos Nada. “Uma vez, menino-borboleta perguntoume por que N e não R ou L ou F. Respondi-lhe, dissimulado: N lembra-me o Nada”, diz o mendigo. Daí a necessidade de os narradores classificarem-se como niilistas. Niilistas por perceberem a inutilidade da existência, o caminho do eterno retorno. “Deveria ter morrido criança ainda”, afirma o velho moribundo. E mais adiante retoma, “Natureza mostraria sapiência poupando-me do dilema não me dando vida”. Ou ainda, “O mundo continuará girando sem mim; sem minha mãe; sem Hipócrates; sem Demócrito”. E esclarece que os “Deuses-da-fertilidade são muito pouco criteriosos”, pois nem seus pais deveriam ter vindo. Se assim fosse, ele próprio não teria nascido. Explica que foi alimentado “com leite de mãe niilista” e que o pai “lia pela mesma cartilha”, até que finalmente constata, prenunciando o título da terceira obra: “Não sei porque não deixaram na porta de casa placa dizendo que OS PIORES DIAS DE NOSSAS VIDAS SERÃO TODOS”. Em O mendigo, o raciocínio é o mesmo e percebe como a natureza acaba por impor um papel importante nesse desaparecimento necessário dos seres viventes: “Hoje sei que a natureza é sábia providenciando infalível nosso desfazimento in totum. Sábia em desfazer. 112

Menino borboleta, mulher molusco, por exemplo, não deveriam ter sido feitos”. Vendo tanta miséria ao seu redor, o mendigo parece não se conformar com a existência. Olha para a mulher-molusco e conclui: “Mais uma criatura que não deveria ter vindo. Sim: ao mundo. Vida desnecessária, sem sentido, débâcle congênito”. As reflexões dos narradores podem ser aproximadas dos pensamentos existencialistas e niilistas de Antoine Roquentin, de A Náusea (2015), de Jean Paul Sartre. Em um diálogo com a personagem Autodidata, o protagonista diz: – O senhor está alegre – diz o Autodidata com ar circunspecto. – É porque estou pensando – digo rindo – que aqui estamos, todos nós, comendo e bebendo, para conservar nossa preciosa existência, e não há nada, nada, nenhuma razão para existir (2015, p. 128).

As angústias de Roquentin são certamente associáveis a dos narradores. Suas percepções em relação ao mundo acabam gerando nele o que chama de “náusea”, que nada mais é que a constatação perturbadora de que não há uma razão evidente para nossa existência – “Agora eu sabia: as coisas são inteiramente o que parecem – e por trás delas... não existe nada” (2015, p. 111), ele diz. E pensar aparece mais como uma perturbação do que um exercício filosófico:

(...) se pelo menos pudesse parar de pensar, já seria melhor. Os pensamentos são o que há de mais insípido. (...) Por exemplo, essa espécie de ruminação dolorosa: existo – sou eu que a alimento. Eu. O corpo vive sozinho, uma vez que começou a viver. Mas o pensamento sou eu que o continuo, que o desenvolvo. Existo. Penso que existo. Oh! (2015, p. 115)

Sartre, ao explicar os valores existencialistas, diz que a priori a vida realmente não tem nenhum sentido, é um nada. Depende de nós, portanto, darmos um sentido a ela, pois “não há outro universo senão o universo humano, o universo da subjetividade humana” (SARTRE, 1978, p. 21). Para o filósofo, “o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo” (1978, p. 6), só depois ele se define. Os narradores da trilogia, no entanto, não conseguem captar essa necessidade de definição e permanecem indeterminados nas suas inquietudes. Agora é possível entender melhor a concepção niilista retomada por todos os narradores. Como aquela citada de Os piores dias, em que a narradora julga que era melhor que ela e muita gente “não tivesse havido”. Mais adiante, mencionando Sófocles, a mesma 113

reitera: “Autor grego magistral que deixou Antígona ao sabor dos ventos, disse que, de tudo, o melhor é não ter nascido; se nascimento houve, o melhor é regressar o mais depressa possível ao lugar de onde se veio”. Outra vez, a ideia do retorno. Afinal, se essa existência é mesmo eterna, algumas talvez não precisassem ter seu direito ao frasco, já que vêm com tanto sofrimento. No círculo de eterno retorno da vida, esses seres viventes não fazem nenhuma diferença, apenas estão somando um maior sofrimento às diversas passagens na Terra. O mendigo consegue resumir bem a relação mais sincera que os narradores têm diante da morte: “saíram do estatuto de seres desnecessários para possivelmente a condição do nada absoluto”.

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O tema da morte aparecerá ainda em outra forma: o suicídio. O narrador moribundo explica desde o início que não conseguirá cortar “a teia da própria vida”. Já a narradora doente não parece ter essa alternativa, visto que está quase morta na cama do hospital, portanto, à espera de sua hora fatal. Resta apenas que o mendigo pense sobre essa possibilidade. Mas sua questão parece ser mais complexa. Primeiramente, ele supõe que a despedida da amada é o gatilho para iniciar seu processo de loucura. Portanto, em primeira instância, é seu estado mental que está em perigo. A loucura, no entanto, não se instala imediatamente, conservando-o por mais tempo nesse estado de sofrimento. Assim, o suicídio surgirá como uma perspectiva de redenção e de destruição da dor. Já tendo malogrado a existência, percebido que todos os seres são miseráveis – “cada um à sua maneira” – e aventado a possibilidade de estar enlouquecendo, o mendigo parte para o que parece ser sua última alternativa. A primeira vez em que o suicídio aparece é perceptível a resistência do narrador. Ele comenta que um pombo acabava de ser esmagado no asfalto pelo pneu de um carro. Mais adiante, formula, “Mas não posso acreditar nisso: poderei terminar (de propósito) feito aquela coisa ali que minutos atrás ainda era pombo”. E antes de nos debruçarmos 114

sobre o tema do suicídio, atentemos para a sua forma textual e para as provocações inferidas nela. Sabemos que o mendigo está se dirigindo a um interlocutor a quem chama diversas vezes de “senhor”. Toda a narrativa simula um diálogo com esse personagem ausente ou, por extensão, com o leitor. Logo, é curioso notar a escolha lexical e gráfica para anunciar a possibilidade de tirar a própria vida. Os parênteses são comumente usados para indicações acessórias, comentários à margem do texto ou notas emocionais. Mas aqui, se no pacto da ficção estivermos como leitores acreditando se tratar da conversa de um mendigo, esses parênteses perderiam totalmente seu efeito de sentido. Podemos supor, portanto, que essa marca de pontuação é proposital, objetivando desestabilizar o leitor quanto ao seu pacto ficcional. Fica claro que o texto nasceu para ser livro e não tem a pretensão de ser aquilo que chamamos de realidade. A simulação da oralidade acaba se desfazendo no instante em que usa os parênteses. A palavra escrita é o que importa. Mesmo porque dificilmente alguém usaria um léxico tão elaborado em uma conversa casual. E afinal, quais as possibilidades de um mendigo tão culto caminhar aleatoriamente pelas ruas da cidade à procura de seu grande amor? Isso dito, fica fácil perceber a intenção em sinalizar sutilmente a força da palavra escrita e da literatura e sua capacidade de criar mundos ilusórios que, no caso do mendigo, são eficientes para que se mantenha vivo. Ele prova que o uso dos parênteses poderá desmistificar o jogo da narrativa que o leitor poderia ter adentrado e vivenciado. Antes, ele chama a atenção justamente para este efeito perturbador que a literatura pode causar, o de questionar os limites das obras, de seus espaços ficcionais, de seu pacto com o leitor, de sua importância quanto texto falado ou escrito. E, finalmente, os parênteses se justificam por evocar esse sentido acessório, como se o suicídio fosse uma possibilidade remota e descolada do discurso original. E essa acepção só é possível quando estamos diante do texto escrito. A morte “(de propósito)” é vista como algo distante à princípio, mas que aos poucos vai se apresentando cada vez mais viável, na medida em que sua dor e sofrimento pela espera da amada não mostram indícios de que irão se extinguir. Na segunda vez em que menciona o suicídio, está arrependido, embora saiba que a morte pode ser a solução para seus problemas:

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Só a morte alivia. Súplica que também serviria de proveito a mim e aos três maltrapilhos alcoólatras e à mulher molusco e ao menino-borboleta. Só a morte alivia. Fui precipitado incluindo-me nessa lista: meu alívio virá com a chegada de minha amada.

Aqui já se coloca a questão que será discutida posteriormente, a da hesitação. Esse jogo, que aparece na dúvida entre matar-se ou não, é última das marcas fundamentais das narrativas dessa trilogia. Diferentemente do velho narrador de Minha mãe, o mendigo não sabe ao certo se o suicídio é a melhor solução para seu dilema. Para ele, há algumas opções além dessa: a morte por outras causas, a loucura ou o reencontro com a amada. Portanto, nem sempre se sente seguro em pedir pela morte, tampouco em cometer o suicídio. No entanto, da mesma forma como acontece nas duas outras obras, o mendigo sobrevive pela palavra. Ao seu interlocutor, confessa estar mais falante que o habitual e insiste que gasta “apenas palavras necessárias à sobrevivência”. Mas a esta altura já entendemos que a palavra é a própria sobrevivência, seu oxigênio, sua fé, sua existência. A morte entrará no discurso como tema inexorável e imprescindível. É preciso compreender a complexidade da vida para poder falar da finitude. Diferentemente dos outros narradores, que tinham como cenário um shopping ou um quarto vazio, o mendigo está cercado de miséria por todos os lados. Isso faz com que se intensifique seu olhar pessimista perante a existência humana. Olhar ao redor é perceber a morte à espreita e cada vez mais banalizada. Um dos mendigos, por exemplo, aparecerá morto de tanto beber. Caído no chão, quem irá notá-lo é a mulher-molusco, “a mais triste das criaturas da Terra”, diz o mendigo. É a decadência sobrepondo-se sobre ela mesma. A mulher, depois de verificar se o homem está ou não respirando com um espelhinho próximo às narinas, vai desconsolada ao telefone público avisar que mais um desconhecido deixou para sempre a cidade apressurada. Depois, cobre-o com pedaços de jornal e vela-o brevemente. Enquanto isso, um grupo de mendigos bêbados dança e canta ignorando a morte que acabara de acontecer. É a miséria arrebatadora colocada diante de nós. E o mendigo tenta olhar tudo isso como uma trivialidade, mas, sendo de estirpe lírica, nem sempre consegue. Aflige-se em notar que acontecerá ao mendigo alcoólatra que acabara de morrer o mesmo que aconteceu com Mozart, ou seja, será enterrado em uma vala comum. E o incômodo é maior quando percebe que ele próprio pode ser enterrado como um anônimo qualquer. Nesse ponto, vale trazer à tona o interessante documentário “Solitário Anônimo”, realizado em 2007, pela antropóloga Débora Diniz. Ela registra a história de um homem, 116

encontrado em grave estado de desnutrição, sem qualquer referência pessoal ou familiar. Ele é internado numa unidade hospitalar pública à sua revelia, pois intencionava morrer por inanição. No bolso, tinha um bilhete datado de “20/09/006”, no qual se lia: “A quem interessar possa. Meu nome: Solitário Anônimo. Não tenho familiares nem parentes nesta região do país”. A atitude do anônimo nos lança em um vazio aflitivo, pois não conseguimos conceber de forma natural a ideia de um suicídio tão angustiante. No hospital, ele se recusa a comer e pede para que deixem-no morrer. No entanto, tendo sido alimentado por tubos, o homem sobrevive e dá uma entrevista dizendo que gostaria de ter sido deixado em paz. Sua ideia era ter se distanciado de todos os seus amigos e familiares para que conseguisse se “descondicionar” do liame das relações afetivas e consanguíneas. Ele explica que precisava sentir-se livre para agir. A história do solitário anônimo pode trazer muitas aproximações com as reflexões propostas nas três obras. Primeiramente, porque sabemos que o mendigo também se propõe a libertar-se de suas ligações afetivas. Como ele próprio anuncia, decide entrar para a mundo da mendicância quando se percebe abandonado por sua amada. A partir daí, extinguem-se todas as suas relações e ele poderá viver livremente, em sua angústia particular, também como se usasse o anel de Giges de Platão. Tanto o solitário anônimo como o mendigo têm medo da morte. No documentário, o homem diz que queria morrer de inanição, pois não conseguiria se matar de outra forma já que tinha medo. Por fim, os dois precisam colocar-se em estados marginais para sentirem-se efetivamente livres. Querem ser anônimos na cidade apressurada. Além disso, o documentário e o livro mostram como o ostracismo proposital e o suicídio são vistos como angustiantes perante uma racionalidade contemporânea. No filme, isso aparece nos insistentes diálogos das enfermeiras tentando entender a escolha feita pelo solitário anônimo. No livro, essa relutância vem do próprio narrador que não consegue admitir de imediato que o suicídio possa ser uma solução plausível e até mesmo, natural. Mas aos poucos, ambos começam a compreender que a vida e a morte precisam ser definidas de formas menos dicotômicas. E que se a morte parece absurda, a vida deve ter a mesma apreensão. Albert Camus, em Mito de Sísifo, acredita que só há um problema filosófico realmente sério, o suicídio. Para ele, julgar se a vida vale a pena ou não ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia. Todas as outras divagações seriam uma 117

futilidade (CAMUS, 2012, p. 19). O suicídio não deveria ser tratado como um problema social, mas antes é necessário tratar da relação entre o pensamento individual e o suicídio, pois um gesto dessa ordem exige preparo, assim como uma grande obra. Matar-se, para Camus, seria confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos, por isso sua dificuldade. “No apego de um homem à sua vida há algo mais forte que todas as misérias do mundo. O juízo do corpo tem o mesmo valor que o do espírito e o corpo recua diante do aniquilamento” (CAMUS, 2012, p. 23), diz o filósofo. E isso Schopenhauer também já percebera. Portanto, assim como o narrador moribundo também anuncia logo no início de sua narrativa sua dificuldade em se matar, o recuar do mendigo parece ser equivalente, ele não é capaz de realizar o ato. Mas consegue trazer em seu discurso o suicídio como saída possível, pois se percebe distante das relações humanas. E entende, por fim, que a existência parece ser ainda mais desprezível quando se trata de criaturas miseráveis como as da farandolagem. Logo, começa a ter ideias mais elaboradas de suicídio, que aparecem de forma irônica: “Morte talvez seja solução sensata para farandolagem toda. Tempos atrás pensei em organizar suicídio coletivo. À meia-noite em ponto. Cada um se mataria à sua maneira”. Mas o mendigo afasta-se também da própria farandolagem. Ele precisa diferenciarse deles, sentir-se menos inútil e menos miserável. “Não é por obra do acaso que não me misturo a farandolagem: não quero atrair mais ostras para o meu rochedo de perdas”, ele diz. Acredita que Erasmo de Rotterdam e outras figuras de importância intelectual deveriam mesmo ter existido, mas que a maioria, como diz também a narradora doente, é desnecessária e sem importância, não precisava ter vindo trazer ainda mais miséria a isso que chamamos vida. Esses mendigos bêbados e abandonados também se entregam à morte, no entanto, fazem-no de forma arrastada, pois vão perdendo a vida nos goles de cada cachaça, nos dias em que passam fome, como o solitário anônimo do documentário de Débora Diniz que queria morrer de inanição. A certa altura, o mendigo assiste ao menino-borboleta e à mulher-molusco lendo juntos o jornal, percebe a morte lenta a que estão todos eles condenados: Possivelmente ouviu amiga noticiando vagarosa que três mil pessoas por dia cometem suicídio em todo o mundo. Organização Mundial da Saúde (tenho certeza) ignora os maltrapilhos alcoólatras de rosto intumescido: 118

não cortam num átimo teia da própria vida: pertencem ao grupo dos suicidas graduais vivendo à margem das estatísticas.

Logo em seguida, a reflexão se aprofunda e ele mostra compreender que o suicídio não pode ser guiado por questões religiosas e ocidentais e mais uma vez o filósofo David Hume vem à tona: Pensei em me matar nesses anos de andança a trouxe-mouxe pelas ruas desta metrópole apressurada. Ignoro se Erasmo de Rotterdam jogava foco de luz do Não matarás inclusive sobre os suicidas – feito Santo Agostinho. Sei que estou em harmonia com David Hume quando diz que o quinto mandamento visa claramente a excluir a morte do outro – sobre a vida de quem não temos autoridade alguma. Acredito que suicídio não é questão ética, sequer religiosa. Não me matei ainda porque tenho medo da morte. Possivelmente sou covarde.

Ou seja, existe o entendimento de que o suicídio é uma escolha possível ratificada por grandes pensadores de séculos passados. Não será por uma questão moral que o mendigo não se matará, é antes o medo que o impede de tomar uma atitude. Mais adiante, ainda retomando importantes filósofos, ele diz: “Não tivesse tanto medo moldaria exatamente igual Sêneca minha própria morte na morte de Sócrates”. Ambos se suicidaram. O primeiro cortou os pulsos, enquanto o segundo foi obrigado a tomar uma taça de cicuta. A questão do suicídio é mostrada, portanto, como dilema antigo, filosófico. E a discussão acaba revelando também os tabus em relação aos suicidas que, por vezes, são incompreendidos na sociedade, como acontece com o solitário anônimo. O mendigo, mais inadequado ainda, quer se matar por amor, deixar de lado as questões superficiais da contemporaneidade. Porque o mendigo, o velho e a doente têm dilemas que são necessariamente contemporâneos e atemporais. Todos estão vivendo na hesitação entre a vida e a morte, ainda que cada um a seu modo. E se refletirmos que há um lado que quer viver e outro que busca a morte, como vimos traçando até aqui, é inevitável que pensemos também na questão do duplo. Esse paradigma já por vezes abordado nos estudos literários será um dos pontos de discussão que se relaciona fortemente com a análise final, ou seja, a do estado de hesitação. Na verdade, todas as discussões propostas até aqui revelam essas antinomias que tem como

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resultado final a pulsão mais forte da trilogia: o limbo. Para pensarmos sobre isso, iniciaremos com uma imagem apresentada em O Mendigo.

3. COMO SE LIVRAR DO LIMBO

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“Jamais consegui tirá-la dessa areia movediça torturante cuja fundura nunca permite afogamento pleno”, diz o mendigo sobre sua amada. Pensemos sobre essa imagem. Estar afogando-se indefinidamente, na angústia torturante de viver/morrer. A vontade de estar morto, engolido pela areia, junta-se ao desespero de querer estar vivo, de sair daquele estado paralisante, em que não se pode afundar totalmente, pois não há fundura suficiente para desaparecer, desfazer-se, virar nada. Vemo-nos presos diante de um conflito, uma fundura que nos impede de agir, atormenta-nos diante de uma areia movediça indecisa. É essa a imagem que melhor representa a questão da qual irei tratar nesse capítulo. Como tenho mostrado desde o início deste trabalho, as obras de Evandro Affonso Ferreira são construídas sobre oposições, priorizando, por vezes, o caráter irônico que resulta desse encontro. No primeiro capítulo, abordamos a questão da completude e incompletude, mostrando mais significativamente como se dá a noção de vazio na obra. No segundo, falamos sobre a morte e a vida, procurando entender a concepção niilista dos narradores. Agora, compete-nos compreender melhor como tais contrastes não estão limitados como formas rígidas e distintas; antes, coexistem. Em Minha mãe, a hesitação da escrita se volatiza e o narrador escreve a obra para anunciar de forma paradoxal e possivelmente irônica que não quer ou não consegue escrevê-la. Enquanto isso, a narradora doente vem avisar-nos de sua morte e enquanto fala, mantém-se viva. Já o mendigo, transita entre a loucura e a sanidade, o desejo de vida e do suicídio. Os narradores afirmam que suas vidas foram fundadas precisamente sob essa condição. “Tempo todo vivendo num limbo próprio”, diz o narrador moribundo. “Vida toda vivi à margem: no limbo da existência”, reitera o mendigo. E a narradora relembra: “(...) caminho lentamente para o ocaso, submergindo-me nas areias movediças do desespero, do desencanto”. Essa simultaneidade de ideias remete justamente a essa imagem da areia movediça de pouca fundura que nos apresenta o mendigo. É fácil pensar no diálogo que este símbolo estabelece com a sociedade contemporânea. A incapacidade de tomar decisões, a necessidade de preencher vazios que não se preenchem, a vida fluida, a vida líquida de Bauman. Mas é também o dilema assustador e estagnante que as obras proporcionam, na medida em que não nos levam a lugar nenhum. Como ilustração, basta pensar no que nos sugere a narradora doente:

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Sempre penso sobre a amplitude da solidão nos momentos intermédios entre o firme e decidido propósito e o ato suicida propriamente dito – intervalo em que a criatura-desespero é também um ser-abandono-intotum.

Ela retrata esse exato instante cingido entre dois limites importantes, o da vida para a morte. E reflete justamente sobre a desesperadora sensação de abandono deste breve hiato. A trilogia de EAF coloca-nos nesse espaço temporal e físico, que se situa no meio do caminho, no indefinido. Deixa-nos próximos das escolhas, mas não escolhe; próximo da morte, mas não morre; próximo da realidade, mas fictício; próximo do silêncio, mas verborrágico; diz muito e o tempo todo, sem chegar a lugar algum. O estado de hesitação e de dúvida é o grande incômodo dos livros é o grande incômodo humano. Esse estado chamo de límbico. A própria literatura nos insinua essa coexistência, ou seja, ela se funda no próprio estado límbico que estou procurando demonstrar quando lanço mão de Maurice Blanchot e Roland Barthes. Mas sobretudo quando aproximamos a literatura das concepções de Derrida. Fazendo um mapeamento das situações em que isso aparece, conseguimos muitos exemplos. O maior e possivelmente mais agoniante estado límbico é gerado nas experiências do mendigo. Nem mesmo quando tenta se limpar em sonho para livrar-se do seu estado de decrepitude o mendigo têm êxito, fica sempre no meio do caminho: “Nos sonhos recorrentes, limpeza do corpo fica sempre inconclusa por causa do meu despertar abrupto”. Como mostrou-se no capítulo anterior, o mendigo tem dois dilemas chave para enfrentar. Primeiro, é preciso lidar com a possibilidade da loucura, em seguida, do suicídio. As primeiras linhas de O mendigo já inserem elementos que fundamentam a ideia de limbo de toda a trilogia:

Não vou perdoá-la pela incompletude do ato: descuidou-se do tiro de misericórdia. Deixou-me estendido moribundo à beira da vida. Não sou zumbi por obra do acaso. Ando molambento a trouxe-mouxe pelas ruas procurando inútil o ancoradouro da nau dos insensatos. Estou a meio caminho do destrambelho in totum. Possivelmente tudo começou ato contínuo à leitura do s do adeus. Lembro-me ainda hoje – dez anos depois – daquele bilhete elíptico; não era longo feito sabre. Tinha a concisão de um punhal: ACABOU-SE; ADEUS. Os deuses do desamor, implacáveis, condenaram-me duplamente tirando razão deixando memória. Andarilho mnemônico – sou sim. Tudo que vejo dia todo evoca meu passado ao lado dela.

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Já de início temos anunciado a “incompletude do ato” da amada, que o deixou “moribundo”, assim como os narradores de Minha mãe e Os piores dias. O mendigo anuncia que foi abandonado pela sua mulher e agora padecerá de outra sorte, a dos molambentos, dos indecisos, dos que vivem no limbo. Mas aos poucos iremos descobrir que sempre esteve nessa condição e a mulher era apenas uma distração, uma loucura boa. A própria relação da amada com a morte, por exemplo, já transita nesse estado límbico. Ela se sente deslocada na vida, mas tem uma profissão completamente humana, é oncologista. Em outro momento, o mendigo explica: “Criatura de contradição beatificadora: melancólica, não se sente à vontade na vida, mas vive para ajudar o outro a viver mais”. Cabe-lhe, portanto, esse papel de salvadora de angústias e tristezas, ainda que ela própria viva em constante melancolia. O estado é contraditório, fundado em oposições. E é essa figura que supostamente salvaria o mendigo narrador. Vale lembrar também a relação próxima entre duas personagens importantes da trilogia: a amada e a narradora doente. O câncer aparecerá como a doença representativa de uma morte lenta e angustiante. Enquanto uma morre por esse motivo, a outra tenta curá-lo. Em entrevistas, EAF diz ter rememorado a morte da irmã, que faleceu por conta da AIDS. Em verdade, não importa a doença que aflige as personagens, mas a lentidão com que elas alcançam a finitude. Essa perda de vida aos poucos é que interessa, pois coloca novamente aquele limiar entre vida e morte que é fundante na obra, fazendo com que essa sensação perdure o máximo possível: “Degenerescência lenta-gradual”, diz a narradora. Assim, quando a amada parte deixando um bilhete inconcluso, sua atitude é coerente com o movimento límbico presente na obra. O mendigo explica que o bilhete postula de forma lacônica o término da relação e despede-se: “ACABOU-SE;

ADEUS”.

Curiosamente, essas expressões explicariam uma outra, bastante significativa no repertório literário do autor: “grogotó”. No dicionário Houaiss, temos que “grogotó” é uma interjeição que exprime “lamento, pesar, lástima em função de algo que se perdeu e/ou que se tornou irreversível; agora é tarde! acabou-se!”. O curto bilhete da amada remeteria, portanto, à primeira obra mais conhecida de EAF, revelando o diálogo com o período em que a forma do texto tinha relevância maior. Mostra também que nessa segunda fase, a opção pelas palavras raras já passa a ser mais meticulosa e a proposta segue em sentido inverso. Se antes procurava palavras menos conhecidas e mais obscuras, agora o discurso precisa ser direto e claro.

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Para além disso, temos que a concisa mensagem é associada a uma ferida de punhal. A arma sugere um movimento curto e preciso como propõe a carta da amada. No entanto, a ferida causada pelo golpe é insuficiente e não consegue matar seu amor, matar o mendigo. É ferida ineficaz, pois é inconclusa. Ele insiste que se o bilhete tivesse sido “longo feito sabre”, possivelmente realizaria o extermínio total da vítima, sem deixar dúvidas, nem esperança em relação à continuidade deste relacionamento. A atitude inacabada da mulher não o matou por inteiro, manteve-o “moribundo”, “zumbi”, como os outros narradores, que também se veem à beira da morte. Situação semelhante aparece na primeira obra da trilogia. A mãe do narrador ao se matar, deixou de se despedir. Para ele, a falta de um adeus implica um ato incompleto. Nesse caso, ele pede justamente por um bilhete “elíptico” que mostrasse uma cortesia: “Ficaria menos triste se ela minha mãe tivesse deixado pelo menos um bilhete elíptico com apenas três vocábulos:

PERDÃO PRECISO PARTIR.

Mas partiu sem dizer adeus”. Mais uma

vez, é a incompletude do ato que o faz ficar deslocado, desencaixado, “pião sem fieira”, como ele diz. E a vida do velho moribundo, torna-se um vagar constante pelo limbo. “Os dias são enfadonhos numa inalterabilidade angustiante. Tudo se arrasta a sua volta – principalmente você”, conclui o velho. O símbolo da mensagem ou do bilhete opera de maneira distinta nessas duas primeiras narrativas. Nas duas formas, no entanto, contribui para o artifício límbico do texto. Na primeira, o bilhete é um aparato desejado, é a mensagem de despedida da mãe que deixaria o seu ato suicida completo. O lamento do narrador se enrodilha nessa marca inexistente da despedida, é isso que deixará o ato inconcluso e, portanto, em suspenso. A morte não é sentida como finalizada, fica pairando na lembrança de um velho amargurado. Em um segundo momento, o bilhete elíptico aparece, mas desta vez, em movimento contrário, sem as justificativas necessárias para o desaparecimento da amada. O recado “acabou-se, adeus” não é explicado, é insuficiente e incompleto, e mais uma vez deixa pairando a dúvida sobre a partida da amada. Ou seja, se na primeira obra a inexistência não pode ser conclusa por conta de um bilhete, na segunda, é o bilhete que torna inconcluso o desaparecimento. Nesse sentido, a importância da palavra se sobressai mais uma vez. A linguagem dita ou silenciada é que fará o movimento límbico das narrativas. É preciso entender que o silêncio não é o oposto da palavra. Se pensamos o silêncio como um fator que possibilita a palavra, torna-se viável, também, falarmos em um discurso do silêncio. Como salienta 124

Blanchot, “com palavras pode-se fazer o silêncio. Pois a palavra pode também se tornar vã e dar, por sua própria presença, a impressão de sua própria falta” (1997, p. 41). É possível pensar o inverso, ou seja, do silêncio, da “brancura vazia, envoltório de um nada” (1997, p. 41) percebendo um discurso que é extraído da sua própria ausência. É justamente sobre isso que fala Derrida quando mostra os espaços em branco, os lapsos e as infinitas possibilidades de discurso que poderiam se esconder numa pretensa unidade de texto. Ele acredita que é importante olhar tanto o não-dito como aquilo que estaria expressamente dito em um texto, pois aquilo que poderia estar excluído, reprimido, violentado ou recalcado em um texto é tão valioso quanto aquilo que se expressa positivamente. O texto, portanto, pode ser lido como o resultado desse processo transitório, flexível, límbico, por assim dizer. Além disso, como explica Silviano Santiago em seu Glossário de Derrida, para o filósofo francês “um texto é sempre depositário de elementos vindos de outros textos, o que vem apontar então para o caráter intertextual que deverá ter sua leitura” (SANTIAGO, 1976, p. 93). Assim, tanto em O mendigo como em Minha mãe a ausência ou presença do bilhete, ou seja, o silêncio ou a fala são causadoras de uma morte metafórica, pois trata-se da morte de um sentimento, da sensação de abandono. No entanto, no caso do mendigo, essa destruição será responsável por um possível suicídio, que mais uma vez cambaleará na linha tênue das oscilações. E novamente a figura do flâneur que pode ser retomada. Como admite Walter Benjamin, o flâneur é por natureza um indeciso: “A singular indecisão do flâneur”, diz o filósofo, “Assim como a espera parece ser o estado próprio do contemplador impassível, a dúvida parece ser o do flâneur” (BENJAMIN, 2007, p. 469). Espera e indecisão, esses são os substantivos dos narradores. Personagem ambígua, o mendigo é também reflexo de uma realidade confusa. E esse embaralhamento recai sobre outras personagens, como a “mulher-molusco” e o “menino-borboleta”. Há que se perguntar se mulher e garoto estão realmente vivos, ou melhor, se aquilo que eles têm é vida. O limbo, como o próprio mendigo diz, é o estado em que se encontram as personagens do livro, tanto narradores como os outros que os cercam. Compreendem-se, então, que essas figuras que transitam entre o estado humano e animal seriam também personagens límbicas. “Miseráveis. Vão se afastando aos poucos do gênero humano. Metade qualquer coisa; outro tanto quase nada”, diz o mendigo. “Vivendo nas ruas vamos aos poucos desfazendo nossa condição humana”, reitera. 125

Quando fala das personagens, sobretudo dos farândolas da cidade apressurada, a fusão com outros bichos aparece como um processo contrário ao desenvolvimento humano. “Vamos aos poucos, nos tornando seres resultantes de órgãos misturados de espécimes de insetos, espécimes de gente. A-hã: metamorfoses inconclusas”. Há a dificuldade de classificar-se diante do mundo, porque sente que não tem a envergadura suficiente de um humano, sente-se “gente-escorralho”, bicho indefinível abandonado à beira do monte de lixo. Remete ao clássico poema “O bicho”, de Manuel Bandeira. “O bicho, meu Deus, era um homem”, diz o poeta. Há ainda os que se afugentam nas bebidas, ignoram como podem a vida que levam, criando realidades alternativas e obscuras, questionando a realidade. E há o mendigo misantropo, desequilibrado pela abstinência da amada, observando sempre à distância a interação dessas pessoas com o meio e com elas mesmas. Aos poucos, por seu olhar oblíquo, ele descortina o alquebramento de uma sociedade que procura esconder a miséria e o abandono, e ele continua constatando e percebendo a complexidade da existência. Assim, a loucura transforma-se no distúrbio necessário para a compreensão dessa realidade. A amada é a culpada pelo possível desvario – “Não vou perdoá-la pela incompletude do ato”. É por ela que ele começa a vagar pela cidade, “molambento a trouxe-mouxe”. Do ponto de vista do narrador, mendigar, ou seja, colocar-se no limbo, era a única escolha possível, não há outra saída óbvia para aqueles que amam incansavelmente, de forma tão idealizada. Ele abandonou a casa, o emprego, os amigos. Abandonou a si mesmo por ter sido abandonado. Puniu-se por não saber o que fazer. Na verdade, o mendigo cria para si uma existência apartada de um sistema, uma vida que se desdobra em si mesma e não está atada à realidade. Revela essa capacidade humana de se autogerenciar, criando um código de realidade que para ele é funcional, mesmo que sua forma de vida revele esse distanciamento do sistema social. O velho narrador e a narradora doente funcionam da mesma forma. No entanto, o primeiro se aparta sem se movimentar e a segunda passa a ocupar todos os lugares na imaginação, já que se vê presa a uma cama de hospital. Em todas essas configurações, no entanto, o que sobressai é esse movimento íntimo dos narradores que se excluem e, por essa mesma razão, dão vazão a uma voz extremamente autoreflexiva. É a ideia de um monólogo constante. O diálogo é, de fato, dissimulado, pois está mais profundamente ligado aos

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pensamentos confusos dos narradores e não espera efetivamente uma contrapartida. Essa elucubração é também a porta de entrada para os caminhos da insanidade. Enquanto o mendigo declara estar perambulando pela cidade em busca da amada, percebemos que está se aproximando de algo que se apresenta mais possível: a chegada da loucura total. Ele alega que a demência começou a chegar quando seu amor partiu – “Sim: descontrole da mente veio com a chegada do desamor dela”. O tempo todo repete que está enlouquecendo aos poucos, perdendo a razão, mas é essa mesma constatação, reveladora de consciência, que faz parecer que ele esteja também sob a luz da sanidade, ou até, da sabedoria. É o indício também de que ele passou a descobrir as supostas verdades que o rodeiam. Estar próximo do verdadeiro saber implica, para os narradores, aproximar-se dos conhecimentos antigos, gregos, humanistas, renascentistas. Dessa forma, parece óbvio que ele se refugie no livrinho de adágios de Erasmo de Rotterdam. Como foi dito, os supostos ditados em latim do pensador holandês perfuram a narrativa, numa repetição insistente. Como se alertasse que a sabedoria verdadeira recaísse sempre sobre conhecimentos antigos, distantes dos saberes atuais. Os adágios cumprem, assim, a função de trazer-nos sempre para um passado precioso e pouco acessado pelos leitores de hoje. A obra Elogio da loucura, livro ícone do humanista, embora mencionada rapidamente, tem muito mais impacto na proposta literária da narrativa. A começar porque Erasmo e o narrador-mendigo concordam que a loucura é o fio condutor necessário de toda uma sociedade. “Em primeiro lugar, existe algo de mais doce, de mais precioso que a vida? E não sou eu a origem desse bem?” (ERASMO, 2011, p. 18), diz a Deusa da Loucura. Sabe-se que Erasmo de Rotterdam nasceu possivelmente em 1465 e foi uma das principais figuras do Humanismo. Por essa razão, independentemente das circunstâncias em que a obra tenha sido escrita, ou seja, como contestação irônica das práticas católicas, em um discurso retórico, compete-nos entender como ela contribui para a leitura de uma produção contemporânea. Seu legado, sobretudo Elogio da loucura, escrito em 1501, é o grande homenageado no livro de EAF, ainda que pese sobre o título “os adágios de Erasmo de Rotterdam”. Na sua obra mais conhecida, o pensador humanista decide dar voz a Deusa da Loucura, é ela quem fala durante todo o discurso. Ela anuncia, em tom por vezes satírico e irônico, todas as suas qualidades perante a sociedade humana – 127

Digam de mim o que quiserem (pois não ignoro como a loucura é difamada todos os dias, mesmo pelos que são os mais loucos), sou eu, no entanto, somente eu, por minhas influências divinas, que espalho a alegria sobre os deuses e sobre os homens (ERASMO, 2011, p. 11).

Dessa forma, protegida pela égide da loucura, vai denunciando as atividades corruptas da igreja católica. E termina demonstrando claramente quais deveriam ser os ideais cristãos, na visão do próprio autor Erasmo de Rotterdam. Amigo do utopista Thomas Morus, Erasmo diz em carta ao colega que escreveu a obra para divertir-se, e que teve a ideia de homenageá-lo já que o sobrenome de família “Morus” fez lembrar-se de Moira, nome que os gregos dão à Loucura. Veremos que o elo entre Erasmo e os narradores está justamente na questão da insanidade como indício de uma possível sabedoria ou de uma elevação social. É o uso da loucura como cimento para gerar em si mesmo uma maneira única de estar no mundo, que não se adequa, entretanto, resiste. O narrador mendigo, que diz estar quase louco, declara por vezes ter mais conhecimento que as criaturas miseráveis a sua volta. Assim, o ego também entra no jogo dos discursos. Enquanto a deusa da Loucura se gaba de seus feitos diante dos homens, o mendigo contraditoriamente parece esforçar-se para tornar-se louco, pois se considera acima dos cidadãos mundanos. A maneira que isso aparece no texto é também conflitante, pois ele insiste em associar seu desvario a um sofrimento contínuo, quando, na verdade, sua insanidade, estaria revelando também um conhecimento superior sobre a vida.

Mantenho distância. Sou possivelmente o mais misterioso e folclórico desvalido da cidade. Sabem que ando a trouxe-mouxe com tatame a tira colo e livrinho puído no bolso de trás. Não sabem nada a meu respeito; não sabem o significado da palavra adagiário. Não sabem quem foi Erasmo de Rotterdam.

Sua sabedoria, no entanto, é revelada muito mais nas entrelinhas do texto, que declarada. Enquanto diz que são todos miseráveis, incluindo-se, mostra também inúmeras reflexões existenciais, pautadas por grandes nomes de intelectuais. Portanto, o mendigo sabe de seu conhecimento, mas prefere exibi-lo em pequenas doses.

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O desaparecimento da amada seria a desculpa perfeita para a perda da razão. Mas nada será tão simples. Ao escolher enveredar pelos emaranhados da loucura, ele acaba se encontrando em uma situação dialética. Vejamos: na obra de Erasmo, a Deusa da Loucura anuncia ao seu suposto público: “Tão logo me vistes, vossas inquietações se dissiparam” (ERASMO, 2011, p. 11). Esta é uma das grandes vontades do mendigo, o apagamento de suas perturbações. Logo, ele vê na demência a possibilidade para que seu sofrimento acabe. Diz ele, “Apenas ela a loucura consegue abrir as comportas tirando o impedimento do curso de nossas reprimidas desvairanças”. A possibilidade da demência desponta como uma das soluções diante de sua aflição. Ela liberaria o que fica represado no contexto da vida mundana e o libertaria das angústias ligadas à vida em sociedade, à vida em que existem relacionamentos, assim como mostrei com o “Solitário anônimo”. A falta de amarras sociais possibilitada pela loucura faria o ser humano viver sem sentir a necessidade de se relacionar. Estando louco, não existiria mais a obrigação implícita de amar alguém ou sentir saudade, e o mendigo estaria, portanto, livre. Entretanto, essa emancipação vem a um custo, o preço é o limbo. Teríamos então a contrapartida: a própria Deusa explica que uma de suas seguidoras é a Deusa do Esquecimento; o que faria com que o mendigo não soubesse mais da existência de sua amada. Portanto, o que ele almeja, de fato, é impossível. Ele quer que o sofrimento cesse, mas não consegue abrir mão da memória da mulher que partiu. Mais uma vez nos debatemos com fragmentos do paradoxo. Para mostrar essa desordem interior, ele invoca, como lhe é comum, a mitologia grega e as estruturas discursivas confundem-se ainda mais: Abyssus abyssum invocat – O abismo chama o abismo. Álcool possivelmente fazendo as vezes das flores e frutos do País dos Lotófagos – de que nos falou Homero. Esquecer para não endoidecer. Não consigo perdê-la da memória.

Como vemos, e esse caso não é único, a questão da memória está bastante atrelada ao estado de loucura. Sua afirmativa nesse trecho é de que os mendicantes que passam o dia bebendo, estariam na verdade tentando desocupar a mente de uma realidade que lhes é ingrata, de um presente que não lhes agrada. É a tentativa de esquecer o que veem diante de si.

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Para o mendigo, todavia, o presente está necessariamente atrelado ao passado já que (sobre)vive sustentado por uma lembrança, pela memória da mulher que se foi. Ele próprio se chama de “andarilho mnemônico”. Isso implica dizer que suas andanças se constituem de fragmentos de memórias, mas não só isso. Seu presente seria, assim, formado em sua maior parte de passado e pouco ou quase nada de futuro. Seu repertório constitui-se de lembranças e de cultura intelectual. No seu isolamento, o andarilho se percebe pari passu com o caminhar dos monges, dos ermitãos, dos anacoretas, dos ascetas. E esta identificação é totalmente coerente com a figura que está se construindo diante dessa realidade, qual seja, a de detentor solitário de sabedorias que vive como um eremita na cidade agitada. Seu caminhar tem ritmo distinto do da metrópole, é lento, ensimesmado, na toada arrastada de Billie Holiday e Chet Baker. O mendigo, portanto, não quer abrir mão das lembranças, elas são fundantes para sua configuração de vida. Partindo a memória, instalar-se-ia a loucura. Com ela, o mendigo deixaria de sofrer. Mas ele encontra-se justamente nesse estado intermediário entre a loucura e a sanidade. Seu presente é o limbo, a dúvida, a hesitação. Voltemos ao início, quando seu desejo é anunciado: “Ando molambento a trouxemouxe pelas ruas procurando inútil a nau dos insensatos”. A embarcação que ele está buscando remonta uma imagem que surge na Renascença, época inclusive em que vive Erasmo de Rotterdam. Em seu livro História da Loucura, Foucault elucida:

Um objeto novo acaba de fazer seu aparecimento na paisagem imaginária da Renascença; e nela, logo ocupará um lugar privilegiado: é a Nau dos Loucos, estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos. A Narrenschiff é, evidentemente, uma composição literária, emprestada sem dúvida do velho ciclo dos argonautas (...) Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros (...) Eram frequentemente confiados a barqueiros (...) (FOUCAULT, 1978, p. 9)

Veja-se que o próprio navio não atracava em lugar algum, permanecendo também nesse estado límbico. Os loucos não podem fixar-se, é preciso que transitem, sejam fluidos, itinerantes. Nos estudos geográficos, aprendemos que o conceito de “istmo” se refere a uma porção de terreno estreito, cercado por água, a qual conectaria duas grandes extensões de terra. Assim, o istmo é a exata porção em que não temos um pertencimento espacial em 130

nenhuma das duas grandes partes, o istmo é esse intervalo entre uma e outra região. O limbo pode ser traduzido, portanto, como um istmo; esse espaço metafórico e transitório, onde estamos em lugar nenhum, vagamos e não atracamos. A fala do mendigo revela que ele busca justamente o Navio dos Loucos, que navega sem rumo e sem atracar. Logo, ele ainda não encontrou a loucura por completo – “Estou a meio caminho do destrambelho in totum” – e ele irá reiterar esse estado provisório ao longo de todo o livro, marcando a tediosa cantilena que mencionei anteriormente: “Doidice lenta gradual que se arrasta embalada pela trilha sonora cujo refrão é ela virá eu sei”; “Vou perdendo aos poucos o juízo: doidice chega a conta-gotas”; “(...) a poucas quadras do destrambelho in totum”. Há ainda outra ideia que pode ser associada ao Navio dos Loucos: a amada. Por vezes, ele insiste no epíteto “aquela que levantou âncora”. Temos aqui duas possibilidades. A primeira é a de que a amada estaria justamente na embarcação transitória a que se relegam os loucos. Restaria ao mendigo procurar o navio e tentar tornar-se também o seu tripulante. A segunda possibilidade é a da amada ser a própria Nau dos Loucos. Ela se transfiguraria na loucura em si. E o mendigo, em desespero, procura sua amada, busca a loucura. Em outro sentido, a loucura poderia ser compreendida como amor desmedido, o que insinuaria que o mendigo, antes de conhecer sua amada, esteve vivendo um momento de lucidez. Não sabendo sobreviver com ausência, resolve tornar-se um mendigo, um solitário, um ermitão. Isso implicaria dizer que existem tipos diferentes de alienação, e que a loucura do amor era aquela de que padecia nosso mendigo antes de a amada “levantar âncora”. Agora, desorientado, busca incessante outra Nau em que possa habitar. Aos poucos vamos compreendendo que a definição de loucura pode ser mais complexa. Em Os piores dias, a narradora já assimilou que a loucura precisa ser relativizada: “Às vezes tenho a sensação de que todos nós poderíamos entrar espontâneos numa daquelas antigas Stultifera Navis – embarcações repelidas que, impossibilitadas de lançar âncora, carregavam sua carga de adoidejados de uma cidade a outra”. Logo, ela não faz distinção entre os que devem ou não estar na nau dos insensatos. Quando Foucault comenta sobre a presença da loucura na literatura diz que poderiam ser divididas em quatro tipos: a loucura pela identificação romanesca – como seria o caso de Dom Quixote –, a loucura da vã presunção – Philautia de Erasmo –, loucura

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do justo castigo – a personagem Erasto, em Mélite –, e finalmente a loucura da paixão desesperada:

O amor decepcionado em seu excesso, sobretudo o amor enganado pela fatalidade da morte, não tem outra saída a não ser a demência. Enquanto tinha um objeto, o amor louco era mais amor que loucura; abandonado a si mesmo, persegue a si próprio no vazio do delírio. Punição de uma paixão demasiadamente entregue a sua violência? Sem dúvida, mas esta punição é também um apaziguamento; ela espalha, sobre a irreparável ausência, a piedade das presenças imaginárias. Ela reencontra no paradoxo da alegria inocente, ou no heroísmo das perseguições desatinadas, a forma que se esfuma. Se leva à morte, trata-se de uma morte onde aqueles que se amam não serão nunca mais separados. É a última canção de Ofélia, é o delírio de Aristo em Loucura do Sábio. Mas é, sobretudo, a amarga e suave demência do Rei Lear (FOUCAULT, 1978, p. 38).

O mendigo seria incluído precisamente nesta última categoria, em que a perda do amor resulta em punição e loucura. Sem a amada, optou por se desgarrar dos bens materiais, dos costumes sociais, das leis da sociedade – “Há dez anos conservo-me afastado do mundo consagrado pela lei, pelo uso”, ele explica. Acredita sentir algum alento quando resolve se punir e perder seu nome, seu cheiro, suas roupas, sua identidade. Ele tenta se convencer: “É bom viver assim a poucas quadras da doidice in totum: arrefece o desencanto”. E a certa altura, já não sabemos mais se a amada existe ou se é apenas fruto da imaginação de um homem que, na verdade, sempre esteve louco. E isso esbarra com o conceito ficcional, que, no limite, cria diversas possibilidades de mundo e personagens. Não só por reconhecer-se de certa forma superior aos outros, mas também por ser de uma estirpe rara entre os homens de seu tempo, o mendigo precisa se excluir, diferenciar-se. Se sua intelectualidade é inteiramente voltada para figuras do passado, seu amor é idealizado como em tempos de Romantismo, o que nos aproxima ainda mais da hipótese de que a amada seja mera ilusão. O mendigo, como os outros narradores, não se encaixa no contexto em que ele vive. E a loucura passa a ser uma opção plausível diante de sua angústia e de sua dor. Esses sentimentos, no entanto, pelo que ele nos conta, sempre fizeram parte do mendigo, ou seja, seu modus vivendi já se aproximava daquilo que ele chama de “loucura in totum”. A amada parece ter vindo para disfarçar a aflição que sempre sentiu, ou trouxe outro tipo de loucura, a do amor. Ele próprio noticia:

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Ao contrário de minha amada, sempre fui frágil diante do desespero alheio. Meu também. Mesmo antes de entregar-me a farandolagem, já era pária. Vida toda vivi à margem; no limbo da existência. Ela, amada, trouxe-me a lume por algum tempo.

Viver no limbo da existência é se perceber na situação hesitante. Mais que isso, ele entende que existir é em si uma dificuldade, pois, claudicante, não caminha, não toma partido, não se move. Fica à margem, sem conseguir efetivamente participar ou tomar atitudes. Observa à distância porque não participa. Mas é um observar-se à distância para tentar entender a si próprio. A loucura opera, na verdade, como um retirar-se de si mesmo para ver melhor a inutilidade da vida: “(...) loucura absoluta talvez funcione igual binóculo às avessas – deixa aparentemente distante o que está perto demais”, diz o mendigo. Entendemos também que seu desvario não seria uma consequência de sua vida mendicante, pois antes disso já se sentia pária. A mulher amada seria a figura responsável por um suposto equilíbrio na vida do poeta. O “lume” a que ele se refere seria, portanto, o remédio necessário para certo nível de sobrevivência e socialização. Porque a mulher é a luz, é a fonte de sabedoria. A deusa da Loucura insiste em lembrar que as mulheres são todas loucas. Logo, a loucura trazida pela amada seria de uma outra ordem, aquela que é suficiente para que o mendigo conseguisse prosseguir na sua existência de forma mais próxima dos parâmetros tidos como normais. E, nesse sentido, fica claro que o conceito de loucura é sempre questionável. Enquanto o mendigo digladia-se no limbo, a Deusa da Loucura de Erasmo persegue-o. Arma-se um jogo velado entre eles. Seus discursos ora se aproximam ora se distanciam, contribuindo para a potência significadora do livro: a dúvida. Concordam, por exemplo, com as incertezas – “tudo, no mundo, é tão obscuro e variável que é impossível saber alguma coisa ao certo” (ERASMO, 2011, p. 67) – diria a voz onipresente da obra de Erasmo. Ao que o mendigo de Evandro Ferreira reitera, “hoje sei que nosso peito vive atafulhado de sentimentos dúbios contraditórios”. Nem a deusa nem o mendigo estão buscando uma única resposta, sabem que os humanos são complexos demais para que sejam classificáveis. A percepção do mendigo e da Deusa em relação à figura feminina, no entanto, é confusa. “O primum móbile dela minha existência é encontrar a amada – possivelmente vivificadora de minha razão”, ele afirma. Somente a chegada da mulher livraria o mendigo 133

de todos os males, isentá-lo-ia de tomar decisões, fazer escolhas, iria trazer-lhe de volta à razão. Colocaria, enfim, nas mãos dela o caminhar de sua vida, aplacaria de uma só vez sua loucura, sua esperança, seu estado de limbo. Entretanto, a deusa da loucura rebate a crença equivocada do mendigo. A certa altura de Elogio da loucura, ela diz que quando aconselhou Júpiter, foi categórica:

Faça uma mulher, eu disse, e a dê ao homem como companheira. É verdade que a mulher é um animal extravagante e frívolo, mas é também divertida e agradável. Vivendo com o homem, ela saberá, com suas loucuras, temperar-lhe e suavizar-lhe o humor tristonho e rabugento (ERASMO, 2011, p. 28).

A loucura feminina tem, assim, um caráter positivo, mas não deixa de pertencer a ordem dos desvarios. É como se fosse a dose necessária para que se continue vivendo. Novamente a figura da mulher aparece dominante. Mas a posição ambígua da amada – entre loucura e razão – não muda os sentimentos do mendigo. Ele sente-se amputado, abandonado, “vítima fatal da incompletude”. E a escolha pela peregrinação aparece como punição auto exigida. Um amor inconcluso que não tem espaço na cidade dos “amores líquidos” de Bauman, pois é idealizado, romântico, crônico. Um amor que beira a loucura? Mas não é, propriamente, pela sua ausência que o mendigo estaria enlouquecendo? Em certo momento, ele parece acreditar que conseguiu o inviável: “Os deuses do desamor, implacáveis, condenaram-me duplamente tirando razão deixando memória”. Mas não, toda a narrativa se dá com a loucura à espreita, construindo-se sob esse estado transitório, querendo consumir o que resta da memória do mendigo. Ele chega a personificar a loucura, criando uma imagem interessante para esse estado límbico:

É loucura de cócoras, ainda quieta, apenas murmurando num canto qualquer do subsolo da mente. Sei sinto pressinto que poderá levantar-se aos gritos a qualquer instante; poderá embaralhar in totum minha capacidade de discernir, impedindo-me de saber por que ando tempo todo com livrinho de adágios de autor não identificável do século XVI – além de desconhecer o motivo pelo qual carrego tatame a tiracolo com enigmática letra N num dos extremos.

A transformação sonora entre silêncio, sussurro e grito constrói também o limbo. A loucura não está calada, mas ainda não grita, usa de um artifício transitório, sussurra. O mesmo pode se dizer das posições em que se encontra. Humanizada, ela não está deitada, 134

dormindo, nem se levantou ainda. Mas está “de cócoras”, esperando o momento certo para se erguer. O desespero mais intenso que poderia ser resgatado no quadro “O grito” (1893) de Edvard Munch, por exemplo, ainda não aconteceu. Mas temos uma sensação ainda pior, a angústia, o limbo, o quase, a espera. Os efeitos sonoros ficam novamente implícitos, não só porque remetem ao quadro que consegue demonstrar a intensa e solitária agonia do desespero, mas também porque os diferentes volumes de som são sempre perturbadores. Podemos admitir ainda que na cisma do mendigo em repetir que está próximo de ficar louco, há certa loucura dissimulada. Se estar louco isenta-o de obedecer às regras sociais, permite também que ele fale ininterruptamente sem ter que se justificar. É sua válvula de escape, seu descanso moral. Na verdade, é esse mesmo comportamento que o permitiria

discorrer

continuamente

sobre

suas

lembranças

e

pensamentos.

O

desprendimento do mundo será sua garantia para a manutenção do discurso desenfreado. Há que se lembrar que a obra de O mendigo é escrita em apenas um parágrafo, o que confirmaria essa vontade elocutória que não percebe nenhum obstáculo. De fato, as três obras apresentam essa característica do discurso ininterrupto. Em seu pessimismo exacerbado, os narradores retomam questões pertinentes à época do nosso Realismo literário. Como em Machado de Assis, percebem-se sensíveis à mesquinhez humana e à sorte precária do indivíduo e fazem disso alimento para suas reflexões humanas (BOSI, 2006, p.186). É a incapacidade de tomar decisões drásticas nas narrativas que acaba por produzir uma obra paralisante, nenhum deles consegue tomar atitudes, ficam digladiando-se no plano discursivo. Assim, os narradores questionam-se sobre a escrita como o faz Brás Cubas quando relata ter se arrependido de escrever um capítulo, por exemplo. Na verdade, é o ato de escrever para aumentar a falta e tornar impossível continuar falando e escrevendo com as palavras existentes. E a própria repetição sugere que se está esperando algo e que nada vai acontecer. É, então, uma loucura que nunca se instala definitivamente, um livro que nunca se conclui ou um câncer que nunca mata. Se não ficar louco, outra opção para o mendigo é encontrar a mulher amada. E quando chegamos neste ponto, a mulher já parece apenas imaginação de uma mente desequilibrada. Se for esse o caso, teríamos a insanidade, e a teoria de dissimulação não seria coerente. Trafegar pelos caminhos da loucura é pisar em terreno movediço, tão instável quanto a areia torturante a que me referi no início do capítulo. Mas a doidice do mendigo 135

aponta também para as possibilidades da invenção literária. No sentido de que a escrita, quando associada à loucura, passa a ter outra recepção. No entanto, todo fazer literário usa da invenção e partilha outras realidades. E a literatura põe em xeque, portanto, a linha tênue que separa o louco dos outros. Foucault ao tratar da definição de loucura na era Clássica explica: “Na própria medida em que não sabemos onde começa a loucura, sabemos, através de um saber quase incontestável, o que é o louco” (FOUCAULT, 1978, p. 181). Por sua vez, Lacan afirma: “not all who go mad, do go mad” (nem todos que ficam loucos, ficam realmente loucos), questionando justamente qual seria um diagnóstico possível para os considerados loucos. Vale lembrar que a internação, recorrente no século XVII, procurava fazer essa distinção de maneira prática. Antes disso, a loucura não era considerada estado patológico, mas algo que estivesse mais próximo da transcendência ou do inexplicável. Na verdade, o que se percebe é que a sociedade procurava separar os “a-sociais”, ou, por assim dizer, aqueles que não tinham capacidade para o trabalho, que não conseguiam integrar-se num grupo e que causavam problemas à cidade. Traçou-se uma linha, separando loucos e sãos, para o progresso de uma comunidade. Limite que talvez tente existir ainda hoje. Por ser tão complexo, o tema da loucura sempre esteve muito presente na literatura. Poderíamos nos lembrar de inúmeras obras produzidas por artistas considerados loucos, tais como Hölderlin, Nerval, Artaud, Lautréamont, Van Gogh e Arthur Bispo do Rosário. Há ainda as que têm como traço comum serem representações literárias da loucura. No Brasil, por exemplo, na segunda metade do século XIX, a literatura brasileira tem suas estruturas abaladas pela figura do dramaturgo José Joaquim de Campos Leão, cujo apelido era Qorpo Santo. Havia o aspecto caótico de suas produções, mas, além disso, seus escritos são marcados pelo fato de terem sido iniciados na mesma época em que ele fora interditado pela justiça como insano. Lima Barreto entra com o romance Cemitério dos Vivos, durante o período dito prémodernista. Podem ser citados outros casos como os contos “Sorôco, sua mãe, sua filha”, de João Guimarães Rosa e “A doida”, de Carlos Drummond de Andrade. Outro nome é o de Maura Lopes Cançado, em cujos textos - Hospício é Deus (diário lançado em 1965) e O sofredor do ver (contos, de 1968) - é possível investigar a relação entre a escrita e a loucura. Se quisermos ressaltar o diálogo entre o ato de escrever e a loucura, pode-se citar ainda Armadilha para Lamartine, de Carlos & Carlos Sussekind.

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Dentre as inúmeras personagens célebres e emblemáticas poderíamos também citar a Medéia de Eurípides; Hamlet e Lady Macbeth, em Shakespeare; o Dom Quixote de Cervantes; e Quincas Borba e Simão Bacamarte, em Machado. A linha que se traça para dividir loucos e sãos, por exemplo, é retomada e levada ao nível máximo no conto O Alienista, de Machado de Assis. Com o discurso de que trabalhava em benefício da melhoria da cidade de Itaguaí, Simão Bacamarte passa a ser o dedo que aponta para todo e qualquer desvio percebido no comportamento humano. Avaliando que ele é a única mente sã entre tantos, decide racionalizar que a loucura é preferivelmente um estado raro, e que, portanto, o louco seria ele próprio – “devia admitir como exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos aqueles casos em que o equilíbrio fosse ininterrupto” (ASSIS, 1998, p. 76). O que Simão Bacamarte e o mendigo têm em comum é a forma de julgarem-se diferentes das pessoas com as quais convivem. Principalmente porque, tanto um quanto outro, optam por viver em comunidades em que se julgam superiores ou distintos. Simão porque vai até Itaguaí, escolhendo-a para realizar seus experimentos e o mendigo porque junta-se (à distância) a um grupo mendicante inculto e ignorante, o qual vive à margem não por escolha, como é o caso do narrador, mas porque a sociedade não lhes reservou o direito de serem nela inseridos. Há, no entanto, uma diferença importante entre eles. Bacamarte, ao fazer sua conclusão científica, decide se enclausurar voluntariamente na Casa Verde. Enquanto o mendigo não se decide entre fugir ou não daquilo que chama de “destrambelho in totum”, a completa loucura, por assim dizer. É comum na literatura o louco passar a se aproximar do sábio. Para o filósofo Schopenhauer, o gênio é muitas vezes impelido ao isolamento e, às vezes, à loucura. É nos loucos que se encontraria a verdadeira aristocracia da humanidade. O homem elevado acaba sendo um desajustado, pois vê muito longe e não vê o que está perto. Ele está pensando no fundamental, no universal, no eterno, enquanto os outros pensam no temporário, no específico, no imediato. Para o filósofo, o homem é mais sociável quanto mais pobre for intelectualmente. Esse isolamento se compensaria nas relações que o sábio tem com a arte, que permite que ele esqueça um pouco seu sofrimento, mostrando o eterno e o universal por trás do transitório e do individual. Para a deusa de Erasmo, a única diferença entre o sábio e o louco é que esse último obedeceria às suas paixões e o primeiro à sua razão. Ela avisa, concordando com 137

Schopenhauer: “Sim, quanto mais os homens se entregam a sabedoria, mais se distanciam da felicidade” (ERASMO, 2011, p. 51). Como a loucura ainda não o aplacou, o mendigo crê que sua sabedoria o faz dessemelhante dos outros e talvez até especial, pois, como vimos, não consegue disfarçar certa arrogância. Outro bom exemplo literário em que a loucura estaria relacionada à sabedoria ocorre no texto de Gustave Flaubert, “Mémoires d'un fou”, analisado criteriosamente por Shoshana Felman28. Ela explica que ao diferenciar-se, o autor gaba-se dessa categorização, como que desejando, portanto, ser considerado louco: “A madman! That strikes horror. What then are you, reader? What category do you place yourself in? In the category of fools or of madmen? – Given a choice, your vanity would yet prefer the latter condition”29. Ou seja, a loucura tem uma forte proximidade com a vaidade, e passa a ocupar um status diferente que se relaciona mais como uma qualidade que com um prejuízo. Mas a própria Deusa da Loucura avisaria que somos quase todos loucos: “(...) a maioria dos homens são loucos, pode-se mesmo dizer que não há nenhum que não tenha várias espécies de loucuras” (ERASMO, 2011, p. 31). Se a maioria é louca, há um problema de classificação, e é justamente isso que o mendigo parece querer destruir: o rótulo, a nomenclatura, a categorização. Como explica Felman, o fato de alguém ser classificado como louco, dá a ele o poder de também nomear e julgar como quiser, relativizando, portanto, essa disposição. Chegamos, finalmente, a outro ponto importante, o da linguagem. Para Felman, a loucura seria o inefável e o desejo de nomear o inefável (FELMAN, 2003, p. 82). No texto de Flaubert, o autor relata sua dificuldade de expressar através de palavras sua vida de pensamentos: “How can one express in words those things for which there is no language, those things imprinted on the heart, those mysteries of soul, unknown to the soul itself” (FELMAN, 2003, p. 81). E Felman elucida: “To “ex-press” oneself is thus an impossible task, one could never “press” words hard enough to “ex”-tract from their exteriority the nectar of the inner heart or mind” (FELMAN, 2003, p. 81). Nesse sentido, cabe recorrer novamente às reflexões de Maurice Blanchot, em especial quando ele diz que “a linguagem é feita de inquietude, é feita também de contradições. Sua posição é pouco estável e pouco sólida” e, em seguida, conclui, “a 28

A obra de Shoshana Felman não conta com versão em português. Nesse caso usamos a edição em inglês, a saber, Writing and Madness. Trad. EVANS, Martha Noel. Palo Alto: Stanford University Press, 2003. 29 Os trechos aqui citados foram retirados da obra de Shoshana Felman, Writing and Madness, p. 82. Como não encontrei a obra original em francês, optei por manter o trecho como se encontra no estudo de Felman.

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palavra não basta para a verdade que ela contém” (BLANCHOT, 1997, p. 313-314). Ou seja, a linguagem também estaria nessa condição oscilante e límbica, que lembra a imagem da areia movediça. Na verdade, não apenas a linguagem da loucura traria essa volubilidade, mas a linguagem literária como um todo. A questão é que no discurso do louco essa peculiaridade poderia estar acentuada. Embora as palavras do mendigo encadeiem-se de maneira lógica, negando-lhe uma loucura total, as sequências de frases obedecem a um fluxo de consciência, correspondentes ao estado das coisas momentâneas, apontando para essa desordem do mundo. Remete claramente a Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Há essa tentativa de escrever simulando a ordem – ou desordem – dos pensamentos, mostrando toda a gama de impressões, sensações e raciocínios dos narradores. A fala do mendigo é entrecortada, atravessada pelos adágios e muda de direção sempre que algo na paisagem chama sua atenção. Assume a ordem arbitrária das lembranças e da descrição do que vê ao redor. Entretanto, junta essas partes, muitas vezes, de maneira inesperada, num processo de bricolagem da escrita. Por exemplo:

Agora sou isto que o senhor vê: andarilho trouxe-mouxe cujo capital resume-se num tatame, num adagiário. Ouça: Homo moritur, quatiens amittit suos – o homem morre tantas vezes quantas vezes perde os seus. Veja: ela aconchegou o urso de pelúcia entre os braços do meninoborboleta.

Os dois pontos marcam mais nitidamente essas mudanças repentinas do texto. Mas a cada ponto final é como se chegasse a um novo tema. São três momentos distintos: ele inicia falando de sua vida, retoma um possível adágio de Erasmo e volta-se para o que está vendo diante de si, ou seja, a mulher-molusco e o menino-borboleta. Uma fala, portanto, entrecortada, fragmentada e desorientada. Vale notar que a fala do mendigo, embora feita de cortes, mantém também certo tom didático. No trecho acima, por exemplo, ele inicia apresentando-se e mostrando ao seu interlocutor os objetos que carrega consigo. Nesse sentido, é uma fala quase esvaziada se supormos que esse “senhor” com quem o mendigo conversa pode possivelmente vê-lo. Assim, o recurso de descrever é muito mais uma questão estilística, que foge ao pacto ficcional. Afinal, a descrição serve antes ao leitor – na medida em que ele irá imaginar esse mendigo e as personagens que o cercam – que ao seu suposto interlocutor.

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Quando introduz o adágio em latim, usa o mesmo procedimento de sempre, ou seja, mostra sua tradução logo em seguida. É como se falasse em tom professoral ou pedagógico, mostrando um ensinamento ao seu ouvinte, ou, mais provavelmente, a nós, leitores. Por fim, na última parte desse trecho segue-se uma descrição da ação específica de uma personagem. A atitude é narrada mais uma vez como se o seu interlocutor não pudesse ver uma situação que estaria se passando possivelmente próximo deles. Esse narrar didático, que nos direciona e nos ensina como se nos pegasse pelas mãos, é bastante característico nas três obras. E, se no mendigo esse discurso poderia mostrar traços de uma demência, nos outros casos, há que se aceitar que se trata definitivamente de uma questão estilística. É a necessidade de passar o conhecimento, mas também, de certa forma, exibi-lo, desmascarando, ainda que sutilmente, a possível ignorância do leitor. Veja-se, por exemplo, como discurso do velho narrador também é fragmentado e didático, enquanto retoma uma passagem de sua infância, quando ainda era cuidado pela mãe:

Minha mãe era submissa; introspectiva. Revoltava-se às vezes titubeante, blindada pela couraça da bebida; e apanhava. Quadrilha drummondiana às avessas: pai batia na mãe que ignorava o filho que odiava o pai. Chuva continua. Gargalhadas também. Impossível conter minha inveja. Gostaria de terminar a vida feito eles amigos judeus: dia todo blindado pelo riso coletivo. Abstrair para não sucumbir. Senhor decrépito solitário – que não tem riso coletivo nem vocábulo próprio – ali na última mesa à direita encontra mais tempo para sublinhar mesmo a contragosto o próprio declínio.

O trecho inicia-se com a memória da infância e da mãe apanhando do pai, parte para a chuva ao redor, depois para as gargalhadas dos judeus e, finalmente, o olhar para sobre um senhor solitário. A narrativa é feita de flashes que se colam de maneira embaralhada, juntando as imagens do presente com as imagens das lembranças. A intertextualidade aparece de forma clara e traz um ensinamento, como era de se esperar. Não apenas retoma o nome do poema (“Quadrilha”) como também o seu autor, Drummond. Se ainda assim não fizermos a referência, para evitar qualquer equívoco, o narrador insere, de forma pedagógica, um período de estrutura semelhante ao poema. Em seguida, temos a passagem da infância para a associação entre a chuva. A menção à chuva aparece diversas vezes no texto. Segundo o velho narrador, chove durante

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todo o tempo em que a narrativa está acontecendo. Logo, a continuidade da chuva remeteria a um choro incessante, que agoniza sua existência no limbo. A chuva/choro seria o próprio limbo. Esse lugar que é impreciso no tempo e no espaço, existe muitas vezes numa “quase-quinta”, que parece ser um tempo que jamais acontecerá. A chuva/choro será contraposta ao sentimento de felicidade, diante das gargalhadas dos amigos judeus. E outra sensação acaba se fazendo presente, a da inveja. O narrador passa a desejar esse riso em coletividade, mas o que ele realmente tem é o choro na solidão. Perceber-se diante dessa fragilidade é o gatilho para que o olhar narrativo se volte rapidamente para o ambiente a sua volta, ou seja, olhar as decrepitudes alheias para esquecer as próprias. É exatamente o que acontece. Ele passa a dar atenção a um senhor que poderia ser reflexo de sua própria figura, já que ele também está só e sem riso. O olhar para o cenário a sua volta é usado, portanto, como território de fuga. Quando os narradores começam a se aprofundar nas bisbilhotices da introspecção humana, retornam rapidamente a um espaço que lhes pareça mais próximo da normalidade, da realidade e, portanto, mais seguro. No caso da narradora que está impossibilitada de deixar a cama de hospital, esse recurso se dará pela imaginação, mas também como se recuperasse algumas memórias do que já viveu, haja vista a descrição detalhada dos locais pelos quais passa. Observemos a passagem abaixo:

Placa curiosa aquela informando sobre restauração de acordeom. Lotérica do outro lado da rua atafulhada de seres-expectáveis – quem desde sempre feito eu vítima das improbabilidades não tenta fortuna, dissimula repulsa às casualidades da sorte. Antígona? Para ela, morrer não é sofrer; seria sofrimento, sim, deixar insepulto o próprio irmão.

Mais uma vez, estamos diante desse olhar agitado que recorta a paisagem para juntá-la textualmente. Primeiramente, ela repara na placa sobre restauração de acordeom e, em seguida, nota a multidão diante de uma casa lotérica. Logo depois, o movimento é introspectivo e a narradora declara que finge repulsa às causalidades da sorte, já que sempre teve muito azar. A partir daí o salto se dá abrupto com uma referência icônica da mitologia grega: Antígona. Ou seja, passamos de casas lotéricas para Sófocles em poucas linhas. O artifício

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é interessante, pois mostra como o destino pode ser lido pela cultura humana de diferentes formas. É novamente o aviso da importância em reverenciar as culturas antigas. O dom da ubiquidade da narradora – ou seja, estar presente ao mesmo tempo em todos os lugares – sugere também esse esfacelamento gradual. Como se sua matéria, fragmentada, estivesse sendo jogada por todas as partes da cidade, compreendendo uma dimensão diferente de existência, sondando finalmente a sabedoria clássica da personagem grega, na medida em que tenta compreender a vida como algo mais simples. Antígona é a grande homenageada de Os piores dias. E pensar na filha de Édipo vinculada a contemporaneidade pode parecer inoportuno, mas atua justamente no ponto que a obra quer levantar: o resgate da sabedoria clássica como uma necessidade contemporânea. Mais uma vez, a referência trará um ensinamento. Para os que não lembram da história dessa personagem grega, a narradora, como um paciente professor, retoma: “Para ela, morrer não é sofrer; seria sofrimento, sim, deixar insepulto o próprio irmão”. Por diversas vezes, ao longo do texto, ela irá retomar e recontar a história de Antígona. E agora o leitor terá de remontar em seu acervo de leitura mais uma das tragédias de Sófocles. Nesse ponto, é conveniente analisarmos as razões do destaque para a figura de Antígona, a personagem-mentora da terceira obra. Antes disso, cabe-nos discutir a interessante fusão que se dá entre o clássico e o contemporâneo com o diálogo entre as três obras de Evandro Ferreira e a trilogia tebana de Sófocles. Segundo a ordem cronológica e não da escrita, a trilogia de Sófocles inicia com a tragédia Édipo Rei. O protagonista passa por um drama investigativo para concluir, enfim, que havia matado seu pai e se deitado com sua mãe, além de ter tido com ela quatro filhos. Uma das questões mais exploradas pelos críticos e pensadores é justamente a relação de Édipo com sua mãe Jocasta. É a alegoria que funda a conhecida noção de complexo de Édipo elaborada pelo psicanalista Sigmund Freud. Sabendo que a trilogia tem uma relação estreita com tudo que se relaciona à cultura clássica, é plausível pensarmos nas aproximações das três obras com cada uma das histórias gregas. A primeira, Minha mãe se matou sem dizer adeus, estabelece um diálogo com a primeira tragédia de Sófocles. Na narrativa contemporânea, a questão da mãe, como sugere o próprio título da obra, é uma das grandes geradoras do discurso compulsivo do narrador.

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Não podemos negar também a relação de proximidade que o narrador mostra ter com sua mãe, além do fato óbvio de que tanto a mãe do velho narrador, quanto a mãe/esposa de Édipo, Jocasta, suicidam-se. A questão problemática na narrativa contemporânea é a frustração diante da falta de uma despedida, de um aviso. Mas é justamente essa frustração que movimenta a busca pelas lembranças de infância em que o narrador convivia mais proximamente com sua mãe. O embate de sentimentos em relação a mãe é aparente, gerando conflitos emocionais, assim como quando Édipo descobriu ter se deitado com sua própria mãe. Há no velho narrador uma mistura de raiva e adoração em relação a sua progenitora:

Mais de meio século depois confirmo: minha mãe era feia bêbada louca; mas eu gostava das maluquices dela; das molequices também. Não posso negar que foi duas vezes indiferente matando-se sem dizer adeus.

A dupla indiferença da mãe questiona justamente a relação amorosa com o filho. Há uma ruptura em relação ao complexo edipiano acionada, nesse caso, pela própria mãe ao cometer o suicídio. O estado límbico, portanto, dispõe-se mais uma vez, dada a confusa relação entre mãe e filho. Em determinado momento, o narrador conta que a mãe gostava de pintar e que ele tinha guardado alguns quadros que mostravam sua loucura. Ele diz ter um de seus autorretratos conservado em uma caixa. Conta que não gosta de vê-lo, mas contraditoriamente abre a caixa todos os dias pela manhã para olhar o tal quadro por alguns minutos. A atitude narrada mostra como há, portanto, um conflito entre gostar, ou amar e idolatrar a mãe e ao mesmo tempo odiá-la, culpá-la pela sua vida de tristezas. Já na tragédia de Sofócles30, enquanto Édipo começa a desvendar algumas das partes do estranho enigma de sua vida, Jocasta parece pronunciar a voz de sabedoria suficiente para o caso:

JOCASTA: Fará sentido o padecer humano, se o Acaso impera e a previsão é incerta? Melhor viver ao léu, tal qual se pode. Não te amedronte o enlace com tua mãe, pois muitos já dormiram com a mãe 30

Para esse estudo, utilizei as traduções do professor Trajano Vieira, no qual acredito haver uma tradução mais bem trabalhada já que considera também a estrutura em versos e as rimas da obra.

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em sonho. Quem um fato assim iguala a nada, faz sua vida bem mais fácil. (VIEIRA, 2015, 83-84)

Enfim, somos todos vulneráveis a esse sentimento, a esse desejo, a essa vontade, como o próprio Freud nos ensinaria, anos mais tarde. Para Jocasta, é melhor que superemos esse desejo como algo ordinário e banal. Mas o que acontece ao nosso narrador é deflagrar-se com a possibilidade desse desejo que ele próprio não consegue desvendar. Há ainda no complexo edipiano a postura em relação ao pai, dado que o filho passa a vê-lo como um obstáculo. Como explica Freud, a identificação com o pai carrega-se de hostilidade, existe um desejo de livrar-se dele e até mesmo a ideia de ocupar seu lugar junto à mãe. Portanto, o complexo de Édipo caracteriza-se por uma atitude ambivalente em relação ao pai e por uma relação objetal afetuosa com a mãe. Em Minha mãe é possível perceber também essa relação de antipatia em relação ao pai:

Morte espontânea de minha mãe também nunca vai cicatrizar. A vida é uma ferida que só cicatriza com a morte. Vejo-o esbofeteando o rosto dela. Odeio meu pai. Esse ódio também não vai cicatrizar. Existência fica mais pesada sobre os ombros de quem odeia. Mas não consigo esconjurar essa raiva esse rancor essa ira.

São diversos os momentos em que o narrador retoma o ódio pela figura paterna. Nesse caso, o sentimento é justificado pelas brigas do casal e pelo comportamento violento do pai. Ainda assim, é importante assinalar que a relação se aproxima daquela elaborada a partir da peça grega. Trajano Vieira explica que, na verdade, Édipo Rei é uma obra sobre a cegueira do homem e a desesperada insegurança da condição humana, pois, de certo modo

todo homem deve tatear no escuro como Édipo tateia, sem saber quem é e o que tem a sofrer; vivemos todos num mundo de aparência que oculta de nós quem-conhece-que terrível realidade (VIEIRA, 2015, 170).

Logo, os sentimentos ambíguos do velho narrador são uma resposta a um mundo em que nossa vulnerabilidade para o sofrimento desponta o tempo todo. E o artifício da trilogia é usar o clássico em seu projeto estético literário para mostrar como a experiência de vida é atemporal e pode ser o tempo todo resgatada. Na verdade, os narradores usam seu 144

anacronismo como estratégia para atentar para a profundidade inerente também ao contemporâneo, ainda que o contexto atual nos pareça cada vez mais superficial e raso. É ainda uma maneira de questionar a relevância do incesto, colocá-lo como ação relativa, como aponta Jocasta no trecho acima. É colocar em suspensão todas as convenções sociais, partindo sempre de um olhar enviesado perante a realidade. A ambiguidade da relação amorosa materna também é mostrada na obra O mendigo quando narra as frustrações entre o menino-borboleta e a mulher-molusco:

A-hã: há um não querendo (e) querendo solto no ar. Sentimento ainda mais intricado quando perdido nos labirintos da miserabilidade in totum. Agora um olha para o outro a distância. Pacto velado. Ele finge ser filho; ela, mãe – para que tal gesto aparentemente incestuoso tenha mais prazer. Édipo e Jocasta inconclusos – evitando que o menino-borboleta fure os próprios olhos e abandone a sua Tebas. Soube por ele mesmo que esse embate entre aspas erótico nunca ultrapassa os limites da mordidura. Mesmo nas mais profundas misérias, nas profundezas abissais, ainda há a possibilidade do exercício fantasioso. Ela agora ameaça sorriso acanhado no canto da boca; ele mostra toda a língua à semelhança de Einstein. São as surpreendências da vida. O inferno é o único lugar onde há liberdade – ela amada disse-me uma vez.

O primeiro a se notar é mais uma vez a marca gráfica dos parênteses que apresenta em sua forma textual a questão límbica a que me refiro. A existência ou não do “(e)” reforça a sensação hesitante a que o narrador se refere. Contraditoriamente, mais adiante, ao mencionar as aspas, vai fazê-lo no discurso do texto e não como marca gráfica. A menção seguinte é justamente o caso de Édipo e Jocasta, como se essa condição fizesse com que o ato ficasse mais “prazeroso”. Como vimos, o menino tem por hábito morder inesperadamente o sexo da mulher-molusco, ao que ela, imediatamente, repele-o. Mas o narrador chama-os de “inconclusos”, deixando-os em estado transitório, no meio termo, naquele “quase” lugar, entre ser ou não ser “mãe e filho” e “amantes”. Ele menciona esse “exercício fantasioso” e conclui que só se tem liberdade no inferno. Questiona justamente os paradigmas sociais, sua cultura, suas regras e convenções. Põe em cheque o ato de transgressão que é o incesto. O texto de O mendigo coincide também com a segunda tragédia de Sófocles: Édipo em Colono. Édipo, o “andarilho pluri-sofrente”, segundo a tradução de Trajano Vieira, decide abandonar Tebas e exilar-se em qualquer lugar distante do cenário de sua catástrofe. Suas duas filhas, Ismene e Antígona são as únicas a apoiá-lo. Com os olhos já perfurados, Édipo vaga ao léu pelas cidades como forma de punir-se pelo ato criminoso que havia 145

cometido. Depois de muito tempo andando, decide por ficar em Colono. Quem o guia, nesse caso, é sua filha Antígona. Na peça de Sófocles, o limbo é regatado sobretudo quando retoma a confusão de sentimentos e de relações causadas pelo incesto. Veja-se o trecho de Édipo em Colono quando Ismene chega para encontrar Édipo e Antígona:

ÉDIPO: Filhas-irmãs! ISMENE: Duplo viver sofrível! ÉDIPO: Eu. Ela. (VIEIRA, 2016, p. 43)

O termo “filhas-irmãs” proferido por Édipo resgata justamente a relação ambígua entre eles. Antígona e Ismene não podem ser categorizadas em um limite exemplar, pois carregam consigo a culpa do duplo, são as filhas e irmãs de Édipo. Também por isso, trariam o duplo sofrer que Ismene menciona, pois as ações de Édipo ferem-nas duplamente, como filhas e como irmãs. Outra vez é possível recuperar a noção de “andarilho”, tão próxima da condição do mendigo, com a do monge ou do sábio eremita. Édipo, ao ter se punido pelo seu destino cruel, acaba tornando-se uma espécie de profeta, que podia prever os acontecimentos futuros, enquanto caminha a “trouxe-mouxe” pelas regiões gregas. No livro de EAF, o mendigo passa a vagar pela cidade apressurada também como forma de punição. A perda da visão está relacionada a loucura do mendigo. Pois o cego, em Édipo, passa a ver mais claramente que aqueles que possuem olhos. O mesmo movimento acontece com o mendigo que, açoitado pela possibilidade da loucura passa a enxergar a realidade, ironicamente, com mais lucidez. A sabedoria de Édipo, no entanto, mostra-se ao final da tragédia. O mesmo não acontecerá ao nosso narrador contemporâneo. A cidade apressurada não lhe dará a chance de mostrar seus conhecimentos, ele será engolido pelas turbulências da contemporaneidade. Sua intelectualidade e sua sabedoria ficarão escondidas em meio aos miseráveis e ao lixo, formando junto com os restos da metrópole mais um corpo a ser ignorado pela multidão.

146

Há um trecho em O mendigo que a aproximação com a tragédia de Sófocles aparece notadamente:

Outra riqueza que trago comigo é este chaveiro. Presente dela. Lembrome de detalhes: estávamos de mãos dadas numa pequena cidade turística; ela parou de súbito diante da vitrine de uma loja de souvenir, dizendo: Chaveiro ali parece com você. Referia-se a essa esfinge de prata que guardo até hoje. A-hã: decifra-me ou te devoro.

Na relação explícita que se mostra entre a esfinge e o narrador, percebemos que o mendigo seria o próprio mistério a ser desvendado cumprindo duplamente a função de Édipo e sua esfinge. Ou seja, o labor literário que passa pela agitação da loucura manifestase no sentido de tentar resgatar em si mesmo as respostas às próprias perguntas. E a questão do duplo e do limbo aparecem novamente como motor fundamental. Chegamos, enfim aos últimos livros das trilogias: Antígona e Os piores dias de minha vida foram todos. E, dessa vez, o paralelo com a obra grega é declarado, pois há diversas menções à personagem ao longo das páginas. Logo no início da narrativa contemporânea, a narradora pede a companhia da personagem grega: “Venha, luminosa Antígona, seja minha carpideira: também estou sendo enterrada viva”. A luz da personagem grega é requisitada para contrapor a escuridão da morte, do enterro, do momento final da narradora doente. A solicitação é de que a personagem seja sua carpideira, revelando que a própria narradora não se sentiria digna dos prantos de seus entes queridos, já que as carpideiras são profissionais que eram pagas para chorar um defunto que não conheciam. O pedido mostra também a aproximação que a narradora acredita ter em relação à poderosa figura grega, porque se coloca no mesmo lugar que ela. Recapitula, por fim, a triste morte de Antígona, que foi “enterrada viva”, colocada em uma gruta, no escuro, recebendo porções escassas de comida, para morrer aos poucos. A própria expressão “enterrada viva” carrega em si um conflito semântico, já que nos aproximamos da noção de morte e de vida ao mesmo tempo. Na tragédia grega Antígona, Sófocles remonta a história da filha de Édipo, quando este já havia falecido. Quando Antígona volta para Tebas, depois de acompanhar seu pai até os últimos momentos de vida, descobre que seus dois irmãos, Polinices e Etéocles, estão brigando pelo trono. Os dois acabam se matando, deixando o comando para o tio Creonte, irmão de Jocasta. O novo rei considera Polinices um traidor, pois ele havia organizado um exército para tirar Etéocles do poder, tendo atacado, portanto, sua própria 147

cidade. Por essa razão, Creonte decide não fazer os rituais fúnebres com o corpo de Polinices como havia feito com Etéocles. Antígona, por sua vez, implora que enterrem seu irmão com todas as honrarias, para que ele possa chegar ao mundo dos mortos. E, não sendo atendida, decide, ela mesma, roubar o cadáver e enterrar Polinices. No entanto, é descoberta cometendo o ato ilegal. Sua condenação é ser enterrada viva. Para a narradora doente esta é a exata situação em que ela se sente, como se estivesse sendo “enterrada viva”. É preciso lembrar que a narradora fica imóvel na cama de hospital, aprisionada em um espaço exíguo e insípido. No entanto, como Antígona, ela tem uma intelectualidade pulsante e completa consciência do lugar e condição em que se encontra.

Vê-se

a

contraposição

de

conceitos

“luz/Antígona/viva”

X

“gruta/narradora/enterrada”. Mantém, portanto, a narrativa fundamentada nas oposições. Logo em seguida ao pedido à Antígona, a narradora continua:

Vítima de algoz possivelmente da mesma genealogia de rei tebano, caminho lentamente para o ocaso, submergindo-me nas areias movediças do desespero, do desencanto. Medo, muito medo. Só é possível conhecer a si mesmo diante do patíbulo.

Faz, portanto, referência a Creonte e à morte vagarosa causada pelo câncer. Retoma, logo depois, a imagem da areia movediça que apareceu em O mendigo. Leva-nos para o estado de limbo, em que a morte está para acontecer, mas ainda não se realizou. Aponta para a questão da falta no uso repetido do prefixo “des-” (“desespero”, “desencanto”). E revela, por fim, que conhecer a si próprio, como proposto pelo “chaveiro em forma de esfinge” do mendigo, é uma meta que só se consegue diante da forca, estando à beira da morte, ou seja, estando prestes a morrer, naquele curto espaço de tempo entre o findar da vida e o início da destruição, ou seja, no limbo. Por outro lado, é interessante perceber que a filha de Édipo não hesita em cumprir o papel que acredita ser o justo e correto. As atitudes de Antígona são destacadas pela narradora:

Antígona? Transgredindo leis reais, aventurou-se, tentou inútil enterrar o próprio irmão espalhando poeira macia sobre seu corpo dilacerado, condenado a decompor-se em praça pública, devorado pelos cães, pelas aves de rapina. Sófocles, evitando interpor-se, deixou Creonte exercer cruéis instintos de ferocidade contra a própria sobrinha, que em nenhum momento ficou dividida quanto às antinomias entre lei humana e lei divina. Sabia que nada iguala a glória de uma bela morte. 148

Ou seja, ela enterrará o irmão e fará as honras necessárias nem que isso custe sua própria vida. Nem Sófocles apiedou-se de Antígona, segundo a narradora. Mas, mais relevante é a afirmação contundente de que a personagem grega “em nenhum momento ficou dividida quanto às antinomias entre lei humana e lei divina”. A força de Antígona estaria na capacidade de perceber que as contradições entre as leis regentes no período clássico não a afligiram de nenhuma forma. Ela sabia exatamente o que fazer e aceitava a morte como algo necessário e inerente a sua conduta. Quando Ismene tenta convencê-la a desistir de seu plano de enterrar Polinices, a resposta é clara:

ANTÍGONE: Se insistes nesse assunto, ao meu desdém acresces o desdém de um morto justo. Problema meu sofrer as punições, com meu projeto louco. O que eu suporte não há de me tornar a morte ignóbil. (VIEIRA, 2016, p. 30)

Na verdade, segundo Vieira, Antígona já estaria vivendo como se estivesse morta, pois as coisas que poderiam fazer sentido em sua vida – como sua irmã Ismene e seu exfuturo marido, Hemon – já não lhe interessavam mais. A narradora de Os piores dias também acredita nessa hipótese. Para ela, Antígona já vivia no limbo, no entanto, resiste a ele:

Antígona? Entregue ao limbo monstruoso. É a própria consciência ética. Virgo Lea – leoa virgem. Enfrenta, altiva, o tirano implacável, instaurador da desordem entre os homens e os deuses, o qual proíbe até que o corpo do irmão dela seja levado para além dos muros da cidade.

Há em Antígona a posição solitária, daquela que foi isolada no seio da própria família, nascida na contracorrente. Seu próprio nome indica esse retraimento, pois Antígona significa “Antinata”, “Antigerada” (VIEIRA, 2016, p. 17). Ela não deixa descendentes mas faz ressoar sua voz contrária. Como explica Trajano Vieira, “os heróis de Sófocles caracterizam-se pela situação de total isolamento em que se colocam” (VIEIRA, 2016, p. 1). E podemos dizer o mesmo dos nossos narradores, os quais constroem para si modos solitários de estar no mundo. O que motiva o exílio das personagens clássicas funciona também para os narradores contemporâneos da trilogia. “A 149

dificuldade de adaptação a um mundo norteado por regras cambiantes evidencia a fragilidade e a grandeza desses personagens” (VIEIRA, 2016, p. 13), diz Vieira sobre as figuras clássicas. E podemos pensar que o mesmo entendimento serve para os narradores contemporâneos da trilogia, pois também eles têm dificuldades para se adaptar a esse mundo. No entanto, diferentemente dos três narradores, Antígona não precisa de escudos ou amparos. Ela não precisa de invisibilidade ou de palavras que a protejam, pois Antígona é regida pelas próprias leis. “Honra as leis dos deuses ctônicos, mas, antes de tudo, faz sua própria lei”, diz a narradora. E seus princípios não se baseiam na moral ou justiça, são, para ela, condutas inquestionáveis, indubitáveis, sem hesitações:

Condenada a viver entre os mortos. Sabe, mais que ninguém, que carregamos a morte em vida. Não é por obra do acaso que não estremece diante dela. Precisa enterrar corpo do irmão. É assim porque é assim.

Ou seja, não há questionamentos. A vida para Antígona, portanto, não é um ponto crítico; ela é, em sua definição e entendimento, pronta e determinada. A morte, como consequência, também. Antígona, por sua representatividade opõe-se de forma contundente ao estado de limbo. Curiosamente, sua clareza em relação aos seus atos passa a ser confundida com loucura na tragédia:

ANTÍGONE: (...) O fim precoce é um benefício a alguém que sobrevive num ambiente sem escrúpulos. Impossível não ver na morte um ganho. Quase indolor é a moira derradeira, se comparada à dor de relegar ao relento o cadáver de um irmão. Não sofro dessa dor. Se alguém julgar insano o modo como agi, bem mais insano que esta insana é quem me diz. (VIEIRA, 2016, p. 49)

Para Antígona, a morte tem mais sentido que uma vida incoerente com as leis dos deuses. E ela também questiona os limites da insanidade.

150

Também pela sua coragem e determinação, Antígona é, por excelência, o elogio à mulher. É símbolo de homenagem à força e poder das mães, amantes, amigas e filósofas na trilogia. Esse emblema do empoderamento feminino permeia todas as obras. De início, é a mãe desajustada a responsável pelas frustrações do narrador. No entanto, como aprendemos, o seu desvio transforma-se em mérito por ressaltar uma personalidade rara, que carregava consigo a consciência do sofrimento da vida. Ainda nessa mesma obra, a personagem-mentora vem a ser uma amiga filósofa, que entrega ao narrador as cartas de outra mulher, da mãe também suicida. Muitos trechos da carta são apresentados na obra intercalando-se aos ensinamentos da amiga filósofa. São também aforismos ou aprendizados a serem seguidos:

Mãe dela amiga filósofa disse num trecho da carta despedida que todas as prisões são parecidas, paredes feitas de dor e cimento, secreções que se coagulam e vão formando o passado incontornável que se ergue até o teto”.

Na obra seguinte, O mendigo, a amada é a figura feminina dominante. E, embora Erasmo seja o mentor, é a Deusa da Loucura que atravessará as páginas cada vez que o mendigo sentir que está se perdendo em seus desvarios. Por fim, temos a narradora doente de Os piores dias. Em confluência com Antígona, a potência feminina fica então mais aparente. Na sua ubiquidade, mostra-se também esse esfacelamento que assume um caráter quase divino, como se seus fragmentos estivessem sendo pulverizados por toda a parte. A impressão de sabedoria e compreensão em relação a existência se eleva na última obra e é a figura feminina que dará conta desse processo. Para além disso, o amigo extinto, nas diversas passagens em que aparece, trata a narradora doente como igual, sem inferiorizar o discurso da mulher. Eles são equiparados, colocados sob o mesmo nível de compreensão intelectual: “Entre nós? Busca cooperativa do riso; nunca houve hierarquização de afetos. Depois de sua morte entreguei-me de vez aos solilóquios. Relacionamento substantivo feito de admiração mútua”, ou ainda: “Nossa amizade tornava possível ir além das sombras projetadas na parede: um ajudava o outro a sair da caverna”. Márcia Tiburi, ao falar sobre a narradora de Os piores dias elucida:

Uma figura feminina para além dos estereótipos da mulher: ela é mulher, mas fala de seus amigos homens, amigos que eram homens de estudo, escritores, filósofos. Homens com quem ela conversava sem preconceitos de gênero, e sem afetos eróticos como deve haver nas construções 151

estereotipadas. Homens com quem ela convivia em irmandade profunda31.

É possível ainda chamar a atenção para outras personagens femininas que são brevemente citadas, mas que aparecem associadas à intelectualidade ou a coragem, como a filósofa cínica Hipárquia, a Penélope de Odisseia, a escritora Virginia Woolf, a intelectual Heloísa, a cantora Billie Holiday e até a mendiga de generosidade genuína, a mulhermolusco. Vale notar que são mulheres excêntricas, no sentido de que destoam da realidade em que vivem e, em sua maior parte, figuras tidas como alheias à contemporaneidade. Ademais, outro dado importante advém da escolha da narradora em inserir a famosa personagem trágica na narrativa contemporânea: a vontade insistente de resgatar a sabedoria clássica. Se na antiguidade os limites pareciam mais claros, na atualidade, é preciso juntar as migalhas de saberes para tentarmos formar um todo. As narrativas da trilogia, ao girarem em torno de si mesmas, sem necessariamente articularem alguma ação que dê movimento ao enredo, mostram que a construção dos discursos (literários) dos narradores é feita justamente deste ajuntamento de fragmentos. Mesmo porque não é o ato em si que deve ser o mais importante a se narrar, mas as reflexões diante do que foi feito e do que poderá acontecer. E nesse apanhado não há nenhuma intenção de se contar uma narrativa linear. O que temos são pedaços de memórias, reflexões sobre a vida, homenagens a intelectuais. Isso tudo vai preenchendo o vazio da existência sem caminhar para lugar algum. Enquanto os narradores refletem sobre as próprias incongruências e a complexidade humana, o leitor é atravessado por inúmeras referências da música, cinema, literatura e filosofia, numa miscelânea extravagante invariavelmente relembrando ícones do passado. Passamos por Maquiavel, Nietzsche, Tomás de Aquino, Portinari, Eurípedes, Byron, Aristófanes, Johnny Mercer, Demóstenes, Thomas More, Platão, Cole Porter, Mizoguchi, Diadorim, Bruno Schulz, Tirésias, Bocaccio, Villa-Lobos, Dante, Humphrey Bogart, Heráclito, Kazantzákis, La Rochefoucauld, Santo Agostinho, Sherazade, Van Gogh, Lutero, Tchaikovsky, Otto Maria Carpeaux, para citar alguns. São estilhaços de uma erudição que precisa conviver atônita com as inteligências da vida apressurada da

Resenha sobre Os piores dias de minha vida serão todos publicada no blog da Revista CULT: “Pelo direito à literatura – sobre Os Piores Dias De Minha Vida Foram Todos de Evandro Affonso Ferreira”. Disponível em: Data de acesso: 07/01/2017. 31

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atualidade, da vida que desvaloriza e ignora os pensamentos clássicos, que os entende como antigos ou obsoletos. Pensando em uma poética de restos – entendendo restos como uma parte indesejada e pouco lembrada –, é sempre possível lembrar da poesia de Manoel de Barros. O escritor buscava o estado primitivo das palavras, procurando dar a elas outra ordem, outro significado, usando os destroços e as sobras para fazer sua obra. Veja-se, por exemplo, o poema em que o eu lírico trata justamente desse processo criativo que se articula a esse caminhar de andarilho:

Eu já disse quem sou Ele. Meu desnome é Andaleço, Andando devagar eu atraso o final do dia. Caminho por beiras de rios conchosos. Para as crianças da estrada eu sou o Homem do Saco. Carrego latas furadas, pregos, papéis usados. (Ouço harpejos de mim nas latas tortas.) Não tenho pretensões de conquistar a inglória perfeita. Os loucos me interpretam. A minha direção é a pessoa do vento. (BARROS, 2000, p. 85)

Quando se coloca no mundo como andarilho e como poeta, a trajetória harmonizase com a mendicância, com a loucura e com a volubilidade do vento. Irmanado à natureza, a figura do andarilho, na obra de Barros, tem a propriedade de se desprender dos valores consumistas e da rotina produtivista do capitalismo. A poética de Manoel de Barros costuma usar palavras inusitadas para construir seu texto. Daí percebem-se termos como “latas furadas, pregos, papéis usados” que indicam essa escolha por aquilo que poderia ser deixado de lado, por parecer desimportante. Mas há também um esvaziamento, uma tentativa de coisificar a palavra que tanto no eu lírico de Manoel de Barros como nos narradores de EAF mostra uma preocupação com a harmonia sonora do texto. O uso do inusitado seja pela raridade das palavras ou pelo tema voltado ao clássico e tradição é o que remete os dois textos a essa poética de restos. É fazer poesia com aquilo que já não está em relevância. Ao mesmo tempo, nesse momento se constrói a força da escritura, tentando elaborar literariamente um sentimento que se aproximaria do estado de louco, que, por vezes, é um estado questionável. Portanto, tanto nos narradores como no eu lírico manoelino esse procedimento está mais associado à situação do desencaixado, do deslocado, do proscrito. 153

No trecho seguinte, retirado de O mendigo, é possível perceber o uso inusitado de palavras que preza também pelo efeito sonoro: “Desamor deixou-me desconforme. Salamandra quimera hidra fênix, ou qualquer outro ser de igual jaez – sou sim”. O primeiro período constrói-se com a aliteração no som do fonema “d”. Além disso, temos o artifício já mencionado dos prefixos “des-”. Em seguida, lemos uma sequência de palavras pouco comuns que não são sequer separadas por vírgula. À primeira vista, elas podem parecer não fazer sentido. Um olhar mais atento, no entanto, revela que se trata de termos que se referem a seres mitológicos. Logo, as partes quando juntas proporcionaram uma forma singular, mas que carregam um sentido enfático que em tudo se aproxima da proposta da trilogia, qual seja, a de resgatar para o contemporâneo as referências clássicas e passadistas. Quando retoma a mitologia, traz na esteira o conhecimento da cultura grega, por exemplo. Mostra, deste modo, esse olhar envelhecido sobre o presente. Pensar sobre a figura do “andarilho mnemônico” é também relevante no sentido de que mostra como esse narrador pode ser ele próprio construído de restos. Mnemônico remete à memória, às lembranças, ou ainda àquilo que restou da sua memória, àquilo que restou de seu passado. São as sobras de um tempo que já não existe mais, os resquícios de um amor que se acabou há dez anos. Como um amontoado de lembranças fragmentadas, o mendigo caminha sem direção por debaixo dos viadutos. Ele não tem um destino final, ele não tem um lugar definido. Nesse sentido, é curioso pensar nesse vagar sem rumo e sem um espaço determinado. É a falta de direção que simula o istmo a que me refiro metaforicamente. E se esse espaço existe na ficção, ele é substanciado através de lembranças, da memória, é preenchido pelas palavras que constroem um texto musical e passadista. O mendigo é, por si só, um resto que caminha abandonado e sem rumo pelas ruas da cidade. Até o fim da obra ficamos em suspenso, desconhecedores do seu destino final. Ademais, se as sobras podem ser usadas na forma literária, percebe-se que o mendigo, o velho e a doente moribunda corroborariam essa acepção, já que eles próprios seriam a sobra da sociedade. Na verdade, eles estão situados em um espaço específico, qual seja, esse istmo metafórico, à margem, proscritos, pois não se encaixam em nenhum lugar. Os três narradores também ocupam um espaço social semelhante. São, em certo sentido, inseridos na sociedade, pois dela conseguem retirar a cultura e intelectualidade necessárias para construir seu discurso. Simultaneamente, essas três figuras parecem ser 154

quixotescas e apátridas e, de certa forma, impulsionadas por um autoexílio, como se não sentissem que pertencem efetivamente a lugar algum. Afinal, sem elos ou ligações afetivas que lhes prendam à realidade, esses seres permanecem afastados, isolados e incompreendidos, já que também não compreendem bem as condutas contemporâneas de comportamento. Sobrevoam a cidade, como flâneurs, mas sempre próximos do chão. Ninguém sente falta dessas presenças, elas são o próprio restolho, ainda que vivam ativamente nessa cidade atribulada. Logo, temos aqueles, que são tidos como restos, construindo um discurso que se estrutura também nas sobras, nos cacarecos, no entulho das palavras perdidas dos dicionários desconhecidos. Sobrepõe-se, assim, um discurso de sobras, restos, monturos, aos narradores que são aqueles que sobram, não se encaixam, e são, portanto, o próprio destroço. O resto passa a ter outra acepção que é muito significativa, na medida em que resgata as anomalias da contemporaneidade e consegue burilá-las a ponto de encontrar nelas a poesia necessária para a sobrevivência. Neste ponto, é conveniente estreitar novamente algumas questões com a já mencionada obra de Jacques Derrida, O cartão postal – de Sócrates a Freud e além. No início do livro, ao fazer uma breve apresentação sobre a obra, o filósofo adverte:

Por respeito ao que ainda aprecio nele, prevejo então a impaciência do mau leitor: chamo ou acuso desta maneira o leitor amedrontado, apressado para determinar-se, decidido a se decidir (para anular, ou em outras palavras, para reduzir a si, deseja-se assim saber antecipadamente pelo que esperar, deseja-se esperar pelo que aconteceu, deseja-se esperarse) (DERRIDA, 2007, p. 10).

Intimando o leitor reducionista, Derrida afronta as formas fáceis da compreensão literária. Questiona o leitor apressado, que participa da leitura como mero objeto de consumo e não como iniciativa de fruição e prazer. Interpela, portanto, o leitor impaciente que clama por limites quando ele próprio não conseguirá compreendê-los. O que Derrida propõe é sobretudo a abolição da redução, da simplificação, de uma verdade objetiva. Uma leitura que se construa, portanto, no ato em si. Derrida entende que

o real sempre escapa a qualquer conceitualização, ou seja, nossas palavras, nossos conceitos, pretendem dar conta de algo que é da ordem do escapamento, pois nada nos assegura, nenhuma fórmula ou lei, que a 155

realidade se dá dessa ou daquela maneira, só nossa própria afirmação de que é assim que ela se apresenta (HADDOCK-LOBO, 2014).

É a ideia, portanto, de apresentar através de quase-conceitos um sistema aberto, que, por não se fechar em si mesmo, não pretende dar conta do real, quer dizer, não esgota as possibilidades de interpretação do real, pois sempre será possível que se conceba outras e outras maneiras de o pensamento relacionar-se com a realidade. Como elucida o professor Haddock-Lobo sobre Derrida, “esses indecidíveis, ou simulacros de conceitos, habitam uma região bem estranha à filosofia, numa proximidade com a literatura que desde a década de sessenta causou estranhamento aos filósofos mais conservadores” (2014). Também por isso Barthes afirmaria que “o espaço da escritura deve ser percorrido, e não penetrado” (BARTHES, 2004, p. 63) É justamente o que fazem os narradores da trilogia, exprimem a complexidade da experiência da vida, num emaranhado literário tão intricado quanto a vida possa parecer e ser. Enquanto o mendigo agoniza em não saber qual o seu estado psicológico de fato, se louco ou são – mantendo a dúvida, o abstraimento, a indeterminação – procura ao mesmo tempo as palavras para reduzir a si, determinar-se, decidir o estado a que chegará: “destrambelho in totum”, “doidice absoluta”, “loucura in totum”. É a angústia de não poder definir-se, nomear-se, rotular-se. Ele ameaça a tentativa de categorização, mas não consegue conclui-la ou realizá-la, pois está justamente neste estado transitório. Permanece no limbo, estancado, onde nada se resolve, no istmo. Nem louco nem são, nem vivo nem morto, inclassificável, inominado, para fazer referência direta à obra de Beckett. Igualmente em O Inominável, a voz anônima não chega a conclusões, avança com contradições, reflexões intermináveis e permanece estagnada. As inquietações do mendigo que não consegue se decidir, assemelham-se muito às titubeações finais da obra de Beckett:

(...) é preciso continuar, não posso continuar, é preciso continuar, então vou continuar, é preciso dizer palavras, enquanto houver, é preciso dizêlas, até que elas me encontrem, até que elas me digam, estranha pena, estranho pecado, é preciso continuar, talvez já tenha sido feito, talvez já tenham me dito, talvez já tenham me levado até o limiar da minha história, diante da porta que se abre para a minha história, isso me surpreenderia, se ela se abrir, vai ser eu, vai ser o silêncio, ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar. (BECKETT, 2009, p. 184-185). 156

A hesitação do narrador coloca-o também nessa posição ambígua, inconciliável, em que se percebe a necessidade de uma resolução – “é preciso continuar” – mas constata, ao mesmo tempo, que essa decisão não é factível – “não posso continuar”. E entre o movimento de prosseguir ou não, ficamos mais uma vez no limbo, estagnados. Outro exemplo interessante que pode contribuir para essa compreensão do limbo narrativo, é o conto “Conto (não conto)” do escritor brasileiro Sérgio Sant´Anna. O texto também toma como ponto de partida a discussão sobre o narrar:

Aqui, um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma cobra, talvez, insinuandose pelas pedras e pela pouca vegetação. Mas o que é uma cobra quando não há nenhum homem por perto? 32

Questiona justamente o espaço da ficção e titubeia entre contar ou não uma história, fazê-la parecer real ou não. A própria definição de narrar, de articular a trama, de escolha dos personagens é desconstruída todo o tempo. A sequência narrativa é confusa e as ações e personagens parecem contraditórias. A partir disso, faz-nos refletir sobre a vivência e sobre como a literatura seria a própria existência. Conclui:

Não existe história onde nada acontece. E uma coisa que não é história talvez não precise de alguém para contá-la. Talvez ela se conte sozinha, mas contar o que? Se não há o que contar. Então está certo: se não há o que contar, não se conta. Ou então se conta o que não há para se contar.33

O desenlace curioso do texto é que nesse processo de hesitação, o narrador faz uma narrativa sem ter efetivamente narrado nada. O mesmo procedimento é observado na trilogia de EAF. Na sua poética de restos, construída sob olhares atentos de narradores desajustados, as pequenas narrativas, as reflexões e a obsessão pela intertextualidade e referências, montam, na verdade, uma narrativa que nada tem para narrar. Não há propriamente um enredo, uma ação, um acontecimento. Os únicos eventos que poderiam ocorrer, como a morte ou a chegada da loucura para os diferentes narradores, ficam em suspenso, inacabados. É uma narrativa que reflete sobre si mesma, sobre o ato de narrar, mas sobretudo, uma narrativa que não narra. “Conto (não conto)” consta na coletânea organizada por Ítalo Moriconi, Os cem melhores contos brasileiros do século, Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, pp. 518-521. 33 Idem. 32

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Assim, a tagarelice do mendigo se mostra em sintonia com as experiências atuais, com a dificuldade de se comunicar, com o limite fluido, com a escrita em crise, mas, ao mesmo tempo, como solução temporária. Como explica Felman, escrever sobre a loucura envolve, precisamente, a necessidade de encontrar na linguagem algo radicalmente estranho (FELMAN, 2003, p. 18). É esse estranhamento, também proposto por Derrida, que será o motor para a escrita. Por isso, o filósofo francês insiste na apresentação inicial de sua obra:

Quem escreve? Para quem? E para enviar, destinar, expedir o quê? Para que endereço? Sem nenhum desejo de surpreender, e com isso de captar a atenção por meio da obscuridade, devo, pelo que me resta de honestidade, dizer que finalmente não sei (DERRIDA, 2007, p. 11).

Admitir a impossibilidade de resposta é o passo importante da literatura. É apontar para um caminho que se mostra irremediavelmente sem saída. Mas é aceitar que o exercício da fala, da escrita, do discurso, do texto, da literatura, enfim, é o procedimento inescusável a todos os narradores desse tempo. A loucura tratada nas páginas de O mendigo dialoga com a crise da atualidade, e aponta para a Antiguidade, para a sabedoria clássica como escapatória para essa tensão. Chegamos a uma fronteira da escrita. Mais ainda, concordamos com Felman quando ela afirma que a loucura passou a ser lugar comum, deixou de causar estranheza, e esse seria, precisamente, o fator mais estranho, o mais “louco” do discurso contemporâneo (FELMAN, 2003, p. 14). Especificamente na obra de EAF, essa demarcação é atingida pelo desgaste da convivência humana, de uma sociedade que não olha para os dejetos e restos, ignora-os. É a mesma relação estabelecida pelas poesias de Manoel de Barros. O louco, não poderia ser, portanto, um intelectual acadêmico, mas alguém que estivesse fora desse sistema da vida mundana, que sobrasse, fosse restolho, estivesse à margem – “Sou apenas pária. Vivo à margem” – diz o mendigo. É necessário alguém que conseguisse olhar o lado de fora da máquina; que concebe figuras humanas em estado de decrepitude, como se todos os outros estivessem presos na caverna de Platão: “Difícil saber quem é mais infeliz: eles, que estão sentados na caverna de Platão, contemplando, bêbados, as sombras, ou eu, sob a luz da loucura, vendo as coisas como elas são na realidade”, explica o narrador farândola. Por isso, o mendigo, o velho e a doente se mantêm afastados. “Não estreitava relações com nada-ninguém”, diz a narradora. “Não me junto nunca-jamais aos outros 158

maltrapilhos. Eremita metropolitano – sou sim”, reitera o pobre narrador. Há um claro posicionamento de presunção, como comparado antes com Simão Bacamarte. É como se, aos poucos, essas figuras rechaçadas acreditassem sentir que estão tateando a verdade íntima da existência. Eles não são como os outros, sem cultura, sem intelectualidade, sem poesia. Partindo desse entendimento, podemos compreender que a mensagem é que, em meio ao caos e ao lixo urbano, o que deve restar/sobrar é a poesia, a intelectualidade, a cultura, ainda que seja difícil encontrá-la entre os escombros. A filósofa Márcia Tiburi consegue resumir bem esta ideia quando comenta sobre a segunda obra da trilogia:

Mais longe, descobrimos que é a erudição como emblema do conhecimento inútil, que está sendo questionada como escape, como resto que se tem às mãos em um mundo que só valoriza bens materiais, poder e vida fácil, e que reduz a corpo, à mera vida sobrevivente, todo aquele que por motivos vários, não suportou a luta de vida e morte em que sempre vence a ordem aviltante das coisas. No fundo, há o sistema sustentado em miséria e dor, um sistema em que toda a cultura é tratada como lixo e em que o lixo tem muito mais chance de se tornar “cultura” 34.

Essa inversão de valores a que remete a filósofa é essencial para compreensão dos discursos. É a sabedoria que se vê fragmentada e deixada de lado por um sistema que não mais a reconhece. É a resistência em existir para permanecer avisando a todos que, ainda que isso tudo seja o resto, o lixo, é a sobra evidente de uma verdade existencial. Para a filósofa, este é também um romance sobre a fragilidade da memória. Por isso, a noção de que a cultura está se perdendo pode ser representada na figura deste mendigo. Conforme a sociedade cruel o consome, seu conhecimento vai se esvaindo, e ele aos poucos não saberá mais quem é. A percepção mais contemporânea do mendigo está exatamente no que consegue observar a sua volta, no mais, sua vida se faz apenas de passado. Como um monge ou profeta, retoma as personalidades da mitologia grega ou de fábulas, mostrando que a sabedoria milenar, anciã, se sobressai facilmente quando comparada a qualquer conhecimento atual.

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Texto disponível em , último acesso em 09/10/2012.

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O desconforto relatado pelo mendigo é também representativo de um sintoma presente na sociedade atual, que precisa ser desvendado e analisado. O jornalista Roland Jaccard, em introdução ao livro O indivíduo: entrevistas do Le Monde – que traz uma seleção com psicólogos, cientistas, psicanalistas, teóricos e estudiosos da mente e do comportamento do século XX – explica que

o homem da época moderna, quando não é esquizofrênico, é basicamente esquizoide; incomunicabilidade, solidão, tédio, melancolia, desgosto, estas palavras-chaves de seu sofrimento constante e aceito fazem parte integrante de sua experiência (1985, p. 7).

Há, portanto, um descompasso entre os ininterruptos acontecimentos da sociedade e a maneira como o homem consegue lidar com essas adversidades. Há, como já se sabe, uma crise de subjetividade que se mostra pelo gosto da fragmentação e pela descontinuidade. Em suma, Jaccard aponta para “essa incapacidade de enfrentar o presente de outro modo que não sob a forma do desespero para os mais lúcidos e da indiferença para as massas” (1985, p. 9). A farandolagem que rodeia o mendigo representa de maneira exemplar esse desconcerto. Eles não foram capazes de entrar no compasso da modernidade, ou porque se viram subjugados a um sistema capitalista que não oferece espaço a todos, ou porque perderam a esperança de dar algum sentido à vida. Vivem ali recusados, sem alterar o movimento da cidade, “dividindo o abandono, fazendo partilha mútua do desprezo”, explica o maltrapilho. O destrambelho – o desvario, a doidice – é a força geradora da fala compulsiva e desenfreada do mendigo. Mas também da fala do velho moribundo e da narradora doente. Os três, da mesma forma, encontram na literatura a válvula de escape para seus embates mentais, psicológicos e espirituais. É preciso livrar-se do trauma, é preciso livrar-se da dúvida. Ou, ao menos, tentar. Neste ponto, voltamos a uma questão importante: o mendigo não sabe se é melhor morrer ou ficar louco; permanece moribundo – a amada “descuidou-se do tiro de misericórdia”. Não sabe se deve manter a esperança em revê-la, se deve fazer parte da farandolagem, se deve manter consciência ou viver no alheamento. Se a amada virá. Se ela está viva. Se ela existe. Uma espera estagnada, angustiante e já exausta vai enfraquecendo aos poucos as convicções do narrador. E ele acaba se mantendo no mesmo lugar, sem conseguir tomar uma atitude. A falta de movimento e a falta de perspectiva vão tomando 160

conta da narrativa. E aqui é como se o mendigo fosse feito de muitas identidades. Há aquela que ama, a que se suicida, a que tem esperança. O mendigo se confunde nas suas vontades. Existe nele um outro, ou melhor, uma multidão. A questão do duplo já aparecera em Minha mãe: “(...) estou sempre de sobreaviso; preparado para ataques súbitos dele meu Duplo eternamente ali de tocaia do lado de fora do vocábulo. É meu outro querendo cortar a teia da própria vida feito ela minha mãe”, diz o narrador moribundo. Ele se caracteriza como “suicida indeciso”, mostrando que existe, portanto, uma convivência entre esses outros que se instalam na figura do narrador. Em Os piores dias, o duplo hesita entre ter ou não uma vida mais sintonizada com os comportamentos tido como normais:

Agora passou por mim casal muito bonito ao lado de dois filhos também encantadores. Fui de repente dominada pela inveja, enroscada pela serpente da zelotipia. Manifestação dele meu Duplo que possivelmente gostaria de lançar alicerces familiares, procriar, abafar revoltas, fazer progresso.

A ironia nesse caso é mais sutil. Embora a narradora confesse a vontade de ter uma família, filhos e marido, conclui o raciocínio com a expressão “fazer progresso”. Como se evoluir na sociedade só pudesse estar atrelado a uma vida mais próxima de parâmetros normais. No fundo, ela revela certa antipatia por essa maneira de viver. Não deixa, entretanto, de mostrar-se afetada pela cena que vê diante de si. Convém relembrar dois casos literários exemplares: Golyádkin, de Dostoievski e William Wilson, de Edgar Allan Poe. Ambos trazem à tona as hesitações humanas, mostradas nas narrativas como duplos. Em O Duplo, o escritor russo apresenta-nos o funcionário público Yákov Pietróvitch Golyádkin. De caráter peculiar, muito preocupado com a imagem que passa para seus superiores, Yákov depara-se, de repente, com a mais inusitada das situações: conhece seu duplo. No entanto, as pessoas ao redor passam a preferir seu duplo e ele, angustiado, começa a tomar seu lugar tanto no trabalho quanto nas suas relações interpessoais. A narrativa vai embaralhando o “real” e a alucinação, até o ponto de as flutuações da consciência (e da demência) do personagem se imporem à objetividade da escrita realista. Em Edgar Allan Poe, temos a mesma reflexão na historieta de William Wilson. O narrador, que se apresenta com esse mesmo nome, relata ter conhecido um jovem de nome

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e aspectos físicos idênticos. A estranha relação entre eles acaba finalmente no suicídio do narrador que percebe que William Wilson era ele próprio. Em todos esses casos, desponta-se a situação de estranhamento em relação a presença de um outro. Outro, no entanto, que se coloca em situação límbica, pois está ao mesmo tempo distante e próximo da figura que fala. O conflito que surge neles é também uma possibilidade para a representação límbica que tenho demonstrado. Se os personagens de Dostoievski e Poe mostram a complexidade das identidades humanas, o mendigo parece elevá-la a uma outra potência, tão pertinente aos aspectos contemporâneos. Veem-se muitas figuras inseridas numa só, ele é a própria junção de fragmentos de um mundo despedaçado. É o sábio, o poeta, o suicida, o louco, o amante e, por fim, o narrador. Mas outra identidade poderia também se enlear a do mendigo e a dos outros narradores: a do próprio autor Evandro Affonso Ferreira. As menções explícitas a autores, cantores, textos, livros e obras clássicas revelam indiretamente do que é composto o repertório do escritor. Em entrevista, EAF afirma: “Talvez esse seja um recurso que Freud explicaria, pelo meu autodidatismo. Quero ler muito, para mostrar que sei alguma coisa”35. E nessa afirmação percebemos uma relação fulcral proposta pelo próprio autor quando cria as figuras dos narradores. Como em todos os outros livros, EAF não procura, em nenhum instante, negar o caráter autobiográfico de suas obras. Nas entrevistas, Evandro Ferreira repete o caso de Gustave Flaubert ao ser questionado pelos juízes sobre quem teria sido modelo para sua personagem: “Madame Bovary sou eu”, dizem Evandro e Flaubert. Vendo as entrevistas com mais atenção, percebe-se certa insistência do autor em associar-se a seus narradores, como se ele próprio representasse uma figura, encenasse uma personagem outra que poderia ser o “autor Evandro Affonso Ferreira”. Incitando, portanto, uma relação cada vez mais próxima com suas obras. E abrindo as portas para discutir o que é realidade e o que é ficção. Em outros momentos, como foi dito, antes de lançar a trilogia que lhe rendeu alguns prêmios, EAF usava a mesma linguagem de seus primeiros livros para responder as entrevistas. No lançamento de Minha mãe, por exemplo, o autor declarou para os jornais ter passado tardes seguidas, durante um ano, sentado à mesa de uma confeitaria no “Evandro Affonso Ferreira fecha sua 'trilogia do desespero' com lirismo e humor”, O Globo, 11/10/2014, , acesso em 04/03/2015. 35

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Shopping de Higienópolis em São Paulo. Para além disso, podemos mencionar os vários paralelos já citados entre os livros em relação a Márcia Tiburi ou a Najla Assy. Isso poderia induzir ao pensamento de que essa busca por uma falsa loucura ou pela morte anunciada pode se aproximar de uma vivência real, em que a escrita poderia aparecer como artifício alentador, como acontece com o narrador moribundo, para um esforço da sobrevivência ou vivência. “Vivo numa linha tênue, próximo da morte. Ainda tenho muito medo de morrer. Escrever sobre a morte é um jeito de lidar com ela. Enfrentando-a através da palavra. Ou me escondendo atrás das palavras” 36, diz o autor Evandro Ferreira em entrevista. Outro dado é a repetição das respostas e narração de anedotas por parte do escritor. Em diversas entrevistas, EAF reproduz as mesmas réplicas, como para consolidar uma imagem mais hermética dessa mistura de autor e narradores. É o caso das perguntas em relação a mudança na produção, ele rebate sempre dizendo: “Costumo dizer que minha literatura se divide entre antes e depois de Minha mãe se matou sem dizer adeus: no começo, me preocupava com a vida da palavra; agora, com a morte do homem”37. Essa assertiva aparece inclusive em seu último livro Não tive nenhum prazer em conhecê-los. Ou quando questionam sobre sua relação com os leitores, ele diz: “Quando escrevo, dou o máximo de mim; espero que o leitor faça o mesmo quando me lê”. E reitera: “Sou escritor de poucos leitores — selecionados, é bom que se diga”. As mesmas respostas podem ser entendidas também como forma de ironizar o fato de os entrevistadores fazerem sempre as mesmas perguntas. O que percebemos é que as referências a tantos autores, cantores e filósofos não são apenas maneiras de demonstrar uma cultura literária, mas que tais alusões acabam por nos dar pistas para um entendimento maior do que está proposto na obra. A experiência da literatura contemporânea ultrapassa o suporte do livro e passa a se construir também sobre outras formas de questionamentos. Nesse sentido, temos que pensar que todo livro terá o autor como sua própria estante. É disso que trata Jean-Luc Nancy quando fala de “autobibliografia”. Ele elucida:

Nenhum livro tampouco estará livre de livros, pois não contentes de inscrever nosso nome sobre pensamentos anônimos de um único autor, 36

Idem. Todas as respostas se referem a entrevista de Evandro Affonso Ferreira à Revista Cândido, disponível em < http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=537 > data de acesso: 08/01/2017. 37

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apropriamo-nos dos pensamentos de milhares de indivíduos, de épocas e bibliotecas inteiras, e roubamos até dos plagiários, escreve Jean Paul, plagiando-se a si mesmo uma vez mais (2015, p. 45).

Na verdade, é como se todo o conteúdo ideal da comunicação consistisse nessa autobibliografia. Cada livro mostraria o ser ou a lei do livro: “de antemão, ele não tem mais outro objeto além de si mesmo e essa satisfação” (NANCY, 2015, p. 44). Isso porque a era da imprensa é precisamente a era do sujeito, não há como haver livro, senão de um “eu”, que se repete constantemente e se reconhece nisso. Toda a repetição en abyme do livro, ele explica, constitui sua redundância nativa e, podemos dizer, até ingênua. Por fim, o filósofo francês ironiza:

O sujeito se erige em Livro, e só essa ereção nunca assegurou a substância de um sujeito – cuja franca dissimulação faz ler o desejo em livro aberto: assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será, talvez, razão suficiente para que não empregues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima importância. (NANCY, 2015, p. 45).

No caso de Evandro Ferreira, há ainda a intenção de se voltar claramente para um público seleto, que não se cansa de uma literatura de enredo estagnante e das referências específicas de uma cultura intelectualizada. Ele propõe declaradamente que a construção do narrador transite entre os espaços de mendigo, moribundo, doente, autor e personagem, e tudo que viria na esteira dessas identidades, numa imbricada relação entre criador e produção. No

capítulo

sobre

a

morte,

quando

recuperamos

Maurice

Blanchot,

compreendemos que a figura do escritor, que no caso se tratava do narrador moribundo, enleia-se a uma necessidade da escrita e da recepção dos leitores para a construção de múltiplas interpretações. Gostaria de atentar, no entanto, que trato agora da declarada vontade do autor Evandro Ferreira de justapor figuras na construção das personagens literárias. Não só porque elas coexistem entre si, como explicara Blanchot, mas porque o artifício funciona como um método para despertar certa curiosidade nos leitores contemporâneos, uma técnica para chamá-los para esse deslocamento tão evidente nas obras. Sobre essa confusão proposital, podemos retomar também Ítalo Moriconi. Ao tratar sobre o narrador contemporâneo em primeira pessoa, ele diz:

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O narrador em primeira pessoa é o autor empírico, propriamente dito ou como projeção ficcional. Assim, a estrutura fundamental do foco em 1ª pessoa deixa de ser o narrador e passa a ser uma figura dúplice, autor/narrador, que encena no corpo da textualidade literária a tensão que agora passou a definir o literário em geral como discurso explicitamente situado na interface entre real e ficcional. Existe a presença simultânea de uma figura de autor (que pode ser ficcional ou real) e a figura de um narrador (...) (MORICONI, 2006, p. 161).

Em seguida, o autor explica que o traço marcante da ficção contemporânea é a presença autobiográfica real do autor empírico ainda que eles estejam presentes em textos como novelas ou romances, que se classificariam como textos ficcionais. Já Wayne C. Booth, em A retórica da ficção, explica que o termo “narrador” se refere “ao orador da obra que, afinal, não passa de mais um dos elementos criados pelo autor implícito e pode dele ser diferenciado por amplas ironias”; e que “o narrador é, muitas vezes, radicalmente diferente do autor implícito que o cria” (BOOTH, 1980, p. 168). Para Booth, um diálogo implícito entre o autor, o narrador, os outros personagens e o leitor é estabelecido durante a leitura; cada um pode se identificar ou se distanciar dos demais em graus amplamente variáveis. Quando trata sobre o narrador onisciente, pergunta se ele é “Digno de quanta confiança? (...) Em que alturas vai ele falar verdade, em que alturas não passará qualquer juízo ou mesmo dirá mentiras?” (BOOTH, 1980, p. 180). O que podemos inferir é que há um objetivo em conferir aos narradores essa aproximação com o autor empírico ou implícito da trilogia. Porque não é apenas a performance dos narradores que se faz pela escrita, mas também a do autor que se constrói pela mídia. O artifício contribui para a construção de um entendimento mais complexo do romance contemporâneo. No caso das obras de EAF, ficamos diante de uma desordem psicológica e intelectual de um mendigo profeta, de um velho moribundo, de uma mulher doente e de um autor que se diz eremita, autodidata, ranzinza. Não sabemos o que é razão e o que é loucura, o que é ficção ou realidade e toda potência dos livros recai sobre múltiplas dúvidas, por assim dizer, o limbo. Logo, tudo nessa narrativa será questionável. Ou seja, há infinitas possibilidades para a realidade, como o queria Derrida. Em Os piores dias um suposto deslize na ortografia acaba selando também essa confusão entre autor e narradora: “Uma vez me surpreendi atravessando a calçada instintivamente para não ser importunado pela colega recém-despedida da mesma empresa em que trabalhávamos”. Vê-se que o inesperado uso do adjetivo no masculino –

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“importunado” – suscita essa mistura, já que sendo mulher a narradora deveria referir-se a si mesma no feminino. O mendigo/moribundo/doente/Evandro – figuras justapostas em sua constituição – dá a voz a um sentimento da incerteza também no plano literário. No limite, a literatura contemporânea nos alerta de que não sabemos como resolver nossos dilemas íntimos. Não sabemos conviver com a dúvida, com as inconstâncias e assim, acabamos por construir um mundo de fronteiras transitórias, líquidas, mutáveis, incertas – o paradoxo da modernidade. A imagem embaralhada de narradores e autor parece-me paradigmática nesse sentido. E aos olhos do escritor-narrador(es), temos apenas a certeza da miséria, do desamor, da hipocrisia, do sofrimento. Mais que isso, revelam o estado límbico em que se constitui a própria literatura que, em terreno movediço, não pode se sustentar em nada, nem mesmo na linguagem. Mas a literatura pode ser a geradora dos diferentes universos, a resposta à imaginação, à criação; é o passo decisivo para além de uma vivência superficial. Ela seria representativa desse desejo para uma fuga de um sofrimento. E, nesse processo, o que novamente se destaca é mais que um desejo de morte, é o estado de hesitação, de limbo. Se não caminharemos para lugar nenhum, se não há uma história a ser contada, uma conclusão a se chegar, passamos a nos perguntar como se concluirão essas três obras que são na sua essência incompletas, transitam no limbo. Uma passagem de Minha mãe ajuda-nos a elucidar esse aspecto:

Descobri agora a total inutilidade de minha vida até mesmo literária: sou escritor Penélope tecendo-destecendo parágrafos infindáveis para driblar os próprios demônios pretendentes dela minha própria vida. Escritorinconcluso. Com o tempo fui aperfeiçoando-me no ofício da inconclusão. Hoje sei não terminar um livro no momento oportuno. Aquele escritor judeu de Praga era exímio não concluidor de textos.

As construções paradoxais das frases sugerem esse labirinto e a realidade obtusa que o escritor acaba construindo para si. Sem abrir mão das histórias gregas, usando a imagem de Penélope, ele se coloca no mesmo trabalho árduo de tecer e destecer seu texto. Recupera a relação têxtil do labor literário. Enquanto corre a narrativa, não sabemos se o que chegou até nós seria um discurso vivo e espontâneo ou um imbricado trabalho em que a obra se faz demoradamente e constrói-se sob idas e vindas de um texto sempre insatisfeito. Aperfeiçoar-se na inconclusão ou não terminar textos em momento oportunos 166

aparecem mais como chiste para ressaltar o estado límbico em que ele se coloca. A retomada a Franz Kafka ao falar do “exímio não concluidor de textos” surge como homenagem sensata a esse estado indecifrável em que ele se coloca. Para além disso, há que se chamar a atenção para a produção mise em abyme, em que o autor EAF escreve um livro em que há um escritor com dificuldade de escrever um livro. E esse “não concluir” passa a ficar ainda mais angustiante. Se o narrador não acaba o livro, o autor também não poderia acabá-lo e nos vemos mais uma vez diante de um jogo confuso entre realidade e ficção. Minha mãe, especificamente, trará algumas curiosidades formais também interessantes que se relacionam com essa inaptidão para concluir o texto. Já nas últimas páginas do livro, o narrador reforça sua inabilidade dizendo que se sente “despreparado para saber como-quando o texto atinge sua real completude”, mostrando a necessidade de desconstruir esse vazio que vai se configurando com força cada vez maior. Mas é a partir da página 127 que alguns trechos passam a omitir o sinal gráfico de ponto final. Até que, finalmente, o livro chega no período derradeiro e inconcluso: “Sei-sinto-pressinto que não conseguirei concluir este livro que a exemplo dos outros não completará a tríade começo e meio e”. E na ausência de um fim, somos obrigados a fechar um livro inconcluso, que permanece no limbo. Na representação da vida pelas palavras, a metáfora atinge um grau último, em que a morte é demonstrada pelo vazio da página, pelo silêncio do narrador, pela ausência de um fim. Nas três obras, as páginas finais mostram essa tensão mais elevada. No caso do moribundo, a conflituosa relação entre escritor e obra pode ser imaginada como uma corda sempre tensionada e prestes a romper-se. Ficamos na expectativa dessa quebra, e quando estamos prontos para um golpe final, é como se entrasse na sala a personagem Clov, de Fim de partida, de Samuel Beckett, dizendo: “Acabou, está acabado, quase acabando, deve estar quase acabando” (BECKETT, 2002, p. 38). Suspensão. Para o mendigo, a conclusão será distinta. Com o decorrer da narrativa, as reclamações de dores e cansaço passam a ser mais intensas. Os zunidos e ruídos de ratos começam a ser mais frequentes e uma exaustão vai tomando conta de seu corpo e sua mente. A loucura vai ficando mais próxima e ganhando forma de ratos: “ratos voltaram; agora são duas centenas talvez”, diz ele. E, aos poucos, aproximam-se em turbilhões sonoros. São os últimos devoradores daquilo que resta da vida e da memória do mendigo. 167

Os ratos, bichos dos esgotos e subterrâneos, vêm alcançar as sobras de uma narrativa feita de retalhos e fragmentos. Os ratos são a representação sombria de um destino inevitável que pode ser a morte, a loucura ou simplesmente o vazio. A deusa de Erasmo vai chegando aos poucos seja pelos ruídos, vozes e músicas que o mendigo ouve, pelas imagens que vê, pelo cansaço extremo, pelo tremor das mãos ou a rouquidão da voz. Já a narradora doente, conforma-se mais calmamente com o momento de sua partida, aceita-lhe sem combatê-lo. Há certa compreensão na sua fala: “Sei que são exaustivos os momentos que antecedem a morte. Pelas dores vivas, cruciantes, agudas, pressinto que meus fiascos, minhas horas lamurientas, estão chegando a bom termo”. E, em seguida, pede, como vimos, para ser cremada ao som de Lady Day. Se existe um encerramento ou conclusão para a obra, essa seria justamente a mais desconfortável delas, pois mesmo trazendo à tona tantos questionamentos, eles não chegam a lugar nenhum, não tomam nenhuma outra decisão, senão a de esperar. Esperam pela loucura, pela amada, pela morte. Aquela espera muito semelhante à de Estragon e Vladimir, que não conseguem se mover na cena final. Enquanto eles esperam por Godot, o mendigo espera por sua amada incógnita. O velho e a doente esperam pelo “raio personalizado” e pela morte anunciada. Os vazios e os espaços em branco de Machado e de Derrida, a indefinição de Beckett, a desordem das palavras e lacunas de Manoel de Barros, o isolamento de Simão Bacamarte e a presunção de Flaubert, todos aparecem latentes na obra de EAF. Um amontoado de cultura, as sobras de múltiplas experiências. Ainda assim, os narradores se sentem incompletos, indecifráveis, indeterminados. A proposta literária da trilogia se manifesta em muitos sentidos no contexto da literatura contemporânea. Onde antigamente víamos o produto binário de autor e obra, hoje temos uma multiplicidade quase indecifrável de percepções a serem compreendidas. Não é mais possível que sustentemos a necessidade redutora da compartimentalização. Em entrevista para Julia Studart, o autor EAF declara que não estamos preparados para o presente, nem os escritores, nem os críticos. O que ele nos propõe é um desafio, uma provocação aos pesquisadores e estudiosos de hoje, em um discurso, poderíamos dizer, antiacadêmico:

Brocoiós aí modo geral gostam deles enquadramentos; tudo compartimentalizado; fulano-dos-anzóis-carapuça fica aqui ó nela gaveta dele Graciliano Ramos; fulano-fual-de-tal fica aqui ó nela gaveta do Guimarães Rosa; crítica literatura modo geral ajornalistizada; rasteira; descartável; quem entende fica amocambado nela biblioteca particular 168

dissecando ad nauseam escritores sobejamente geniais; puh que proeza; brocoiós pensam que descobriram a pólvora; cérebro dele acadêmico precisaria ser abstergido vez em quando; poucos sabem lidar com o ainda-agora o ainda-há-pouco eh-eh com o momento em que escrevemos; medo; universidade modo geral carece deles gênios intrépidos; escrever é meter-se em altas cavalarias hã bulir com casa de marimbondos; parece que ele crítico acadêmico (que geralmente sabe mais do que os resenhistas de plantão) não gosta de amarrar o guizo no pescoço do gato; pena; estudar apenas autor morto é morbideza a talho de foice 38.

O desconforto aparece na relação da academia com a literatura contemporânea. Como se tudo que se escreve hoje devesse ser categorizado em seções específicas oriundas dos clássicos literários. Ele aponta justamente para a ousadia que é estudar “o ainda-agora o ainda-há-pouco”, principalmente porque entende que fazer literatura é “bulir com casa de marimbondos”. Fica a lição de que é urgente que nos livremos das amarras da categorização e passemos a produzir conhecimento com aquilo que vemos e temos diante de nós. O exercício literário contemporâneo, possivelmente, não trará as velhas respostas consagradas e aprisionadas nos velhos compartimentos. Mas é a solução viável diante de um mundo que necessita ser reelaborado pelas palavras. E a academia precisa participar desse processo. Em texto sobre a necessidade da literatura, o professor Alberto Pucheu parece ter uma resposta coerente que culmina com o empenho e esforço impingido na obra de Evandro Affonso Ferreira:

A literatura é uma serva das intensidades de vida, tornando-se, assim, um caminho vital intensivo. E progressivo. A literatura é um caminho vital intensivo e progressivo de vida. Um dos caminhos, um caminho privilegiado. Por este caminho, chega-se a vida, não como uma última paragem, estanque, a ser atingida, mas como o que já está, desde sempre, presente, em movimento, mas não conseguimos, habitualmente, vivenciar, não nos tornamos aptos a, cotidianamente, atualizar sua potência implícita na superfície explícita de nosso corpo rotineiro. Criando, no nosso, outros corpos, a literatura torna possível vivenciar vida, e, tornando vida vivível, a literatura torna vida real. Realizando vida, a literatura intensifica suas forças para que elas possam nos afetar, para que elas possam nos transformar em vida, para que elas possam aniquilar nossos nomes próprios de modo que as intensidades de vida nos atravessem e risquem, em nós, seus novos nomes, inapreensíveis sem a literatura, sem ela, inaudíveis, sem ela, inteiramente afônicos.

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A entrevista consta na dissertação de Mestrado sobre o autor de Julia Vasconcelos Sttudart; Evandro Affonso Ferreira: vidas desengraçadas e o arquivo debilitado, Florianópolis, UFSC, 2008, p. 148.

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PARTE III – O QUE (S)OBRA

1. RETALHO: A VALIDAÇÃO EM NÃO TIVE NENHUM PRAZER EM CONHECÊ-LOS

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A última obra de EAF, Não tive nenhum prazer em conhecê-los, foi publicada em setembro de 2016. Existem algumas razões importantes para ela não fazer parte do corpus dessa pesquisa. A primeira delas refere-se à proposta do mercado literário em si ao promover uma trilogia em que esse livro não está inserido. Foi amplamente divulgado nos meios de comunicação que Os piores dias de minha vida foram todos era o que fechava a “trilogia do desespero”. Assim, não configurava no objetivo dessa pesquisa ir além desses limites sobretudo porque a ideia neste trabalho era mostrar como o vazio, a morte e o limbo são as grandes sensações propulsoras dos discursos gerados. Como veremos, essas sensações estão bastante apagadas nessa publicação mais recente. Há ainda as diferenças de estrutura e conteúdo presentes em Não tive nenhum prazer em conhecê-los. O narrador, nesse caso, é um escritor de noventa anos que se mostra completamente estagnado em relação à vida. Não espera a morte, uma amada ou a conclusão de uma doença. Ele somente reflete sobre algumas lembranças, mas principalmente sobre o seu processo de escrita. Sabemos pouco sobre sua vida, pois ele quase não fala da infância e do seu momento atual – “Hoje? Aos Noventa? Lembro-me pouco do passado: vítima de inúmeros naufrágios mnemônicos”. O diálogo interno, no entanto, é mais intenso e extenso. Além disso, ele dá menos atenção à paisagem e as personagens ao redor. Ou seja, o ambiente externo não aciona mais as elucubrações como antes. Flana, mas não se sente proscrito, apesar de viver só em um “quarto-claustro”. Desta vez, a melancolia é o sentimento mais pungente. Menciona sentir falta dos “amigos extintos” e de uma mulher “(aquela que voltará jamais)”, todos já mortos. Porém, essas ausências não se mostram tão enfáticas quanto nas primeiras obras da segunda fase. Na verdade, a maior parte das sensações de angústia revelam-se mais atenuadas. Não há tantos conflitos em relação à morte, ao suicídio, à ausência e à loucura. O narrador-escritor parece estar mais conformado com o que vê e sente. Sua grande questão é o processo de escrita. Diferentemente das obras da trilogia, o livro é formado de fragmentos poéticos curtos que, soltos, mostram as reflexões do narrador. Apresenta-se como “Romance mosaico”. A verborragia aparente, transforma-se em múltiplos excertos, com espaços entre os parágrafos. A ideia de arbitrariedade de pensamentos é maximizada e os trechos variam de tamanho sendo bastante curtos, com apenas uma linha, ou tomando várias páginas. É também o livro mais extenso de todos, com 367 páginas.

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Não há mais uma “personagem-mentora”, como aconteceu anteriormente. Ainda que seja feita uma homenagem à cantora Billie Holiday, esta não aparece como detentora de conhecimentos e cultura, trazendo aforismos, conselhos ou adágios. É a idolatria pela sua voz e melancolia, pela sua figura de artista e o que ela possivelmente representa. Pelo seu tratamento, pela sua dicção, pela sua proposta menos ousada em relação ao desajuste do narrador, Não tive nenhum prazer em conhecê-los parece ter vindo como uma obra transitória e, possivelmente, ressentida. Ela adota os artifícios fundados na segunda fase, mas não explora outras possibilidades da escrita. Perde-se um pouco diante do labor literário e questiona-se sobre isso. Há que se admitir que talvez seja necessário criar novas fórmulas, como aconteceu com Zaratempô. É como se insistisse em fazer o novo sem, de fato, conseguir alcançá-lo, sobretudo porque a obra realmente se repete em muitos sentidos. Com o tom pessimista e irônico, o próprio narrador convence-se de que sua produção é insuficiente, e não dá conta de atingir os planos prodigiosos da alta literatura. Muitas são as coincidências formais entre as obras anteriores da segunda fase. Apresentarei algumas dessas aproximações, não só porque elas remetem a um óbvio senso estilístico do autor, mas também porque em algumas chamadas reiteram e confirmam justamente aquelas percepções interpretativas que perscrutei nas obras da trilogia. Ou seja, se antes algumas reflexões foram escavadas, agora elas aparecem como sintoma e de forma declarada na voz do narrador-escritor enquanto ele trata de seu processo de escrita. Logo de entrada, a epígrafe estabelece um diálogo mais direto com o leitor e a questão dos restos, antes latente, já se mostra como possibilidade: “Ah, meu provável leitor, não sei se consegui tirar toda a fuligem desta minha, agora sua, por assim dizer, chaminé”. Examinando a metáfora, entendemos facilmente que a “chaminé” seria a obra. Ela é, portanto, o espaço da fumaça, do resto de uma queima, das sobras de um esforço. O que se nota, no entanto, é que ela ainda está cheia desta “fuligem”, ou seja, desses restos de uma destruição, remetendo às cinzas de algo que existiu, às sobras de outras obras, de outras tentativas, de muitas frustrações. É um início pessimista e desistente, mas aponta exatamente para a “poética de restos” que propus na trilogia. A questão do “vazio textual” também está mais declarada na voz narrativa. Em dado momento, o narrador avisa: “Ausência de palavras? Deixa página alva nu inconformismo danado”. Ou ainda: “Ah, esses vácuos, longos espaços em branco entre um parágrafo e outro?”. Há, portanto, uma investida consciente na opção pelo branco da página, inclusive porque o livro traz grandes espaços entre um parágrafo e outro. 173

O caráter “pedagógico” que mencionei – quando os narradores explicavam muitas das intertextualidades, apresentavam figuras intelectuais importantes ou traduziam os trechos em latim – também agora é assumido: “Pedagógico? Sim: meus textos descambam amiúde para pedagogia do desconsolo”. Há que se mencionar ainda o ato de “não-narrar” também trabalhado na trilogia. Com um discurso baseado em impressões e fluxos de pensamento, o narrador reitera: “Não acontece nada; melhor assim: minha literatura vive dos desacontecimentos”. A conhecida obsessão pelas palavras raras também é retomada, mas agora como declarada estratégia:

Especializei-me em brunir palavras. Trabalho exaustivo. Exemplo? Consigo aplanar incansável vocábulo LOUCO até que, numa súbita metamorfose se transforme em ZURUÓ, ou ZOROPITÓ. Outro? POBREDIABO; depois de bruni-lo exaustivamente, transformo-o em BANGALAFUMENGA. A expressão ORA BOLAS! em CATRÂMBIAS! Às vezes consigo acepilhar tanto uma frase até reduzi-la a uma única palavra: AGORA É TARDE, ACABOU-SE! em GROGOTÓ! Pensando melhor, não sou brunidor de palavras: consigo vivificá-las. Já ressuscitei várias: ZARATEMPÔ!, ESTRABULEGAS, TROUXE-MOUXE, ESCAMURRENGADO, PERENDENGUE, MATRAFONA, assim por diante. Polindo palavras horas seguidas, consigo torná-las mais exuberantes. Mais sonoras também. Acho que desenvangelizo vocábulos – sem abrir mão de matizá-los com indisfarçável exotismo.

Esse desvelamento dos artifícios foi apresentado também obra Zaratempô, entretanto, não de forma tão árida e lúcida como aparece agora. Ele aproveita para inserir no texto alguns projetos literários, que são cartas, contos ou o início de um romance, o “Romance léxico que Freud não escreveu”. Nesses momentos, retoma mais fortemente o estilo da primeira fase, fazendo uso de palavras pouco usadas, repetições, onomatopeias e oralidade:

Agora filma aquele trangola desdentado ali nove dez se tanto esqualidez em figura de gente ranho descendo nariz abaixo veja olhos esbugalhados remelentos sim aquela burandanga infantil isso isso isso close assim está ótimo huummm.

Na verdade, revela mais consciência em relação à prática da literatura, o esvaziamento e as múltiplas possibilidades de sentido. O que antes se mostrava como intuitivo e apenas no exercício de escrita, agora aparece como método declarado: “Acho que às vezes caminho pelas ruas dessa cidade apressurada para preencher lacunas. 174

Habituei-me às frases soltas, desabitadas de sentido, estirando limites da estultice”. E a questão límbica em relação ao texto literário também é mostrada: “Manhã improdutiva, palavras estão possivelmente naquele limbo diáfano de que nos falou Agamben: entre o não ser mais e o seu não ser ainda”. Ou apenas quando retoma o limbo existencial: “Vivo há noventa anos no limbo: em perpétua carência de Deus”. A metáfora da areia movediça irá se associar ao fazer literário, apelando para fluidez e flexibilidade inata do texto. A necessidade de tentar decifrar o indecifrável:

Areia movediça... Sensação de que há sempre areia movediça nas entrelinhas deles, meus textos – possivelmente móbil dela, minha inata melancolia. Areia movediça esfíngica: ou você me decifra ou devoro você. O inexplícito e eu – nos alimentamos um do outro: prazer obscuro, insubsistente talvez.

A questão difusa entre autor, narrador e obra, que também se insere no estado límbico, é tratada sem disfarces:

Escrever é meu exercício lúdico. Existo independente do otimismo, à semelhança de minhas personagens – elas, eu, todos niilistas líricos. Desconfiamos uns dos outros, nutrimos suspeitas mútuas de igual intensidade – desconfianças também lúdicas, mesmo sabendo que somos de natureza igualmente insidiosa.

Isso também acontece quando o narrador faz a mesma declaração que EAF dá em suas entrevistas: “Mudei meu jeito de escrever: antes me preocupava com a vida da palavra; agora, com morte do homem”. O conceito de autobibliografia proposto por Jean-Luc Nancy também é mais evidente: “Se vez em quando invento frases que já foram criadas, culpa não é minha: possivelmente culpados sejam eles: Dante ou Kafka ou Cervantes ou Novalis ou Karl Kraus ou Musil ou Bruno Schulz”. Até mesmo Schopenhauer que nunca antes havia sido citado nos textos acaba aparecendo nessa última obra. E o narrador mostra uma compreensão bastante clara da filosofia do autor: “Quase sempre sua música nos traz à memória Schopenhauer: A vida é um negócio que não cobre os custos”. Partilha daquele sentimento que demonstrei ao discutir o filósofo pessimista, de que o esforço para se viver é imenso, mas o prêmio que se ganha, na realidade, é apenas a vida. Essa que, em verdade, é constituída de sofrimento. Ou seja, o empenho talvez não se justifique. 175

O pessimismo aparece finalmente como traço peculiar proposital. O narrador afirma que para que exista boa literatura não é possível haver felicidade: “Todos os seres humanos procuram felicidade – eu fujo dela: preciso fazer boa literatura”, ou: “Tudo que é ruim pra vida é bom pra literatura”. Há, por fim, a necessidade de mostrar uma unidade entre as obras que se constrói primordialmente pelo artifício da repetição. Não apenas porque mantém relativamente o estilo de escrita, mas por recuperar algumas parábolas e mencionar lugares e personagens de outros livros. É o caso da menção à Antígona, ao anel de Giges, às mesas da confeitaria, ou ao frasco e ao éter. Ou quando recupera questionamentos como: “Para onde vai a luz quando desligamos o interruptor?”. Retoma também minicontos apresentados em Os piores dias de minha vida foram todos. A historieta sobre urubus, por exemplo, é apresentada nos dois livros. A primeira vez é quando a narradora doente relembra uma das narrativas do amigo escritor: “(...) vem à memória miniconto dele amigo escritor extinto cuja história fala de urubu adolescente expulso de casa porque (vade retro) se viciou em legumes e frutas frescas”. A mesma anedota aparece em Não tive nenhum prazer em conhecê-los na seguinte forma: “Décadas atrás escrevi miniconto mostrando casal de urubus num desconsolo daqueles: filho caçula, caso perdido, viciado em legumes e frutas frescas”. Outro momento em que isso acontece é na rápida menção a uma viúva. Em Os piores dias, lemos: “Chamo outra vez à memória amigo escritor extinto quando criou miniconto mostrando viúva saindo do cemitério debatendo consigo mesma uma questão: para evitar a mais remota possibilidade de retorno, deveria ter cremado marido canalha”. E na última obra, temos: “Décadas atrás escrevi conto no qual mostro esposa saindo do cemitério debatendo consigo mesma seguinte questão: Para evitar mais remota possibilidade de retorno, não deveria ter cremado marido canalha?”. Há ainda o caso do coelho que se recusa a sair da cartola porque rareavam as cenouras no circo. E o do marido que afirma para a esposa que quando um dos dois morrer, ele irá para Paris. Essas histórias também aparecem nos dois últimos livros. A confusão entre personagens, como se o narrador fosse aquele amigo escritor extinto de Os piores dias, incide justamente na debatida questão límbica que apresentei. A iteração aparece como ato expurgatório na escrita. Mas há que se perguntar como esses procedimentos de repetição em diferentes âmbitos contribuem para uma narrativa viva e

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dinâmica. Ou se apenas corroboram essa forma estancada já apresentada e fortificada nas obras da trilogia. Na última obra, ficamos com o gosto amargo da insatisfação do narrador diante dos resultados de um desafio proposto por ele mesmo:

Não escrevo tão bem quanto Flaubert, ou Proust, mas gostaria que compreendessem meu esforço: modo geral começo querendo construir catedral, infelizmente já nas últimas dez páginas percebi que construí igrejinha tímida, acanhada, interiorana, sino minúsculo, pouca repercussão sonora, rachaduras preocupantes no teto, pároco decrépito, desmemoriado – já não sabe se é Xavier ou de Assis aquele Francisco do qual falou agora há pouco na missa das oito...

O livro ressoa como a necessidade imperativa de revelar de que foram feitas as outras narrativas, como se revelasse a anatomia mais visceral de seu processo criativo. Possivelmente por isso mostra-se tão próximo do que foi analisado neste trabalho. Fica a expectativa do que está por vir. Das transformações que ainda poderão ser arquitetadas em uma obra experimentalista por excelência. Uma criação que se mostra centrada em uma narrativa sempre intimista, em primeira pessoa, com olhar sempre suspeito perante a realidade. Uma escrita que sai do confinamento para perscrutar outros caminhos para a literatura. Na medida em que o narrador se sente descontente com a sua derradeira produção, fica a esperança pela busca de outros caminhos e outras saídas. É disso que se fará sua literatura: do movimento e insatisfação constante.

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2. GROGOTÓ!

A retomada aos clássicos, o laboratório com a realidade e com a linguagem, o processo de bricolagem, a híbrida relação entre autor e narradores e a exaltação a uma cultura de intelectualidade são elementos que fazem da prosa de EAF um sopro diferenciado no cenário literário da contemporaneidade. O que se sobressai nas páginas da “trilogia do desespero” é a dificuldade de existir, na vida e na literatura. É a resistência como ponto chave para tentar compreender a dimensão da existência. É a importância de perceber-se como apenas mais um personagem em uma vida que, a rigor, não tem sentido nenhum. É sobreviver à inquietude existencial, abraçando a possibilidade de que a vida e a literatura são feitas da mesma materialidade, ou seja, são construídas pela linguagem e operadas por seres humanos. As obras da trilogia colocam em xeque nossas convicções (já não tão firmes), nosso modus vivendi, nosso olhar que desvia. A verborragia dos narradores tem como interlocutor o próprio leitor contemporâneo, que dá as costas para pobreza e para o descaso, que busca respostas fáceis e não sabe mais o que é amar ou fruir. Não conhece mais o amor louco de Bentinho e Capitu, tampouco o idealizado sentimento de Peri e Ceci ou o sentimento clássico de Penélope e Ulisses. Não olha os quadros, não lê poemas, pinta os muros de cinza. É preciso enxergar a vida em um sentido mais amplo que as trivialidades e superficialidades do dia a dia. É preciso captar a realidade com olhos de poeta. É preciso que nos livremos do trauma de existir, do trauma do sofrimento. Se a linguagem é por excelência a matéria prima da literatura, é por meio dela que iremos sobreviver e viver. O não-conformismo dos narradores perante uma realidade cruel é o que os estimula a continuar, mesmo que estejam se repetindo e parecendo estar estagnados. É fundamental entender também o anacronismo a que se propõe a obra de Evandro Affonso Ferreira, em um movimento que se dispõe bastante contrário às vanguardas. Procurei mostrar como as figuras homenageadas e constantemente apresentadas nos livros são sempre aquelas que remetem à tradição. Fica, portanto, a ideia de que é preciso retornarmos para os clássicos e olhá-los com mais apreço.

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A trilogia nos sugere, portanto, uma reflexão inusitada sobre o contemporâneo, pois, como vimos, busca suas respostas nos antepassados, na sabedoria milenar grega, nos poetas esquecidos, nos filósofos pessimistas. Obriga-nos a olhar para o passado para encarar de forma enviesada o presente, de modo que também não fiquemos satisfeitos com o que está diante de nós, que nos sintamos também inconformados com uma existência que a cada dia revela-se mais inútil. Além disso, a análise apresentada sobre a híbrida relação entre autor e narradores tentou mostrar como os limites da crítica literária precisam ser novamente questionados. Tentar estabelecer uma verdade autoral de interpretação é obviamente inviável. No entanto, essa escolha em amalgamar essas duas esferas – autor e narradores – repercute como um projeto estético literário que pode e deve ser analisado e questionado. Sendo declaradamente antiacadêmico, a figura do escritor Evandro Affonso Ferreira se coloca em posição ambígua em relação à academia, pois exalta justamente aqueles que a academia ajudou a construir como clássicos intelectuais. A diferença é que no nicho de escritores contemporâneos, EAF parece ser o único a continuar exaltando à tradição, o conhecimento e sabedoria clássica. Essa invocação possivelmente afasta-o de muitos leitores, transformando-o em literatura exigente e também inconformada com a literatura contemporânea. Entendo que possa ser também uma escolha que o deixa deslocado do cenário literário atual. Pelos parâmetros estruturais que esta pesquisa estabelece, não me foi possível – nem essa era minha intenção – esgotar o repertório de associações e reflexões em torno da trilogia. Fica, no entanto, o convite para que as análises prossigam, pois certamente se fazem necessárias. Nos capítulos fundamentais para esse trabalho, procurei mostrar como três questões, por assim dizer, filosóficas – vazio, morte e limbo – são fundamentais para a elaboração do texto de EAF. Minha intenção era resgatar os rastros dessas noções na tessitura discursiva e comprovar, através desse trabalho, como o texto é uma resposta a essas angústias, que são o combustível dessa força ficcional. No caminho percorrido, foi possível perceber que as aflições sobre o vazio e a morte culminam na questão mais pungente da trilogia: o limbo. Todo o cenário, todas as personagens, a própria fala dos narradores e as reflexões apresentadas se articulam sempre tendo esse movimento límbico latente. O limbo literário é o que valida também as várias possibilidades de realidade a que estamos sujeitos. 179

Assim, diante de tantas oscilações e hesitações, resulta que não sabemos se o mendigo realmente falava com alguém, não sabemos se a amada existiu em algum momento, ou é fruto de um devaneio que, de fato, já chegou. Não sabemos se o velho moribundo estava mesmo próximo da morte, se estava na confeitaria. Não sabemos se o amigo escritor extinto existiu ou se é apenas uma outra faceta de um Duplo da narradora doente. Não sabemos se o autor Evandro Affonso é realmente um eremita e se um dia me encontrou para tomar café numa esquina das ruas da Glória. E é exatamente isso tudo que, em verdade, não importa, pois estamos sempre no mundo das narrativas. E podemos nos perguntar quantas e quais são as ficções possíveis e em que lugar elas devem efetivamente se realizar.

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VÍDEO

“Solitário Anônimo”: documentário realizado em 2007 por Debora Diniz, antropóloga, docente da Universidade de Brasília/DF, Brasil, e pesquisadora da ONG Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Produção disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uTZEDtx8noU – Data de acesso: 15/07/2016.

VÍDEOS E ÁUDIO COM EVANDRO AFFONSO FERREIRA

“Entrelinhas” – Minha mãe se matou sem dizer adeus http://www.youtube.com/watch?v=WLT_2Yi0T6M Prêmio SP de Literatura 2011 http://www.youtube.com/watch?feature=endscreen&v=rIbdDAk7Hpg&NR=1 Entrevista “Imagem da Palavra” – parte 1 http://www.youtube.com/watch?feature=endscreen&v=0o44gf49Y0c&NR=1 Entrevista “Imagem da Palavra” – parte 2 (Márcia Tíburi) http://www.youtube.com/watch?feature=endscreen&v=0o44gf49Y0c&NR=1 “Metrópolis” – entrevista (bastidores) http://www.youtube.com/watch?v=RLX4xLOolAI “Metrópolis” – entrevista http://mais.uol.com.br/view/xiddtuwnvlqs/metropolis--entrevista-com-evandro-affonsoferreira-04020E98306CD4B92326?types=A Museu da Pessoa – entrevista em áudio http://www.youtube.com/watch?v=vMcggQQwYbI Evandro Affonso Ferreira – Entrevista (Festival Pauliceia Literária) https://www.youtube.com/watch?v=8Onuy0Vjl_0

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Evandro Affonso Ferreira – Entrevista (TV Senado – sobre Os piores dias de minha vida foram todos) https://www.senado.gov.br/noticias/TV/Video.asp?v=410395 “Evandro Affonso Ferreira sobre a Vaidade do Escritor & A Tia do Garoto – Jacobsen” https://www.youtube.com/watch?v=-zIfouNJJLg “O tempo da escrita - VII Festival da Mantiqueira” https://www.youtube.com/watch?v=xMKStwxCzjE Num faz Cabimento – entrevista em áudio http://numfazcabimento.blogspot.com.br/2011/06/nfc-25-minha-mae-se-matou-semdizer.html

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