RESUMO DO ARTIGO: Agressão contra a menina Kayllane Campos, de 11 anos, na saída de uma cerimônia de candomblé, seria impensável até pouco tempo no Brasil, onde casos de fanatismo e intolerância eram pontuais, de acordo com a colunista. Yvonne lembra, entretanto, que já houve perseguição e violência do Estado contra religiões de matriz africana. Especialista no tema, ela aponta marcos dessa perseguição que são visíveis até hoje. Por isso, aponta ela, a reação ao sectarismo precisa ser forte para evitar cenários como os que têm feito estragos em locais como Síria, Somália e Myanmar. LEIA A ÍNTEGRA ABAIXO:
“Achei que ia morrer. Eu sei que vai ser difícil. Toda vez que fecho o olho eu vejo tudo de novo. Isso vai ser difícil de tirar da memória”, afirmou Kayllane Campos, uma menina de onze anos, ferida no domingo dia 14 de junho, quando saía de uma cerimônia de candomblé em um subúrbio carioca, com sua avó e outros participantes, todos vestidos com as roupas brancas de santo.
Dois jovens agrediram o grupo atirando pedras, e brandindo a Bíblia gritavam: “É o diabo, vai para o inferno, Jesus está voltando”. Uma das pedras atingiu Kayllane na cabeça e lhe deixou um grande corte que sangrou muito. Os dois agressores fugiram de ônibus.
A menina disse à Globo News que o caso não abalara sua fé. A avó que a acompanhava na entrevista informou que é mãe-de-santo há mais de trinta anos, conhecida como Mãe Kátia de Lufan. O caso foi registrado como lesão corporal e no artigo 20 da lei 7.716 (praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional).
Fatos tristes como este estão acontecendo em muitos lugares do mundo de forma assustadoramente violenta e cruel, como na Síria, Somália e Myanmar. No Brasil, isso parecia ser impensável.
A história das religiões afro-brasileiras – atualmente também nomeadas religiões de matriz africana – foi marcada pela violência por parte do Estado, especialmente com o advento da República. O primeiro código penal republicano, de 1891, criminalizou e proibiu, em seu artigo 157, “Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública.”
Os pais e mães-de-santo, e seus fiéis, eram presos e alguns até mortos nas investidas da polícia amparadas por este artigo. Estudei essa história no meu livro "Medo do feitiço" no qual analisei muitos processos judiciais e inquéritos policiais contra os que praticavam “o espiritismo, a magia e seus sortilégios...”.
Os legisladores acreditavam nos poderes da magia e a lei exigia a perseguição aos acusados de feitiçaria. Durante esta época o campo das religiões afro-brasileiras foi sendo construído e, como diziam os juízes, “foi separado o joio do trigo”. Ou seja, os “charlatães” e “feiticeiros” foram punidos e os “verdadeiros religiosos” puderam seguir seu curso.
O Estado imiscuiu-se, dessa forma, nos assuntos da magia e interveio no combate aos feiticeiros regulando acusações e criando juízos especiais. A partir da mudança no Código Penal, em 1942, os casos de repressão foram escasseando, mas até hoje o curandeirismo é considerado ilegal.
Nas palavras do cronista João do Rio, em seu magnífico As religiões do Rio, 1904: “Vivemos na dependência do feitiço... somos nós que lhe asseguramos a existência com o carinho de um negociante por uma amante atriz...” . Ou seja, a repressão ao feitiço se fazia na lógica da feitiçaria e as pessoas buscavam às escondidas os médiuns. A relação entre a sociedade mais ampla e os terreiros era como a “de um negociante por uma amante atriz”, uma relação de fascínio, prazer, perigo e pecado. A crença atingia pessoas de todas as classes.
No Brasil, o fanatismo e a intolerância costumavam ser casos pontuais. Há histórias emblemáticas como a perseguição ao Xangô de Alagoas em 1912, estudado por Ulisses Rafael no seu livro "Xangô rezado baixo". Entretanto, alguém que se ache no direito de agredir e ferir outra pessoa por não professar a mesma fé, chame a crença alheia de coisa do diabo, do capiroto e, em nome de Jesus, erga a Bíblia contra “infiéis”, era quase impensável, mas desgraçadamente tem sido frequente nos últimos anos.
Fanatismo, intolerância e violência caminham juntos, embora, para nossa surpresa, Kayllane Campos tenha dito que, até então, nunca sofrera preconceito. Segundo a avó, a menina era iniciada há quatro meses e durante o período de feitura do santo, de iniciação, havia frequentado a escola sem ser alvo de nenhum tipo de discriminação, nem mesmo bullying, apesar de ir vestida de branco e com os colares rituais.
Mãe Kátia disse já ter sofrido e presenciado outros casos de perseguição, agressões verbais e até mesmo físicas, mas, desse modo, contra uma criança, nunca. Em Vila da Penha onde fica o seu barracão, outra casa de culto foi invadida e destruída por pessoas que ela acredita não serem evangélicas, pois “são pessoas fanáticas, loucas, que não têm Deus no coração.”
Nas palavras da mãe-de-santo, os casos de agressão que se repetem contra os praticantes das religiões afro-brasileiras por fanáticos que não aceitam a religião dos outros, ferem profundamente o sentimento brasileiro de sincretismo, de convívio entre as crenças. E ela tem fortes razões para crer que isso seja verdade. Embora sua neta seja iniciada no santo, sua filha, que mora ao lado com outros filhos também do candomblé, converteu-se ao protestantismo.
Segundo o secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, o fanatismo religioso é um ato de barbárie.
Esses ventos que sopram para insuflar o ódio aos que usam branco, o branco da paz, como diz mãe Kátia, mas também o branco do candomblé, da umbanda e de outras religiões de origem africana podem produzir efeitos trágicos.
Para combater a intolerância religiosa Mãe Kátia está iniciando uma campanha na qual diz: “Eu visto branco, o branco da paz porque sou candomblecista e você?”
A reação à intolerância religiosa do grupo agredido e da menina ferida pela pedrada que poderia tê-la matado foi de convite à paz, de chamamento à não violência. Esta resposta ao sectarismo é um alento de esperança. Uma esperança de que não se repita aqui a loucura das guerras e dos ódios religiosos que tão mal têm feito em outras paragens!
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RESUMO DO ARTIGO: Agressão contra a menina Kayllane Campos, de 11 anos, na saída de uma cerimônia de candomblé, seria impensável até pouco tempo no Brasil, onde casos de fanatismo e intolerância eram pontuais, de acordo com a colunista. Yvonne lembra, entretanto, que já houve perseguição e violência do Estado contra religiões de matriz africana. Especialista no tema, ela aponta marcos dessa perseguição que são visíveis até hoje. Por isso, aponta ela, a reação ao sectarismo precisa ser forte para evitar cenários como os que têm feito estragos em locais como Síria, Somália e Myanmar. LEIA A ÍNTEGRA ABAIXO:
“Achei que ia morrer. Eu sei que vai ser difícil. Toda vez que fecho o olho eu vejo tudo de novo. Isso vai ser difícil de tirar da memória”, afirmou Kayllane Campos, uma menina de onze anos, ferida no domingo dia 14 de junho, quando saía de uma cerimônia de candomblé em um subúrbio carioca, com sua avó e outros participantes, todos vestidos com as roupas brancas de santo.
Dois jovens agrediram o grupo atirando pedras, e brandindo a Bíblia gritavam: “É o diabo, vai para o inferno, Jesus está voltando”. Uma das pedras atingiu Kayllane na cabeça e lhe deixou um grande corte que sangrou muito. Os dois agressores fugiram de ônibus.
A menina disse à Globo News que o caso não abalara sua fé. A avó que a acompanhava na entrevista informou que é mãe-de-santo há mais de trinta anos, conhecida como Mãe Kátia de Lufan. O caso foi registrado como lesão corporal e no artigo 20 da lei 7.716 (praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional).
Fatos tristes como este estão acontecendo em muitos lugares do mundo de forma assustadoramente violenta e cruel, como na Síria, Somália e Myanmar. No Brasil, isso parecia ser impensável.
A história das religiões afro-brasileiras – atualmente também nomeadas religiões de matriz africana – foi marcada pela violência por parte do Estado, especialmente com o advento da República. O primeiro código penal republicano, de 1891, criminalizou e proibiu, em seu artigo 157, “Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública.”
Os pais e mães-de-santo, e seus fiéis, eram presos e alguns até mortos nas investidas da polícia amparadas por este artigo. Estudei essa história no meu livro "Medo do feitiço" no qual analisei muitos processos judiciais e inquéritos policiais contra os que praticavam “o espiritismo, a magia e seus sortilégios...”.
Os legisladores acreditavam nos poderes da magia e a lei exigia a perseguição aos acusados de feitiçaria. Durante esta época o campo das religiões afro-brasileiras foi sendo construído e, como diziam os juízes, “foi separado o joio do trigo”. Ou seja, os “charlatães” e “feiticeiros” foram punidos e os “verdadeiros religiosos” puderam seguir seu curso.
O Estado imiscuiu-se, dessa forma, nos assuntos da magia e interveio no combate aos feiticeiros regulando acusações e criando juízos especiais. A partir da mudança no Código Penal, em 1942, os casos de repressão foram escasseando, mas até hoje o curandeirismo é considerado ilegal.
Nas palavras do cronista João do Rio, em seu magnífico As religiões do Rio, 1904: “Vivemos na dependência do feitiço... somos nós que lhe asseguramos a existência com o carinho de um negociante por uma amante atriz...” . Ou seja, a repressão ao feitiço se fazia na lógica da feitiçaria e as pessoas buscavam às escondidas os médiuns. A relação entre a sociedade mais ampla e os terreiros era como a “de um negociante por uma amante atriz”, uma relação de fascínio, prazer, perigo e pecado. A crença atingia pessoas de todas as classes.
No Brasil, o fanatismo e a intolerância costumavam ser casos pontuais. Há histórias emblemáticas como a perseguição ao Xangô de Alagoas em 1912, estudado por Ulisses Rafael no seu livro "Xangô rezado baixo". Entretanto, alguém que se ache no direito de agredir e ferir outra pessoa por não professar a mesma fé, chame a crença alheia de coisa do diabo, do capiroto e, em nome de Jesus, erga a Bíblia contra “infiéis”, era quase impensável, mas desgraçadamente tem sido frequente nos últimos anos.
Fanatismo, intolerância e violência caminham juntos, embora, para nossa surpresa, Kayllane Campos tenha dito que, até então, nunca sofrera preconceito. Segundo a avó, a menina era iniciada há quatro meses e durante o período de feitura do santo, de iniciação, havia frequentado a escola sem ser alvo de nenhum tipo de discriminação, nem mesmo bullying, apesar de ir vestida de branco e com os colares rituais.
Mãe Kátia disse já ter sofrido e presenciado outros casos de perseguição, agressões verbais e até mesmo físicas, mas, desse modo, contra uma criança, nunca. Em Vila da Penha onde fica o seu barracão, outra casa de culto foi invadida e destruída por pessoas que ela acredita não serem evangélicas, pois “são pessoas fanáticas, loucas, que não têm Deus no coração.”
Nas palavras da mãe-de-santo, os casos de agressão que se repetem contra os praticantes das religiões afro-brasileiras por fanáticos que não aceitam a religião dos outros, ferem profundamente o sentimento brasileiro de sincretismo, de convívio entre as crenças. E ela tem fortes razões para crer que isso seja verdade. Embora sua neta seja iniciada no santo, sua filha, que mora ao lado com outros filhos também do candomblé, converteu-se ao protestantismo.
Segundo o secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, o fanatismo religioso é um ato de barbárie.
Esses ventos que sopram para insuflar o ódio aos que usam branco, o branco da paz, como diz mãe Kátia, mas também o branco do candomblé, da umbanda e de outras religiões de origem africana podem produzir efeitos trágicos.
Para combater a intolerância religiosa Mãe Kátia está iniciando uma campanha na qual diz: “Eu visto branco, o branco da paz porque sou candomblecista e você?”
A reação à intolerância religiosa do grupo agredido e da menina ferida pela pedrada que poderia tê-la matado foi de convite à paz, de chamamento à não violência. Esta resposta ao sectarismo é um alento de esperança. Uma esperança de que não se repita aqui a loucura das guerras e dos ódios religiosos que tão mal têm feito em outras paragens!