Tal fardo não nos poderia conferir, no entanto, qualquer direito de abusar da sua inferioridade. Pelo contrário, deixávamo-nos guiar por um dever - o de ajudá-la e protegê-la. Assim se justificava a empresa colonial como obra cuja violência, seu corolário, fundamentalmente 'civilizadora' e 'humanitária', era apenas moral.

Na maneira de pensar, classificar e imaginar os mundos distantes, o discurso europeu, tanto o erudito como o popular, foi recorrendo a processos de efabula- foi-lhe escapando a coisa que tentava apreender, mantendo com esta uma relação ção. Ao apresentar como reais, certos ou exatos, fatos muitas vezes inventados, fundamentalmente imaginária, mesmo quando a sua pretensão era desenvolver um conhecimento destinado a dá-la a conhecer objetivamente. As características principais desta relação imaginária estão ainda longe de ser esclarecidas, mas os processos graças aos quais o trabalho de efabulação se avolumou, assim como as consequências da sua violência, são, atualmente, assaz conhecidos.
Nesse sentido, há poucas coisas a acrescentar. No entanto, se existe objeto e lugar onde esta relação imaginária e a economia ficcional que a sustenta são dadas a ver de um modo mais brutal, distinto e manifesto, é exatamente este signo ao qual se chama negro e, por tabela, o aparente não-lugar a que chamamos África e cuja característica é ser não um nome comum, e muito menos um nome próprio, mas o indício de uma ausência de obra.
[...]

No decorrer do período atlântico [...], esta pequena província do planeta que é a Europa inscreve-se progressivamente numa posição de comando sobre o resto do mundo. Paralelamente, ao longo do século XVIII, surgem vários discursos sinceros acerca da natureza, da especificidade e das formas dos seres vivos, das qualidades, traços e características dos seres humanos e, até, de populações inteiras, que são especificadas em termos de espécies, gêneros ou de raças classificados ao longo de uma linha vertical.

Paradoxalmente, é também a época na qual as pessoas e as culturas co- meçam a ser consideradas individualidades encerradas em si mesmas. Cada comunidade - e até cada povo - é entendida como um corpo coletivo único.
Deixava de ser unicamente dotada da sua força própria, para ser a unidade de base de uma história conduzida, assim o cremos, por forças que surgem apenas para aniquilar outras forças, numa luta fatal cujo desenlace só pode ser a liberdade ou a escravatura. O alargamento do horizonte espacial europeu decorre juntamente com o controle e a contração da sua imaginação cultural e histórica e, até, em alguns casos, com um relativo enclausuramento do espírito. Efetivamente, uma vez identificados e classificados os gêneros, as espécies e as raças, nada resta senão indicar através de que diferenças eles se distinguem uns dos outros." MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014. p. 26-30, 37-38.

Questões
1. Indique expressões do texto que mostram que os africanos eram desuma- nizados pelos europeus.

2. Identifique o mecanismo utilizado para justificar o colonialismo como uma missão humanitária.

3. Explique por que a ideia de raça contribuiu para o estabelecimento do domínio europeu.

4. Ao definir a relação do Ocidente com a África, o autor argumenta que o negro e a África não são entendidos como algo, mas como uma ausência, um vazio. Você concorda com essa afirmação do autor? Reflita a respeito da quantidade de obras e autores africanos que você conhece para responder à questão.​
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