[...] Meu carro corta com esforço a geleia modorrenta em que o ar se transformou nesse verão. Um casal de adolescentes começa a atravessar a rua, de mãos dadas, à minha frente. Fora da faixa. Eles dão uma olhada para o meu carro, de leve, calculando. A garota faz menção de apressar o passo, o garoto a dissuade com um olhar de esguelha e, talvez, um sutil aperto na mão. Eles seguem seu ritmo, lento, rumo à outra calçada.
[...]
Percebo então que quem atravessou a rua à minha frente não foi um casal de adolescentes, foi a adolescência. E quem freou o carro não fui eu, mas a idade adulta. Pois é assim que a adolescência lida com o mundo. Não capitula, arrisca, peita. "Imagina se eu mudo meu ritmo, o mundo que se acostume a ele!", e porque os adolescentes têm um anjo protetor dos mais poderosos ou, pelo menos, uma sorte do tamanho de um bonde, acontece de chegarem, quase sempre, sãos e salvos do outro lado da rua.
Já a idade adulta pondera, põe o pé no freio quando convém, faz concessões, dirige afinada com a sinfonia dos outros, dentro dessa outra geleia modorrenta cujo nome, hoje, soa tão adolescente: sistema. E por isso me irrito, porque ali, naquela rua, diminuindo meu ritmo, me percebo velho, adequado, apascentado. Eles vão no ritmo deles, a realidade que se vire, e é assim, distraídos, que mudam o mundo.
(Meio intelectual, meio de esquerda. São Paulo: Editora 34, 2010. p. 107.)

Um conflito corriqueiro entre motorista e pedestre leva o narrador a refletir sobre as fases da vida. O fato que provoca essa reflexão é:
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