Leia mais um fragmento do conto “Biruta”, de Lygia Fagundes Telles:
— Já vou indo – respondeu o menino enquanto removia a água da bacia. Voltou-se para o cachorro. E seu rostinho pálido se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não se emendava, por quê? Por que não se esforçava um pouco para ser melhorzinho? Dona Zulu já andava impaciente, Leduína também, Biruta fez isso, Biruta fez aquilo... Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne. Leduína ficou desesperada, vinham visitas para o jantar, precisava encher os pastéis, "Alonso, você não viu onde deixei a carne?". Ele estremeceu. Biruta! Disfarçadamente foi à garagem no fundo do quintal onde dormia com o cachorro num velho colchão metido num ângulo da parede. Biruta estava lá, deitado bem em cima do travesseiro, com a posta de came entre as patas, comendo tranquilamente. Alonso arrancou-lhe a carne, escondeu-a dentro da camisa e voltou à cozinha. Deteve-se na porta ao ouvir Leduína queixar-se a Dona Zulu que a carne desaparecera, aproximava-se a hora do jantar e o açougue já estava fechado, "O que é que eu faço, Dona Zulu?!".
Ambas estavam na sala. Podia entrever a patroa a escovar freneticamente os cabelos. Ele então tirou a carne de dentro da camisa, ajeitou o papel todo roto que a envolvia e entrou com a posta na mão.
— Está aqui, Leduína.
— Mas falta um pedaço!
— Esse pedaço eu tirei pra mim, eu estava com vontade de comer um bife e aproveitei quando você foi na quitanda.
— Mas por que você escondeu o resto? – perguntou a patroa aproximando-se.
— Porque fiquei com medo.
Tinha bem viva na memória a dor que sentira nas mãos abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor com que escovava os cabelos, batendo, batendo, como se não pudesse parar nunca mais.
— Atrevido! Ainda te devolvo pro orfanato, seu ladrãozinho.
Quando ele voltou à garagem Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas, piscando os olhinhos ternos. "Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal. Não faz mal."
Isso tinha acontecido há duas semanas. E agora Biruta mordera a carteirinha de Leduína. E se fosse a carteira de Dona Zulu.
— Hein, Biruta?! E se fosse a carteira de Dona Zulu? Por que você não arrebenta minhas coisas? – prosseguiu o menino elevando a voz. – Você sabe que tem todas as minhas coisas para morder, não sabe? Pois agora não te dou presente de Natal, está acabado, você vai ver se vai ganhar alguma coisa!...
Este fragmento dá continuidade à narração iniciada no fragmento que você leu na questão anterior. Responda:
a) Com base no primeiro parágrafo deste fragmento, explique o foco narrativo do conto.
b) Considerando a ordenação temporal da narrativa, como se chama o recurso utilizado pela autora a partir do primeiro parágrafo deste fragmento? Explique e indique a frase em que ele se inicia e o advérbio que marca seu término.
Lista de comentários
Resposta:
a) O foco narrativo (aparentemente) é falar sobre um cachorro que aprontava e sofria por causa da patroa
b) A autora começou com a fala de um personagem entre travessões e um advérbio de tempo (Já).
Não sei se está certo porque está um pouco confuso o que ele quis dizer com "recurso utilizado" e "advérbio que marca seu término"
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Resposta:
a) A autora utilizou o foco narrativo em terceira pessoa onisciente. O narrador não é nenhuma das personagens, portanto é um narrador em terceira pessoa. No primeiro parágrafo deste fragmento, a frase “Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira [...]” indica a onisciência desse narrador, pois ele conhece os pensamentos da personagem.
b) O recurso narrativo chama-se flashback: o narrador retrocede duas semanas no tempo. Ele se inicia na frase “Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne”. O advérbio agora, no penúltimo parágrafo, indica o término do retrospecto, ou seja, o retorno ao presente da narrativa.
Explicação:
(EF69LP47) Analisar, em textos narrativos ficcionais, as diferentes formas de composição próprias de cada gênero, os recursos coesivos que constroem a passagem do tempo e articulam suas partes, [...] identificando o enredo e o foco narrativo e percebendo como se estrutura a narrativa nos diferentes gêneros [...].